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GRISA, Cátia SCHNEIDER, Sérgio PDF
GRISA, Cátia SCHNEIDER, Sérgio PDF
Abstract: This article aims to analyze the trajectory of construction of public policies for
family farming in Brazil, trying to emphasize the “generation” or public policy referentials
strengthened in some key moments, the way these benchmarks were built and the relations
between state and civil society. The analysis points to the emergence, in different periods
and contexts, of three generations or public policy benchmarks for family farming, the first
being guided by strengthening the agricultural and agrarian bias of these social group; the
second focusing on social and welfare policies, and the third, by building market devices
Key-words: Public policies, family farming, referential, civil society, and Sate.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S125-S146, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
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RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S125-S146, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S128 Três Gerações de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de Interação entre Sociedade e Estado no Brasil
tornam efetiva a ação do Estado a partir das dife- 2. Primeira geração de políticas
rentes representações de mundo e dos proble- para a agricultura familiar:
mas públicos construídos pelo conjunto de atores a construção de um referencial
envolvidos na elaboração das políticas públicas. agrícola e agrário
Este referencial é objeto de negociação perma-
nente entre os protagonistas das trocas políticas, Desde a segunda metade da década de 1950,
sendo suscetível de inclusões, recortes e trans- o governo brasileiro adotou de forma mais acen-
formações em função das relações de força e dos tuada a estratégia de industrialização por substi-
objetivos políticos dos diferentes atores envolvi- tuição de importações (referencial global), como
dos na construção da política pública. uma tentativa de superar a defasagem que sepa-
É importante referir que a definição destas rava o Brasil das economias capitalistas indus-
gerações de políticas e seus referenciais também trializadas (BIELSCHOWSKY, 2006, 2000). Nesta
possui um sentido heurístico, que utilizamos com estratégia nacional-desenvolvimentista, o Estado
o objetivo de identificar os distintos “momen- atuou como agente produtivo por meio da cria-
tos críticos” em que apareceram ou foram cria- ção de infraestruturas estatais; agente financeiro,
das novas formas de ação governamental. No promovendo a transformação da estrutura indus-
entanto, isto não quer dizer que estas gerações de trial; articulador de capitais privados nacionais e
políticas possuem uma linearidade longitudinal internacionais e formulador e executor de polí-
e nem que uma geração precede a outra, como ticas macroeconômicas e setoriais, privilegiando
se houvesse uma ampliação de escala ou redi- a constituição de uma economia industrial
recionamento de enfoque. As três gerações de (DELGADO, 2010). Todavia, no início da década
políticas identificadas não encerraram seu ciclo, de 1960, essa estratégia apresentou sintomas
continuam em funcionamento e seguidamente de crise em razão das dificuldades no abasteci-
sofrem ajustes e/ou alterações em sua formulação mento alimentar interno, do aumento da infla-
ou escopo. ção (saldo da rigidez da oferta do setor agrário
A primeira seção do artigo debate a emer- frente ao crescimento da demanda por produtos
gência das políticas para a agricultura familiar primários pela industrialização e urbanização),
e a conformação de um referencial de política do esgotamento da capacidade de importar bens
pública agrícola e agrário. A seção seguinte apre- necessários à industrialização do País (que, por
senta os elementos que caracterizam a segunda sua vez, demandava investimentos em exporta-
geração de políticas para a agricultura familiar ções para criar divisas) e da emergência de críti-
pautada em um referencial social e assistencial e cas ao padrão dependente e excludente seguido
como este referencial se expressa em programas e pela industrialização (DELGADO, 2010, 1988;
ações públicas. A terceira seção evidencia a cons- COELHO, 2001; CASTRO, 1984).
trução e a incidência de uma nova geração de Desta crise, duas opções e “referenciais seto-
políticas públicas para a agricultura familiar sus- riais” aparecem na agenda pública. Reivindicada
tentada na construção de novos mercados com por acadêmicos (Caio Prado, Alberto Passos
foco na segurança alimentar e a sustentabilidade. Guimarães, Ignácio Rangel e notadamente a ver-
Ao longo destas seções também são salientadas tente “cepalina estruturalista” representada por
mudanças nas formas de relação e interação entre Celso Furtado), por políticos (nomeadamente
Estado e sociedade civil. O artigo é finalizado o governo de João Goulart) e por movimentos
com algumas considerações sobre a vigência des- sociais (Ligas Camponesas, União dos Lavradores
tes referenciais e as relações entre Estado e socie- e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, Movimento
dade civil na atualidade. dos Trabalhadores Sem Terra, Confederação
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Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – uma atuação mais crítica e propositiva da Contag,
Contag), uma destas opções clamava por um con- principal representação dos “pequenos agriculto-
junto de reformas de base, dentre elas a reforma res” na época. Conforme evidenciado por Grisa
agrária, visando dinamizar o mercado interno. (2012), a construção das políticas públicas para a
Contrapondo-se a esta opção e sustentada pelas agricultura resultava basicamente das represen-
elites agrárias, por acadêmicos vinculados a eco- tações de mundo e do setor (referencial global e
nomistas da Universidade de São Paulo (princi- setorial) oriundas de gestores públicos, acadêmi-
palmente Antonio Delfim Neto) e por militares cos e representantes de grupos de interesse, con-
que tomaram o governo federal, outro referencial formando um referencial setorial direcionado
setorial foi institucionalizado no Brasil, orientado para a modernização da agricultura.
