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© 1968 – LOU CARRIGAN

PÚBLIC RELATIONS
Ilustração de capa por Benicio
Colaboração de CARLOS NATALI
530607
CAPÍTULO PRIMEIRO
Brigitte Montfort entra silenciosamente em cena
Um aparelho que tem o nome de “morte"
Um pagamento que pode não ser em ouro...

Percorrendo o corredor e rindo ainda ao recordar a


fabulosa série de tolices que o muito querido Frank Minello
havia dito aquela noite, Brigitte Montfort tirou os sapatos de
salto altíssimo, pendurou-o num dedo e abriu a porta de seu
apartamento, com todo o cuidado, no maior silêncio.
Entrou na ponta dos pés, mas, ato contínuo, arqueou as
sobrancelhas ao ver acesa a luz do living, no extremo do
amplo corredor. Acabou por encolhe; os ombros, e, sem se
calçar, deslizando sempre em absoluto silêncio por sobre a
espessa passadeira, dirigiu-se para lá. Entrou fazendo uma
amável reprimenda:
— Peggy, você não precisava esperar... Tio Char lie!
Charles Pitzer, que estava sentado numa das poltronas
com um livro nas mãos, já se sobressaltara, pulando de pé e
soltando o livro, mas apanhou-o no ar, depois do que tornou
a sentar-se, resmungando:
— É preciso que você entre tão sorrateiramente, em seu
próprio apartamento, Brigitte?
— Que faz você aqui? Não queria despertar Peggy, mas
parece que a coitada nem sequer pôde se deitar... Oh, no
mínimo veio cá para estragar minha noite, não é?
Pitzer encolheu os ombros e tomou um pequeno gole do
excelente conhaque sempre à disposição dos amigos de
Brigitte.
— Lamento, mas você terá que viajar — disse com
visível prazer, talvez devido ao conhaque, talvez por estar
enviando “Baby” a uma nova aventura.
— Oh, não!
— Oh, sim — sorriu sarcasticamente ele.
Peggy apareceu no living, com cara de sono e precedida
pelo diminuto “Cícero”, que num segundo instalou-se nos
braços de sua dona e passou a deliciar-se com as carícias que
recebeu.
— Miss Montfort, ele disse... — começou a explicar a
linda empregadinha.
— Está bem, Peggy. Pode ir dormir. Eu atenderei ao tio
Charlie. Alguma novidade, além desta?
— Nenhuma, tudo em ordem. Já preparei suas maletas
também.
— Minhas maletas? Não estou lembrada de lhe ter
pedido...
— Eu pedi — interveio Pitzer. — Seu avião parte às oito
da manhã.
— Bem... — suspirou Brigitte. — Creio que procurarei
encontrar um pouco de tolerância num cálice de sherry,
enquanto o escuto. É tudo, Peggy. Suponho que mister Pitzer
também lhe terá dito a que horas deve me acordar e que
espécie de equipamentos necessito para a viagem.
— Disse, miss Montfort.
— Pois vá dormir. Você não tem culpa de nada.
— Boa-noite...
Brigitte serviu-se o sherry, sempre com “Cícero” nos
braços. A decepção deste foi enorme quando, ao sentar-se no
sofá, ela colocou-o a seu lado.
— Bem, tio Charlie. De que se trata esta vez?
Pitzer sacou do bolso um envelope amarelo, estendendo-
o.
— Aqui tem sua passagem até Roma, com seu próprio
nome. E outra passagem de Roma a Sófia, Bulgária, com o
nome de Rosana Morletti, italiana naturalmente, e jornalista
de profissão. Os documentos da signorina Morletti estão
também no envelope. É uma jovem loura, de olhos azuis...
— Pelo menos, esta vez me bastará uma peruca —
aceitou a espiã mais astuta e sensacional do mundo.
— De Sófia, viajará em carro alugado até Varna. É a
terceira cidade búlgara em importância, está situada no
litoral do Mar Negro...
— Querido, sei muito bem que Varna está situada na
costa do Mar Negro, que é a terceira cidade búlgara em
importância, tem uns cento e vinte e cinco mil habitantes, um
interessante porto, indústrias e restos de civilizações
passadas. Que mais?
— Em Varna, você se porá em contato com um dos
nossos, que estará à sua espera no aeroporto...
— Não disse que chegarei lá de carro, procedente de
Sófia?
— Mas passará pelo aeroporto, onde encontrará o nosso
homem. Seu nome...
— Johnny — cortou Brigitte, sorrindo. — Apenas
Johnny.
— De acordo. Não esqueça que em Fiumicino deve
transformar-se na loura jornalista italiana chamada Rosana
Morletti. Com essa personalidade e os documentos
correspondentes perfeitamente em regra, alugará um carro na
capital búlgara, irá a Varna, encontrará... Johnny e ele a
levará à presença dos Valika.
— Quem são esses Valika?
— Industriais búlgaros. Têm uma modesta fábrica de
material eletrônico. São pai e filha. Ele chama-se Dimitar;
ela, Marya. Com eles, ao que parece, você verá um homem
chamado Filip Plovien, também búlgaro. E um dos principais
técnicos de Dimitar Valika e, além disso, noivo de Marya.
Os Valika moram numa bonita casa com jardim, em Varna,
exatamente no número 147 da Avenida Deveti Septemvri.
— Tio Charlie: considerou o fato de que eu não falo o
búlgaro... ainda?
— Os Valika falam inglês e russo. Entender-se-á muito
bem com eles. Johnny assegura, em sua mensagem, que você
e ele serão recebidos pelos três búlgaros, em casa dos Valika,
para tratar do assunto. A mensagem chegou por via normal...
Normal da CIA, entende-se. A princípio, pensou-se enviar
um de nossos agentes itinerantes na Europa a fim de avistar-
se com os Valika e Filip Plovien, mas, dadas as
características desse... negócio, a Central decidiu que você
fosse encarregada de tudo. Assim, Johnny a espera depois de
amanhã, ao meio-dia, no aeroporto de Varna. Entendido?
— Entendido. Que espécie de negócio temos nós com os
Valika?
— Ofereceram-nos um aparelho.
Brigitte relaxou-se contra o espaldar do sofá, com uma
expressão de cômico desespero.
— Oh, não! — reclamou. — Outro invento, não, por
favor...!
— Sinto muito — sorriu Pitzer. — Já esperava que você
protestasse, mas ordens são ordens. Suponho que esteja de
acordo comigo em que a Central sabe o que faz: você
demonstrou ser especialista nesse negócio de ofertas de
invenções à CIA.
— Mas terei sempre que ser eu quem se encarregue
dessas coisas? De inventos, já estou cheia! Acaso Johnny
não confia nos Valika?
— Parece que sim. Mas a Central quer que você trate
pessoalmente da possível compra do “Telemorte”.
— Tele... quê? — exclamou Brigitte.
— “Telemorte”. Esse é o nome do aparelho.
Evidentemente, os Valika (ou talvez o mérito seja todo de
Filip Plovien) produziram-no em sua fábrica, às escondidas.
E resolveram oferecê-lo à CIA.
— Coisa que não seria exatamente do agrado dos russos,
se dela soubessem. De qualquer modo, tratando-se de
búlgaros, eu não me fiaria demasiado. Não confio, de um
modo geral, em ninguém que esteja do outro lado da Cortina
de Ferro... nem nos que estão deste lado.
— Bom deixe seus sarcasmos para outra ocasião. E,
como tem ordem de ir a Varna, diga apenas se pretende
cumpri-la ou declarar-se em rebeldia. Os membros do
Conselho, a esta altura, já devem estar acostumados com sua
insubmissão.
— Em que consiste esse... “Telemorte”?
— Não sabemos. Tampouco Johnny sabe ao certo... Mas
é coisa importante, evidentemente.
— “Telemorte”... Morte por televisão, talvez?
— Não faço ideia. Como é: vai ou não?
— Sabe você qual era a temperatura em Moscou esta
tarde? Vinte e cinco graus centígrados abaixo de zero!
Brrr...! Admiro os moscovitas.
— Mas você não vai a Moscou. Somente a Varna. É certo
que na Bulgária os invernos são rigorosos, mas Varna fica
junto ao mar, o que favorece muito seu clima. Não creio que
o termômetro desça ao ponto de congelamento. A
temperatura lá deve ser de dois ou três graus acima de zero.
— Brrr... Não podia enviar-me aos trópicos, tio Charles?
O sol, o mar, as palmeiras, as...
— As gaivotas, as flores... Já sei de tudo isso, Mas não se
preocupe: leva dois de seus casacos de pele na bagagem.
— Preferiria levar meia dúzia de biquínis e os óculos de
sol. Enfim, irei a Varna. Até quanto estamos dispostos a
pagar?
— Isso depende do aparelho. Não soltaremos um centavo
enquanto você não nos disser que vale a pena comprá-lo.
Veja o aparelho, peça uma demonstração e pergunte o
preço... Isso é coisa a ser discutida mais adiante. Se precisar
de maiores esclarecimentos.
— Não. De nenhum. Será melhor irmos dormir, tio
Charlie.
— Juntos? — assanhou-se Pitzer.
— Não. Você parece dessas pessoas que sempre têm os
pés frios. E seria ridículo que se deitasse de meias, não acha?
— Garanto-lhe que meus pés estão sempre quentes!
— E o resto? — perguntou Brigitte, em plena hilaridade.
— Se há coisa que não me encanta é ter que aquecer alguém.
Pitzer soltou um grunhido.
— Um dia aprenderei a discernir quando você fala sério e
quando pretende apenas zombar de mim. Boa-noite.
Levantou-se, algo enfarruscado. Brigitte se aproximou
sorrindo e deu-lhe um beijo no rosto.
— Adeus, tio Charlie. Mandarei-lhe um postal de Roma.
***
Estava escolhendo o postal, no aeroporto de Fiumicino, já
resolvidas as formalidades alfandegária quando um homem
colocou-se junto a ela, sorrindo algo crispadamente.
— “Baby”? — perguntou.
Brigitte olhou para ele, sorriu e finalmente escolheu o
postal entre os muitos que havia exposto Tomou a olhar para
o homem: alto, atlético, e: pressão sombria; usava um
impermeável, um elegante chapéu e guarda-chuvas. Lá fora
chovia intensamente, como se todas as nuvens estivessem
esperando o jato do voo Nova Iorque-Roma para abri suas
torneiras.
— Olá, Johnny — saudou ela. — Um minuto por favor...
Escreveu no postal:
Chegada a Roma sem novidade primo Johnny aqui
ao meu lado com uma cara fúnebre, mas lhe direi
que me convide para jantar e o farei rir.
Beijos de Brigitte

Meteu o postal na caixa que havia ali mesmo e voltou-se


para o homem, sorrindo mais uma vez.
— Que tal se fôssemos jantar juntos, Johnny? — propôs.
— Não tenho apetite.
— Bem... Poderíamos divertir-nos um pouco esta noite.
Meu avião só sai às oito da manhã para Sófia, devido ao mau
tempo nos Alpes Dináricos e à tormenta que chega dos
Bálcãs... Assim, nosso Johnny de Varna terá que pôr sua
paciência à prova no aeroporto. Gostaria de tomar
champanha?
— Não creio que Bob Sterling se incomode por esperá-la.
Brigitte fechou os olhos, aborrecida.
— Por que pronunciou seu nome verdadeiro? Já sabe que
prefiro não...
— Conheço bem seu modus operandi, “Baby”. Mas neste
caso já não importa: Bob Sterling está morto.
Ela mordeu os lábios e seus olhos fixaram-se nos do
homem.
— Refere-se ao Johnny que devia esperar-me amanhã ao
meio-dia no aeroporto de Varna? — perguntou.
— Exato. Seu nome era Robert Sterling. Você já não
precisa ter muita pressa.
— Depende — os maravilhosos olhos azuis pareciam de
gelo. — Sabe-se quem o matou?
— Não. Apareceu morto no cais de Varna, com dois
balaços no peito.
— Hum... Creio que mandarei outro postal.
Neste, escreveu:
Justificado de sobra o mau humor, do primo
Johnny. Em Varna ninguém poderá estar à minha
espera.
Brigitte

Meteu também o segundo postal na caixa, apanhou sua


maletinha vermelha com pequenas flores azuis e olhou para
Johnny, cuja expressão sombria era certamente
compreensível agora.
— Eu a levarei ao meu apartamento. “Baby”, se você não
se incomoda de passar a noite lá. Tenho um carro aí fora.
Dê-me o talão de sua bagagem...
***
Hora e meio mais tarde, ambos já no apartamento de
Johnny, na Via Favenzia, Brigitte instalava-se numa
poltrona, contemplando a chuva que brilhava na noite escura,
refletindo as coloridas luzes da rua. Eram apenas seis horas,
mas parecia que sempre tivesse sido noite. Uma noite
lúgubre, triste.
— Uísque? — propôs Johnny.
— Sim, obrigada.
Acendeu um cigarro, pensativa. Não gostava que
matassem seus companheiros. E não era um simples
aborrecimento, mas um pesar profundo, uma dor quase
física, que parecia apertar-lhe angustiosamente a garganta...
e, ao mesmo tempo, a enchia de raiva. Uma raiva, bem o
sabia, que às vezes era até irracional, pouco conveniente em
sua profissão.
Johnny sentou-se a seu lado, no sofá, e também acendeu
um cigarro, olhando de relance a espiã de quem tanto e tanto
tinha ouvido falar. Pigarreou e os olhos azuis desviaram-se
para ele.
— Partiremos juntos amanhã — disse. — Fui
encarregado pela nossa Embaixada de recuperar o cadáver de
Bob Sterling, pelo que precisarei ir a Varna. Mas nos
separaremos em Sófia. Você deverá seguir as instruções
atuais e dedicar-se exclusivamente ao seu trabalho. Eu, ao
meu.
— Você chegará a Varna em caráter diplomático?
— Correto. Portanto, não lhe poderei ser de muito
auxílio, pois haverá dificuldade quanto a esse cadáver.
Felizmente, nada se sabe sobre as circunstâncias em que a
morte ocorreu, de maneira que, por enquanto, a palavra
espionagem não está ligada a Sterling. Um assassinato no
cais, talvez por motivo de roubo... Foram apresentadas
desculpas em boa forma à nossa embaixada em Roma.
Porém, embora não possa ajudá-la... Bom, quero dizer que
podemos colocar lá dois ou três para apoiá-la...
— Não — cortou Brigitte. — Prefiro agir sozinha.
— Sozinha...! Olhe, “Baby”, com a morte de Sterling
pode-se concluir que o assunto não é tão fácil como parecia.
Em minha opinião...
— A minha é melhor, Johnny: não quero que mais
nenhum companheiro perca a vida.
— Mas você não poderá estar só em Varna. Fala o
búlgaro?
— Não.
— Pois ouça: precisará...
— Irei só. Sei o endereço das pessoas que devo procurar
lá. Você poderá conseguir-me uma planta de Varna?
— Sem dúvida, mas...
— Será suficiente.
— Não pode ser suficiente! — quase gritou Johnny.
— Agradeço seu interesse, querido, mas... sozinha.
O agente da CIA camuflado em diplomata olhou a jovem
de olhos azuis que, havia anos, esta proporcionando à sua
organização triunfo após triunfo, cada qual mais importante
e espetacular. Enfim, encolheu os ombros e sorriu.
— De acordo. Irá sozinha. Minhas ordens de não intervir
absolutamente em nada, já que pode tornar-se bastante
complicado retirar da Bulgária cadáver de Bob Sterling. De
qualquer modo, se precisar de mim para alguma coisa, não
hesite e chamar-me.
— Pela onda normal estabelecida para a Bulgária? —
perguntou ela, sorrindo.
— Sim, claro. Será um tanto comprometedor para eu
levar um rádio de bolso em minha bagagem, mas não posso
aceitar com tranquilidade seu isolamento num país cujo
idioma desconhece. De qualquer modo, se as coisas saírem
bem, quer dizer, se não me criarem embaraços, não creio que
permaneça em Varna por mais de quarenta e oito horas.
Nesse caso, talvez fosse conveniente facilitar-lhe algum
companheiro que...
— Não insista.
— Está bem. Mencionaram-lhe na Central algum hotel de
Varna?
— Não. E não o necessito. Onde morava Bob Sterling?
— Na rua Tsaribrod, número 16. Isso fica perto do cais e
da estação ferroviária.
— Perto do cais... Não me disse que foi no cais que o
encontraram morto?
— Exato.
— A que se dedicava ele em Varna? Que segurança
oferece o número 16 da rua Tsaribrod?
— Pelo amor de Deus... Você não estará pensando em
residir lá enquanto estiver em Varna!
— Sterling tinha com ele algo que pudesse denunciar seu
domicílio?
— Não. Certo que não. Do contrário o teriam levado para
lá... Mas desde o momento em que deram aviso à nossa
embaixada em Roma...
— Quer dizer que o domicílio de Sterling em Varna não é
conhecido das autoridades de lá. Isso é interessante. Que me
diz dessa planta da cidade?
— Vou buscá-la agora mesmo. Se demorar muito, poderá
deitar-se na cama. Dormirei neste sofá. A respeito de sua
partida amanhã às oito, será melhor que não cheguemos
juntos ao aeroporto. Irei depois de você, com o carro. Pode
tomar um táxi.
— Está bem. Estes são meus documentos, com o nome de
Rosana Morletti... — mostrou-os. — Espero que se me vir
transformada numa loura poderá reconhecer-me, Johnny.
— Também o espero, embora se contem coisas
surpreendentes de você nesse sentido. Mas creio que não
haverá problemas... É um passaporte perfeito — sorriu,
olhando o documento com interesse.
— Pouco a pouco, vamos aprendendo a fazer as coisas
quase à perfeição.
— Quase?
— Quase. Apenas quase, Johnny. Se fossem de todo
perfeitas, nosso companheiro Bob Sterling ainda estaria vivo
e à minha espera, amanhã, no aeroporto de Varna.
— De fato... Oh, há um detalhe, mas não sei como
interpretá-lo...
— Que detalhe?
— Está nos jornais desta tarde: dois de nossos destroieres
da VI Esquadra dispõem-se a atravessar o Canal do Bósforo
para entrar no Mar Negro.
Brigitte Montfort ficou pensativa uns segundos,
acariciando o delicioso queixinho.
— Acha que isso tenha alguma coisa a ver com a morte
de Sterling? Seria estúpido que o tivessem assassinado por
algo que se relacionasse com esses navios. É verdade que
Varna está na costa do Mar Negro, mas nossos barcos já
entraram lá em diversas ocasiões, desde outubro de 1964.
Segundo os acordos de Monreux, não há nada a opor,
contanto que nossos barcos tenham menos de dez mil
toneladas e não levem canhões de calibre superior a vinte
centímetros. É esse o caso?
— Não. Nossos destroieres estão dentro de tais
limitações. Entretanto, os russos não parecem contentes.
Acham que os Estados Unidos enviam esses barcos como
réplica provocativa à abundância de unidades navais
soviéticas no Mediterrâneo.
— Os russos sempre foram muito engraçados — sorriu
“Baby”, divertida — Enchem o Mediterrâneo de barcos de
guerra e protestam porque entramos com dois pequenos
destroieres no Mar Negro... Que não é todo deles,
naturalmente. Segundo entendo, nossos barcos têm pleno
direito de estar no Mar Negro e, assim, ninguém pode
censurar ninguém. Os russos podem pensar o que quiserem,
é óbvio, mas não devem ser levados a sério. Se não querem
ver barcos de guerra perto de suas costas, que retirem eles os
seus do Mediterrâneo. São sou nenhuma belicista, Johnny,
mas às vezes leve-se mostrar as unhas. Isso põe termo a uma
porção de maus pensamentos. Mas, diga-me: há algum
detalhe que o induza a crer que isso possa relacionar-se de
algum modo à morte de Sterling?
— Não... Claro que não. Em absoluto.
— Nesse caso, vamos ocupar-nos de nossos respectivos
trabalhos. Você retirará o cadáver de Sterling, para enviá-lo
aos Estados Unidos. E eu tratarei de esclarecer o caso desse
aparelho chamado “Telemorte”, que nos foi oferecido pelos
Valika e seu sócio, futuro genro, amigo ou o que seja,
chamado Filip Plovien. Espero visitá-los amanhã à tarde. É
possível que eles saibam alguma coisa a respeito da morte de
Johnny-Sterling. Se for assim — sorriu friamente —,
melhor... E neste caso lhes conviria não ter culpa nenhuma
quanto a ela, já que então não lhes seria pago exatamente em
ouro o preço de seu aparelho.
CAPÍTULO SEGUNDO
Ninguém sabe de nada
Encontro inesperado com um cadáver
O estranho objeto voador

