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Ouça, mundo, porque andam dizendo umas coisas que, como dizia um apresentador, me

deixam fulo da cara.

Tornou-se hábito criticar polarizações nesses tempos. Quê? A única polarização que vejo é
entre uns poucos que roubam e matam impunemente e muitos que são roubados e mortos
sem o menor pudor. E há também os poucos que se envolvem em trambiques de vários tipos e
os muitos que são engambelados. Finalmente, há alguns que, no Brasil, parecem viver em
Luxemburgo e muitos outros que se aglomeram na Índia.

É o que vejo. Não obstante, quando aqueles que já passaram demasiado tempo sofrendo todo
tipo de insultos e violências decidem protestar com a boca bem aberta, exasperados como é
natural de se esperar de qualquer um que não tenha alma vil, e mesmo quando quem se
insurge o faz por evidente simpatia humana por quem sofre calado, na mesma hora surgem
batalhões de bombeiros do absurdo despejando metros cúbicos de platitudes singelas.
Explicitamente dizem querer acalmar os ânimos e implicitamente agem para mantê-los
submissos e dolentes, alquebrados, suportando achaques que não impediriam um novo Jó a
voltar a cobrar de Deus uma explicação.

E quem dá voz à dor e exige não explicações, mas ações, logo é tachado de bruto. Mas nunca
se viu alguém que dá uma topada violenta na cadeira, na parede ou no poste entoando versos
suaves, como forma de sublimar a dor pelo lirismo, sobretudo quando a topada, na realidade,
é agressão direta contra tudo que há de mais importante e querido. À topada segue-se
geralmente um gemido e um palavrão; à agressão sofrida o justo revide. E assim serão as
coisas enquanto ninguém decretar convincentemente o término do laço necessário entre
causa e consequência.

Portanto, se se protesta com veemência, há uma causa. Basta folhear rapidamente o inquérito
dos fatos a fim de saber se tanta reclamação generalizada tem cabimento. Os clamorosos fatos
recentes da nossa história, sendo obviamente tão públicos e notórios, me eximem de arrolá-
los um a um, dez a dez ou mil a mil. Não sou eu quem deve explicações. Explicações devem
esses bombeiros do absurdo, isso sim, que se lançam tão preocupados em cruzadas de suposto
apelo à tolerância. Por que antes não se mostraram tão genuinamente cuidadosos? Por que
nunca sentiram tamanha inquietude diante das perspectivas sombrias que há tempos já se
avizinhavam? Por que, aliás, agora decidiram aparecer se jamais haviam se mostrado?
Ninguém pode cobrar sem prestar as devidas explicações.

Se bem me lembro, todas as advertências no passado eram tachadas de delírios


conspiratórios, preconceitos infundados e estreitezas mentais, quando não de mentiras
deliberadas para fins escusos. “Cão hidrófobo”, por exemplo, era uma gentil designação dada a
quem advertia. E que se passou? Os acusados de roubar roubaram, os apontados como
criminosos praticaram crimes e assim por diante. Atualmente, apesar da comprovação cabal
dessas e outras coisas mais, não falta quem não tenha aprendido nada nem queira que outros
aprendam. Mudam-se os tempos mas nem tanto os costumes. Antigos padrões de conduta
foram absorvidos com tal devoção que, visivelmente, continuam a se manifestar
automaticamente até quando a pessoa diz e jura o contrário. Conseqüentemente, os mesmos
padrões do passado se apresentam outra e outra vez como no caso de uma neurose.
Agora me ocorreu uma história. Certa vez estava passeando pela orla de Copacabana, de
madrugada, quando vi a seguinte cena: um sujeito, bêbado que só, andava (pelo menos
tentava) acompanhado de dois travestis, cada um a seu lado, abraçados a ele. Provavelmente
o sujeito estava feliz. O que não notava, em função da sua ebriedade e do seu encantamento,
é que os dois travestis tungavam-no. Vi tudo graças ao privilégio de estar atrás e a uma certa
distância do trio. Carteira, celular, tudo lhe era surrupiado entre carícias.