pela modernização tecnológica da agricultura No final dos anos 1970, este cenário come-
(GRISA, 2012; DELGADO, 2005). Argumenta-se çou a ser alterado, sendo emblemática a mudança
que a agricultura precisava modernizar-se para de posicionamento político da Contag entre
cumprir suas funções no desenvolvimento eco- o II Congresso Nacional dos Trabalhadores
nômico do País. O ajuste entre o setor da agricul- Rurais (1973) e o III Congresso Nacional dos
tura (“referencial setorial”) e a industrialização da Trabalhadores Rurais (1979). No II Congresso –
economia do País (“referencial global”) passou a período de maior repressão da ditadura militar –,
ser realizado por um conjunto de ações e políticas ainda que pautando a reforma agrária, o “tom”
públicas, como crédito rural, garantia de preços da Contag era conciliador em relação ao governo,
mínimos, seguro agrícola, pesquisa agropecuária, ressaltando as conquistas já adquiridas em ter-
assistência técnica e extensão rural, incentivos mos de previdência social e proteção ao trabalha-
fiscais às exportações, minidesvalorizações cam- dor rural (CONTAG, 1973). No III Congresso, a
biais, subsídios à aquisição de insumos, expan- Contag apresentou-se mais combativa e reivin-
são da fronteira agrícola, e o desenvolvimento dicatória, cobrando insistentemente a reforma
de infraestruturas. Por cerca de 20 anos, este foi agrária e uma política agrícola adequada às parti-
o referencial setorial predominante que orientou cularidades dos pequenos agricultores (CONTAG,
as ações do Estado no setor agrícola e pecuário 1979a; CONTAG, 1979b). Conforme expresso no
– configurando o que Delgado (2001) denomi- Boletim Periódico da Confederação, “hoje fala-
nou de “política agrícola ativa” –, o qual, como mos menos em encaminhar e mais em reivindi-
já apontado por vários estudos (DELGADO, car; não se fala mais em pedir e sim, em exigir”
2010; GRAZIANO DA SILVA, 1999; GONÇALVES (CONTAG, 1979b, p. 26). As disputas no interior
NETO, 1997; KAGEYAMA et al., 1990; GUEDES do sindicalismo, a emergência do “novo sindica-
PINTO, 1978), apresentou um caráter triplamente lismo rural” e de novos movimentos sociais incre-
seletivo, beneficiando principalmente os médios mentaram esta postura reivindicativa, de protesto
e os grandes agricultores, localizados nas regi- e crítica ao governo federal (PICOLOTTO, 2011;
ões Sul e Sudeste, produtores de produtos dire- SCHNEIDER, 2010; FAVARETO, 2006; SCHMITT,
cionados à exportação ou de interesses de grupos 1996). A defesa da reforma agrária, a demanda
agroindustriais (café, soja, trigo, cana-de-açúcar, por políticas diferenciadas e por legislação traba-
laranja, algodão). lhista e críticas ao regime ditatorial tornaram-se
Durante os vinte anos de ditadura militar, os constantes nas reivindicações dos representantes
representantes da sociedade civil vinculados à da agricultura familiar.
agricultura familiar não encontraram espaço na Estas mudanças incrementaram-se com a
arena pública para discutir e construir em con- redemocratização a partir de meados da década
junto com os gestores públicos políticas para a de 1980 e com o debate da constituinte em 1988.
categoria social. O contexto político e institucio- O processo de democratização permitiu um
nal excluía a participação destes atores e limitava “intenso movimento de rearticulação e flores-
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em 1994, o qual provocou queda da renda real do de um seguro agrícola destinado exclusivamente
setor agrícola de 20% a 30% no primeiro semestre à cobertura das explorações agropecuárias dos
de 1995; (d) a valorização da taxa de câmbio, asso- pequenos produtores rurais; a conformação de
ciada ao grande volume de recursos disponíveis alguns programas para fazer frente ao Mercosul;
no sistema financeiro internacional e as elevadas a proposição de uma definição de pequeno pro-
taxas de juros domésticas, as quais favoreceram o dutor, que balizaria a construção de políticas
aumento das importações de produtos agrícolas públicas para a categoria social; a institucionali-
e o decréscimo das exportações (MATTEI, 2014; zação dessa definição via substitutivo ao Projeto
PICOLOTTO, 2011; DELGADO, 2010). Estas de Lei ou minuta de Medida Provisória; a inclu-
medidas ameaçaram as condições de reprodu- são deste conjunto de propostas já no Plano Safra
ção social e econômica da agricultura familiar, a 1994/95, em especial aquelas relacionadas à defi-
qual já havia sido afetada pelas consequências da nição de pequeno produtor e às políticas de cré-
modernização da agricultura. dito rural e seguro agrícola; e a criação no Maara
Diante destas medidas econômicas que de uma Secretaria específica que estabelecesse e
incrementaram a fragilidade social da categoria coordenasse as políticas agrícolas diferenciadas
social, e aproveitando as possibilidades abertas (Brasil, MAARA/CONTAG, 1994).
com a redemocratização, os representantes da Fruto das mobilizações sociais realizadas
agricultura familiar recrudesceram sua postura por movimentos sociais vinculados à agricultura
propositiva e, por meio de mobilizações sociais familiar, de uma mudança paradigmática nos
expressivas (como os Gritos da Terra Brasil, cuja estudos rurais (que passaram a destacar a per-
primeira edição foi realizada em 1994), passa- manência e a importância da agricultura fami-
ram a exigir políticas específicas para a categoria, liar nos países desenvolvidos) (SCHNEIDER,
bem como a participação na construção destas. 2003; LAMARCHE, 1999, 1993; ABRAMOVAY,
Um momento emblemático neste sentido foi a 1992; VEIGA, 1991), e dos próprios interesses
construção do documento “Propostas e reco- do governo federal em manter a ordem social
mendações de política agrícola diferenciada para no campo e certa influência no sindicalismo dos
o pequeno produtor rural” (BRASIL, MAARA/ trabalhadores rurais (GRISA, 2012), criou-se a
CONTAG, 1994), elaborado por uma Comissão primeira política agrícola nacional direcionada
Técnica do Pequeno Produtor (Portarias Maara especificadamente para agricultores familiares.
n. 692 de 30/11/1993 e n. 42 de 24/01/1994), no Trata-se da institucionalização do Pronaf, em
Ministério da Agricultura, do Abastecimento e 1995, que marcou o reconhecimento político
da Reforma Agrária (Maara), com a participa- e institucional do Estado brasileiro à categoria
ção da Contag4. Cabe salientar, como inovações social, configurando-se um “momento crítico”
deste documento, dentre outros elementos, as (MAHONEY, 2001)5 que abriu possibilidades
propostas de criação de um “Programa Especial institucionais para a criação de novas políticas
de Crédito para os Pequenos Produtores Rurais”, para a agricultura familiar. O Pronaf delineava-
com encargos financeiros, prazos, carências e for- -se como uma política de crédito rural que con-
mas de pagamentos específicos; a implantação tribuiria para a capitalização e o acesso dos
agricultores familiares “em transição” aos mer-
4. Desde a criação do DNTR/CUT em 1988, o sindicalismo
cados, tornando-os consolidados (FAO-INCRA,
cutista viveu uma situação ambígua entre construir uma
estrutura autônoma e, portanto, negar a estrutura oficial 5. Este termo foi cunhado por Mahoney (2001), referindo-se
(Contag) ou aceitar em sua base os sindicatos oficiais e ao modo como as escolhas institucionais dos atores, em
disputar a estrutura contaguiana (PICOLOTTO, 2011; momentos críticos, criam instituições que tendem a persis-
FAVARETO, 2006). Em 1991, a CUT decidiu por compor a tir e não são facilmente alteradas, orientando e condicio-
diretoria da Contag e, em 1995, esta filiou-se àquela. Esta nando o comportamento e as decisões subsequentes dos
unificação contribuiu para dar maior visibilidade e poder diferentes agentes envolvidos em processos concretos de
de reivindicação ao sindicalismo dos trabalhadores rurais. produção da ruralidade.