— “Telemorte”? Nem sequer sabemos do que está


falando, signorina Morletti. Também não tenho a menor
ideia de quem possa ser esse Robert Sterling... Desculpe,
mas parece-me que se trata de um grande equívoco.
A loura Rosana Morletti olhou fixamente o homem que
acabava de pronunciar firmemente estas palavras. Um
homem alto, robusto, de rosto largo e corado e abundante
cabeleira grisalha. Seus olhos eram pequenos, vivos,
inteligentes. Usava um bonito casaco acolchoado, muito de
acordo com o intenso frio de Varna, embora naquela
confortável casa houvesse calefação. Estava sentado no sofá
da sala decorada com refinado gosto. Talvez refinado em
excesso, dada a superabundância de objetos ali reunidos.
Devia ter uns cinquenta anos.
Junto a ele, no sofá, estava uma jovem loura de pouco
mais de vinte anos, olhos verde-azulados, muito bonita e
ainda vestida com traje de rua. Parecia-se
extraordinariamente com homem de rosto corado, embora
sua beleza fosse completamente feminina, delicada, atraente
ao extremo. E seus olhos não eram pequenos, nem vivos;
tinham uma expressão calma e sonhadora. Junto dela, de pé
ao lado do sofá, havia um homem de aproximadamente trinta
anos. Também alto e forte, usava uma pequena barba que lhe
dava um aspecto varonil e simpático, Seus olhos cinzentos,
penetrantes, examinavam com amável curiosidade a visitante
loura, que parecia sumamente desconcertada.
— Eu não cometo equívocos desta espécie, senhor Valika
— declarou ela, imóvel em sua poltrona.
A conversa desenvolvia-se em russo, idioma que os
quatro dominavam perfeitamente. Quem melhor o fazia era a
signorina Morletti, a jornalista italiana.
— Bom... — murmurou Dimitar Valika. — Não sei o que
dizer-lhe, esta é a verdade. Ou melhor, não tenho mais que
lhe dizer: é um engano.
Rosana Morletti tornou a olhá-los, um a um, lentamente.
Por fim, levantou-se e chegou a uma das janelas da formosa
casa de Avenida Deveti Septemvri. Esteve uns segundos
olhando o jardim, onde predominavam as altas tílias. Diante
da casa via-se o carro alugado em Sófia, no qual ela havia
chegado. Mais além, as luzes da avenida e de alguns veículos
que passavam devagar. O chão estava muito úmido e
aparentemente ia nevar de um momento para outro. A noite
mostrava uma tonalidade esbranquiçada. Isso, juntamente
com a embaraçante atitude daqueles três personagens, em
nada concorria para melhorar o estado de humor da agente
“Baby”. Se apenas se tratasse de negociar a compra de um
aparelho, ter-se-ia ausentado dali a toda a pressa, rumo à
Acapulco, Havaí, Copacabana, Nassau... Qualquer lugar
onde houvesse sol, palmeiras e flores. Mas a morte de Bob
Sterling-Johnny a obrigava a ser paciente.
Voltou-se, junto à janela.
— Olhe, senhor Valika: percorri muitos milhares de
quilômetros para tratar desse assunto. Deveria ter chegado
antes, mas ontem o mau tempo impediu a saída do meu avião
de Roma, pelo que, fui forçada a esperar até esta manhã.
Cheguei a Sófia, aluguei um carro, percorri quase
quatrocentos quilômetros até aqui. Nem sequer descansei.
Apenas cheguei a Varna e vim diretamente à sua casa. Por
que não falamos claro?
— Estamos sendo pacientes até demais, creio —
murmurou o barbudo e elegante Filip Plovien. — Mas se
deseja clareza, isto é fácil, signorina Moretti: retire-se. Foi
vítima de um equívoco. Isso é tudo.
Brigitte Montfort, ou “Baby”, ou ainda Rosana Morletti,
olhou-o friamente.
— Quem está equivocado é o senhor. E isso não é tudo.
Há algo mais: a morte de Bob Sterling.
— Como... como diz...? — balbuciou Dimitar Valika.
— A morte de Bob Sterling. Não sabiam?
— Não...
— De quem se trata? — interveio rapidamente Marya
Valika.
— De um americano, claro — soou gélida a voz de
Brigitte. — Um agente da CIA, como eu mesma. Digo-o
porque, naturalmente, já o compreenderam. Não sabiam que
Sterling foi assassinado, aqui, em Varna?
— Dimitar Valika abriu a boca, mas Plovien adiantou-se:
— Nem sequer sabemos quem seja esse Sterling.
— Não? Pois eu lhe direi, senhor Plovien: Bob Sterling
era o agente da CIA por intermédio do qual propuseram
vender aos Estados Unidos o invento chamado “Telemorte”.
Por sua vez, ele transmitiu a oferta a Washington e eu fui
enviada aqui. Sterling perdeu a vida, mas eu posso
prosseguir com as negociações. Quanto pedem pelo
aparelho?
— Não sabemos de que está falando — murmurou Marya
Valika.
— Negam que conheceram Bob Sterling?
— Negamos.
— Tampouco fizeram uma oferta a CIA sobre o aparelho
chamado “Telemorte”?
— Claro que não! Não conhecemos esse americano, não
inventamos aparelho algum, nem sabem de que se trata... Já
lhe demonstramos muita tolerância, signorina Morletti, mas
parece-nos que está passando da conta. Sem querermos ser
descorteses, declaramos que está nos fatigando com suas...
fantasias.
Brigitte sentia nascer em seu íntimo uma cólera profunda,
violenta. Não ignorava, porém, que isso não lhe convinha.
Trabalhar sob o efeito da ira seria um suicídio, ou pelo
menos uma enorme tolice num espião. A espionagem exige
calma, frieza. Olhou alguns segundos a seu redor, como se
admirasse a sobrecarregada decoração da sala. Por fingi
assentiu com a cabeça, apanhou sua maletinha vermelha com
flores azuis e dirigiu-se para a porta.
— Lamento tê-los importunado... — deslizou
inexpressivamente. — Desculpem-me.
— Se pudermos ajudá-la em alguma coisa durante sua
estada em Varna...
— Sim... — deteve-se em seco. — Como não. Podem
fazê-lo: ressuscitem meu companheiro Bob Sterling.
— Olhe, signorina...
— Boa-noite a todos.
— Acompanho-a até a porta — sussurrou Plovien
— Muito obrigada.
Pouco depois, Brigitte saía ao pórtico da casa.
Ali, voltou-se para o barbudo, que esperava cortesmente
junto à porta aberta.
— Senhor Plovien, adiantaria alguma coisa falarmos a
sós, em lugar conveniente?
— Deveria aceitar a situação, signorina Morletti: está
cometendo um grave erro. Alguém a enganou a nosso
respeito... ou à CIA. Tudo quanto lhe posso prometer é que
seremos discretos. Nem a minha noiva, nem a mim, e muito
menos a meu futuro sogro convém qualquer tipo de enredo
com a CIA, compreenda. Portanto, ficaremos calados. É só o
que lhe posso dizer.
— Espero que não venha a arrepender-se.
Entrou no carro, ligou a ignição e dirigiu-se para a saída
do jardim, passando por entre formosas tílias. Caía uma
chuvinha fina, quase congelada, friíssima, e ela novamente
sentiu vontade de fugir para qualquer parte do mundo onde
sua pele pudesse dourar-se ainda mais ao sol. Só se vive uma
vez, e é absurdo fazê-lo num clima do qual não se gosta.
Quando se é rico, pode-se ir aonde nos agrade. Quando se
é pobre, tanto se pode trabalhar na Groenlândia como no
Havaí. Então, por que não ir para o Havaí?
Mas não era esse o seu caso. Era ali, em Varna, que
tinham assassinado um de seus companheiros. Ela deixaria
de ser “Baby” se naquele mesmo momento se esquecesse da
morte de um Johnny.
Tinha percorrido pouco mais de meio quilômetro quando
se deteve, a um lado da zona ajardinada, no cruzamento das
avenidas Deveti Sepetemvri Otets Paisili, sob um dos postes
de iluminação. Apagou todas as luzes do carro,
conformando-se com fria, lívida claridade local. Tudo era
gelado ali, como se já estivesse coberto de neve. Não se via
ninguém e só de raro em raro passava algum veículo. Brrr...!
Desdobrou a planta de Varna que lhe forneceu Johnny-
Roma e pôs-se a estudá-la atentamente, diversas ocasiões já
necessitara recorrer a tal procedimento. Era um tanto
incômodo, mas produzia bons resultados. Podia prosseguir
pela mesma avenida, que depois passava a chamar-se
Gueorgui Dimitrov, e sair no Parque Marítimo, para em
seguir descer até o cais... Não. Decidiu ir pela Avenil de
Maksime Gorki, até Batak. Depois, por esta até o
cruzamento com Luline. E dali, seguindo reta, sairia
exatamente na Tsaribrod, onde, no numero 16, Bob Sterling
tivera seu domicílio em Varna. Domicílio que, segundo
Johnny-Roma, as autoridades búlgaras desconheciam. Bem...
Sempre é interessante dar uma olhadela ao covil de um
espião.
Quase meia hora mais tarde, após ter-se desorientado por
duas vezes, detinha o carro diante do número 16 da Rua
Tsaribrod, junto ao meio-fio da calçada oposta. Desligou o
motor, apagou todas as luzes e olhou pelo espelho sobre o
para-brisa. Esteve assim não menos de cinco minutos,
imóvel. Felizmente, o carro dispunha de calefação; do
contrário teria ficado congelada.
Decorridos os cinco minutos, encolheu os ombros.
Certamente fora imaginação sua: nenhum carro a seguia. O
que não seria estranho, já que a morte de Bob Sterling podia
indicar muito logicamente que mais alguém se interessava
pelo mesmo assunto e, por conseguinte, os Valika poderiam
estar sob vigilância...
Saiu do veículo, colocando seu casaco de vison, cuja gola
levantou até às orelhas. Com a maletinha na canhota,
atravessou rapidamente a rua e transpôs o portal da casa
número 16, que constava de dois pavimentos. Subiu em
silêncio e observou a luz que aparecia sob uma das duas
portas. Encaminhou- se para a outra e manejou a gazua que
já tinha preparada na mão direita. Demorou quase dois
minutos a abrir, o que não contribuiu para melhorar seu
humor.
Finalmente, entrou, tornando a fechá-la a toda a pressa,
atrás de si. Ficou imóvel na completa escuridão daquilo que
parecia um pequeno apartamento antigo e não muito bem
montado. Guardou o jogo de gazuas e sacou a lanterna que
semelhava uma esferográfica. O delgado feixe de luz
deslizou pelo chão, pelas paredes... Certamente aquele não
era um lugar acolhedor. As vezes os espiões se instalam em
palácios, ou pouco menos. Outras vezes, em pocilgas. Coisas
da profissão. Até ela, muito tênue, chegou o apito de um
trem. Havia linhas de manobra bem perto dali, ao outro lado
da rua. B ainda mais além, segundo o plano da cidade, estava
o cais. Tornou a ouvir o apito do trem. Parecia o mesmo.
Depois, tudo tornou a ficar em silêncio. Um silêncio denso,
completo, envolvente.
Estava numa peça que era vestíbulo, sala e cozinha, tudo
ao mesmo tempo. Não lhe interessava. Viu duas portas ao
fundo e dirigiu-se a uma delas, deslizando sempre com seu
habitual silêncio, como se na verdade fosse uma sombra.
Lançou o fino raio de luz para o interior daquela peça, que
devia ser um quarto. Era. A luz passou por sobre um corpo,
por sobre a cama... Voltou imediatamente ao corpo, ao
mesmo tempo em que ela também se deslocava para lá.
Simplesmente ao tocar aquele corpo constatou que estava
morto havia muitas horas. Estava tão frio, que ela tornou a
estremecer. Frio e rígido, como uma barra de gelo. Virou o
cadáver, após examinar superficialmente os três ferimentos
de bala que tinha nas costas. Ao virá-lo, dirigiu a lanterna
para o rosto crispado, lívido, parecendo de pedra. Os olhos
estavam abertos. Uns olhos escuros, protegidos por espessas
sobrancelhas negríssimas. O rosto era enérgico, forte, viril.
Não o conhecia. E, evidentemente, não era Bob Sterling,
pois o corpo deste se encontrava no necrotério municipal de
Varna. Era absurdo pensar que os búlgaros tivessem levado
para lá o cadáver do norte-americano, para deixá-lo atirado
como se fosse um objeto qualquer. Isso, além de, segundo
Johnny Roma, o domicílio de Sterling em Varna não ser
conhecido.
Revistou as roupas do homem. A primeira coisa a
encontrar, talvez por instinto, foi o revólver. Uma arma de
grande calibre, munida de silenciador, bem colocada no
coldre axilar. Também havia um rádio de bolso e uma
caderneta cheia de números, que sem dúvida eram em
código. Assombroso. Para definir a profissão daquele
indivíduo, só uma palavra era adequada e qualquer um
poderia dizê-la sem forçar a inteligência: espião. E como se
isso fosse pouco, Brigitte encontrou também seu passaporte.
Era russo, nascido em Jarkov, Ucrânia, a 22 de agosto de
1930. Nome: Rudolf Varkov Karavitch. Domicílio: Moscou.
Profissão: jornalista.
O assombro manteve aberta a boquinha de “Baby”
durante alguns segundos. Aquilo era como andar procurando
a pista de um elefante e encontrar-se, de repente, diante do
próprio. Por muito que resistisse, só podia pensar uma coisa:
tinha sob os olhos o cadáver de um agente da MVD
soviética. Um espião russo, nos aposentos que tinham sido
ocupados por Bob Sterling, espião americano. As conclusões
eram tão óbvias, que ela sentiu-se decepcionada: a MVD
tinha descoberto e eliminado Robert Sterling. Só que antes,
ao que parecia, seu companheiro matara um dos agentes
soviéticos... A explicação era simples, de uma lógica
esmagadora. Só restava uma dúvida: Bob Sterling havia
mencionado os Valika antes de morrer. Porque se era assim,
os Valika deviam estar vigiados...
O carro! O carro que parecera segui-la por Varna...
Talvez não fosse imaginação sua. Tal como as coisas
estavam acontecendo, o mais provável era que a estivessem
seguindo os mesmos que vigiavam os Valika. Provável e
lógico... Impressionantemente lógico.
Súbito, a seus apuradíssimos ouvidos chegou um som.
Um som estranho, levíssimo. Como um zumbido suave,
agudo. Apagou a pequena lanterna e ficou móvel, tanto
quanto o próprio Rudolf Varkov Karavitch, morto a seus pés.
O som estava se aproximando, procedente da primeira peça
do apartamento. Era um zumbido como... elétrico. Sim, um
som elétrico. Ouvia-o cada vez melhor, aproximando-se. E
de pronto, o som, o zumbido, ficou no umbral da porta do
quarto.
Contendo a respiração, Brigitte girou somente sobre a
cintura, lentamente, enquanto seus dedos deslizavam para a
pistolinha. Acabou de voltar-se, erguendo já a mão armada,
apontando para a porta!
Lançou uma exclamação ao ver o que havia ali e teve que
fazer um grande esforço de vontade para reagir, para deixar-
se cair lateralmente no chão, ao mesmo tempo em que
apagava a lanterna e atirava, quase por reflexo, por instinto.
Naquela fração de segundo do que havia durado o raio de luz
de sua lanterna teve tempo de ver, como ao lampejo de um
flash, aquela... “coisa”.
Parecia um diminuto avião aerodinâmico, moderníssimo,
de asas muito curtas, em forma de projétil Negro, reluzente,
com uns noventa centímetros de comprimento. Tinha no alto
uma pequena torre, perto do bico, no qual se viam quatro
orifícios. A torreta apresentava um ponto brilhante, como de
cristal um pequeno cristal que podia muito bem ser a
objetiva de uma câmara... ou algo parecido.
Foi uma visão rapidíssima, que ficou na mente de “Baby”
enquanto ela se lançava ao chão, e, simultaneamente,
ouviam-se dois ligeiros estalidos procedentes daquela
aeronave em miniatura; de seu nariz brotaram dois clarões
violáceos e, ato contínuo, do outro lado do aposento, ela
ouviu dois impactos contra a parede.
Completamente aterrada, “Baby” voltou-se em direção ao
aparelho e, apesar de não vê-lo por ter apagado a lanterna,
fez fogo duas vezes para onde avistara um segundo antes.
Ouviu o choque balas contra a superfície metálica e os
ricochetes agudos um instante antes que as balas se
cravassem no teto, sem afetar absolutamente o aparelho
voador, de cujo nariz tornaram a brotar dois clarões, a cuja
luz pôde vê-lo um momento, agora em posição diferente.
Outra vez ouviu os impactos dos projéteis disparados pelo
aparelho, muito perto dela, ricocheteando no solo e
cravando-se na parede.
Com a pistola na direita e a maleta na esquerda, deslizou
de joelhos, quase se arrastando, para a saída. Estava
chegando à porta quando por cima dela tornaram a brilhar
dois clarões, e novamente dois fortes impactos se
produziram, primeiro no chão e depois na parede, agora cm
lugar diferente. Ouvia, bem sobre sua cabeça, o zumbido
levíssimo, e ao levantar-se velozmente, seu ombro golpeou o
objeto metálico, aquela espécie de pepino voador com duas
pequenas asas. Contendo a duras penas um grito de pânico,
“Baby” lançou-se ao vestíbulo-sala-cozinha, direto para a
porta. Tinha que escapar dali imediatamente, fosse como
fosse... Estava abrindo a porta quando tornaram a soar atrás
dela os estalidos e houve aquele tênue, fugaz resplendor
violáceo. Um dos projéteis cravou-se na moldura da porta e
outro a atravessou limpamente, enquanto a espiã
internacionalíssima saía do apartamento e fechava-a atrás de
si, deixando o objeto voador lá dentro.
Encontrou-se escuridão quase completa da velha casa. A
luz que antes brilhava sob a outra porta já não se via. Talvez
tivessem saído os ocupantes do outro apartamento. Correu
para a escada e já tinha um pé no ar quando ouviu, embaixo,
fortes pisadas, lentas, contidas. Pelo menos, dois homens.
Desesperada, olhou para todos os lados, como se tivesse a
esperança de ver qualquer coisa na escuridão. Os segundos
pareciam alongar-se, atrasando o tempo. Mas não os dois
homens que subiam a escada. Com o coração batendo,
“Baby” deslocou-se para a direita, erguendo a pistola. Se
nada podia ver, os outros tampouco. Encurralou-se num
canto, olhos arregalados, esperando o menor sinal de perigo
para abrir fogo.
Não a caçariam facilmente.
E naquele instante, a porta do apartamento de Bob
Sterling rebentou, com grande estrépito de madeira
despedaçada. Quase simultaneamente, outros dois clarões
romperam a escuridão.
CAPÍTULO TERCEIRO
Afinal quem está perseguindo quem?
— O golpe magistral do amor cigano
— Foi o ianque quem matou o russo, ou vice-versa?