Penso que essa história contém certa analogia com o que estou aqui dizendo. Assim como os
travestis simulam ser mulher, há quem simule se preocupar com o povo e com as instituições,
e, da mesma forma que certos travestis chegam a crer que são mulheres, há quem realmente
creia que mais ajuda quando mais atrapalha. Por outro lado, certos pensamentos são como
drogas: entorpecem. O viciado jamais admite que foi dominado pelo vício, assim como poucos
são capazes de notar com que obediência servil se entregam e repetem certos padrões
deletérios de pensamento e conduta. Se porventura tudo redundar em ruína e perplexidade,
jamais farão um profundo exame de consciência, preferindo tão-somente descartar uns
quantos erros patentes demais; no máximo darão nova roupagem ao carcomido. As analogias
não param por aí. É muito mais fácil se aproveitar de alguém insinuando carinho, preocupação
e bondade, quando não entorpecendo-o a ponto de não reagir se agredido. E se reagir? Como
já vi em algumas reportagens mostrando o que há em pontos de prostituição de travestis,
estes, se além de tudo forem ladrões, fazem um escarcéu dos diabos para constranger a
vítima, paralisando-a aturdida enquanto é roubada. Donde posso dizer que muita dessa gente
que prega o fim de polarizações se comparta com meliantes travestis, quer tenham
consciência disto ou não.

E sejamos claros. Há, grosso modo, três grupos distintos de brasileiros, com suas respectivas
preferências políticas. Existe quem essencialmente está comprometido de corpo e alma a um
projeto de endiabrado de poder que só desencadeia devastação e calamidades onde quer que
venha a ser implementado. São os socialistas e toda coorte de aloprados. Há, por outra parte,
quem essencialmente se preocupe tão-somente com um ambiente de negócios propícios para
forrar seu bolso, ainda que tudo o mais esteja pegando fogo. Pode chegar mesmo a oferecer
uma perna desde que garanta o acesso ao seu pote de ouro pulando numa perna só. Esses
sacis, típicas figuras folclóricas nacionais, são muitos homens de negócios que se consideram
bastante realistas desfrutando de suas fantasias financeiras. Desejosos como são dum
ambiente tranqüilo e seguro para os seus negócios, deixam-se encantar com quaisquer
promessas de estabilidade de transações, nem que empenhem vergonhosamente sua honra,
preocupam-se mais com a saúde do bolso do que com a sua própria e dos demais e são os
mais suscetíveis ao pânico diante da incerteza. Já o terceiro grupo é composto por quem pensa
que essencialmente o maior bem que há é a vida, sendo todo o resto subordinado
devidamente a ele, inclusive bens e liberdade, pois ambos só têm razão de ser enquanto
houve alguém vivo para desfrutar deles. Sem uma pessoa de carne e osso bem viva, tais bens
se convertem em muita retórica e abstração. Esse terceiro grupo é o majoritário e o que mais
clama por mudanças porque, afinal, é o que mais tem sido literalmente ferido de morte. E
como a vida humana não é puro mecanismo orgânico cego, mas fundamentada no espírito, a
afirmação primacial da vida, oriunda desse vasto grupo, implica a defesa duma série de valores
inegociáveis, sobretudo o respeito a Deus. Qualquer coisa que diretamente afronte este valor
supremo é tida como violação à própria dignidade humana.
Acontece que, como ocorria na França monárquica antes da Revolução, os dois primeiros
grupos geralmente se associam em prejuízo do terceiro, não obstante este ser o maior, o que
mais possui autoridade e a fonte de recursos dos dois primeiros. É uma das razões para que
alguns, ouvindo os clamores do terceiro grupo, apavorem-se como se estivessem diante dum
levante iminente, prestes a impôr um regime de força, ou que simplesmente virá a lhes excluir
de benesses obtidas com facilidades demais.

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