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Projeto Diretrizes

Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina

Terapia Nutricional no Paciente


Pediátrico com Desnutrição
Energético-Proteica

Autoria: Sociedade Brasileira de Nutrição


Parenteral e Enteral
Associação Brasileira de Nutrologia
Sociedade Brasileira de Patologia
Elaboração Final: 13 de julho de 2011
Participantes: Sarni ROS, Souza FIS, Buzzini R

O Projeto Diretrizes, iniciativa conjunta da Associação Médica Brasileira e Conselho Federal


de Medicina, tem por objetivo conciliar informações da área médica a fim de padronizar
condutas que auxiliem o raciocínio e a tomada de decisão do médico. As informações contidas neste
projeto devem ser submetidas à avaliação e à crítica do médico, responsável pela conduta
a ser seguida, frente à realidade e ao estado clínico de cada paciente.

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DESCRIÇÃO DO MÉTODO DE COLETA DE EVIDÊNCIA:


Foram revisados artigos nas bases de dados do MEDLINE (PubMed) e outras fontes
de pesquisa, como busca manual, sem limite de tempo. Foram utilizados como
descritores (MeSH Terms): malnourished children; risk factors; mortality; nutritional
support; development.

GRAU DE RECOMENDAÇÃO E FORÇA DE EVIDÊNCIA:


A: Estudos experimentais ou observacionais de melhor consistência.
B: Estudos experimentais ou observacionais de menor consistência.
C: Relatos de casos (estudos não controlados).
D: Opinião desprovida de avaliação crítica, baseada em consensos, estudos fisioló-
gicos ou modelos animais.

OBJETIVO:
Apresentar diretrizes para o tratamento do paciente pediátrico portador de desnutrição
energético-proteica grave que necessita de terapia nutricional, com base na evidência
científica disponível. O tratamento do paciente deve ser individualizado de acordo
com suas condições clínicas e com a realidade e experiência de cada profissional.

CONFLITO DE INTERESSE:
Nenhum conflito de interesse declarado.

2 Terapia Nutricional no Paciente Pediátrico com Desnutrição Energético-Proteica


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Introdução

Nos países em desenvolvimento, cerca de 50,6 milhões de


crianças menores de cinco anos são desnutridas1(D). A desnu-
trição energético-proteica (DEP) moderada/grave é ainda um
importante problema na faixa etária pediátrica, especialmente
em crianças hospitalizadas, com taxa de mortalidade elevada de
30% a 0% em alguns hospitais1(D). Estudo avaliando crianças
hospitalizadas em hospitais universitários e de ensino revelou
prevalência de desnutrição e risco nutricional da ordem de 30%
e 20%, respectivamente2(C). Os índices de letalidade nas formas
graves de DEP permaneceram elevados (cerca de 20%) da década
de 50 até a década de 90 do século passado, apesar de grandes
avanços no campo da Medicina3(D).

Considera-se fundamental que os serviços que prestam as-


sistência a crianças gravemente desnutridas adotem os pilares
básicos do documento da Organização Mundial de Saúde (OMS),
realizando adaptações e capacitação dos profissionais envolvidos no
atendimento, em função das características da unidade hospitalar
e da realidade econômica da região. A instituição de protocolos
de assistência e de indicadores de qualidade possibilita a avaliação
periódica dos resultados, com aprimoramento dos protocolos e
benefícios indiscutíveis no atendimento a crianças gravemente
desnutridas4(D).

É recomendando que o tratamento seja realizado por etapas:


1. A desnutrição grave representa uma emergência médica, com
necessidade de correção da hipotermia, hipoglicemia e infecção;
2. Há comprometimento do mecanismo celular, podendo levar
a múltiplas deficiências; 3. O déficit de tecidos e composição
corporal, muitas vezes, não são facilmente corrigidos devido ao
comprometimento celular. Ressaltando que, em crianças com
kwashiorkor, uma dieta rica em proteínas, com utilização de
diurético para diminuir o edema, pode ser fatal e a prescrição de
ferro para o tratamento de anemia aumenta mortes na inicial fase
do tratamento5(C).