A luz dos clarões violáceos, Brigitte tornou a ver o


pepino voador. Sua aguda ponta havia arrebentado a porta e
pelo orifício estilhaçado aparece ele, já disparando. Acabou
de sair quando ainda seus olhos estavam cheios da sua luz.
Encolheu-se apontando-lhe a pistola. Naquele momento
soaram as vozes excitadas dos dois homens, já no final da
escada. Houve um segundo de indecisão, de suspensão dos
acontecimentos.
Mas em seguida brotaram mais dois clarões, agora no alto
da escada, e Brigitte tomou a ver aquela espécie de pequeno
avião aerodinâmico.
— Vamos! — ouviu o grito alarmado, em russo — Corra,
Andrei! Para o carro!
Ouviram-se os passos precipitados dos homens escada
abaixo... e brilharam mais dois clarões u: escuridão, agora
em diagonal descendente, assinalando a rota daquele artefato
metálico, que se deslocava empós dos russos.
— Corra! — tornou ela a ouvir. — Para o carro...
Pisadas fortes, arquejos, estalidos de disparos do
aparelho, breves fulgores arroxeados...
— Basili! — ouviu a voz do russo, distante, sem dúvida
na rua. — Deixe isso e venha para o carro Depressa!
Disposta a aproveitar a conjuntura, decidida a sair dali o
quanto antes, Brigitte lançou-se escada abaixo a toda a
velocidade. Chegou ao portal a tempo de ver o homem
abordar correndo um grande carro escuro e embarafustar
pela porta aberta O carro já estava em marcha e o objeto
voador lançava outra vez seus dois disparos. Ela ouviu vibrar
a carroçaria do veículo, que rodava com grande rangido de
pneus para a Rua Débar, tendo atrás de si o avião em
miniatura.
Saiu correndo para seu carro, mas deteve-se em seco ao
ver surgir um homem de um portal. Levantou a pistola,
pronta para atirar.
— Você é da CIA? — exclamou ele.
— Sou...
— Tenho um recado para lhe dar, da parte de mister
Sterling.
— Vamos para o carro!
Correram os dois para o automóvel que ela alugara em
Sofia. Brigitte entrou, abriu a outra porta e o homem
precipitou-se para dentro. Tinha os olhos muito abertos e a
respiração agitada.
— Depressa, depressa! — ofegou.
— Abaixe-se... — recomendou Brigitte. — Deixe-se
escorregar até o chão do carro!
Ele parecia não entendê-la, apesar de ambos estarem
falando em russo com toda a naturalidade. Mas compreendeu
o que ela queria quando a viu escorregar do assento,
colocando-se sem dificuldade entre este e os pedais de
comando. Mas em seguida ergueu um pouco a cabeça, a fim
de olhar através do para-brisa. Tanto ela como o
desconhecido viram o objeto voador, que regressava.
Causava uma impressão estranha, aterradora, ver aquele
diminuto aparelho voando silenciosamente pela rua solitária
e mal iluminada. Petrificados de espantos, viram-no chegar
diante da casa número 16, virar com um movimento gracioso
e transpor o portal.
— Voltou à minha procura... — disse Brigitte,
surdamente. — É a mim que ele quer!
Endireitou-se rápida, ligou o motor e um segundo depois
o carro partia célere, na mesma direção tomada pelos russos.
Mas isso pouco importava. A possibilidade de um confronto
com dois ou três espiões soviéticos parecia-lhe oferecer
muito menos risco que ser localizada em terreno aberto e
iluminado por aquele artefato. Quando chegaram ao
princípio da Rua Débar, o desconhecido apontou para a
direita.
— Por aí! Passaremos diante da estação, onde sempre há
mais veículos, e nos confundiremos com eles.
Era uma sugestão de todo sensata e Brigitte torceu o
volante para a direita. Percorreram uma rua curtíssima e
surgiram em Devnia, onde, apenas rodados duzentos metros,
viram a estação, friamente iluminada, e diante da qual havia
movimento de carros.
— Siga por esta avenida... Mas não entre no Parque
Marítimo: tome a esquerda até Lênin. Depois, em direção ao
Estádio... Conhece o caminho?
— Creio que sim... Mas será melhor que você guie.
Deteve o carro diante da entrada principal da estação
ferroviária. O homem saltou, deu volta ao veículo pela
frente, enquanto Brigitte se deslocava no assento, e em
menos de três segundos estavam novamente em marcha,
agora com o desconhecido ao volante. Ela esteve uns
segundos olhando para trás. Por fim, tranquilizada,
acomodou-se melhor, dando um suspiro. Súbito, virou a
cabeça para o companheiro e examinou-o em silêncio. Devia
ser no máximo trinta e cinco anos. Olhos negríssimos,
cabelos da mesma cor e longos, ondulados; lábios um tanto
espessos, sensuais, nariz reto, queixo forte, tez muito
bronzeada...
— Você é cigano? — perguntou-lhe.
O homem virou a cabeça um instante, sorrindo. E seu
sorriso agradou a Brigitte. Era amável, simpático e agora, já
passado o susto produzido pelo objeto voador, divertido,
quase irônico.
— Com efeito, sou cigano. Meu nome é Torbek. E o seu?
— “Baby”.
Torbek teve um sobressalto tão forte que o carro pareceu,
por instante, a ponto de subir à calçada.
— É mesmo? — quase gritou. — Não posso acreditar!
— Já ouviu algo a meu respeito?
— Está é boa! Ouvi falar mais de você que da Estátua da
Liberdade! Mister Sterling sempre o fazia. E outros... Dá-se
conta de que não será bem vista por estas bandas?
— Estou acostumada. Quer dizer que conhecia Bob
Sterling?
— Minha gente e eu fazíamos alguns pequenos trabalhos
para ele, em certas ocasiões. Pagava bem... E, além disso, era
simpático.
— Duas razões bastante convincentes — sorriu Brigitte,
apertando na mão a pistolinha. — Devo entender que você e
sua gente eram amigos de Sterling?
— Claro. Você fala muito bem o russo.
— Que recado lhe deu ele para mim?
— Não precisamente para você, mas para o agente que
chegasse ao seu domicílio. Do modo como aconteceram as
coisas, e reconhecendo os outros como agentes russos,
pareceu-me que você era da CIA. Ouça... que era “aquilo"?
Aquilo que voava... aquela espécie de... aviãozinho?
— Não tenho a menor ideia, realmente.
— Fiquei com os cabelos em pé quando o vi. Eu estava
na rua, esperando-a, quando você entrou casa. Queria subir
em seguida, mas apareceram os três russos com o carro.
Estiveram uns segundos conversando e, em seguida, dois
deles entraram. Enquanto o outro foi vigiar o carro em que
você viera. Ficou esperando, agachado atrás dele, quando
saíram os outros atabalhoadamente. Eu estava vendo se
encontrava um meio de tirá-lo dali... Pareceu-me que seria o
melhor modo de ajudá-la: garantir sua retirada. Além disso,
podia manter-me no carro deles e, se a trouxessem
prisioneira...
— Está bem, está bem... Veio armado?
— Claro — sorriu Torbek.
Meteu a mão sob o grosso casaco e quando a retirou
ouviu-se um estalido, que precedeu o aparecimento de uma
brilhante lâmina de aço.
— Se só tem isso, compreendo suas precauções. Que
recado lhe deu mister Sterling para o agente CIA que
chegasse?
— Está na carroça.
— Na carroça? Você não parece desses ciganos que
percorrem o mundo de carroça, Torbek.
— As aparências enganam. Uma pessoa sente-se mais
livre vivendo numa carroça.
— Vai levar-me a uma... tribo de ciganos?
— Somos boas pessoas — sorriu ele.
Depois de atravessar completamente Varna para o norte,
o carro deteve-se finalmente numa pequena clareira circular,
à entrada de um bosque. Viam-se três carroções, formando
um semicírculo. No centro desse semicírculo, havia uma
fogueira em torno da qual, tensos, esperavam nada menos
que trinta ciganos, a maioria deles mostrando poucos
detalhes dos que são típicos de sua raça, como brincos,
lenços na cabeça, faixas... Todos eram muito morenos, mas
dois apenas, os mais velhos, tinham o característico brilho
gorduroso no rosto escuro. Havia uma boa dúzia e meia de
crianças, entre os dois e os doze anos. E as mulheres, estas
sim, usavam roupas de cores vivas e colares. Duas velhas
pareciam nem sequer ter percebido a chegada do automóvel,
mas os dois velhos e quatro homens aproximadamente da
idade de Torbek puseram-se de pé, com lentidão. Parecia que
olhavam para a meia dúzia de cavalos amarrados no extremo
de semicírculo, às rodas de um dos carros, mas Brigitte
sentiu que a estavam olhando e a seu companheiro com suma
atenção.
— Estão preocupados — comentou Torbek. — Ausentei-
me daqui ontem pela manhã e ficaram sem notícias minhas.
Estive todo o tempo à sua espera, em Tsaribrod. Que acha de
colocarmos o carro entre as árvores?
— Será o melhor.
Desviaram-se para a orla do bosque, meteram o carro
entre árvores altíssimas e dirigiram-se a pé para o grupo de
ciganos. Nem sequer se aproximaram da fogueira, nem
pareceu que sua chegada interessasse a ninguém. Torbek
saudou com a mão e foi tudo. Encaminharam-se para um dos
carros e o cigano búlgaro indicou a escada de madeira que
conduzia à porta envidraçada, através da qual a luz filtrava-
se pelo tecido de cores alegres que servia de cortina.
— Considere-se em sua casa — disse Torbek.
Brigitte foi a primeira a entrar na carroça, cuja
iluminação provinha de duas lamparinas. Era uma variegada
mostra de cores e objetos: cadeiras, sacos utensílios de
cozinha, um pequeno fogão. Ao fundo duas filas de estreitos
beliches, uma de cada lado. Três beliches cada fila. Ali
dentro dormiam seis pessoas.
Quando Brigitte olhou para Torbek, deu-se conta de que
este a olhava com ironia, compreendendo perfeitamente o
que ela estava pensando.
— Aqui vivemos eu, minha mulher e nossos quatro
filhos. Logo teremos outro.
— Parabéns.
— Tenho amigos em Varna. Um deles é fotógrafo. De
confiança. Foi quem me revelou o microfilme.
— Que microfilme?
— O que me entregou mister Sterling. Fomos os dois
para o cais. Ele levava uma câmara com luz infravermelha.
Disse que eu ficasse mais atrás, entrei uns fardos, e adiantou-
se com a câmara. Voltou quase duas horas mais tarde,
correndo, ofegando. Pareceu-me que estava muito assustado.
Entregou-me o microfilme numa cápsula de plástico,
dizendo que me retirasse imediatamente, me escondesse e
esperasse com as fotos o agente que mandariam ao seu
apartamento, se ele não me chamasse a certo lugar; como
fazia sempre. Não me chamou. Não tornei a vê-lo, mas
soube que foi encontrado morto no cais. Senti muito. Ele não
me disse...
Brigitte moveu a cabeça, como aceitando as desculpas
que o cigano parecia disposto a apresentar. Recebeu o
envelope que este retirara de sob um dos colchões de palha,
abriu-o e sacou as fotografias, já ampliadas. Não havia
dúvida de que, durante algum tempo, Bob Sterling havia
treinado e utilizado muito bem Torbek, o qual parecia saber
perfeitamente em que espécie de confusões se metia o
americano.
As fotos eram seis apenas. Em cinco delas, sempre no
centro, via-se uma barcaça velha e em más condições,
tomada aparentemente como objetivo do homem da CIA. E
numa daquelas cinco fotos viam-se dois indivíduos entrando
na barcaça, pela passarela que a ligava ao cais. A sexta podia
ser muito mais interessante. Era de um homem envolto em
grosso capote, que saía da barcaça. Utilizando habilmente a
teleobjetiva, Bob Sterling conseguira aproximá-lo o bastante
para que se pudesse ver seu rosto. Um rosto moreno, de
grandes olhos negros, lábios cheios e queixo agudo; seus
cabelos eram notavelmente longos.
— Conhece-o? — perguntou “Baby”.
— Não.
— Parece cigano...
— Não é.
— Se você diz... E a barcaça? Conhece-a?
— Tampouco. Mister Sterling não me disse nada. Além
disso, deixou-me para trás, de modo que não pude vê-la com
meus próprios olhos. De qualquer modo, não a conheço.
Nada sei sobre ela. Poderia ter-me informado depois, mas já
lhe disse que não me arredei da Rua Tsaribrod, esperando
que chegasse o agente da CIA. Mas, quando você quiser,
poderemos...
Voltou-se vivamente para a porta, que acabava de abrir-
se. Um dos ciganos velhos estava ali e, após olhar para
Brigitte, disse rapidamente algo.
A alteração de Torbek foi visível.
— Os russos... — murmurou. — Chegaram aqui. Não
compreendo! Estou certo de que não nos puderam seguir...
— Onde estão?
— Junto ao seu carro. Virão até cá.
Torbek indicou uma das pequenas janelas da carroça e
olhou para onde apontava o velho. Por sua vez, indicou a
Brigitte a janela, e esta também olhou. Na orla do bosque
via-se o seu carro metido entre as árvores, iluminado pelos
faróis do outro carro, maior. Três homens o rodeavam, mas
já estavam voltados para as viaturas dos ciganos.
— Pois eu compreendo como nos encontraram... —
murmurou “Baby”. — Você não se deu conta, Torbek, mas o
que esteve junto ao meu carro colocou nele um transmissor
magnético. Parece que conseguiram escapar bem daquele
artefato que voava, recorreram a seu receptor e chegaram
com toda a facilidade até aqui.
— E agora? — perguntou ele, voz tensa. — Temos
algumas armas, porém há crianças e não acho...
— Transmita a ordem a este homem — indicou o velho:
— que toda a sua gente diga que viu chegar meu carro e que,
saindo dele, eu corri para o caminho... Neste surgiu outro
automóvel, maior, do qual saltaram dois homens. E que nós
três partimos, em seguida, no carro grande. Sua gente me
viu, de modo que poderá descrever-me. Isso deve ser
suficiente para convencê-los.
— Oxalá dê resultado...
Torbek voltou-se para o velho e falou rapidamente com
ele, em búlgaro. O velho dirigiu um olhar astuto a Brigitte,
sorriu e assentiu com a cabeça. No segundo imediato, ela e
Torbek encontraram-se novamente a sós na carroça-vivenda.
— Dispa-se da cintura para cima — disse Brigitte.
— Quê?
— Dispa-se.
Ante o assombro do cigano, tirou a peruca loura,
deixando cair soltos seus cabelos negros. Depois,
umedecendo as pontas dos dedos médios, colheu duas
microlentes negras da caixinha metálica que trazia em sua
maleta, entre variado material de maquilagem, colocando-as
delicadamente sobre as pupilas azulíssimas. Guardou na
maleta a peruca loura e escondeu-a sob as roupas de um dos
beliches inferiores. Fora já se ouviam vozes secas, dando
ordens.
— Meta-se no beliche, Torbek.
Ele obedeceu, estupefato. Aquela mulher era tão diferente
da outra... De loura de olhos azuis, passara a ser uma
estupenda morena de olhos negros. Que tirou a toda a pressa
o vestido e escondeu-o, junto com o casaco, sob outro
beliche. Com a pistolinha na mão, deitou-se ao lado de
Torbek. Tirou também o soutien, ficando estendida de
barriga para baixo. Escondeu aquela prenda íntima, meteu a
mão armada sob as costas do cigano e com o outro braço lhe
rodeou o pescoço. Antes que este pudesse imaginar o que ela
estava tramando, começou a beijá-lo na boca, apertando-se
fortemente contra seu peito. E ele ainda não saíra de seu
assombro quando soaram pisadas na escada da carroça. A
porta foi bruscamente aberta, com violência. Ela desfez o
abraço, sobressaltada, olhou para a porta, e, ato contínuo
cobriu o busto com as roupas do leito, olhos fixos no homem
que os contemplava atentamente, revólver na mão, sem
revelar o menor interesse pelos encantos mais ou menos
visíveis da “cigana”.
A essa altura, Torbek já tinha compreendido, e seu olhar
colérico pareceu varar o agente da MVD, enquanto
começava a dizer algo em búlgaro, aos gritos. O russo
carregou ainda mais o cenho, lançou uma olhadela ao redor,
convenceu-se de que ali não se poderia ocultar ninguém e,
olhando mais uma vez para a “cigana”, desapareceu,
fechando a porta com estrondo.
— Aqui não está, Basili — ouviram-no dizer, era russo.
Torbek lançou um profundo suspiro, enquanto algo mais
longe soava a voz de outro russo.
— Tranquilize-se, Torbek — sorriu Brigitte. — E veja
como estão as coisas aí por fora. Com cuidado. Se vierem
outra vez para cá, torne a deitar-se comigo.
O cigano assentiu com a cabeça. Levantou-se do beliche
e deslizou até a porta, que entreabriu. Embora o vissem, os
russos compreenderiam seu interesse pelo que ocorria... O
mesmo que dera o alarma estava falando com dois deles,
enquanto o terceiro saía da última carroça.
— Convenceram-se de que você não está nas carroças.
Agora, Porkiak lhes diz o que você sugeriu. Discutem com
ele, mas Porkiak insiste. Aponta para o seu carro, para o
caminho, gesticula imitando a chegada de um automóvel,
mostra dois dedos, parece que estão acreditando. Vão-se
embora... Não estão nada satisfeitos, mas um deles já se
afasta. E também os outros dois... Vão para o carro.
Ele ficou em silêncio alguns segundos, antes de
continuar:
— Estão parados junto ao carro deles, conversando. Um
vai até o outro carro... o de você. Entra nele... Oh, deixei
ficar a chave!
— Não importa.
— Está levando o seu carro. Os outros dois vão atrás, no
deles... Mas isso é roubo!
— Sabem que não os denunciarei à Polícia — sorriu ela.
Ergueu-se do beliche e começou a colocar o soutien,
pensativa. Quando terminou, viu que Torbek a olhava
fixamente. Ao ver-se olhado por sua vez, ele sorriu.
— Você é muito bonita — murmurou.
A porta da carroça tornou a abrir-se, agora devagar, e
uma mulher apareceu. Não devia ter mais de vinte e seis
anos. Era bela, com seus olhos negros c rasgados. Ficou
olhando torvamente para Brigitte, ainda de soutien. Depois
olhou para Torbek, o qual se pôs a falar atropeladamente,
fazendo expressivos pitos para completar sua explicação.
Brigitte acabava de vestir-se, sorrindo afavelmente para a
cigana, seu ventre volumoso indicava adiantada gravidez.
— Ela está com ciúmes, Torbek?
— Está. Mas compreendeu.
— Terá ainda que ser mais compreensiva: diga-lhe que
passarei aqui a noite, com vocês e seus filhos. Posso dormir
em qualquer parte.
Deixou os dois ciganos se pegarem numa discussão um
tanto azeda, por parte da jovem, e tirou da maleta o radinho.
Comprimiu o botão de chamada.
— Johnny?
— Fale, “Baby”. Está me chamando em bom momento:
acabo de regressar do necrotério municipal, onde tiveram a
amabilidade de contar-me algo interessante. Haverá
dificuldades.
— Que bom... — resmungou Brigitte. — De que se trata?
— Fale primeiro você.
Brigitte explicou em breves palavras o ocorrido,
informando Johnny-Roma inclusive do que pensava a
respeito das mentiras dos Valika e Filip Plovien.
— Algo aconteceu e eles temem as consequências. Por
isso, insistem em que nada sabem desse artefato, Johnny.
— Acha que possa ser o que você viu?
— Provavelmente. É apavorante, acredite. Bem, eu vou
passar a noite com os ciganos. De manhã, não antes das
onze, terá de vir de carro pela estrada que leva à praia de
Zlatni Piassatsi, as Praias de Ouro, como são chamadas. Não
creio que haja banhistas nesta época do ano, certo?
— Pouco provável — disse festivamente Johnny,
continuando a brincadeira. — Tenho que recolhê-la nessa
estrada?
— Não. Você deixará o carro depois de me avistar e
voltará a Varna como puder. O carro ficará comigo. Também
preciso de dinheiro. Roubaram-me tudo. Inclusive um casaco
de pele.
— Teremos que fazer uma reclamação em regra à MVD.