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S132 Três Gerações de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de Interação entre Sociedade e Estado no Brasil
1994). Iniciava-se com o Pronaf a construção de Seguindo Schneider, Shiki e Belik (2010), este
um conjunto de medidas orientadas para fortale- é o contexto que permitira a emergência de uma
cer e garantir a produção agrícola dos agriculto- primeira geração de políticas públicas para a agri-
res familiares. A criação do Seguro da Agricultura cultura familiar no Brasil, as quais apresenta-
Familiar (Seaf-2004) e do Programa de Garantia ram um referencial setorial basicamente agrícola
de Preço da Agricultura Familiar (PGPAF-2006) (crédito rural, seguro de produção e de preço)
e a retomada da Assistência Técnica e Extensão e agrário (política de assentamentos de reforma
Rural (Ater) pública em anos posteriores reforça- agrária)7. Estas políticas exigiram do governo e da
riam este cenário. sociedade brasileira um olhar mais atento para
É importante destacar que, em meados da a importância da agricultura familiar no desen-
década de 1990, as lutas do MST também esta- volvimento do País e para as suas condições de
vam em um momento de ascensão e os confli- reprodução social com base na terra e na produ-
tos agrários se acirravam. Dois fatos marcaram ção agrícola. Como ilustra a Figura 1, a seguir,
este período. O primeiro deles refere-se ao con- estas políticas emergiram em meados da década
flito conhecido como “Massacre de Corumbiara”, de 1990 e continuam vigentes atualmente, sendo
ocorrido em Rondônia em meados de 1995, onde reivindicadas e estando em permanente constru-
agricultores sem terra e a polícia entraram em con- ção/aperfeiçoamento, principalmente pela retro-
fronto, resultando na morte de 10 pessoas. Similar alimentação das ideias de organizações sociais e
a este, o segundo fato diz respeito ao “Massacre de sindicais da agricultura familiar, gestores públicos
Eldorado do Carajás”, ocorrido no Pará em 1996, e estudiosos do mundo rural.
no qual 17 agricultores sem terra foram assassina- O Pronaf se constituiu na principal política
dos. Estes fatos tiveram grande repercussão nacio- agrícola para a agricultura familiar (em número
nal e internacional e, concomitante à continuidade de beneficiários, capilaridade nacional e recursos
das mobilizações sociais, desencadearam o incre- aplicados) e, historicamente, tem contado com um
mento na política de assentamentos de reforma montante crescente de recursos disponibilizados,
agrária, que havia ganhado um novo ímpeto atingindo, no Plano Safra da Agricultura Familiar
com a redemocratização e a proposta do I Plano 2014/2015, o valor de R$ 24,1 bilhões. Ilustrando
Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), no início seu viés de fortalecimento da produção agrícola,
do governo Sarney (1985), mas, logo em seguida, diversos estudos apontam que o programa tem
foram arrefecidos pelas pressões de atores e orga- beneficiado principalmente as unidades familia-
nizações contrários a este referencial setorial. Com
efeito, a criação do Pronaf e o incremento da polí- 7. Cabe destacar que o referencial de política pública do Pronaf
apresentava, em sua proposição inicial, coerência com o
tica de assentamentos de reforma agrária surgem, referencial global do neoliberalismo, seguido pelos gover-
em certa medida, como resposta às pressões oriun- nos federais (Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique
Cardoso) desde o início da década de 1990. Seguindo orien-
das de várias mobilizações sociais (eventos regio- tações acadêmicas, compreendia-se o programa como um
nais, Gritos da Terra Brasil, ocupações de terra e mecanismo para impulsionar para os mercados os agriculto-
acampamentos de reforma agrária).6 res familiares que apresentassem um mínimo de condições
produtivas (GUANZIROLI, 2007; BRASIL, MINISTÉRIO
DA AGRICULTURA E DO ABASTECIMENTO, 1998; FAO/
6. A criação do Pronaf também resultou de uma espécie de INCRA, 1994; BANCO MUNDIAL, 1994). O Estado deve-
troca política entre governantes e representantes sindicais ria intervir nas “falhas de mercado” e promover a inserção
da agricultura familiar. Como observaram Grisa (2012) e econômica destes grupos sociais. Já a política de criação de
Medeiros (2001), conceder políticas distributivas tornava- assentamentos de reforma, diferente da coerência “pre-
-se estratégico ao governo, o qual visava amenizar e con- vista” por Muller (2008), apresentava um referencial de
ter a contestação social e, ao mesmo tempo, manter certa política pública distinto do referencial global seguido pelo
influência sobre o sindicalismo rural e garantir o seu apoio governo Fernando Henrique Cardoso. Contudo, não tar-
eleitoral. A não adoção de medidas pelo governo federal dou para o governo federal tentar adequar aquele a este
poderia incrementar o poder de mobilização do MST, que com a “Reforma Agrária de Mercado”, como definiram
vinha angariando crescente reconhecimento e legitimi- diversos autores (SAUER e PEREIRA, 2005; PEREIRA, 2004;
dade social, inclusive no meio urbano. MEDEIROS, 2003).
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res de produção em melhores condições socioe- tantes que contribuíram de forma decisiva para
conômicas, localizadas nas regiões Sul e Sudeste, a emergência da primeira geração de políticas
e promovido o cultivo de produtos competitivos para a agricultura familiar, baseada em um refe-
no mercado internacional, os quais são controla- rencial agrícola e agrário (PICOLOTTO, 2011;
dos por poucas empresas do sistema agroindus- SCHNEIDER, 2010; FAVARETO, 2006). A parti-
trial e cuja forma de produção está assentada no cipação proeminente de representantes dos agri-
uso generalizado de insumos modernos. O milho cultores familiares e de gestores vinculados ao
e a soja respondem, desde 2001, por mais de 50% Mapa (e, a partir de 1999, ao MDA) na constru-
dos recursos aplicados pelo Pronaf no custeio de ção destas políticas públicas explica, em grande
lavouras (em 2002 e 2003, os dois produtos alcan- medida, o referencial que orientou a elaboração
çaram mais de 60%). Se somarmos os recursos apli- das mesmas. A esta demanda social e política se
cados no café (cultivo que apresentou importante somaram os estudos e resultados de pesquisas
crescimento em número de contratos e recursos que destacavam de forma eloquente a impor-
no período em análise), este valor atinge cerca de tância econômica dos agricultores familiares
70% dos recursos aplicados no custeio de lavouras nos países desenvolvidos (LAMARCHE, 1993;
(GRISA, WESZ JR. e BUCHWEITZ, 2014). ABRAMOVAY, 1992; VEIGA, 1991).