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1. Como são classificadas as formas • Fase de estabilização: criança recém-


graves de desnutrição? internada, com descompensação infec-
ciosa e/ou metabólica. Após estabilização
A classificação das formas graves de desnutri- hemodinâmica, hidroeletrolítica e ácido-
ção baseia-se em parâmetros clínicos (presença ou básica (suporte metabólico), inicia-se a
não de edema, lesão de pele, cabelo e hepatomega- fase de estabilização. Deve-se tratar as
lia) e antropométricos (indicadores de peso/estatura intercorrências que elevam o risco de
e estatura/idade). Há duas formas de desnutrição morte, evitar o agravamento da condição
grave bem estabelecidas: marasmo [criança com nutricional, corrigir deficiências nutri-
emagrecimento acentuado com idade inferior a 1 cionais específicas, reverter as alterações
ano – peso para estatura < 70% ou – 2 z-escore; metabólicas e iniciar a alimentação.
gordura subcutânea ausente (desaparecimento da Fornecer no máximo 100 kcal/kg/dia
bola de Bichat – último depósito de gordura a ser (iniciando com taxa metabólica basal
consumido); pele frouxa, costelas proeminentes, acrescida de fator de estresse que varia de
atrofia muscular, hipotonia, irritabilidade e aspecto 10 a 30%, fornecendo de 50 a 60 kcal/
caquético e envelhecido] e a forma kwashiorkor kg/dia no primeiro dia e aumentando de
acordo com a avaliação clínica e laborato-
(forma edematosa de desnutrição acometendo
rial da criança), 130 ml/kg/dia de oferta
crianças entre 2 e 3 anos de idade, com lesões de
hídrica e 1 a 1,5 g de proteína/kg/dia,
pele, cabelo e unhas enfraquecidos, hepatomegalia
dieta com baixa osmolaridade (< 280
com esteatose hepática e hipoalbuminemia)6(D).
mOsmol/litro) e com baixo teor de lac-
tose (< 13 g/litro) e sódio. Se a ingestão
Recomendação
inicial for inferior a 60 a 70 kcal/kg/dia,
Basear-se em parâmetros clínicos (presença indica-se terapia nutricional por sonda
ou não de edema, lesão de pele, cabelo e hepato- nasogástrica. De acordo com os dias de
megalia) e antropométricos (indicadores de peso/ internação e a situação clínica da criança,
estatura e estatura/idade), classificando a des- são recomendados aumento gradual de
nutrição como: marasmo ou kwashiorkor6(D). volume e diminuição gradativa da frequ-
ência. Nessa fase pode ser utilizado um
2. Como planejar a terapia nutricional preparado alimentar artesanal contendo
na criança gravemente desnutrida? 75 kcal e 0,9 g de proteína/100ml ou
fórmula infantil polimérica isenta de lac-
A terapia nutricional é dividida em três tose. Em situações de doenças associadas
etapas: estabilização, recuperação nutricional que cursam com má-absorção grave, pode
e acompanhamento ambulatorial7,8(D). No ser necessária a utilização de fórmulas
tratamento da criança com desnutrição grave, extensamente hidrolisadas ou à base de
há também a fase de reabilitação com a atu- aminoácidos. Não é prevista recuperação
ação de equipe multiprofissional, visando ao do estado nutricional e sim sua conserva-
restabelecimento da função motora e cognitiva, ção e a estabilização clínico-metabólica.
prevenção de desordens do desenvolvimento e o • Fase de recuperação: tem por objetivos
fortalecimento do vínculo mãe-filho9(D). aumentar a oferta de nutrientes visando

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assegurar o crescimento rápido e a recu- Recomendação


peração do peso perdido, ainda durante São três as etapas para o planejamento da tera-
a hospitalização, e prevenir ou tratar pia nutricional na criança gravemente desnutrida:
deficiências de micronutrientes. Para estabilização (hemodinâmica, hidroeletrolítica,
isso, devem ser ofertadas 1,5 vezes a ácido-básica e nutricional), recuperação nutricio-
recomendação para os nutrientes (oferta nal e acompanhamento ambulatorial7(D).
calórica 150 kcal/kg/dia, hídrica 150
– 200 mL/kg/dia, proteica 3 – 4 g/kg/ 3. A hipoalbuminemia deve ser cor -

dia) e dieta com menor teor de lactose. rigida na forma kwashiorkor de

Nesta pode-se utilizar preparado artesanal desnutrição ?