— Pode-se tentar... — sorriu Brigitte. — Conto com tudo
isso, Johnny?
— Farei o possível. E se precisar de meu auxilio
pessoal...
— Não. Você já tem complicações que cheguem. Quais
as dificuldades do seu lado?
— As balas que mataram Bob Sterling continham
cianureto.
— Cianureto! — espantou-se ela.
— Sim. Ou seja, mesmo que as balas não o atingissem
em pontos vitais, ele morreria necessariamente de qualquer
ferimento que lhe causassem, por mínimo que fosse.
— Balas carregadas com cianureto... Agora compreendo
por que estalavam daquele modo, as que o artefato disparou
contra mim!
— Felizmente nenhuma a atingiu, nem de leve.
— Nem de leve, o que mais uma vez confirma a minha
sorte incrível. Que lhe parece a ideia de ter sido morto por
esse aparelho?
— Aceitável. Melhor ainda: bastante lógica. Acha você
que os russos têm algo a ver com isso?
— Intervém, não há dúvida. Mas não sei que pensar...
Não esqueçamos que o tal aparelho também os perseguiu.
— Curioso, não é?
— Antes: misterioso. Desconfio que os Valika terão que
me dar um monte de explicações. E esta vez terão que fazer
o meu jogo, não o deles. Estou pensando, Johnny, que se vai
ser arriscado retirar o cadáver de Sterling, talvez seja melhor
você desaparecer.
— Não... Espero sair-me bem. Além disso, se eu
desaparecesse agora, compreenderiam que, com efeito, ele
estava metido em algum assunto de espionagem. Em troca,
se eu prosseguir, talvez fiquem na dúvida.
— Hum... Está bem, tente. Conto com o carro e com
muito dinheiro? Lembre-se que irei ao seu encontro na
estrada para as Praias de Ouro de Zlatni Piassatsi.
— Okay. Mais alguma coisa?
— Não. Boa-noite.
Fechou o rádio e meteu-o na maleta, olhando sorridente
para Torbek e sua jovem esposa, que já haviam desistido de
discutir para contemplá-la.
— Inconvenientes, Torbek?
— Não, não... É que há poucas camas. E nas outras
carroças pior ainda...
— Se me der uma manta, eu me arranjarei com ela e com
meu casaco. Dormi no chão muitas vezes. E em piores
condições.
— Não será preciso. Eu dormirei no chão e você com
Mattika, ou com um dos meninos.
Brigitte olhou os beliches, olhou a jovem e tornou a
sorrir.
— Gosto de incomodar o menos possível. Eu dormirei no
chão.
— Nossa hospitalidade...
— Ninguém saberá — novamente ela sorriu. — Mas a
verdade é que estou com uma fome terrível, posso comer
alguma coisa?
— Não sei se agradará nossa com...
— Torbek, não se preocupe mais, nem se fie em minha
delicada aparência. O que vocês comem também posso
comer. Oh, a respeito dos russos, era melhor que não
confiemos demasiado: nunca se sabe o que eles podem
resolver de um momento para outro...
***
— De acordo — disse Basili Nerguyev: — eu me
encarregarei então de levar Rudolf à lancha, para que o
transportem a Odessa ou Sebastopol. Vocês continuarão a
vigiar os Valika. Mas não façam nenhuma espécie de contato
com eles.
Andrei Kovikov e Igor Stokovian assentiram com a
cabeça, ainda contemplando muito sérios o cadáver de seu
companheiro Rudolf Varkov Karavitch. Tinham voltado lá
depois de considerar perdida por enquanto a pista da mulher
loura que haviam seguido desde a casa dos Valika. E com
grandes precauções tinham tornado a subir a escada, olhando
atentamente para todos os lados. Entretanto, o artefato que
um pouco antes os perseguira na rua já não estava ali.
Em compensação, tinham encontrado o cadáver de seu
companheiro Rudolf, desaparecido um dia e meio antes. E
não lhes agradavam aqueles três balaços que tinha nas
costas.
— Acham que o americano o matou?
— Quem, senão ele? — resmungou Basili Nerguyev.
— Claro... Mas então, quem matou o americano que
encontraram no cais? Se não foi Rudolf, nem nenhum de
nós, quem foi? O pequeno avião que vimos aqui?
— É mais que provável — murmurou Igor Stokovian. —
E creio que a mulher loura que visitou os Valika bem sabe
disto.
— Não entendo... — disse Andrei Kovikov,
recapitulando. — Matam um americano no cais, e um dos
nossos no domicílio do americano. Não fomos nós que
matamos este. E parece que não pode ter sido o americano
quem matou Rudolf... Talvez a solução esteja naquele
aparelho. Acho que seria bom fazermos uma visita aos
Valika. Uma visita... a sério.
— Continuo pensando que é melhor vigiá-los sem que
eles saibam, Andrei. Já deu maus resultados intervir
diretamente.
— A que se refere? — assombrou-se Kovikov.
— Rudolf e eu estávamos vigiando os Valika quando
chegou o americano para visitá-los. Quando saiu, Rudolf
empenhou-se em segui-lo. Disse-lhe que seria melhor não o
fazer... A solução está nos Valika, não em um agente
qualquer da CIA. Mas Rudolf teimou em seguir o americano.
E parece que chegou até aqui, não é?
— Então... o americano o matou?
— Não sei.
— Cronologicamente, não pode ser — observou Igor
Stokovian. — Mas às vezes acontecem coisas
incompreensíveis. Nosso trabalho não é exatamente dos mais
fáceis que existem. Espero que nos deem crédito em Moscou
quando explicarmos que a loura da CIA escapou graças a
esse artefato.
— É possível que seja um invento americano — sugeriu
Andrei.
— Não diga tolices! Sabemos já faz tempo que os Valika
estão... ou estavam construindo algo especial. E o mesmo
interesse que sentimos por seu invento o terão sentido os
americanos. Isso está bem claro. Do mesmo modo que está
bem claro que os Valika preferiram tratar com os americanos
que com os russos...
— Pois por isso digo que seria conveniente fazer-lhes
uma visita a sério, em lugar de perder tempo vigiando-os.
— Não — negou Basili Nerguyev. — Nada disso. Eu os
chamei, sou o residente de Varna, tenho meus motivos para
permanecer na expectativa. De qualquer modo, se a exemplo
de Rudolf preferirem fazer algo diferente do que proponho,
comunicarei a Moscou. Não quero responsabilidades.
— Acho que você tem razão — concordou Kovikov. —
Está bem. Leve Rudolf à lancha, para que o transportem à
Rússia. Nós continuaremos vigiando os Valika.
— Sem procurar o contato direto — lembrou Basili. —
Levarei Rudolf ao cais no carro da americana loura. É só.
Voltem ao seu posto na Avenida Deveti Septemvri.
CAPÍTULO QUARTO
Sob o fundo falso de uma velha barcaça
Os traidores não têm a estima de ninguém
Uma notícia desagradável para o mundo
Após cobrir com uma grossa lona o cadáver de Rudolf
Varkof Karavitch, o homem disse:
— Não resta dúvida de que o levarei a Odessa camarada
Nerguyev. Há dois navios norte-americanos no Mar Negro e
não gostaria de topar com eles em minha rota para
Sebastopol.
— Isso não deveria preocupá-lo... — resmungou Basili.
— São eles que estão em águas alheias, não você.
— A questão é discutível. O Mar Negro não é russo em
sua totalidade. E os americanos cuidam de permanecer em
águas internacionais. Há muitos barcos de pesca perto desses
navios, mas eu prefiro evitá-los. Diz-se que os americanos
estão de mau humor, de modo que irei costeando ate Odessa.
Posso chegar lá antes do meio-dia de amanhã.
— Como queira. O importante é que nosso compatriota
regresse à Rússia.
— É... — deslizou o lancheiro. — Isso é o que importa:
voltar à Rússia... ainda que morto.
— Também os americanos levarão um cadáver para os
Estados Unidos. Coisas que acontecem, simplesmente. Tem
combustível que chegue para a viagem?
— Espero que sim. Mas se terminar, pedirei aos navios
americanos, ou a qualquer de nossos barcos de pesca, que
admiram essas duas belonaves pintadas de cinzento — disse
o marujo, com um sorriso. Mais alguma coisa?
— Não.
Basili Nerguyev saltou da lancha para o cais e dirigiu-se
ao carro que ele e seus companheiros haviam surripiado da
espiã americana. Quando o puseram em marcha, viu a lancha
desatracando. E talvez fosse por esse motivo que sorriu
zombeteiramente.
Apenas dois minutos mais tarde, parava em outro ponto
do cais, muito perto de uma grande barcaça cuja localização
teria interessado grandemente a “Baby”.
Quando a abordou, dois homens se aproximaram, mas
identificaram-se em seguida e pareceram esquecê-lo. Basili
Nerguyev passou ao interior da embarcação, onde havia mais
dois homens, barbudos, torvos, curtidos, ásperos.
— Quero entrar — disse ele.
Um dos homens soltou um grunhido, foi até um canto da
grande cabina geral, afastou uns quantos caixotes cheirando
a peixe, depois levantou um alçapão de madeira. Basili
Nerguyev desapareceu por este, descendo por uma escada
até outra sala menor, de teto tão baixo que lhe foi preciso
caminhar encurvado. As paredes, que não eram senão o
casco da barcaça, estavam úmidas, deterioradas. Tudo era
velho, recoberto de salitre ali dentro. Tudo, exceto os
aparelhos que se viam a um lado. Formavam um grande
painel de controle, em cujo centro viam-se três pequenas
telas de televisão. Diante de cada tela havia um homem
sentado, olhos fixos nas imagens. Todas elas, de ângulos
diversos, mostravam, no meio de grande escuridão, as luzes
de duas poderosas naves de guerra. A seu redor, o mar
parecia cheio de vagalumes.
Atrás dos três homens que vigiavam avidamente as telas,
havia outro, de pé, olhando alternadamente para cada uma
das imagens. Um homem alto, e magro, elegante, de
movimentos desenvoltos. Era tão moreno que poderia passar
por cigano, embora seus traços não enganassem quem
entendesse de raças. Grandes olhos negros, lábios espessos,
queixo agudo, cabelos longos, testa alta... Voltou-se ao ouvir
Basili Nerguyev, olhou-o inexpressivamente e tornou a
prestar atenção às telas.
Nerguyev colocou-se a seu lado.
— São os americanos? — indicou os navios.
— Claro. Rodeados de pesqueiros russos, romenos e
búlgaros. Tudo perfeito.
— Parece que os aparelhos funcionam bem.
— À perfeição — sorriu o outro. — Só que ainda não
estamos acostumados com eles. São fáceis de manejar, sem
dúvida, mas, como todas as coitas, requerem prática,
treinamento.
— Acredito. Que aconteceu com o que esperava do
apartamento do espião americano? A mulher escapou, por
fim.
— Falta de prática, como lhe disse, Basili. Korba
controlava o “Telemorte”. Nós o mantínhamos ali desde que
você matou seu companheiro Rudolf quando ele quis
entabular conversa com o agente americano.
— Não o conseguiu. Rudolf acompanhou o americano e
eu a Rudolf. O americano certamente pressentiu algo, pois
escapou por uma janela. Rudolf subiu para buscá-lo ao ver
que demorava muito, eu subi atrás de Rudolf e não tive mais
remédio que não matá-lo. Insistia em aproximar-se do
americano e, sobretudo, em falar com os Valika.
— Que dizem sobre isso os seus outros companheiros?
— Também querem falar com os Valika, porém consegui
demovê-los desta ideia. De algum modo tinha que remediar a
falta cometida por você, Al Rami.
— Compreendo... Bom, é preciso ter paciência, Deixei na
morada do americano um dos aparelhou e cada dois minutos
fazíamos funcionar seu sistema acústico. Suponho que
quando ouvimos a mulher respirar, ela estava lá havia menos
de dois minutos. Imediatamente pusemos o “Telemorte” em
movimento, mas a danada não acendera as luzes; usava uma
lanterna. Quando apontou com ela, a luz deu em cheio na
câmara de televisão do aparelho e você precisava ter visto
esta tela... — indicou-a. — Ficou completamente branca.
— Ofuscação.
— Sim. Além disso, quando apagou a lanterna foi pior
ainda, já que o olho da câmara não vê na escuridão completa.
Sem dúvida, precisa do aperfeiçoamento de raios
infravermelhos. Disparamos várias vezes contra ela, depois
de vê-la apenas um instante. Mas era... demasiado rápida
para nós. Não é para o “Telemorte”, mas para nós.
Conseguiu sair de lá e a seguimos...
— Isso eu já sei — disse sarcasticamente Basili.
— O que não sei é o que pretendia você disparando o
“Telemorte” contra mim.
— Contra você? — Al Rami arqueou as sobrancelhas.
— Você nos perseguiu quando escapamos os três no
carro... E disparou duas vezes contra nós. É assombroso que
ainda estejamos vivos...
— Suponho que você não queria que eles suspeitassem de
nada... Se disparei, estando você no carro, foi para que não
desconfiassem que tinha algo a ver com o “Telemorte”.
Entretanto, embora esses seus dois companheiros devam
também morrer, não disparamos para atingir o carro, em
consideração a você. Depois, voltamos à procura da mulher
loura, porém ela já se retirara. E quando tornamos a levar o
“Telemorte” para a rua, seu carro não estava mais ali.
— Compreendo.
— Quando vai matar seus companheiros que chegaram
de Sófia?
— Não é tão fácil. Na verdade, são duros na queda. Não
se fiam em nada e em ninguém. Além disso, viram o cadáver
de Rudolf com três balaços nas costas. Isso fará com que
levem ao extremo as precauções.
— Pois convém que os liquide o quanto antes. Não
interessa de modo algum que possam falar com os Valika.
Você seria o primeiro prejudicado, naturalmente.
— Eu sei. Mas não se aproximarão dos Valika. Tudo o
que estão fazendo agora é vigiar a casa. Tenho esperança de
que a espiã americana volte lá, e então a liquidaremos.
Depois, matarei meus companheiros. E, finalmente, os
Valika. Não se preocupe: farei bem todo o meu trabalho, Al
Rami.
— Assim espero. Nós lhe pagamos muito dinheiro por
seus serviços extraordinários, Basili. Oh, quanto aos Valika,
insisto em que não se apresse a liquidá-los. Já temos seus
aparelhos, mas ainda não os manejamos perfeitamente, de
modo que convém mantê-los vivos, pois talvez ainda nos
sejam necessários.
— Eles serão os últimos a morrer, esteja tranquilo.
Primeiro, a espiã americana. Depois, Igor Konstantin e
Andrei. Finalmente, quando você disser que o “Telemorte”
já não tem segredos, me encarregarei dos Valika e de Filip
Plovien.
— Perfeito. Vejo que entendeu tudo.
— Naturalmente. Quanto ao meu dinheiro...
— Ah, sim... Já preparei o cheque contra um banco suíço,
tal como você pediu. Não há embustes nem equívocos,
Basili. Veja-o... — sacou do bolso um retângulo de papel. —
Tal como você exigiu, poderá retirar o dinheiro em moeda
alemã. Marcos, moeda sólida, Satisfeito?
— Posso ficar com o cheque?
— Por que não? — sorriu friamente Omar Al Rami. —
Esperamos que isso não o impeça de terminar seu trabalho a
nosso contento.
— Até agora, já lhes proporcionei o “Telemorte” e todos
os seus controles, não é assim? Não foi fácil amedrontar os
Valika, pode crer. Tampouco foi fácil seguir Rudolf até o
domicílio do americano e matá-lo. Nem foi fácil rastrear o
americano e localizá-lo para que você enviasse contra ele o
“Telemorte”, no cais. Entretanto, fiz tudo isso.
— E com absoluta perfeição, devo admitir — assentiu Al
Rami. — Espero que o que fez e o milhão de marcos que
acabo de entregar-lhe não lhe causem incômodos na MVD.
— Não saberão de nada — riu Basili Nerguyev. —
Depois que tudo isto termine, regressarei “fracassado” à
Rússia, sem meus companheiros e sem o “Telemorte”. Terão
que aceitar os fatos. A essa altura, o milhão de marcos estará
em outro banco suíço, em meu nome. E quando eu tiver
cinquenta anos, ou seja, dentro de onze, irei viver na Côte
d’Azur. Por essa época, o milhão de marcos estará quase
duplicado, com o acréscimo dos juros. Não é inteligente lutar
por uma pensão aceitável e umas palmadas nas costas. Quero
no fim de minha vida alguns anos alegres e tranquilos.
— Muito compreensível. Entretanto, precate-se, Basili...
Os traidores não têm a estima de ninguém.
— Nem a sua? — sorriu cinicamente o russo.
— Nem sequer a minha. Mas eu preciso de você. A
Rússia não. A Rússia não precisa de traidores, suponho.
— Fizemos um trato, não é assim? — grunhiu Nerguyev.
— Somos velhos conhecidos, já fizemos algumas coisas no
Egito... Agora, ambos sairemos beneficiados: proporcionei-
lhe um bom negócio sem perguntar nada. Que mais quer?
— Nada, realmente. Creio que não há mais a dizer.
Basili Nerguyev assentiu com a cabeça e olhou uma a
uma a três telas de televisão que captavam as imagens dos
navios americanos.
— Que pensa fazer, afinal? — perguntou.
— Isso não é de sua conta, Basili.
— Bem... Seu interesse por esses destroieres americanos
me intriga, simplesmente. A que distancia estão daqui?
— Umas sessenta milhas. Não demasiado longe da costa.
Para o norte, claro.
— Não deviam ter entrado no Mar Negro.
— Pois eu estou gostando que o tenham feito. Pode ir, se
quiser.
— Está me mandando embora?
— Não exatamente. Mas você tem coisas que fazer fora
desta barcaça e, por outro lado, não lhe interessa o que
aconteça aqui.
— Nem lá? — Nerguyev indicou as telas.
— Nem lá. Espero que amanhã à noite haja liquidado
todos os que têm que morrer, Basili. Do contrário, eu teria
que fazer intervir o “Telemorte”.
Basili Nerguyev empalideceu intensamente.
— Está me ameaçando? — perguntou, voz rouca.
— Não, não... Só quero que amanhã à noite você tenha
concluído sua parte, de qualquer modo. Mas se não estiver
em condições de fazê-lo, ou fracassar, saiba que eu já não
consideraria, a essa altura, que fosse necessário conservar
vivos seus companheiros e os Valika.
— E a mim?
— Você sempre pode ser útil a meus planos. Um agente
da MVD que se vende por dinheiro sempre pode ser útil.
— Você não está sendo amável comigo, Al Rami.
— Mas pago bem. Ou não?
— Muito bem, realmente. Já sabe como pôr-se em
contato comigo, se tornar a necessitar-me. E como parece
que minha presença o estorva, adeus.
— Adeus, Basili. E faça sua parte.
Basili Nerguyev saiu do porão da barcaça. Pouco depois
aparecia na coberta, da qual saltou ao cais sem olhar sequer
para os dois homens que estavam junto à borda, observando-
o friamente. E enquanto ele se afastava no carro roubado de
“Baby”, baixo, o chamado Omar Al Rami dava indicações
três que vigiavam as telas de televisão:
— Aproximem-nos um pouco mais.
— Vamos disparar já?
— Não... Ainda não. Quero apenas firmar bem o alvo.
— São uns aparelhos formidáveis! — riu um deles. —
Duvido que alguém os possa ver a esta distância dos navios e
por cima dos barcos de pesca. Além do que, são
silenciosos... E suas câmaras de televisão funcionam
perfeitamente.
— Mantenham-nos no ar, à mesma altura — sorriu Al
Rami. — E estejam atentos aos controles. Se os navios
americanos se moverem, que os três aparelhos os
acompanhem.
— A que horas dispararemos?
Omar Al Rami consultou o relógio de pulso.
— À doze em ponto. Os americanos vão ficar em muito
má situação depois disto. Não quisera estar na pele de
nenhum deles. Foram inspecionadas as cargas dos projéteis
“Telemorte”?
— Claro.
— Bem. Esperemos as doze. Amanhã o mundo terá uma
desagradável notícia a digerir. E também os americanos...
Sobretudo os americanos!
CAPÍTULO QUINTO
Tensão no Mar Negro
Uma barcaça das mais insuspeitas
É suficiente a morte de um “Johnny”.