A política de assentamentos de reforma agrá- Esta confluência de esforços e evidências
ria também continuou sendo realizada em anos criou as condições para que, também no Brasil, a
seguintes, ainda que com importantes oscilações. agricultura familiar passasse a ser vista de forma
Segundo dados do DataLuta (2013), a política positiva e relevante para a produção de alimen-
de criação de assentamentos de reforma agrá- tos e geração de empregos. A construção do
ria incrementou-se de 1995 a 1997, atingindo o Pronaf resultou do diálogo e da negociação de
número de 92,99 mil famílias assentadas neste ideias entre três “fóruns de produção de ideias”8,
último ano, sendo que, a partir de então, os núme- conformados pelo representantes dos agriculto-
ros foram reduzindo-se até 2003, quando, no iní- res familiares, dos estudiosos do mundo rural e
cio do governo Lula, há novamente uma reação de políticos e gestores públicos (GRISA, 2012).
e alcança o número máximo de 104.197 famílias As políticas agrícolas para a agricultura familiar
assentadas em 2005. Após este período, os núme- desencadeadas pelo Pronaf, e a ele estritamente
ros decrescem novamente. No segundo mandato vinculadas (Seaf e PGPAF), resultam fundamen-
do governo Lula e no mandato da presidente talmente das proposições e negociações entre
Dilma, de modo geral, os números permanecem gestores públicos e os representantes da agricul-
abaixo da trajetória gerada a partir de 1995. Desde tura familiar, que a partir de 2003 asseguraram
os governos Lula e (sobretudo) Dilma, o enfoque mais um canal de diálogo com o Governo Federal
central parece ser a qualificação dos assentamen- por meio das discussões anuais para definição
tos já constituídos, melhorando as condições de dos Planos Safra da Agricultura Familiar.
infraestrutura e de produção, enquanto a criação
de novos foi posta em um segundo plano, rea-
lizada fundamentalmente com a incorporação
de terras públicas nas regiões Norte e Nordeste
8. “Fóruns de produção de ideias” é um conceito original-
(FERNANDES, 2013; IPEA, 2012; MATTEI, 2012). mente utilizado por Jobert (1994) e discutido também por
Em síntese, pode-se sinalizar que a adoção Fouilleux (2003). Referem-se aos espaços mais ou menos
de estratégias propositivas do sindicalismo dos institucionalizados e especializados, regidos por regras e
dinâmicas específicas, nos quais grupos de atores debatem
trabalhadores rurais, em contraposição a uma visões de mundo. Coerentes com a abordagem cognitiva,
postura crítica, de protestos e reivindicações, até compreendem-se como espaços onde as ideias são pro-
duzidas. Cada fórum é produtor de diferentes represen-
então prevalecente, assim como a pressão social tações, ideias sobre as políticas, as quais variam segundo
dos movimentos sociais, foram elementos impor- interesses, identidades, relações de poder e instituições.
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S134 Três Gerações de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de Interação entre Sociedade e Estado no Brasil
Figura 1. Principais grupos de atores atuantes na construção dos referenciais de política pública
para a agricultura familiar ao longo dos anos
Representantes
Representantes sindicais e movimentos
Representantes sociais da agricultura
sindicais e movimentos
sindicais e movimentos familiar
sociais da agricultura
sociais da agricultura
familiar Organizações do
familiar
campo agroecológico Organizações da
Políticos e gestoes Políticos e gestores sociedade civil
públicos públicos Políticos e gestores vinculados ao tema
Representantes do
públicos da Segurança Alimentar
agronegócio
Estudiosos do e Nutricional
mundo rural
Estudiosos do Mundo Estudiosos do Mundo
Rural Rural e da Segurança
Alimentar e Nutricional
Presença do referencial na arena pública, ainda que ocilando em termos de intensidade de execução;
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Esta mudança tem seu início no Governo Pronaf com o Programa Comunidade Solidária
FHC, com o Programa Comunidade Solidária, alterasse o programa como um todo, tornando-o
e se consolida no Governo Lula, por meio do um programa de assistência social. No III Grito da
Programa Fome Zero, no qual o Bolsa Família é Terra Brasil (1996, p.13), as organizações da agri-
um dos destaques. O Programa Comunidade cultura familiar assim se manifestaram a respeito:
Solidária propunha avançar na parceria Estado- “O Pronaf não pode ser confundido com pro-
sociedade e contemplar ações relacionadas com gramas de assistência social, mas deve ser uma
a questão alimentar, a miséria, pobreza e inequi- prioridade do Governo Federal pelo desenvol-
dade. A proposta do “Comunidade Solidária” vimento da agricultura familiar, definida como a
era conferir “selo de prioridade” a 16 progra- mais eficiente nos aspectos econômico e social”.
mas governamentais em seis áreas de atuação: Conforme Marques (2004, p. 12), neste contexto, a
redução da mortalidade na infância, alimenta- Contag e a Secretaria de Desenvolvimento Rural
ção, apoio ao ensino fundamental e pré-escolar, do Maara, que gestaram o Pronaf, afastaram-se
habitação e saneamento, geração de ocupação e progressivamente do Programa Comunidade
renda e qualificação profissional, e fortalecimento Solidária. “O distanciamento foi acompanhado
da agricultura familiar (BRASIL, COMUNIDADE pela recusa, por parte destas últimas, da asso-
SOLIDÁRIA, 1998). Buscava-se construir a inte- ciação de suas iniciativas com os propósitos que
gração e a convergência dessas ações em áreas privilegiam, antes de tudo, os objetivos visando
geográficas (municípios) com maior concentra- o combate à miséria em torno do apoio à agricul-
ção de pobreza (MALUF, 2007; TAKAGI, 2006; tura familiar.”