sugerido pela OMS contendo 100 kcal


e 2,9 g de proteína para cada 100 mL, A hipoalbuminemia nesta situação pode ser re-
fórmula infantil com menor conteúdo sultado da redução da síntese: durante a descompen-
de lactose ou dieta enteral polimérica sação infecciosa, eleva-se a produção de proteínas de
pediátrica isenta de lactose para crianças fase aguda, reduz-se a síntese de proteínas viscerais,
com idade inferior a 1 ano (1 kcal/mL). e eleva-se a permeabilidade endotelial ocasionada
pela produção de citocinas pró-inflamatórias,
Para ajuste da densidade energética de
com sequestro da albumina e líquidos no espaço
fórmulas infantis (0,7 kcal/mL) podem
intersticial. A infusão intravenosa de albumina só
ser utilizados módulos de polímeros de
deve ocorrer quando houver instabilidade hemodi-
glicose e lipídeos (óleos vegetais), adição
nâmica importante e não tem impacto nos índices
máxima de 3% 10(C) . Este procedimento
de letalidade; esta se associa com maior morbidade
permite que a dieta oferecida apresente
e mortalidade em crianças gravemente desnutridas,
melhor densidade energética, mas com- devendo ser evitada sempre que possível11(C).
promete o fornecimento de minerais e
micronutrientes. É importante o forneci- Recomendação
mento de preparados com multivitaminas A infusão intravenosa de albumina só deve
(1,5 vezes a recomendação para crianças ocorrer quando houver instabilidade hemodinâ-
saudáveis) e de zinco, cobre e ferro. mica importante e não tem impacto nos índices
• Fase de acompanhamento ambulatorial: de letalidade11(C).
pode ser realizada em hospitais-dia ou
ambulatórios e tem por objetivos prosse- 4. Quais os distúrbios hidroeletrolíticos
guir na orientação e reforçar as orienta- e metabólicos mais frequentes na fase
ções realizadas durante a hospitalização, de estabilização?
monitoração do crescimento (vigilância
dos índices peso por estatura e estatura Os distúrbios mais frequentes são hipoglice-
por idade) e desenvolvimento da criança, mia, hipopotassemia, hipomagnesemia e hipofos-
especialmente da relação estatura/idade fatemia (síndrome refeeding). A hiponatremia é
e intensificação do trabalho da equipe frequentemente observada por comprometimento
multiprofissional. da função da bomba de sódio e potássio. A hipo-