Exatamente às doze horas da manhã seguinte Johnny-


Roma rodava pela estrada que, de Varna leva às chamadas
Praias de Ouro, a uns vinte quilômetros de distância, para o
norte.
E quatro minutos mais tarde, apareceu a loura espiã que
ele conhecia como Rosana Morletti, ou melhor, como
“Baby”. Envolta em seu casaco de pele, novamente com sua
peruca e trazendo na mão esquerda a maletinha vermelha, ela
surgiu ao lado direito da estrada, erguendo o braço. Era um
dia cinzento, úmido, frio, que prenunciava outra nevasca.
Johnny deteve o carro junto a ela e, contra as instruções
recebidas, não saltou, disposto a regressar a Varna por seus
próprios meios. Fez sinais frenéticos a Brigitte, que correu
para o carro e nele entrou a toda a pressa, lançando um
alegre suspiro ao sentir a calefação, mas olhando com certa
estranheza para seu companheiro.
— Eu disse que você deixasse o carro aqui, Johnny, e
que...
— Olhe. Leia a notícia. Ou já sabia?
Ela tomou o jornal, olhou-o sorrindo amavelmente e
comentou:
— Passei a noite numa carroça, com seis ciganos. Uma
experiência nova. Não o seguiram? Marquei este encontro
para tão tarde porque desejava certificar-me, à luz do dia, de
que os russos não rondavam o acampamento de Torbek. Eles
estão fazendo agora um trabalho para mim e, quando
souberem alguma coisa, Torbek me chamará pelo radinho
sobressalente que sempre trago em minha maleta. Quanto ao
seu jornal, Johnny — tornou a sorrir —, já sabe que não falo
o búlgaro. Nem sequer o leio.
Johnny-Roma resmungou algo contra si mesmo pelo
esquecimento. Pôr o carro em marcha, prosseguindo para
Zlatni Piassatsi.
— Uma loucura... — Uma rematada loucura! Não
compreendo como o puderam fazer!
— A que se refere? Que fizeram?
— Nossos barcos de guerra que estão no Mar Negro
lançaram ontem um torpedo contra um dos pesqueiros
russos, que, aparentemente, se aproximou demasiado.
— Você está louco? — exclamou Brigitte,
empalidecendo de chofre.
— Oxalá estivesse! A notícia já deu volta ao mundo. Esta
manhã captei uma emissora russa. Esses são os fatos,
“Baby”.
— Mas não pode ser... Claro que não pode ser! —
deplorou ela.
— Vou resumir-lhe a notícia estampada na primeira
página de todos os jornais que vi esta manhã: ontem, à meia-
noite em ponto, um de nossos navios lançou um torpedo
contra um dos barcos pesqueiros russos. O maior. Havia
outros por perto e quase todos os pescadores viram o
torpedo... Quer dizer, viram às luzes dos barcos o torpedo
que vinha de um dos destroieres diretamente contra o
pesqueiro, isto é, viram a esteira de espuma na água. Um
torpedo de superfície. As testemunhas são em número
demasiado para poderem ser desmentidas. Quase uma
centena de pescadores...
— Mas é impossível... Impossível! — Brigitte continuava
pálida e tinha o rosto alterado. — Que aconteceu com os
pescadores do tal barco torpedeado?
— Parece que se salvaram todos. Viram chegar o torpedo
e se lançaram à água, compreendendo o que acontecia.
Alguns estão feridos, pois foram alcançados por fragmentos
do barco ao explodir, e três estiveram a ponto de se afogar.
Quanto aos outros, pode-se imaginar como se devem ter
sentido numa água a pouco mais de zero grau centígrado.
— Mas todos salvaram a vida?
— É o que parece.
— Graças a Deus... Gostaria de poder falar com alguns
deles!
— Bom, talvez isso não seja difícil: estão todos num dos
nossos barcos.
— Como... ?
— Foram recolhidos por duas lanchas de um dos
destroieres — repetiu Johnny, com um sorriso forçados. — E
talvez isso nos tenha salvado a todos.
— Não compreendo...
— Evidentemente, algum dos pesqueiros que rodeavam
nossos barcos enviou uma mensagem pelo rádio. Dois
patrulheiros búlgaros e três lanchas romenas chegaram ao
local pouco depois do ocorrido. E, quase em seguida, meia
dúzia de lanchas patrulheiras russas, que evidentemente não
deviam estar muito longe. Exigiram a devolução dos
pescadores russos recolhidos no mar, mas foi-lhes
respondido que aqueles quatorze homens não estavam em
condições de ser removidos e que no momento recebiam a
bordo do destroier os cuidados necessários. Duas horas mais
tarde, seis belonaves russas, incluído um porta-aviões,
estavam rodeando nossos navios.
E assim criou-se a situação. Por todos os meios
imagináveis, a Rússia está acusando os Estados Unidos de
um ato de “criminosa selvajaria”. Já são dez as belonaves
russas que rodeiam nossos destroieres. A zona foi evacuada
de todo pessoal civil. E creio que, do modo como estão os
ânimos, já se teria desencadeado uma batalha naval se esses
quatorze pescadores russos não estivessem num dos
destroieres americanos. Os russos exigem sua devolução
imediata e os nossos pedem passagem livre até o Canal do
Bósforo, a fim de entrarem no Mediterrâneo.
— Santo Deus... Se alguém perder a paciência ou o
controle dos nervos, ocorrerá uma catástrofe!
— Que seria insignificante em comparação com o que
ocorreria depois. A Sexta Esquadra, naturalmente, não pode
permitir que os destroieres sejam afundados. Quanto aos
russos, estão concentrando seus barcos do Mar Negro em
torno dos nossos, e a maior parte da sua esquadra que estava
no Mediterrâneo já rumou para os Dardanelos.
— Oh!... Estamos loucos? Estamos todos loucos,
Johnny?
— Bom. Talvez o único louco seja quem mandou
disparar esse torpedo, “Baby”.
— Sabe-se o nome desse oficial americano?
— Você está brincando? — espantou-se Johnny.
— Os nossos negaram ter qualquer culpa no caso.
Declaram que esse torpedo não saiu de nenhum barco
americano. Quer dizer que o louco, seja quem for, não é dos
nossos. Pelo menos assim afirmam nossos dois barcos. Estão
realizando interferências radiofônicas com as emissoras de
bordo, assegurando em búlgaro, em russo, em alemão, em
inglês, turco e em quantas línguas conhecem que não
dispararam o torpedo. Dizem, além disso, que desde bastante
antes da explosão seus radares haviam captado a presença de
três objetos pelas proximidades e... Que foi?
Brigitte havia lançado uma exclamação, tapando depois a
boca com as mãos. Olhou uns segundos para Johnny, como
aterrada... Mas em seguida disse, tranquilamente:
— Nada... Nada, Johnny. Continue.
— Os nossos asseguram que o torpedo, assim como
provavelmente dois mais, foram dirigidos contra eles e que
erraram o alvo, por infelicidade um deles atingindo o
pesqueiro russo. Asseguram que teriam preferido receber o
impacto num de nossos destroieres, já que, dada a escassa
potência do torpedo, quase não haveria dano algum.
— Os nossos acusam os russos?
— Acusam antes quaisquer sabotadores exaltados, que
querem rechaçar do Mar Negro nossos navios. Estão
tentando contemporizar, chegar a um diálogo razoável,
mas... não os deixam.
— Entendo... Convida-me para almoçar, Johnny?
— Almoçar? — estranhou este.
— Haverá algum lugar agradável em Varna, suponho —
sorriu ela. — Nos faremos passar por russos. Será menos...
incômodo. Não acha?
— Bom... Eu me pergunto se você tem realmente apetite.
Segundo sua fama, é das que sempre dão prioridade aos
assuntos de fato prioritários. E neste caso...
— Um almoço gostoso é sempre interessante, como vai a
recuperação do corpo de Bob Sterling?
— Não me ocupei disso. Precisaria estar louco para
avistar-me com autoridades soviéticas neste momento. Em
minha opinião, tanto eu quanto você devemos adiar nossos
assuntos e ocupar-nos exclusivamente com o que ocorreu
esta noite.
— Oh, sim... Mas será depois do almoço. Enquanto isso,
esperaremos.
— Esperaremos... o quê?
— Notícias dos ciganos. No momento, nada mais
podemos fazer, Johnny.
Ele deteve o carro e, por alguns segundos, olhou
fixamente “Baby”, como querendo adivinhar naqueles
formosos olhos azuis os pensamentos de quem havia
demonstrado sobejamente, em tantas ocasiões, ser a mais
astuta espiã do mundo. Terminou por sorrir. Pôs novamente
o carro em movimento e deu a volta para retornar a Varna, já
que ela dissera que queria um almoço.
***
A chamada de Torbek chegou quase às duas e meio da
tarde, quando Brigitte e Johnny-Roma praticamente já
haviam digerido o almoço feito num pequeno restaurante da
rua Santo Stefano, não longe do cais. Tinham conversado
todo o tempo em russo de modo que ninguém lhes prestou
atenção. Todo o mundo estava pendente das notícias dadas
pelo rádio sobre o caso dos barcos americanos. Brigitte não
entendia as transmissões em búlgaro, mas bastavam as de
procedência russa para ela compreender que, enquanto a
situação continuava igual, os ânimos se exaltando cada vez
mais.
Mas, por fim, a pequena luz vermelha do radinho se
acendeu, intermitente. E Brigitte, que mantivera durante todo
o tempo à vista, dentro da maletinha aberta sobre os joelhos,
fechou esta, terminou seu terceiro café e levantou-se.
— Volto já, Johnny.
Segundos depois, estava no toilette. Sacou o radinho e
admitiu a chamada.
— “Baby”?
— Diga, Torbek. Foi encontrada?
— Foi.
— Bem! Onde nos podemos ver, imediatamente?
— Lembra-se da estação ferroviária?
— Claro.
— Lá então, dentro de... dez minutos.
— Okay. Bom trabalho, Torbek.
Fechou o rádio, saiu do toilette e, ao vê-la, Johnny
levantou-se, deixou umas cédulas sobre a mesa e se adiantou
ao seu encontro.
— Feito? — perguntou.
— Feito. Torbek nos espera dentro de dez minutos. A
caminho.
***
O cigano meteu-se no carro antes mesmo que este se
detivesse e apontou para frente, indicando a Johnny o
caminho para o pequeno estacionamento onde o poderiam
deixar.
— Melhor ir a pé — explicou.
Pouco depois, os três saltavam rapidamente do carro.
Brigitte nem se deu ao trabalho de apresentar os dois
homens. Estavam no mesmo bando e isso era suficiente.
— Tem certeza de que é a mesma fotografada por Bob
Sterling, Torbek?
— Tenho sim. Reparti as fotos pela minha gente, como
você disse. Está no mesmo lugar que aparece na fotografia e
lhe garanto que é a mesma. Eu a vi com meus próprios olhos.
Pegue lá: já não precisamos das fotos.
Tiveram que atravessar as instalações ferroviárias para
chegar ao cais pelo caminho mais curto, mas ninguém os
molestou nem lhe prestou atenção. Já no cais, dois jovens
ciganos se aproximaram, porém a um gesto de Torbek
apressaram-se a desaparecer entre pilhas de mercadorias
cobertas por grandes lonas. A bruma do mar estava presente
ali, e o cheiro de combustível e peixe era penetrante. Um dia
mais triste que um enterro. Dois rebocadores estavam
arrastando um grande barco para o cais, fazendo soar com
estridência suas sirenas.
Finalmente, Torbek deteve-se junto a uma pilha de
caixotes e apontou para a borda do cais. Brigitte adiantou-se
e, ato contínuo, viu a barcaça. Não havia a menor dúvida de
que era a mesma que Bob Sterling fotografara. E os dois
homens que estavam na coberta muito se assemelhavam com
os que apareciam numa das fotografias. Talvez também
estivesse a bordo o outro, o que aparentava ser cigano, mas
que segundo Torbek não o era.
“Baby” voltou-se, pediu o dinheiro a Johnny, que o
entregou enquanto olhava torvamente para a barcaça. Ela
passou a Torbek o enorme maço de cédulas.
— Está bem assim?
O cigano arregalou os olhos.
— Mas... é muito dinheiro! — exclamou.
— Pode ir. Se mais adiante a CIA julgar oportuno
recorrer a você, saberá onde procurá-lo. Isso é tudo, por ora.
E muito obrigada.
— Gostaria de ajudá-la mais...
— Não é preciso. Volte para perto de Matikka e seus
filhos. Diga-lhe de minha parte que é muito bonita e que eu
espero que vocês dois continuem enchendo o mundo de
crianças.
— Disso ela vai gostar — sorriu o cigano. — Bem, aqui
está o rádio que...
— Guarde-o como lembrança. E agora, deixe- nos. Não
quero vê-lo aqui perto, nem aos seus amigos. Claro?
— Muito claro. Boa sorte.
Ele afastou-se e Brigitte esperou até perdê-lo de vista.
Então se voltou para Johnny, que continuava a olhar a
barcaça.
— Que acha você? — perguntou-lhe.
— Não sei... É uma embarcação velha, que
aparentemente não pode ser de utilidade para ninguém.
Talvez fosse mais prático irmos diretamente à casa dos
Valika.
— Prefiro visitá-los à noite. Será mais fácil entrar na casa
sem que os russos percebam. Eles devem estar vigiando-a, se
as coisas marcham como penso.
— Tudo parece um pouco absurdo — murmurou Johnny.
— Não lhe agrada meu plano?
— Sim... Não é mau. Seu plano é lógico, “Baby”. Em
todos os sentidos. Referia-me aos fatos... De qualquer modo,
tomara que você não esteja enganada!
Brigitte olhou ao redor, assegurando-se de que ninguém a
via. Tirou então a peruca e escondeu-a entre uns fardos.
Ajeitou um pouco os negros cabelos e olhou para Johnny.
— Vamos.
— Quer saber de uma coisa? Gosto mais de você assim
que com os cabelos louros.
— Também eu — sorriu ela.
Encaminharam-se para a borda do cais e, em poucos
segundos, estavam diante da barcaça, em cuja coberta os
dois homens olharam-se um instante, antes de continuar
reparando pequenos defeitos do madeiramento.
Mas ergueram vivamente a cabeça quando Johnny saltou
a bordo. Carregaram o cenho e um deles aproximou-se
lentamente, com expressão pouco amistosa. Johnny falou-lhe
primeiro em russo. O homem negou com a cabeça. O outro
também se aproximou e Johnny pôs-se a falar em búlgaro,
com o que Brigitte, na borda do cais, passou a entender uma
que outra palavra solta, de quando em quando. Os dois
homens resistiam, mas por fim pareceram aceitar algo que
Johnny, mais que pedir, exigia energicamente. Então, a
agente americana voltou-se para o cais.
— Pode vir, Katia — disse em russo.
Ela passou à barcaça e, em seguida, os quatro desceram
para o interior. Havia lá mais dois homens, também
reparando defeitos naquela parte destinada a cozinha,
dormitório e sala de estar, tudo cheirando a velho e a
pescado. Pelo chão viam-se Pedaços de madeira nova,
ferramentas de carpintaria... Num canto, velhas peças de
madeira, assim como cadeiras quebradas. Junto a isto,
cadeiras novas bem empilhadas, vidros, utensílios de cozinha
um grande monte de grossos cobertores. Velhos beliches
tinham também sido deslocados e, no canto correspondente,
viam-se outros, novos, num total de oito.
Os dois homens que ali estavam de martelo na mão
pararam seu trabalho para olhar com curiosa animosidade os
agentes americanos. Um dos que tinham estado em cima deu
uma breve explicação e os dois encolheram os ombros,
recomeçando a trabalhar.
Johnny e “Baby” lançaram uma olhadela ao corredor,
decepcionados. Depois voltaram à coberta e foram
conduzidos por um dos marujos até a popa. O homem
levantou um alçapão e apontou para baixo, falando de um
modo que deixava claro estar repetindo suas palavras
anteriores.
Finalmente, ficou olhando para Johnny, que optou por
encolher os ombros e sorrir meio sem jeito. Falou ainda
durante dois minutos, mas o que o atendia indicou o cais
deserto, movendo negativamente a cabeça e apontando
depois para o norte. Em seguida, indicou embarcações
maiores, porém Johnny fez que não.
Despediu-se e, pouco após, caminhavam pelo cais, para
onde Brigitte havia deixado a peruca. Apanhou-a, meteu-a na
maleta e regressaram para onde se viam as grandes pilhas de
mercadorias.
— E então?
— Todas as embarcações pequenas e médias foram para
o norte — murmurou Johnny. — Ninguém quis ficar sem ver
o que acontece com os barcos americanos. Eles não puderam
ir porque têm que reparar a barcaça.
— Acreditaram que você era um agente soviético?
— Sim, creio que os convenci. Disseram que de muito
boa vontade me deixariam a barcaça para ir com os outros,
mas que ela não pode navegar, quanto mais que o dínamo
também está em conserto, na cidade. Sugeriram-me que
alugasse ou pedisse emprestado um barco maior, mas disse-
lhe que isso não me interessava, que procuraria outro meio...
Parece que não têm nada a ocultar.
— Por que pensa isso?
— Achei-os convincentes em sua recusa, justamente
porque não deram muitas explicações. Quem oculta algo
logo trata de demonstrar que não há nada oculto.
Brigitte olhou o céu cinzento, do qual começaram a cair
flocos. Estremeceu.