PELIANO, 2001). Com base neste referencial, Todavia, logo após a institucionalização do
delineado fundamentalmente a partir das ideias Pronaf, as próprias organizações da agricultura
de políticos, gestores públicos e estudiosos vin- familiar começaram a pautar a necessidade de o
culados ao ideário liberal, as políticas para a agri- Pronaf atender a diversidade socioeconômica da
cultura familiar se aproximaram das políticas agricultura familiar, culminando na criação de
sociais (MARQUES, 2004; VILELA, 1997; BANCO grupos e linhas direcionadas aos agricultores mais
MUNDIAL, 1994). descapitalizados ou em situação de vulnerabili-
Em relação à agricultura familiar, o pri- dade social, a exemplo da criação do “Pronafinho”
meiro passo nessa direção foi a criação da linha em 1997 e do Grupo B10, em 1999. Havia a preocu-
Infraestrutura e Serviços Municipais do Pronaf, pação de que a continuidade das regras e normas
que visava dar apoio a infraestruturas para inicialmente estabelecidas no Pronaf poderiam
os municípios com “a distribuição fundiária reproduzir desigualdades expressivas no interior
mais pulverizada, a menor taxa de urbaniza- da agricultura familiar (GRISA, 2012).
ção e a mais baixa produtividade agrícola”, ou De 1998 até meados dos anos 2000, emergiu
seja, municípios mais periféricos e mais pobres, um conjunto de ações de transferência de renda
distanciando-se, segundo Abramovay e Veiga que contemplaram a agricultura familiar (ainda
(1999), da proposta originalmente construída que não exclusivamente), como o Bolsa Escola,
para este Programa9. As organizações da agri- Bolsa Alimentação e Auxílio Gás, que a par-
cultura familiar temeram que a aproximação do tir de 2003 foram integradas ao Programa Bolsa
Família. O Programa Fome Zero, criado no início
9. Cabe destacar que, no âmbito das políticas sociais para a
agricultura familiar, uma ação pioneira foi a inclusão dos 10. Visando ampliar a participação da diversidade da agricul-
trabalhadores em regime de economia familiar no sistema tura familiar no Pronaf, em 1999 teve inicío a criação de
de seguridade social pela Constituição Federal de 1988 grupos no interior do Programa de acordo com o grau de
(DELGADO, 2014). Esta medida antecede o próprio reco- capitalização dos agricultores familiares e de beneficiários
nhecimento político da categoria agricultura familiar que de programas de reforma agrária. O grupo B se refere
iria ocorrer em meados da década de 1990, como visto na aos agricultores em maior vulnerabilidade social e corres-
seção anterior. ponde ao microcrédito produtivo rural.
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S136 Três Gerações de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de Interação entre Sociedade e Estado no Brasil
do Governo Lula, daria um novo impulso a estas cipação da sociedade civil vinculada à agricultura
ações, às políticas sociais e ao combate à pobreza familiar nas decisões de desenvolvimento. Ainda
rural (e urbana). Posteriormente, já no governo que o Pronat não tenha emergido explicitamente
Dilma Roussef, estas ações foram retomadas e com um viés para combater a pobreza rural, na
potencializadas com a criação do Plano Brasil delimitação dos territórios foram priorizados,
Sem Miséria, seja com o incremento do Programa dentre outros critérios, contextos com maior
Bolsa Família, da criação do Brasil Carinhoso e do concentração do público prioritário do MDA
Programa Bolsa Verde, seja com ações que visam (agricultores familiares, assentados da reforma
à inclusão socioprodutiva da população rural em agrária e agricultores beneficiários do reorde-
pobreza extrema por meio da disponibilização de namento agrário) – portanto, com maior inten-
crédito de fomento a fundo perdido (R$ 2.400,00/ sidade de demanda social – e com Índices de
família) para a aquisição de insumos e equipa- Desenvolvimento Humano reduzido, de modo a
mentos, assistência técnica diferenciada para este priorizar os municípios com menores condições
público, e doação de sementes e tecnologias da de desenvolvimento (DELGADO e LEITE, 2011;
Embrapa para iniciar os processos produtivos. ECHEVERRI, 2009).
Dando sequência à criação de políticas dife- Em 2008, esta perspectiva de atuação via ter-
renciadas para a agricultura familiar, agora orien- ritórios ganhou um novo impulso com a criação
tadas pelo referencial setorial focado em políticas do Programa Territórios da Cidadania (PTC) que
sociais e assistenciais, em 2002 foi estabelecido o visava articular e potencializar as ações de um
Programa Garantia Safra, voltado ao segmento conjunto de políticas públicas em alguns territó-
mais vulnerável desta categoria social, visando rios economicamente mais fragilizados. A prio-
garantir renda aos agricultores localizados na ridade era atender territórios que apresentavam
região Nordeste do País, norte de Minas Gerais, baixo acesso a serviços básicos, índices de estag-
Vale do Mucuri, Vale do Jequitinhonha e norte do nação na geração de renda e carência de políticas
Espírito Santo que sofrerem com a perda de safra integradas e sustentáveis para autonomia econô-
por motivos de seca ou excesso de chuvas. mica de médio prazo. A relação entre políticas
Em 2003, já no Governo Lula, foi criado o territoriais e pobreza ganhava contornos mais
Programa de Habitação Rural (PNHR) com o fito evidentes no PTC. Ainda que não exclusivos à
de garantir subsídios financeiros para a aquisi- agricultura familiar, o Pronat e o PTC beneficia-
ção de materiais para a construção ou conclusão/ ram sobremaneira a categoria social.