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natremia não deve ser corrigida tendo em vista deterioração nível consciência repetir
que o sódio corporal total está normal ou mesmo Dextrostix;
aumentado (edema celular) e o restabelecimento • Hipotermia (temperatura axilar < 35ºC
da bomba, a partir da melhora do estresse in- ou retal < 35,5ºC): geralmente acompa-
feccioso e do fornecimento de energia, levará ao nha a hipoglicemia e pode associar-se a
restabelecimento da natremia. A correção só deve quadros infecciosos:
ser considerada quando os níveis séricos de sódio - Aquecimento: técnica canguru (con-
atingirem valores inferiores a 120 mg/dL12(D). tato da mãe com a criança), agasalhar,
usar cobertores, acomodar a criança
Na fase de estabilização, são itens impor- em local com temperatura adequada,
tantes a serem diagnosticados e tratados em trocar roupas e lençóis molhados, evi-
crianças com desnutrição moderada/grave, antes tar banhos prolongados e exposição ao
ou durante a terapia nutricional: frio, se possível utilizar berços aqueci-
dos. Não utilizar bolsa de água quente
• Hipoglicemia (glicemia < 54 mg/dL): ou soro aquecido sobre a pele, devido
ao risco elevado de queimaduras.
tratar imediatamente e verificar a tempe-
- Cor reção dos distúrbios hidroe-
ratura corporal:
letrolíticos: os mais comuns são
- Preferir correção por via oral (se
hipopotassemia, hipomagnesemia e
criança consciente e com capacidade
hipofosfatemia, que devem ser corri-
de deglutir) com glicose ou sacarose a
gidos e repostos por 7 a 10 dias após
10% 50 mL ou com a dieta habitual
a normalização dos níveis séricos, por
da criança. Oferecer a dieta a cada 2
serem predominantemente intracelu-
horas (incluindo o período noturno lares (os sistemas de transporte ativo,
pela ausência de depósito hepático de por indisponibilidade de energia para
glicogênio) para prevenção de novos esta função, não funcionam adequa-
episódios de hipoglicemia; damente em crianças gravemente
- Se criança estiver inconsciente, letár- desnutridas). A hiponatremia pode
gica ou convulsão: realizar a correção ocorrer em decorrência da falência da
intravenosa com 5 mL/kg (500 mg/kg) bomba de sódio e potássio, cursando
de solução de glicose a 10%. Manter com sódio corporal total normal ou
com alimentação regular a cada 2 mesmo aumentado. A correção só deve
horas após a infusão de glicose; ocorrer, de forma criteriosa e lenta, se
- Monitorização: Glicose sanguínea: se os níveis séricos forem inferiores a 120
baixa, repetir Dextrostix após 2 ho- mg/dL. Para correção da hipopotasse-
ras. As crianças tratadas estabilizam mia, se distensão abdominal ou altera-
após 30 minutos. Se glicose < 54 ções eletrocardiográficas, utilizar 5 a 7
mg/dl, fornecer 50 ml em bolus de mEq K /kg/dia sob a forma de cloreto
solução de glicose a 10% e continuar de potássio (1 mL = 2,5 mEq de K);
alimentação a cada 30 minutos até: velocidade máxima de infusão = 0,3 a
se temperatura retal < 35,5 oC e/ou 0,5 mEq/kg/hora. Na hipofosfatemia

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(fósforo sérico < 3 mg%), utilizar 1 de vitaminas lipossolúveis e sobrecrescimento


a 2 mmol P/kg/dia sob a forma de bacteriano, que associado a atrofia vilositária
fosfato monoácido de potássio a 25% pode ser responsável por graus variáveis de
(1 mL = 1,9 mmol de P e 2,9 mEq má-absorção16(B).
de K)13(A). Na hipomagnesemia (Mg
sérico < 1 MEq/L), utilizar sulfato O comprometimento das dissacaridases
de magnésio 50% intramuscular - 0, (de maior intensidade para a lactase) pode per-
3mL/kg (dose única, máximo de 2 sistir mesmo após a recuperação nutricional
mL); se alteração eletrocardiográfica, e, portanto, a redução ou exclusão da lactose
repor 1mEq Mg/kg/dia intravenoso, da dieta deve ser considerada na terapia nutri-
sob a forma de sulfato de magnésio cional da criança gravemente desnutrida17(D).
(1 mEq/mL). É importante a absorção rigorosa de sinais de
• Tratar a infecção: processos infecciosos intolerância aos carboidratos, que compreen-
graves podem acontecer sem sinais clínicos dem: vômitos, diarreia, distensão abdominal,
(ausência de febre pela baixa produção de dermatite perineal, cólicas e acidose metabóli-
interleucina 1) e alterações laboratoriais ca. A realização do pH fecal com fezes recém
significativas. Desta forma, presume-se emitidas pode ser útil na identificação da in-
que toda criança gravemente desnutrida tolerância, considerar pH< 6. No diagnóstico
com instabilidade metabólica pode portar diferencial da acidose metabólica, em crianças
infecção grave e, por isso, deve-se avaliar a gravemente desnutridas, deve ser considerada
necessidade de antibioticoterapia (confor- a má-absorção e consequente intolerância
me protocolos da instituição), enquanto se aos dissacarídeos. Para o sobrecrescimento
observa a evolução clínica e os resultados bacteriano, mesmo em crianças sem sinais
de exames laboratoriais. aparentes de infecção, a OMS preconiza o
uso de 25 mg de sulfametoxazol + 5 mg de
Recomendação trimetropim por kilograma de peso, via oral,
Os distúrbios mais frequentes são hipo- por 5 dias18(D).
glicemia, hipopotassemia, hipomagnesemia e
hipofosfatemia. Tratar imediatamente e verificar Recomendação
a temperatura corporal14(A)12,15(D). As alterações gastrintestinais que in-
fluenciam a terapia nutricional da criança
5. Quais são as alterações gastrintesti- gravemente desnutrida podem ser: grau de
nais que influenciam a terapia nutricio- atrofia vilositária, redução na produção de
nal da criança gravemente desnutrida? enzimas pancreáticas, prejuízo da absorção
de gorduras e de vitaminas lipossolúveis e
Deve-se prever que as crianças com desnu- sobrecrescimento bacteriano18(D).
trição grave terão algum grau de atrofia vilosi-
tária, mesmo que não haja doença associada; 6. Como reconhecer a desidratação em
redução na produção de enzimas pancreáticas, crianças gravemente desnutridas e
levando a prejuízo na absorção de gorduras e como proceder na hidratação?