— Que clima! São três horas apenas e parece que já vai
anoitecer. Sinto por você, Johnny.
— Por mim? Sente o quê?
— Sinto pelo frio que você vai passar aqui, imóvel.
— Oh, não! — protestou ele.
— Lamento — sorriu ela. — Quero que você não perca
de vista essa barcaça. Claro que saberá fazê-lo
discretamente. Se ocorrer algo interessante, avise- me pelo
rádio. Enquanto isso, irei à casa dos Valika, aonde espero
chegar já protegida pela noite. Mantenha-se atento, Johnny.
— Mas ficarei congelado...
— Melhor — disse Brigitte, rindo —, pois assim não se
moverá muito... Que me diz de dois dias de folga numa praia
de Málaga, ao sol, quando isto terminar?
— Não fale nessas coisas! — resmungou Johnny.
— É pura maldade!
Brigitte beijou-o em ambas as faces.
— Tome cuidado — murmurou. — Já me basta a morte
de um Johnny.
E afastou-se em busca do carro.

CAPÍTULO SEXTO
Um que não sabia com quem se estava metendo...
Uma teoria não muito convincente
A hora de aprender a usar um revólver

Deixou o carro numa rua que circundava o Parque de


Karl Marx e dirigiu-se a pé para a Avenida Deveti
Septemvri. Durante meia hora esteve circulando pelos
arredores da casa número 147, onde residiam os Valika, até
descobrir o carro que já conhecia. Pelos menos, parecia o
mesmo. O que ela alugara em Sófia os russos deviam ter
escondido em alguma parte, continuando a utilizar o outro
maior, com o qual tinham chegado ao acampamento dos
ciganos.
De longe, e apesar de estarem um tanto empapados os
vidros do carro, pôde ver pelo menos dois homens dentro
dele. Consultou seu reloginho de pulso, com impaciência.
Não podia arriscar-se a intervir sem ter certeza de que
dominava a situação. Morrer naquele momento não seria...
estratégico.
Encolhida atrás de uma enorme tília, esperou até que, sete
ou oito minutos depois de ter localizado o carro dos russos,
um homem aproximou-se do veículo, entrou rapidamente
nele e logo em seguida saiu outro, levantando a gola do
sobretudo. Perfeito. Manobra compreendida. Dois deles
permaneciam no carro, vigiando as partes fronteira e lateral
direita da casa. O outro dava uma volta ou duas ao redor,
lentamente, prevenindo a possibilidade de alguém dela se
aproximar por trás ou pelo lado esquerdo. Enquanto isso, os
dois do carro se aqueciam em seu interior ou, pelo menos,
protegiam-se contra o frio, cada vez mais intenso. Os flocos
de neve começavam a engrossar e viam-se já zonas brancas
na copa das árvores.
Esperou que o russo de turno dobrasse a esquina e
deslizou velozmente atrás dele, ocultando-se aos possíveis
olhares dos que estavam no carro. Chegou à esquina
arquejante, lançando uma nuvem de vapor pela boca. Sentia
os pés gelados, tão endurecidos pelo frio que quase lhe
doíam, e um incômodo calorzinho úmido na ponta do lindo
nariz.
Assomou cautelosamente a cabeça e pôde ainda ver o
homem antes que chegasse à esquina seguinte, formada pelo
muro de tijolos que cercava o jardim da residência dos
Valika. Poucos segundos depois, tornou a espiar e já não viu
o homem. Dobrou aquela esquina e ergueu a cabeça para o
alto do muro. A distância até a borda era de uns dois metros
e meio e, após dois saltos infrutíferos, ela compreendeu que
nunca a alcançaria, com o pesado casaco de pele. Tirou-o,
lançou-o com a maletinha por cima do muro e insistiu nos
saltos. Ao quarto, conseguiu. Sua gelada mãozinha direita
cravou-se na borda. Sentia terríveis alfinetadas na mão,
porém o momento não era para hesitações por causa da dor.
Conseguiu aferrar-se também com a esquerda e subiu à força
de pulso até colocar o queixo à altura da borda. Soltou a mão
esquerda, lançando-a rapidamente à aresta interna do muro,
onde ficou crispada.
Então a coisa tornou-se mais fácil. Transpôs o muro,
deixou cair os sapatos do outro lado e saltou descalça sobre o
casaco, após baixar até o limite de seus braços. A queda foi
curta, mas os pés, cada vez mais gelados, causaram uma dor
que a fez vacilar, até cair sentada sobre o casaco. Calçou os
sapatos, pôs o casaco e olhou para a casa, na qual havia luzes
acesas.
Apanhou a maleta e dirigiu-se para a parte de trás, por
entre as tílias do jardim. E, súbito, algo frio e macio caiu
sobre sua boca, enquanto sentia um forte abraço na cintura.
Com a rapidez de um relâmpago, a realidade da situação
passou por sua mente: caíra na armadilha. Agora, os russos
não eram três, mas, pelo menos, quatro. Três deles vigiavam
lá fora, e faziam-no bastante mal para que uma espiã pudesse
penetrar no jardim... onde a esperava outro agente da MVD.
Um agente que, ao ver uma mulher, parecia ter considerado
mais conveniente capturá-la viva que disparar contra ela, e
que agora a estava cingindo com um braço e lhe tapando a
boca com a outra mão, enluvada. De um momento para outro
ia gritar, chamando seus companheiros.
De um momento para outro.
Só que o segundo momento não chegou.
“Baby” lançou o cotovelo direito para trás, num tremendo
golpe contra as costelas do homem, que estremeceu e
afrouxou um instante a mão sobre sua boca. E, ato contínuo,
aquela mão ficou presa entre as de Brigitte, que se inclinou
subitamente, golpeando com o cóccix o baixo-ventre do
agressor, esperando que isso afrouxasse também a pressão de
seu braço esquerdo. E enquanto, efetivamente, tal sucedia,
ela puxava para cima e para frente a mão que tinha entre as
suas. Ouviu junto a seu ouvido o arquejar do homem, que no
segundo imediato era arremessado de costas, cabeça para
baixo, contra o tronco da tília mais próxima. E ele
praticamente ainda não havia chegado ao chão, quando o pé
direito de “Baby” cravou-se em seu estômago. Acabou de
cair, lançou um gemido de angústia, rolou sobre si mesmo e
só se deteve ao receber outro pontapé, esta vez no queixo,
que dobrou incrivelmente para trás seu pescoço. Caiu de
bruços agora e, imediatamente, a delicada mão da espiã
americana aplicou-lhe na nuca uma cutilada fortíssima.
Fim.
Moral: não se deve confiar nunca. Nunca, nas mulheres.
Ofegando, lançando cada vez mais espessas nuvens de
vapor pelo nariz e pela boca, Brigitte retirou o revólver do
homem e meteu-o em sua maleta, da qual sacou o rolo de
esparadrapo cor de carne. Em menos de quinze segundos o
inimigo jazia fortemente atado com as tiras adesivas e com a
boca hermeticamente fechada por duas tiras superpostas.
Aquela vez, pelo menos, parecia que “Baby” não tinha
vontade de matar russos.
Endireitou-se, completamente dolorida pelo frio, e correu
para uma das janelas laterais da casa, que naturalmente
estava fechada. Com seu equipamento especial de intrusa,
abriu-a em menos de um minuto. Passando imediatamente ao
interior, tornou a fechar a janela. Não dispunha de muito
tempo, de modo que lhe convinha ver o quanto antes os
Valika.
E pouco após. Dimitar Valika, sua filha Marya e o noivo
desta, Filip Plovien, olhavam vivamente surpreendidos para
a porta da sala. Plovien surpreendeu-se tanto que deu um
salto em sua poltrona e abriu a boca, como se fosse gritar.
Mas a recém-surgida signorina Rosana Moretti levou um
dedo aos lábios e os três búlgaros conseguiram conter
qualquer exclamação, embora continuassem de olhos
arregalados para a loura bonequinha.
Esta caminhou silenciosamente até a poltrona onde estava
Dimitar e inclinou-se para ele.
— Colocaram microfones? — perguntou, num sussurro.
— Não... não...
— Tem certeza?
— Claro...
— Bem — ela falou com voz normal. — Nesse caso,
podemos conversar com tranquilidade. Está-se muito bem
aqui!
Tirou o casaco e aproximou-se do radiador da calefação,
estendendo as mãozinhas para ele e suspirando de prazer.
Esteve assim uns segundos. Depois esfregou as mãos, foi até
sua maleta, abriu-a e sacou um cigarro, que acendeu. Puxou
uma poltrona para perto do radiador, sentou-se e olhou para
os estupefatos personagens que a observavam.
— Espero que se deem conta do que pode acontecer de
um momento para outro por culpa de vocês — disse
secamente.
— A que se refere? — perguntou Marya Valika.
— Ao confronto das esquadras russa e americana. Isso
como princípio, claro. Portanto, para evitar coisas mais
graves ainda...
— De que está falando? — perguntou Filip Plovien.
— Do “Telemorte”, naturalmente. Não me digam que não
ouviram as notícias pelo rádio... Ignoram o que está
acontecendo no Mar Negro, a setenta ou oitenta milhas
daqui?
— Não... Claro que não. Sabemos...
— Sabem a verdade — cortou bruscamente Brigitte. —
Nenhum dos barcos de meu país disparou um torpedo. O que
fez explodir essa lancha de pesca russa foi um “Telemorte”.
Vou dizer-lhes como penso que aconteceu: alguém está
utilizando o invento de vocês. E o faz à noite, quando não se
pode ver seu... projétil dirigido, o aviãozinho equipado com
uma câmara de televisão...
— Onde o viu? — exclamou Dimitar.
— Tive um pequeno combate com um deles. Saí
convencida de que sou realmente de uma sorte incrível. Ou
isso, ou os que manejam o “Telemorte” são uns errados.
— Não sabem fazê-lo bem — murmurou Plovien.
— Pois me pergunto o que teria acontecido se soubessem.
Olhem, os dois navios de meu país que estão no Mar Negro
asseguram que seus radares captaram a presença de três
objetos perto deles. Os russos não querem crer, mas nós
sabemos que é verdade. Possivelmente, dispararam os três
aparelhos contra os destroieres americanos e não acertaram.
Um erro, porém, muito comprometedor para o meu país, já
que uma lancha pesqueira russa foi atingida. Não lhes havia
ocorrido isto?
Os Valika e Plovien trocaram um olhar. Mas nenhum
deles falou.
— Compreendo — sorriu acremente “Baby”. —
Pensaram nisso, naturalmente, só que não o querem admitir,
suponho que por... remorso, ou algo parecido. Mas assim
estão as coisas: alguém faz uso do “Telemorte”. Ontem, esse
alguém quis matar-me e, inclusive, atacou alguns agentes
secretos russos. Depois, enviou três desses artefatos a setenta
ou oitenta milhas para o norte e esteve vigiando as duas
unidades da Esquadra dos Estados Unidos. Por fim, quando
calculou que o momento era conveniente, lançou-os contra
elas. Dois terão mergulhado no mar, ou talvez voltaram à
base, já que esses aparelhos são teleguiados... Ou não?
— Sim — murmurou Dimitar Valika.
— É lógico. E com suas câmaras de televisão, enviam,
por circuito fechado, as imagens à base. Levam, além disso,
um curioso dispositivo que dispara balas... com cianureto.
Certo?
— Não todos — Filip Plovien passou a língua pelos
lábios. — Há diferentes modelos de “Telemorte”, para
diferentes trabalhos.
— Um invento encantador, moço — comentou
sarcasticamente Brigitte. — Bem, espero que tenham
compreendido a situação, que pode terminar tragicamente
para todos. Há dois navios americanos cercados por dez,
doze ou talvez vinte barcos russos, inclusive um porta-
aviões. Alguém pode ter a infeliz ideia de lançar o primeiro
canhonaço. O resto viria por si só. Meus compatriotas estão
inocentes do ocorrido e querem via livre para o
Mediterrâneo, com o que se evitaria uma séria catástrofe. E
agora, pergunto-lhes: estão dispostos a ajudar-me a evitar
isso?
Nova troca de olhares entre os búlgaros.
— Que devemos fazer? — levantou-se o porta-voz
Dimitar.
— Tomaram sua primeira decisão acertada — deslizou
“Baby”. — Se tivessem relutado em secundar-me, eu mataria
os três. Bem: onde estão os controles do “Telemorte”?
— Não sabemos.
— Não sabem? — Brigitte contraiu as sobrancelhas. —
Tenha muito cuidado, Valika. Quando eu falo em matar
nunca é por brincadeira.
— Digo-lhe que não sabemos! Eles vieram aqui e
levaram tudo!
— Que é tudo?
— O que tínhamos no porão da casa, porque lá estivemos
trabalhando em segredo os três. Havia a instalação e os
protótipos que tínhamos construído.
— Quantos, ao todo?
— Seis. Todos com câmara de televisão, mas com
mecanismos diferentes, de ataque: torpedos, bombas, lança...
— Não me interessam esses detalhes agora. Imagino
parte das características de cada “Telemorte”, assim como os
comandos... É muito grande o painel de controle?
— Não... Não muito. Além disso, é desmontável e fácil
de transportar. Tem aproximadamente o tamanho de um
piano pequeno. Também as três telas de televisão são
desmontáveis e...
— Diga-me onde está tudo isso agora.
— Não sei! Eles levaram tudo e obrigaram-nos a ficar
aqui, dizendo que se saíssemos ou facilitássemos
informações à CIA nos matariam! Não sei como pôde chegar
até aqui, signorina, pois a casa está sob vigilância
permanente.
— Refere-se aos russos?
— Claro!
— Os russos é que estão utilizando o “Telemorte”?
— Quem senão eles? Veio aqui um agente da MVD, com
outros quatro. Apanharam-nos de surpresa. Ameaçaram-nos
com seus revólveres, levaram tudo, cortaram o fio do
telefone no exterior e preveniram que nos vigiariam, que
atirariam contra nós se saíssemos de casa. Além disso, ficou
pendente a questão sobre o que seria decidido a nosso
respeito em Moscou, pois oferecêramos nosso invento aos
americanos, em vez de aos russos... Está me acreditando
agora?
Brigitte entrecerrara as pálpebras e, com o cigarro
graciosamente preso a um canto da boca, parecia meditar de
um modo muito pessoal sobre tudo aquilo. Era como se, na
realidade, Dimitar Valika estivesse dizendo nada. Não que
duvidasse dele: simplesmente não lhe fazia o menor caso.
— Os russos... — murmurou por fim, tirando o cigarro da
boca. — Não forma sentido. Ou talvez sim... Embora fosse
demasiado maquiavélico, mesmo para eles.
— A que se refere?
— Bom... Nego-me a acreditar, mas minha teoria atual
pode ser definida assim: os russos não querem barcos
americanos no Mar Negro. Evidentemente, não conseguiriam
com facilidade enxotar-nos de lá a canhonaços. Mas, por
outro lado, um modo muito astuto de conseguir fazer-nos
abandonar o Mar Negro seria transformar-nos em
“criminosos selvagens” ante os olhos do mundo. A mentira
surtindo efeito, eles teriam motivo justificado para não
admitir a presença de barcos americanos no Mar Negro.
Ninguém os poderia censurar por isso.
— Mas... é diabólico!
— Maquiavélico, já disse. Oh, mas não me agrada tal
teoria. Envolve um risco demasiado grande para a Rússia, se
descoberta a verdade. Não, não... Foi um agente russo
chamado Rudolf Varkov Karavitch quem veio aqui com seus
companheiros?
— Não... Não foi esse.
— Deu-lhe seu nome, suponho? Qualquer nome... ?
— Murmurou-o apenas. Não queria dar muitas
explicações, só nos ameaçava por havermos oferecido o
invento à CIA. Nós estávamos muito assustados pelo fato de
terem eles sabido...
— Que nome lhe pareceu entender?
— Menuyev... Orgayev... Não sei. Algo assim,
— Grande ajuda... — resmungou Brigitte; abriu a maleta
e sacou o revólver do homem que, atado com esparadrapo,
congelava-se no jardim. — Pergunto-me se vocês seriam
capazes de ajudar-me. Há quatro russos aí fora, isto é, três, já
que um deles não está em condições de lutar. Eu não
pretendo levar seu invento, nem me aproveitar das
circunstâncias em nenhum sentido, Valika. Só o que me
interessa é esclarecer a situação no Mar Negro, para evitar
uma catástrofe. E as coisas se esclareceriam se
conseguíssemos agarrar esses russos que estão aí fora e
obrigá-los a levar-nos onde estão os controles do
“Telemorte”. Entendem?
— Sim, claro... Sim.
— Em várias ocasiões já enfrentei dois, três e até mais
inimigos. Mas hoje não quero correr risco... Sabe usar um
revólver, Plovien?
— Um pouco. Mas não estou acostumado a estas coisas,
compreenda...
Brigitte atirou às mãos de Plovien o revólver do russo.
— Trata-se apenas de aproximar-se deles e dar-lhes voz
de alto. Caso se entreguem, perfeito. Caso não, é disparar
tentando feri-los apenas. E só em caso de vida ou morte
atiraremos para matar. Entendido?
Filip Plovien engoliu em seco, dificultosamente. E
quando pareceu que se dispunha a falar, que o conseguiria, a
loura signorina Morletti levou um dedo aos lábios, com o
que o silêncio persistiu na sala dos Valika. Um silêncio
tenso, angustioso.
— A luz... — sussurrou ela, subitamente. — Apaguem a
luz!