reforma/ampliação de unidades habitacionais No decorrer dos anos, este referencial de polí-
de agricultores familiares e trabalhadores que tica pública orientado pelo social e socioassistencial
atendam aos critérios estabelecidos pelo Pronaf. passou a apresentar certas ambiguidades referen-
Atualmente, o Programa Nacional de Habitação tes à sua origem e aos seus propósitos. Por um
Rural faz parte do Programa Minha Casa, Minha lado, representantes da agricultura familiar, gesto-
Vida, criado em 2009, contribuindo para a melho- res públicos e estudiosos do mundo rural passam
ria de infraestruturas e para o bem-estar das famí- a reivindicar um “olhar” mais atento do Estado
lias rurais. aos grupos vulneráveis da categoria social e do
Ainda em 2003, foi extinto o Pronaf mundo rural e reivindicam políticas sociais para
Infraestrutura e Serviços Municipais que deu estes, seja no sentido de contribuir e garantir a
lugar ao Programa Desenvolvimento Sustentável sua reprodução social, seja com vistas a dar condi-
de Territórios Rurais (Pronat), que buscava pro- ções para que estes atores conseguissem minima-
mover o desenvolvimento, infraestruturas e a mente alterar suas condições sociais e econômicas
gestão de territórios rurais. Os Territórios “des- e passassem a interagir nos mercados agrícolas e
pertavam” como um espaço intermediário entre de trabalho (BIANCHINI, 2010; MATTEI, 2006;
os municípios e os estados, possibilitando a parti- BRASIL, MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E
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Catia Grisa e Sergio Schneider S137
DO ABASTECIMENTO, 1998; GRITO DA TERRA que estas políticas passaram a ser especialmente
BRASIL, 1998). A criação do Pronaf B, do Programa importantes nas regiões rurais do País, como a
Garantia Safra, do PNHR, das políticas territo- região do semiárido nordestino. Neste sentido,
riais e do Programa de Fomento às Atividades nem sempre de forma planejada e deliberada-
Produtivas Rurais incluído no Plano Brasil Sem mente intencional, as políticas sociais e assis-
Miséria são exemplos neste sentido. tências acabaram tendo repercussões sobre o
Por outro lado, este mesmo referencial pas- desenvolvimento rural sob um viés que não é da
sou a ser reivindicado por representantes do inclusão produtiva ou pela ativação do mercado
setor denominado politicamente como agrone- de trabalho. Nas últimas duas décadas, as áreas
gócio, promovido por estudiosos do mundo rural rurais mais empobrecidas do Brasil conheceram
e incorporado por segmentos da gestão pública melhorias inegáveis em seus indicadores con-
(NAVARRO e CAMPOS, 2013; BUAINAIN e vencionais de desenvolvimento (incremento de
GARCIA, 2013; CNA, 2010; ALVES e ROCHA, renda, por exemplo) que, talvez, não teriam sido
2010). Elucidando esta perspectiva, citam-se as alcançadas apenas por meio das ações agrícolas e
interpretações de Alves e Rocha (2010). Segundo agrárias que analisamos na primeira geração de
estes autores, a produção agropecuária nacional políticas.
está concentrada em 8,19% dos estabelecimen-
tos (423.689) que atingiram um valor equivalente
a 84,89% da produção dos 5.175.489 de estabele-
cimentos. Além destes, há quase um milhão de
4. Terceira geração de políticas
estabelecimentos que “têm condições de melho- para a agricultura familiar:
rar sua renda na agricultura, mas carecem de a construção de um referencial
ajuda no que diz respeito à extensão rural, crédito pautado pela construção de
de custeio e investimentos, compra da produ- mercados para a segurança alimentar
ção quando os preços despencam etc.”. “Restam e a sustentabilidade ambiental
3.775.826 estabelecimentos, cujo valor da produ-
ção é de R$ 128,13 por mês. Na agricultura, sim- Os anos 2000 se iniciam sob o efeito de
plesmente não há solução para o problema de uma mudança política importante, que decorre
pobreza destes. Forte dose de política social, de das eleições presidenciais de 2002 e da assun-
caráter assistencialista faz necessária para man- ção de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência
ter as famílias a eles vinculadas nos campos” da República. De um governo identificado com
(ALVES e ROCHA, 2010, p. 288). Nesta perspec- os princípios do referencial global do neolibera-
tiva agrícola-centrada, grande parte da agricul- lismo e lastreado por uma aliança política com os
tura familiar – ou da “pequena produção”, como setores mais conservadores da política nacional,
mencionam – deve ser objeto de políticas sociais passou-se a um governo eleito com o apoio e par-
e de outras políticas que incrementem as possi- ticipação de vários partidos e movimentos sociais
bilidades de renda não agrícola, direcionando as situados mais à esquerda do espectro político
políticas agrícolas apenas para os segmentos eco- sem, no entanto, deixar de contemplar ideias e
nomicamente mais estruturados do agronegócio. interesses de grupos representantes da burguesia
A geração de políticas com enfoque em ações bancária, industrial e agrícola nacional (MIELITZ,
de cunho social e assistencial tem sido indicada 2011). Neste contexto, segundo Mielitz (2011,
por analistas e mesmo por gestores públicos p. 239), “rupturas radicais com o modelo do pas-
como as responsáveis pela redução da pobreza sado [...] acabaram por não acontecer” e a manu-
e da desigualdade no meio rural. Há inúmeras tenção da estabilidade econômica com um baixo
evidências estatísticas que dão suporte a estes nível de inflação tornou-se uma meta “sagrada”
resultados. Mas o que nos interessa salientar é que subordinava outras questões. Não obstante,
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S138 Três Gerações de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de Interação entre Sociedade e Estado no Brasil
importantes alterações ocorreram nas relações mesmo tempo reivindicava-se a agricultura fami-
e no papel do Estado e da sociedade civil, espe- liar como meio de promover o acesso aos alimen-
cialmente no que se refere ao direcionamento tos e um sistema agroalimentar mais equitativo.