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Os sinais clínicos de desidratação em crianças Monitorar o progresso de reidratação: obser-


gravemente desnutridas tendem a ser superesti- var a cada meia hora durante 2 horas, depois de
mados, aumentando o risco de hiperidratação. O hora em hora nas próximas 6-12 horas; avaliar
objetivo é a melhora dos sinais clínicos de desidra- taxa de pulso, frequência respiratória, diurese,
tação e a presença de diurese abundante e clara. fezes e vômito, observando-se frequência e si-
Vale lembrar que crianças gravemente desnutridas nais clínicos (lágrima, boca úmida, fontanela),
apresentam redução no ritmo de filtração glomeru- visando à redução do risco de hiperhidratação.
lar decorrente da atrofia cortical renal. Em casos de
choque, o tratamento deve seguir a preconização Recomendação
das guias de conduta de reanimação19(D). A desidratação em crianças gravemente des-
nutridas tem como principais sinais: diminuição
Deve-se preferir a via oral ou por sonda nasogás- da diurese, astenia, irritabilidade, pele seca,
trica com solução de reidratação oral adaptada para língua saburrosa, olhos fundos e encovados.
desnutrição grave (ReSoMal: menor osmolaridade, Via oral ou por sonda nasogástrica com solução
menor conteúdo de sódio, maior de potássio e de reidratação oral adaptada para desnutrição
acréscimo de micronutrientes – zinco e cobre). Se grave; infusão intravenosa, utilizar 15 mL/kg
o ReSoMal não estiver disponível, adaptar a solução em 1 hora de solução salina (0,9%) e glicosada
de reidratação oral padrão da OMS da seguinte (10%) em partes iguais20(A).
forma: 1 pacote, 2 litros de água, sacarose ou malto-
dextrina 50 g e solução de eletrólitos e minerais – 20 7. Quais alterações renais influenciam na
mL/litro)20(A). A solução de eletrólitos e minerais, terapia nutricional na fase de estabili-
sugerida pela OMS, é composta por: cloreto de zação?
potássio (89,5 g), citrato de potássio (32,4 g), Mg
Cl2. 6H2O (30,5 g), acetato de zinco (3,3 g), sulfato A criança gravemente desnutrida tem atrofia
de cobre (0,56 g), selenato de sódio (opcional, 10 cortical renal e maior dificuldade em concentrar a
mg); para preparo de 1.000 mL. Oferecer 5 mL/kg urina, atenção especial deve ser dada à carga renal
de peso a cada 30 minutos durante as duas primeiras potencial de soluto, especialmente advinda da
horas e, a seguir, 6-10 mL/kg durante as próximas dieta utilizada, para que não haja sobrecarga renal
4 a 10 horas (total 70 a 100 mL/kg em 12 horas), e alterações metabólicas/hidroeletrolíticas19(D).
com monitoração clínica rigorosa para sinais de
hiperhidratação. Como a diurese é utilizada com frequência na
avaliação do estado de hidratação, vale considerar
Se for necessária a infusão intravenosa, outros parâmetros clínicos, avaliados de maneira
utilizar 15 mL/kg em 1 hora de solução salina criteriosa e combinada, inclusive o monitoramen-
(0,9%) e glicosada (10%) em partes iguais, que to do peso (pré e pós-hidratação)20(A)17,19(D).
terá a composição de 5% de glicose e 0,45% de
sódio. Reavaliar a criança a cada final de infusão Recomendação
(frequência respiratória, cardíaca, diurese, pre- As alterações renais que influenciam na
sença de vômitos e diarreia), visando à redução terapia nutricional são atrofia cortical renal e di-
do risco de hiperhidratação. ficuldade na concentração de urina20(A)17,19(D).