CAPÍTULO SÉTIMO
O “Telemorte” em plena ação
A caça cega à inimiga terrível
“Vamos, russo, não seja cabeçudo...”

Pareceu que nenhum dos três estava entendendo.


Olhavam-na assombrados, sobressaltados por sua brusca
mudança de atitude, por seu súbito estado de alerta...
Melhor: de alarma.
— A luz? — perguntou Dimitar Valika. — Que há com
a...?
Com desesperada rapidez, Brigitte saltou da poltrona para
onde havia localizado um dos interruptores. Lá chegou com
tanto impulso que, ao mesmo tempo em que apagava a luz,
chocava-se contra a parede. Em seguida, recuou a toda a
pressa até proteger-se atrás de um sofá, na sala já às escuras.
Da avenida, chegava tenuamente uma luz mortiça, amarelada
e fria. E àquela luz, a espiã internacionalíssima pôde ver
Filip Plovien ainda de pé, como petrificado, no centro da
sala, com o revólver na mão.
Ia gritar, avisando-o do que seu apuradíssimo ouvido
tinha captado, quando uma janela rebentou, para dentro, e
uma forma alongada, com curtas asas estendidas para trás,
penetrou na casa. O brilho da amarelenta luz externa refletia-
se naquela delgada forma negra, suspensa no ar. O silêncio
era tal que, ainda com mais nitidez que antes, “Baby” ouviu
aquele suave zumbido elétrico. O “Telemorte” estava
imóvel. Era assombroso que pudesse manter-se assim, em
suspensão, emitindo somente aquele fino zumbido que
apenas ouvidos muito sensíveis podiam perceber.
De repente, no silêncio da sala, de toda a casa, soou o
grito aterrado de Filip Plovien:
— É um “Telemorte”! Enviaram-no...!
O aparelho variou ligeiramente de posição e de seu bico
brotaram dois clarões violáceos, simultaneamente aos
disparos efetuados por Plovien com o revólver do russo.
Ouviram-se os ricochetes das balas na superfície cilíndrica,
de aço, porém mais forte soou o grito agônico de Filip
Plovien, enquanto iluminado fugazmente por aquela luz
violácea ele se projetava para trás, grotescamente retorcido
pela força dos impactos.
— Filip! — gritou histericamente Marya Valika.
— Filip...!
Ela apareceu na zona de luz amarelenta e Brigitte, que
assomara a cabeça por trás do sofá, disposta a atirar contra o
“olho” do fatídico artefato, teve que fechar os seus para não
presenciar o que iria ocorrer, fatalmente.
E ocorreu.
O “Telemorte” tornou a mudar de posição, orientou-se
para a jovem. De novo brotaram dois clarões violáceos de
seu bico e Marya Valika, tal como seu noivo, saltou para
trás, como impulsionada por violento golpe de ar. Caiu
estendida sobre o sofá e deste resvalou para o chão, girando,
como se retorcendo sobre si mesma... Um de seus pés,
finalmente, ficou numa zona onde Brigitte, ao abrir os olhos,
pôde vê-lo. Ainda captou as agônicas sacudidelas da perna
da formosa búlgara.
Para a direita, ouviu subitamente os soluços incontidos de
Dimitar Valika. Esteve a ponto de gritar-lhe que se calasse,
mas compreendeu que era inútil. Não só seria impossível
minorar a dor do pai da jovem, como, se falasse, denunciaria
a si mesma. E se havia alguma possibilidade de escapar viva
dali era permanecer em silêncio. Os que estavam manejando
o “Telemorte” não precisavam saber que ela estava ali.
Haviam decidido matar os Valika e Filip Plovien, apenas
isso. Se ela mesma não se delatasse, talvez o aparelho fosse
retirado da casa por seus controladores.
Assim permaneceu imóvel, tensa, ouvindo os soluços de
Dimitar Valika. Este se havia escondido atrás de uma
poltrona, mas ergueu-se de pronto colocando-se bem à frente
do “Telemorte”, agitando o punho direito e bramindo:
— Assassinos russos! Malditos assassinos, canalhas,
criminosos...!
Lançou-se contra o artefato, como se tivesse alguma
esperança de destruí-lo com as próprias mãos. Mas seu
invento era demasiado poderoso, inclusive para ele mesmo,
que se chocou contra a aguda proa, fortemente, e recuou,
sem conseguir movê-lo sequer...
Agachada atrás do sofá, “Baby” sentia seu sangue ferver
na ânsia de intervir. Estava compreendendo a jogada: era
uma burla cruel, impiedosa, que se praticava com Dimitar.
Este havia caído no chão, mas levantou-se de imediato,
sempre gritando como um louco. Tornou a lançar-se contra o
“Telemorte” e abraçou-se com ele, freneticamente, tentando
derrubá-lo, atirá-lo ao solo, enquanto com uma das mãos
golpeava sem o menor resultado a lente de sua câmara
televisora, que sobressaía como uma bonita carlinga de
brilho suave... O “Telemorte” elevou-se de súbito e Valika
tornou a cair espetacularmente no chão. Levantou-se outra
vez, agora com o revólver que Brigitte havia entregado a
Plovien, encontrado casualmente.
Sacudido por um riso nervoso, o cientista búlgaro
começou a disparar contra sua própria obra, como um
possesso. A sala encheu-se de estampidos e vibrou ao
ricochete das balas. Uns ricochetes agudos, precedidos de
um forte som metálico. A carga do revólver se esgotou e
Valika atirou-o contra o imóvel artefato, que mais do que
nunca parecia estar praticando uma burla cruel, perversa.
Ficava bem claro que para destruir um “Telemorte” era
preciso muito mais que um revólver, ou as simples forças de
um ser humano.
Dimitar Valika, todavia, não se deu por vencido. Com
uma fortaleza física que só lhe podia proporcionar a fúria de
que estava possuído, ergueu uma das poltronas e lançou-a
contra o artefato. A poltrona chocou-se contra o
“Telemorte”, sem que este estremecesse sequer...
Por fim, chorando violentamente, Dimitar caiu de joelhos
e começou a bater a cabeça no chão, gritando, uivando. E
quando ele ergueu o dorso, o “Telemorte” voltou a
funcionar: de sua proa partiram quatro brilhantes clarões
violáceos, simultaneamente, e ele recebeu os quatro
impactos no peito. Foi empurrado, arrastado, deslizando pelo
solo até chegar junto ao cadáver de sua filha.
Atrás do sofá, a agente “Baby” mordia os dedos e
apertava os punhos para não gritar. A ideia de agir latejava
com força em sua mente, mas, por felicidade para ela, seu
instinto de conservação e o lúcido pensamento de que se
delatando nada conseguiria foram mais forte. Sua única
esperança, na verdade, era que quem manejava o
“Telemorte” não soubesse que ela se encontrava ali.
Ouvia agora apenas o zumbido suave do aparelho, no
centro da sala. Depois percebeu que ele se afastava,
deslocando-se para um lado; em seguida, para outro...
Compreendeu que ignoravam sua presença, mas diante das
três telas de televisão, em qualquer lugar, alguém estava
procurando naquela sala uma presença humana, por meio do
“olho” do “Telemorte”. O zumbido aproximou-se dela.
Ouviu-o cada vez mais nítido, lamentando pela primeira vez
na vida ter tão apurada audição. Era preferível não saber
nada, não notar a proximidade do artefato mortal, como
havia acontecido com os outros...
Ergueu lentamente a cabeça e custou-lhe grande esforço
não gritar ao ver sobre ela o “Telemorte”. Estava suspenso
sobre sua cabeça, a menos de dois palmos, virando devagar,
lateralmente. O olho da câmara, aproveitando o frio
resplendor das luzes da avenida, buscava outra possível
vítima. Sem pressa, cônscio de seu poder, o artefato ia
virando, virando, virando... Descrevia um círculo horizontal
com a cauda.
Súbito, desceu um pouco mais e sua acerada fuselagem
quase tocou um ombro de Brigitte, que se deixou cair
sentada, sentindo que todos os seus músculos se paralisavam.
Muito perto dela estava a minúscula torreta onde funcionava
o olho da câmara. Podia deixar cego o “Telemorte” com um
só disparo, mas... e se houvesse outro aparelho esperando lá
fora? Se ela cegasse aquele, os que o estavam manejando
compreenderiam que ali havia alguém e mandariam o outro.
Ah, mas agora o infernal engenho deslocava-se para o
centro da sala e ela respirou fundo, enxugando com o dorso
da mão as gotas do suor que perlavam sua testa. Não o viu,
mas adivinhou que dali ele lançava outra olhadela geral.
Por fim, o zumbido foi diminuindo. Arriscou-se a olhar
por um lado do sofá e viu-o sair pela janela rebentada,
arrancando algumas pontas de vidro que tinham ficado nos
caixilhos,
Três segundos depois, o silêncio era absoluto. Sentindo
um violentíssimo tremor nas pernas, Brigitte conseguiu
levantar-se, aproximando-se da janela. Quando olhou para
fora, já não viu nada, absolutamente nada. Quer dizer:
apenas o jardim, as tílias, as luzes da avenida...
Dando passos incertos, dirigiu-se para onde tinha visto o
pequeno bar existente na sala. Abriu-o e tirou a primeira
garrafa que seus dedos encontraram. Arrancou a tampa com
os dentes, cuspiu-a e bebeu diretamente do gargalo. O vodca
deslizou por sua garganta, irradiando calor por todo seu
corpo gelado pelo medo, Ainda com a garrafa na mão,
deixou-se cair no sofá, o olhar hipnoticamente fixo na janela
rebentada.
— Deus, que ele não volte... Que não volte!
Três minutos mais tarde, pareceu evidente que o
“Telemorte” não ia voltar e “Baby” já estava serena. A
situação não podia ser mais clara: tinha que descobrir o lugar
onde estavam instalados os controles daqueles diabólicos
aparelhos. Se o conseguisse, teria esclarecido tudo, em
benefício de russos, americanos... e de todo o mundo. A
visão de uma dezena de navios russos canhoneando dois
destroieres americanos quase a fez saltar de pé, finalmente.
Sem acender nenhuma luz, apanhou suas coisas, foi à
menina janela pela qual havia entrado e saltou para o
exterior. Surpreendeu-se achando agradável o frio da noite
prematura. Quer dizer, nem sequer era noite, mas as nuvens
a haviam adiantado. Umas nuvens espessas, que pareciam
um manto sombrio estendido sobre Varna, tão sombrio que
meia hora antes já tinham sido acesas as lâmpadas da
iluminação pública.
Deu o primeiro passo para o russo que deixara atado com
tiras de esparadrapo, mas ato contínuo mudou de ideia.
Pouco depois, chegava a um lugar de onde fatalmente
veria o carro dos russos. O carro não estava lá. Sacou a
pistolinha da maleta e, empunhando-a firmemente, enfiou a
mão no bolso do casaco de pele. Antes de chegar sob a tília
da avenida onde havia estado o carro, viu os dois corpos
estendidos no chão, muito juntos, em posturas tragicamente
significativas. Quando se ajoelhou junto a eles, sabia já que
os dois homens estavam mortos. Quase não se deteve a
contemplar as grandes manchas de sangue em suas costas,
estendendo-se à nuca. Empurrou os cadáveres mais para o
tronco da árvore, em plena sombra, com a esperança de que
tardariam a ser descobertos, e correu novamente para a casa.
Quando se agachou junto ao russo atado com
esparadrapo, deu-se conta de que os olhos do homem se
fixavam nela, torvamente.
— Vou soltá-lo — disse-lhe em russo impecável. — Mas
só se me garantir que será sociável e inteligente. Temos que
falar... De acordo?
O russo assentiu com a cabeça e ela, sem contemplações,
arrancou as duas tiras superpostas de esparadrapo que lhe
fechavam a boca.
— Quantos de vocês estavam vigiando esta casa?
— Quatro.
— Agora são só dois. Ou eram dois. Mataram dois de
seus companheiros que estavam no carro. Imagino que o
outro tenha escapado nele. Você como se chama? Vamos,
vamos, russo, não seja cabeçudo. Meu nome é “Baby” — e
quase sorriu ao ver o sobressalto do soviético. — Qual é o
seu? Pode dizer um qualquer, dá no mesmo.
— Konstantin Mikavarian.
— Okay, Konstantin. Onde está o “Telemorte”?
— O quê? — espantou-se o russo.
— Já o supunha... Você não sabe nada a esse respeito,
certo?
— A respeito de quê? Do que está falando?
— Konstantin: você e eu, teoricamente, somos inimigos.
Isso me importa tanto como a colheita de batatas na Rússia.
Esta vez vamos trabalhar juntos. E você vai demonstrar-me
que os espiões russos são inteligentes. De acordo?
— De que se trata?
— Do assunto do Mar Negro. Não lhe agradaria uma
solução pacífica, a contento de todos?
Os olhos escuros do agente soviético brilharam na
sombra.
— Solte-me.
Sempre sem contemplações, “Baby” libertou-o das tiras
de esparadrapo e ele sentou-se no chão, esfregando os pulsos
doloridos, tremendo fortemente sob o intenso frio, que lhe
parecia ter penetrado em todos os ossos.
— Você gostaria de um trago do vodca? — sorriu
Brigitte.
CAPÍTULO OITAVO
Raciocínio de espiã
As aflições de um traidor
Um aviso... amistoso