das políticas públicas, na relação com os movi- Com o início do Governo FHC e o consequente
mentos sociais e com a sociedade civil. Atores até arrefecimento do tema da segurança alimen-
então marginais nas arenas públicas tornaram- tar e nutricional (substituído pelo Programa
-se dominantes (caso de políticos vinculados ao Comunidade Solidária), estes atores encontraram
Partido dos Trabalhadores) e abriram oportunida- limitações políticas e institucionais para atuarem
des para a institucionalização de “novas” ideias na construção de políticas públicas,
e reivindicações de políticos, estudiosos, movi- Quando o Presidente Lula assumiu, os temas
mentos sociais e de organizações da sociedade da fome e da segurança alimentar e nutricio-
civil, dentre estes principalmente daqueles atu- nal ganharam um novo ímpeto e estes atores
antes no tema da segurança alimentar e nutricio- encontraram possibilidades para institucionaliza-
nal (e também, em grande medida, vinculados ao rem suas ideias. O Consea foi restabelecido e foi
campo agroecológico). criado o Ministério Extraordinário de Segurança
Estes atores vinham propondo e disputando Alimentar e Combate à Fome (MESA), tornando-
as políticas públicas desde o início dos anos 1990; -se ministro o professor José Graziano da Silva,
no entanto, é apenas com a mudança política em um importante intelectual que teve papel deci-
2002 que os mesmos conseguiram pautar a cons- sivo na formulação e implementação do pro-
trução e a institucionalização das políticas públi- jeto Fome Zero, o que, segundo Menezes (2010,
cas para a agricultura familiar com base em um p. 247), “representou a culminância de todo um
novo referencial orientado pela construção de processo anterior de formulações e práticas na
mercados para a segurança alimentar e a susten- luta contra a fome e pela segurança alimentar e
tabilidade. Referimo-nos especialmente aos ato- nutricional no Brasil experimentadas por gover-
res vinculados ao “Governo Paralelo”, que propôs nos (nos níveis municipal e estadual) e organi-
a Política Nacional de Segurança Alimentar zações sociais”. O Projeto Fome Zero partiu da
(PNSA) (não implementada) em 1991; à mobiliza- premissa do direito humano à alimentação e do
ção “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria diagnóstico de que este não estava sendo efeti-
e pela Vida”, liderada pelo sociólogo Herbert de vado em razão da insuficiência da demanda, da
Souza (o Betinho), e à respectiva “Campanha incompatibilidade dos preços dos alimentos com
Nacional de Combate à Fome” em 1993; e ao o poder aquisitivo da maioria da população e da
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e exclusão da população pobre do mercado. Para
Nutricional (Consea) estabelecido em 199311. alterar este cenário, foi proposto um conjunto de
Estes atores foram importantes para colocar o políticas estruturais que visavam melhorias na
tema da fome em pauta no início dos anos 1990 renda e o aumento da oferta de alimentos bási-
e para defender políticas de segurança alimentar cos, ou seja, era preciso mudanças na “ponta” da
e nutricional, em que, atrelada a esta noção, ao produção, conferindo prioridade à agricultura
familiar, e na “ponta” do consumo, de preferên-
11. O Consea foi estabelecido inicialmente em 1993, no cia articulando-as.
governo de Itamar Franco, no bojo de iniciativas que bus-
cavam reduzir a fome e construir uma política de segu-
Resgatando experiências de alguns municí-
rança alimentar e nutricional para o País. No entanto, pios e estados brasileiros, o Projeto Fome Zero
este “primeiro” Consea teve “vida curta”, sendo extinto ressaltava o potencial do mercado institucional
no início da gestão de Fernando Henrique Cardoso, em
1995. O Consea foi restabelecido em 2003, constituindo- (alimentação escolar, hospitais, presídios, distri-
-se como um importante espaço para representantes da buição de cestas básicas etc.) no fortalecimento da
sociedade civil e atores governamentais discutirem, cons-
truírem propostas e monitorarem iniciativas de promoção
agricultura familiar (criação de canais de comer-
da segurança alimentar e nutricional no País. cialização e geração de renda), na dinamização da
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Catia Grisa e Sergio Schneider S139
economia dos municípios e das regiões, no aten- nacional e internacional, servindo de exemplo a
dimento às necessidades alimentares de “uma ser “replicado” ou “exportado” para outros países.
parcela vulnerável e numericamente expressiva Após romper com importantes barreiras
da população” (mormente, as crianças em idade institucionais (como a Lei de Licitações), o PAA
escolar) e na introdução de “elementos de diver- desencadeou uma nova trajetória para os mer-
sidade regional em cardápios com importância cados institucionais para a agricultura familiar,
não desprezível na formação de hábitos alimen- fortalecida em 2009 com mudança no Programa
tares” (INSTITUTO CIDADANIA, 2001, p. 39). Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e a
Estimava-se que uma parte importante do orça- criação da Lei n. 11.947 que determinou que no
mento público era destinada à compra de ali- mínimo 30% dos recursos federais para a alimen-
mentos para várias finalidades e esta demanda tação escolar sejam destinados para a aquisição
institucional deveria ser canalizada para a agricul- de alimentos da categoria social. Mais recente-
tura familiar. Estas ideias culminaram na criação mente, em 2012, foi estabelecida mais uma moda-
do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e lidade ao PAA, que amplia as possibilidades de
desencadearam uma efervescência em torno dos mercados. Trata-se da Compra Institucional que
mercados institucionais, seja do ponto de vista da permite aos estados, municípios e órgãos fede-
segurança alimentar e nutricional – sendo a ali- rais da administração direta e indireta adquirir
mentação escolar um elemento central – seja com alimentos da agricultura familiar por meio de
um viés para as preocupações ambientais, com a chamadas públicas, com seus próprios recursos
produção de bicombustíveis (neste caso, de forma financeiros, com dispensa de licitação. Em ter-
controversa). De acordo com Schneider, Shiki e mos práticos, isto significa o acesso a mercados
Belik (2010), neste processo estaria emergindo alimentares demandados por hospitais, quartéis,
uma terceira geração de políticas públicas para presídios, restaurantes universitários, refeitórios
a agricultura familiar. A criação do Programa de de creches e escolas filantrópicas, entre outros.
Aquisição de Alimentos, PAA, foi elemento fun- Estas iniciativas têm estimulado governos
damental neste processo, abrindo uma “janela de estaduais a criar seus próprios mecanismos de
oportunidades” e gerando aprendizados para a compras públicas e têm estimulado as organi-
construção de novas ações. zações da agricultura familiar a demandarem e
O PAA foi criado em 2003 visando articular a construírem novos mercados públicos e privados.
compra de produtos da agricultura familiar com Cabe ressaltar que estas ações (PAA e PNAE) têm
ações de segurança alimentar (distribuição de ali- contribuído para a valorização da produção local/
mentos) para a população em vulnerabilidade regional, ecológica/orgânica e têm ressignificado
social. Embora concebido como uma ação estrutu- os produtos da agricultura familiar, promovendo
rante no Programa Fome Zero, o PAA apresentou novos atributos de qualidade aos mesmos, asso-
certa “timidez” em seus anos iniciais, dadas certas ciados, por exemplo, à justiça social, equidade,
mudanças políticas (extinção do Mesa) e o fato de artesanalidade, cultura, tradição etc.