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8. Quando é necessário fazer a reposição de meia-vida curta (pré-albumina). O momento


de micronutrientes? Qual é a quanti- no qual há a intersecção entre a queda dos níveis
dadade e por quanto tempo? circulantes da proteína C reativa e ascensão da
pré-albumina é considerado como ideal para
A administração de micronutrientes é funda- início da fase de recuperação nutricional22(C).
mental para prevenir carências que podem ocorrer
na fase de crescimento rápido (recuperação nutri- A oferta excessiva de nutrientes na fase de
cional) e para combater o estresse oxidativo21(B). estabilização, tendo em vista as alterações neuro-
endócrinas e metabólicas secundárias ao estresse
A suplementação deve ocorrer na fase de infeccioso ou metabólico, pode levar a compli-
recuperação nutricional. Além do fornecimento cações como o overfeeding (superalimentação).
de uma dieta adequada, que atenda a 1,5 vezes As alterações resultantes da oferta excessiva de
a recomendação de macro e micronutrientes em energia e outros substratos são: aumento da pro-
geral, deve-se realizar a suplementação de zinco dução de CO2, esteatose hepática, hiperglicemia,
2 mg/kg/dia (máximo 20 mg/dia), cobre 0,3 mg/ diurese osmótica e desidratação hiperosmolar,
kg/dia (máximo 3 mg/dia), ácido fólico 5 mg/ hipofosfatemia, hipertrigliceridemia e uremia.
dia (no primeiro dia) e depois 1 mg/dia, ferro 3
Estas alterações elevam o risco de letalidade
mg/kg/dia e vitamina A, na forma de megadose
de crianças gravemente desnutridas na fase de
(< 1 ano 100.000 UI e >1 ano 200.000 UI)
estabilização22(C)18(D).
em áreas de carência endêmica, ou como mul-
tivitamínico por via oral. A administração de
Recomendação
micronutrientes deve ocorrer por pelo menos 3
Por meio da avaliação de proteinas séricas,
meses após a alta hospitalar21(B)18(D).
quando há queda dos níveis circulantes da
Recomendação proteína C reativa e ascensão da pré-albumina,
A reposição de micronutrientes deve ocorrer pode-se identificar o início da fase de recupera-
na fase de recuperação nutricional, constituindo ção nutricional21(B)22,23(C)18(D).
1,5 vezes a quantidade recomendada durante 3
meses após alta hospitalar21(B)22(C). 10. Quais são os parâmetros utilizados
para avaliar a eficácia da terapia

9. Como identificar o início da fase de nutricional?

recuperação nutricional?
O monitoramento dos parâmetros antropo-
Os parâmetros clínicos (controle da febre, métricos (peso e estatura) é procedimento essen-
recuperação do apetite, etc) constituem a forma cial para o diagnóstico nutricional e para o plane-
mais frequentemente utilizada na prática clí- jamento e monitoramento da terapia nutricional
nica. A avaliação de proteínas séricas pode ser instituída. Gráficos para acompanhamento da
empregada; neste caso vale considerar a análise evolução ponderal diária devem ser implantados
sequencial e combinada de proteínas de fase nas unidades hospitalares que prestam assistência
aguda (proteína C reativa) e proteínas viscerais a crianças gravemente desnutridas23(C).