ser compreendido a partir da lógica de “projetos Em 2004, emergiu também o Programa
pilotos” pelas organizações da agricultura fami- Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB),
liar (GRISA, 2012; MULLER, 2007). Com a expan- visando estimular a produção e compra de oleagi-
são do Programa, a exposição de seus resultados nosas da agricultura familiar. Além de promover
para as dinâmicas locais e para o fortalecimento a produção de oleaginosas geradoras de biodie-
das organizações da agricultura familiar, e o cres- sel via política agrícola (crédito rural, Ater, seguro
cente debate no Brasil neste período sobre cons- agrícola), o Programa instituiu o selo “combustí-
trução social dos mercados (NIEDERLE, 2011; vel social” concedido pelo MDA ao produtor de
ABRAMOVAY, 2009; WILKINSON, 2008; MALUF, biodiesel que adquirir matéria-prima e assegu-
2004), o Programa ganhou importante projeção rar assistência técnica aos agricultores familiares,
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S140 Três Gerações de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de Interação entre Sociedade e Estado no Brasil
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Catia Grisa e Sergio Schneider S141
os exemplos de ações que aproximam Estado e cando, nestas situações, a utilização de relações
organizações sociais na execução dos programas, pessoais e institucionais no interior da rede.
como o Projeto Lumiar (1997), o Programa Um No entanto, diferente destas situações, um
Milhão de Cisternas (2003), o PAA, o PNHR (2003), elemento importante da permeabilidade em anos
o Programa Nacional de Alimentação Escolar recentes da gestão pública consiste na proximi-
(PNAE) e a Política Nacional de Assistência dade entre Estado e organizações da sociedade
Técnica e Extensão Rural (2003) (BOLTER, 2013; civil na formulação e na cogestão das políticas
DIESEL e NEUMANN, 2012; SILVA e SCHMITT, públicas12. Diferente de perspectivas dicotômicas
2012). que aludiam para a autonomia ou à instituciona-
lização das relações entre Estado e organizações
Assim, se na década de 1980 as políticas públi-
da sociedade civil, passa-se a enfatizar uma abor-
cas eram um objeto de reivindicação das orga-
dagem relacional, cujas implicações deste pro-
nizações, na década de 1990 e, especialmente,
cesso para o Estado, para as organizações sociais
na década de 2000, a implementação de polí-
ticas públicas se torna crescentemente um
e para as políticas públicas ainda precisam ser
campo de atuação para tais organizações (e, melhor investigadas (BOLTER, 2013; SILVA e
em alguns casos, se torna o campo prioritário SCHMITT, 2012)13.
de atuação) (SILVA e SCHMITT, 2012, p. 23).
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S142 Três Gerações de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar e Formas de Interação entre Sociedade e Estado no Brasil
um segundo direcionado para políticas sociais e coletiva de atores sociais podem variar ao longo
assistenciais, e um terceiro, orientado pela cons- de uma trajetória temporal. Protesto, proposição e
trução de mercados para a segurança alimentar e cogestão fazem parte das formas de ação coletiva
nutricional e para a sustentabilidade. dos movimentos sociais e sindicais da agricultura
A partir de uma análise cronológica, procu- familiar na contemporaneidade, ainda que com
ramos mostrar que estes referenciais emergiram diferentes ardores, estratégias e “formatações”
em contextos e períodos específicos, subsidia- de outrora. Os movimentos sociais e sindicais da
dos por reflexões acadêmicas e oportunizados agricultura continuam acionando estratégias de
por mudanças políticas, eventos sociais impor- protesto e de reivindicação (a exemplo dos Gritos
tantes (mobilizações sociais, conflitos agrários) da Terra, da Marcha das Margaridas, do Abril
e pela entrada de novos atores e ideias nas are- Vermelho, das ocupações de prédios públicos, das
nas públicas. Após a emergência destes referen- Jornadas de Luta da Agricultura Familiar etc.), se
ciais, um olhar retrospectivo permite afirmar que instrumentalizam cada vez mais para propor for-
estas gerações resultaram em certa dependência matos institucionais e políticos para as políticas
de caminho ou “efeitos de feedback institucionais” públicas, e reivindicam a cogestão e a execução
e, como as demandas perpetradas pelos atores partilhada das políticas públicas, seja visando
sociais não foram ainda inteiramente atendidas e aproximá-las e adaptá-las às distintas realidades
as mobilizações sociais persistem, estas gerações sociais, seja para o empoderamento das próprias
de políticas foram se ampliando e novos instru- organizações sociais.
mentos e estratégias de ação foram se agregando. Em um contexto em que o processo de transi-
Malgrado tenham surgido em momentos crí- ção democrática parece ter avançado, os atores da
ticos distintos e diferentes atores ou organiza- sociedade civil passaram a ocupar um espaço que,
ções tenham sido seus proponentes, estas três por um lado, lhes confere maior legitimidade e
gerações ou referenciais de política pública para reconhecimento, mas, por outro, cria novos desa-
a agricultura familiar convivem atualmente nas fios relativos à relação mais institucionalizada
arenas públicas. Entretanto, não se trata de uma com o Estado (cogestão das políticas públicas), e à
convivência pacífica e sem conflitos, uma vez que governança, gestão e administração de suas orga-
há áreas de maior ou menor fricção que podem nizações. Estas questões e as repercussões deste
ser acentuadas ou arrefecidas em momentos dis- processo na sociedade civil organizada precisa-
tintos, dependendo das disputas e dos jogos de riam ser aprofundadas pelos estudos e pesquisas
poder em questão, tais como eleições, negociações rurais, como também seria necessário mais refle-
na gestão pública, conjuntura política, pressão xão sobre os seus desdobramentos na estrutura e
dos movimentos sociais e sindicais da agricul- na governança do próprio Estado. Quais os limites
tura familiar, influência da “coalizão de interes- e/ou as condições e possibilidades de que, em tem-
ses” do agronegócio etc. A opção ou as condições pos vindouros, as organizações da sociedade civil
favoráveis para que haja o fortalecimento das sejam capazes de confrontar as mudanças conjun-
dimensões agrícola e agrária (esta última minimi- turais que venham a surgir (mudanças climáticas,
zada no período recente), ou das políticas sociais entre outras) e mesmo retomar o enfrentamento a
e assistenciais, ou da construção de novas inser- algumas amarras estruturais (restrições ao acesso
ções mercantis (ou ainda os três referenciais em à terra e melhoria da infraestrutura no meio rural,
conjunto) fazem parte das disputas, lutas e inter- apenas dois exemplos), com a mesma criatividade
pretações sobre o lugar e o papel da agricultura e capacidade de inovação que as gerações de polí-
familiar na sociedade brasileira e no desenvolvi- ticas do passado recente demonstraram? Que
mento rural. mudanças ocorrem nas políticas públicas e em
A análise empreendida neste artigo também seus resultados quando elas são executadas pela
nos permite afirmar que os repertórios da ação sociedade civil organizada? Quais as repercussões
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