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O objetivo durante a fase de recuperação nu- A absorção de triglicérides de cadeia longa


tricional é que a criança ganhe mais do que 5 g/ é preservada em crianças com desnutrição pri-
kg/dia, sendo ideal ganho superior a de 10 g/kg/ mária grave26(B).
dia. Após a estabilização, quando o ganho ponderal
for inferior a 5 g/kg/dia, a terapia nutricional deve Podem ser acrescidos óleos vegetais às
ser reavaliada. Entre 4 a 8 semanas de internação, dietas utilizadas na recuperação nutricional de
a criança deverá atingir a relação peso/estatura de crianças gravemente desnutridas (máximo 3%).
90%. No seguimento ambulatorial, deve-se ficar Embora os resultados de estudos disponíveis,
atento à recuperação estatural (índice estatura/ com metodologia apropriada, sejam conflitan-
idade), modificação da composição corporal (incre- tes com um estudo demonstrando ausência de
mento de massa gorda comparativamente à massa comprometimento da absorção13(A) e outro,
magra) e do desenvolvimento neuropsicomotor. A comprometimento da absorção de lipídeos em
não recuperação estatural associa-se a pior desem- 50% das crianças gravemente desnutridas26(B),
penho motor e cognitivo futuro24(A). não há evidência para respaldar o uso rotineiro
de triglicérides de cadeia média em crianças
Recomendação gravemente desnutridas. O mais empregado
Para avaliar a eficácia da terapia nutricional na prática clínica é o óleo de soja, pelo menor
deve-se monitorar peso e estatura, assim como custo, por ser o mais utilizado em famílias de
alteração de composição corporal24(A)23(C). baixa renda e por apresentar uma proporção
interessante entre ácidos graxos da família
11. Há benefícios da suplementação de ômega-3 e ômega-613(A)26(B).
glutamina na rehidratação oral de
crianças gravemente desnutridas? Recomendação
Não há benefícios na utilização de triglicé-
Estudo com 53 crianças desnutridas que re- rides de cadeia média no lugar de triglicérides
ceberam fórmula suplementada com glutamina de cadeia longa no tratamento de crianças
(16,2 g/dia) por 10 dias e fórmula de igual com- portadoras de desnutrição grave13(A).
posição sem suplementação evidenciou benefí-
cios na função de barreira intestinal, mas não 13. Há benefícios com a suplementação
demonstrou impacto no ganho ponderal25(A). de ácido docosahexanoico (DHA) e
aracdônico (ARA) nestas crianças?
Recomendação
Não há evidência de benefícios da suple- Existem estudos evidenciando compro-
mentação de glutamina na rehidratação oral de metimento nos níveis circulantes de DHA e
crianças gravemente desnutridas25(A). ARA em crianças desnutridas, que sugerem
baixa atividade de dessaturação da enzima delta
12. Há benefícios na utilização de trigli- 427(B). Ainda não há evidência consistente
cérides de cadeia média no lugar do para respaldar sua utilização com definição de
triglicérides de cadeia longa nestas doses, tempo de suplementação e avaliando
crianças? possíveis eventos adversos.

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Recomendação foram gravemente desnutridas no primeiro


Não há benefícios com a suplementação de ano de vida exibem pior desempenho cognitivo
ácido docosahexanoico27(B). quando comparadas a seus pares (crianças de
mesma condição econômica e residentes na
14. Além da terapia nutricional, quais mesma região) sem antecedentes de desnutrição.
outros cuidados são necessários na O trabalho de estimulação é fundamental para
reabilitação de crianças gravemente minimizar sequelas que podem comprometer de
desnutridas? forma definitiva o desempenho de crianças que
foram gravemente desnutridas nos primeiros
A reabilitação de crianças desnutridas, com anos de vida21(B).
atuação de equipe multiprofissional, deve prever
a recuperação do desenvolvimento motor e cog- Recomendação
nitivo e o fortalecimento do vínculo mãe-filho. Além da terapia nutricional, a recuperação
do desenvolvimento motor e cognitivo e o for-
A desnutrição grave em fases precoces talecimento do vínculo mãe-filho são cuidados
da vida leva a sequelas no desenvolvimento, necessários na reabilitação de crianças grave-
especialmente o cognitivo28(D). Crianças que mente desnutridas21(B).

Terapia Nutricional no Paciente Pediátrico com Desnutrição Energético-Proteica 11


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Referências 8. Brewster DR. Critical apraisal of the man-


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