— Isto é outra coisa... — suspirou Mikavarian, sentindo a


vodca espalhar calor por seu organismo.
— Você não quer? Está frio.
— Já bebi antes. Tome seu revólver: se tem mais balas,
carregue-o, pois Valika disparou as que continha.
Na escuridão da sala, o russo recarregou o revólver,
enquanto olhava a espiã americana, banhada pela
luminosidade amarelenta que vinha do exterior. Nenhum dos
dois se dera ao trabalho de remover os cadáveres de Filip
Plovien, Dimitar e Marya Valika.
— Não está confiando demais em minhas palavras,
“Baby”?
— Talvez. Mas não confio somente em sua palavra.
Konstantin. Também em seu bom senso. Quer os dois ou
quatro milhões que oferecem por “Baby”? Posso dá-los a
você. Mas será quando tenhamos feito nosso trabalho de
espiões. Que classe de agente você é?
— Se julgarmos pelo que me fez antes aí fora, não sou
dos mais espertos ou hábeis. Mas sou sensato. Ou creio que
sou, pelo menos. Qual é sua oferta?
— Retirar do Mar Negro os dois destroieres da sexta
Esquadra sem que haja nada a lamentar.
— Oferta aceita. Prossiga.
— Como se chamam seus companheiros? Os três.
— Andrei Kovikov, Basili Nerguyev e Igor Stok...
— Nerguyev... Basili Nerguyev. Isso pode parecer
Menuyev ou Orgayev, não é?
— Mais ou menos.
— Seus dois companheiros mortos estão onde estava o
carro, junto à árvore. Vá ver quais são. Espero você aqui.
Konstantin Mikavarian não hesitou. Saiu sossegadamente
da casa, regressando apenas quatro minutos mais tarde.
— Andrei Kovikov e Igor Stokovian — disse.
— Falta Nerguyev, então.
— Sim, falta Nerguyev,
— Aonde pensa que tenha podido ir?
— Só me ocorre o lugar onde foi instalado o quartel-
general em Varna.
— Você sabe onde é?
— Posso encontrá-lo. Minha base é em Sófia, mas posso
encontrar esse local, suponho.
— Tenho um carro aqui perto. Vamos, Konstantin.
***
Viu o russo sair do edifício e caminhar tranquilamente
para o carro, entrar e aceitar o cigarro que ela lhe oferecia
com um sorriso admirativo.
— Não há ninguém lá em cima.
— Então, minhas conclusões são acertadas. Nem vocês
nem nós disparamos esses artefatos, de modo que... Um
momento, por favor — sacou o radinho da maleta, apertou
um botão e em lugar do ligeiro zumbido ouviu-se a voz de
Johnny, tensa:
— “Baby”?
— Fale, Johnny.
— Acaba de sair um homem da barcaça. Um homem que
não estava lá quando a visitamos.
— Saiu... ou entrou?
— Saiu! Que diabo! Não está me ouvindo bem?
— Calma. Sente frio?
— Frio? Estou congelado! Mas valeu a pena... Sabe quem
é esse homem?
— Não tenho a menor ideia. Se tivesse entrado, diria que
era um tal Basili Nerguyev, mas saiu... Quem é?
— Lembra-se daquele que Sterling fotografou com
aproximação? Aquele que parece um cigano, de cabelos
compridos...?
— Sim, sim! De fato, ele não estava na barcaça quando a
visitamos. Você tem certeza de que não pôde entrar depois
que estivemos lá?
— Olhe, estou há nove anos trabalhando nesta coisa e...
— Por favor, não se zangue comigo. De acordo: não
entrou... mas saiu. A conclusão é fácil, não acha?
— Facílima: estava lá quando entramos na barcaça. Um
fundo falso, ou algo assim. Não há outra explicação.
— E onde está ele agora? Que faz?
— Caminha pelo cais, afastando-se de mim.
— Johnny, lembra-se da proposta que lhe fiz a respeito de
tomar tranquilamente sol, em certa praia da Espanha?
— Era pra valer?
— Completamente. Mas você tomará o sol sozinho se me
perder de vista esse homem. Okay?
— Manterei você informada.
Brigitte fechou rádio, guardou-o na maleta e olhou
sorridente para Mikavarian.
— Sabe alguma coisa sobre uma barcaça, Konstantin?
— Não.
— Perfeito. Tudo vai se encaixando... Seu camarada
Basili Nerguyev falou a vocês de um aparelho chamado
“Telemorte”?
— Claro que não.
— Entretanto, foi ele quem, em companhia de quatro
homens, levou tal aparelho e todos os seus controles da casa
dos Valika. Não sabia?
— Não. Nenhum de meus companheiros me falou a esse
respeito.
— Então, lamento dar-lhe a má notícia: Basili Nerguyev
é um traidor. Está traindo a Rússia, seus camaradas, a MVD.
— Isso você terá que demonstrar.
— Que faziam vocês vigiando a casa dos Valika?
— Esperávamos um ou vários agentes da CIA.
— Só isso? Nerguyev não lhes disse que tinha sido
inventado o “Telemorte”? Que mantinha confinados os
Valika e Filip Plovien?
— Não.
— Tampouco os Valika disseram a vocês algo sobre isso,
não fizeram nenhum comentário, não...?
— Nenhum de nós falou com os Valika. Basili dizia que
não devíamos alarmá-los, que convinha esperar o momento
oportuno. Proibiu-nos terminantemente de fazer qualquer
espécie de contato com eles, por enquanto. Dizia que era
melhor surpreendê-los em plena confabulação com os
agentes da CIA.
— Enganou-os, naturalmente. Sabe você quem vigiava os
Valika, no princípio?
— Nerguyev e Karavitch. Ambos estavam sediados em
Varna. Eu e os outros fomos chamados posteriormente de
Sófia. Fui o último a chegar.
— Lógico ... Minha explicação não vai lhe agradar,
Konstantin, mas é imprescindível.
— Ouvirei com o maior gosto a agente secreta mais
famosa do mundo — sorriu secamente o russo.
— Muito bem. Vejamos... Nerguyev e Karavitch tinham
identificado meu companheiro Bob Sterling. Vigiavam-no.
Assim, se inteiraram de que Sterling visitava os Valika e,
daí, souberam algo sobre o diabólico invento chamado
“Telemorte”. Isso, forçosamente, teve que ser coisa de dias,
de semanas. Por fim, Rudolf Karavitch resolveu eliminar
Sterling, enviar uma mensagem a Sófia ou a Moscou e
apoderar-se do invento dos Valika. Ele e Nerguyev foram ao
domicílio de Sterling em Varna, mas este certamente os
percebeu e escapou. Lá, Karavitch deve ter dito a Nerguyev
que era preciso mandar imediatamente o aviso, para caçar
Sterling e apoderar-se do invento dos Valika. Então, Basili
Nerguyev matou Rudolf Karavitch pelas costas e retirou-se.
Avisou outras pessoas não vinculadas com a MVD e, com o
apoio de quatro homens, foi à casa dos Valika para
confiscar-lhes o “Telemorte” e seus controles. Todo esse
material foi levado a uma barcaça velha que está atracada ao
cais, mas fatalmente Bob Sterling teve que inteirar-se disso,
pois não deixou de vigiar. Sabendo onde estava todo o
conjunto que forma o “Telemorte”, muniu-se de uma
câmara, foi ao cais, fotografou a barcaça, dois homens que
estavam em sua coberta e um terceiro, com o máximo de
aproximação. Mas foi descoberto e enviaram contra ele um
dos artefatos...
— Que artefatos?
— Depois lhe explicarei. O artefato matou Sterling
disparando-lhe balas com cianureto. Só que, então, já era
tarde, pois um amigo nosso tinha o microfilme com as
fotografias da barcaça e dos três homens, um deles
identificável. Esse que meu companheiro acaba de
mencionar pelo rádio.
— Quem é ele?
— Não sabemos ainda.
— Bem. Que mais?
— Basili Nerguyev pediu a Sófia que lhe mandassem três
companheiros, pois Rudolf Karavitch “havia desaparecido”.
Quando chegaram esses três companheiros, isto é, você
mesmo, Stokovian e Kovikov, mandou-os vigiar os Valika,
temendo que, de um ou de outro modo, Karavitch houvesse
comunicado algo a Moscou ou a Sófia. Mas, como não lhe
interessava que seus companheiros falassem com os Valika,
disse-lhes que deviam permanecer à espreita, simplesmente,
esperando a vinda de um americano. Posteriormente, vocês
souberam da morte de Robert Sterling, mas Nerguyev
insistiu em que, se os Valika tinham algo a ver com a CIA,
outro americano deveria chegar, sendo melhor esperá-lo,
segui-lo e saber o que estava fazendo...
— E chegou você.
— Com efeito. Visitei os Valika e estes, ameaçados por
Nerguyev, disseram-me que nada sabiam do invento
chamado “Telemorte”. Quando saí, ele, Stokovian e Kovikov
me seguiram ao domicílio de Sterling, onde um “Telemorte”
estava à minha espera, já que Nerguyev avisara os da
barcaça que fatalmente um espião americano iria lá. Ora, se
eles matassem o americano que chegasse, encontrariam junto
a este o cadáver de Karavitch e a conclusão a tirar seria que
este fora morto por Sterling, ficando todo o ocorrido por
conta da CIA, já que meu cadáver ali presente, segundo
calculava Nerguyev, deixaria ainda mais claro que o local
servia de domicílio a um espião americano, vindo para
investigar a morte de Bob Sterling. Lógico que, durante todo
o tempo, Nerguyev aparentou não conhecer o domicílio de
Sterling em Varna, já que então lhe poderia ser perguntado
como não estava ele com Karavtch. Deve ter dito que
Karavitch foi por sua conta atrás de Sterling.
— Não me parece lógico tudo isso.
— Não?
— Bom, o final é que não me parece lógico.
— Por quê?
— Kovikov e Stokovian estavam com Nerguyev, não é
verdade?
— Mas condenados à morte. Se me tivessem agarrado no
domicílio de Sterling, Nerguyev me mataria, depois a
Kovikov e Stokovian; em seguida, o “Telemorte” iria matar
os Valika e Filip Plovien para que não dissessem nada.
Finalmente, eliminaria você. E ele se apresentaria a seus
superiores como havendo fracassado no cumprimento da
missão. Os Valika tinham inventado algo, uma arma
especial, como ficaria demonstrado, mas os americanos a
teriam conseguido, matando Dimitar e Marya Valika, Filip
Plovien, Karavitch e seus três novos companheiros. Mas,
como eu tinha escapado, possivelmente com alguma
informação colhida no domicílio de Sterling, Nerguyev
precisava da ajuda de Stokovian e Kovikov, de modo que
deixou-os ainda vivos, postando-os e a você perto da casa
dos Valika para esperar-me outra vez. Preparou a armadilha
e, quando teve certeza de que tudo estava a seu gosto,
alguém enviou o “Telemorte” para liquidar todos. Você
salvou-se porque o aparelho não o encontrou na escuridão do
jardim. Eu, porque ignoravam minha presença na casa.
— Se Nerguyev já tinha esperado tanto, por que enviou o
“Telemorte” antes de saber que você estaria lá?
— Isso já não foi ele quem fez. Alguém se impacientou e
decidiu eliminar gente que soubesse ou pudesse vir a saber
demasiado. E essa gente eram os Valida, Plovien, Kovikov e
Stokovian. Provavelmente quem enviou o “Telemorte”
ignorava que você também havia chegado de Sófia, pelo que,
mortos todos aqueles e desconhecida minha presença na
casa, o aparelho regressou à sua base. E o mesmo fez
Nerguyev, em seu carro,, convencido de que tudo havia
terminado. Só lhe resta agora apresentar-se compungido a
seus chefes, dizendo que os americanos mataram um bocado
de gente e levaram o invento.
— A coisa vai encaixando... Mas por que deixariam você
viva?
— Suspeito de dois motivos. Primeiro, supõem que
ninguém fará caso da voz da CIA; o que eu diga, não terá
valor. Segundo, é evidente que Nerguyev não me supõe
capaz de tirar tais conclusões. Tenha em conta que ele nem
pode imaginar que eu conversei com os Valika; e muito
menos com você.
— Mas vai saber agora que estou vivo...
— O que não lhe agradará muito — sorriu “Baby”,
divertida. — Não creio que demorem a dar-lhe a má notícia
de que só mataram dois de seus companheiros.
— Portanto, enviarão outro “Telemorte” à casa dos
Valika, para acabar comigo.
— E esperar por mim. Tudo entendido? Satisfeito agora?
— Furioso. Não gosto de admitir a existência de um
traidor na MVD. De boa vontade iria agora à casa dos Valika
para ver se lá está um “Telemorte” procurando-me pelo
jardim e à espera de você.
— Vá, se quiser — estremeceu Brigitte. — Mas não
conte comigo para isso. Acho melhor irmos à barcaça,
Nerguyev deve estar lá, contemplando os movimentos do
“Telemorte” à procura de nós dois.
— Numa barcaça?
— É inevitável — suspirou “Baby”. — Os controles têm
que estar lá. É só saber encontrá-los. Creio que Johnny e eu
fomos um tanto inábeis esta tarde. Não sei quem maneja o
“Telemorte”, nem o que pretende. Mas, sem dúvida, é a
mesma pessoa que subornou Nerguyev para se apoderar
desse aparelho. Do qual, até agora, não tem feito bom uso.
Certo?
— Bem... Que esperamos? Se ele está na barcaça,
gostaria de saudá-lo da parte de meus camaradas.
— Humor soviético — comentou Brigitte, rindo.
— Não tenha dúvida de que Nerguyev está na barcaça,
Konstantin. Portanto... em marcha!
***
Basili Nerguyev estava pálido de angústia, olhando de
uma a outra tela de televisão, embora as três mostrassem a
mesma imagem, já que só um “Telemorte” estava sendo
usado.
— É preciso encontrá-lo! — insistiu uma vez mais. — É
preciso encontrar Konstantin e matá-lo o quanto antes!
— Tudo teria sida mais fácil se nos houvesse dito que
estava com três companheiros, não com dois — observou
Karba.
— Não pude entrar em contato com vocês!
— Lamento, mas esse seu companheiro já não está na
casa, nem no jardim. O “Telemorte” percorreu tudo e não o
vimos.
— É preciso encontrá-lo! Talvez tenha visto quando fiz
Igor e Andrei saírem do carro e atirei contra eles... É preciso
encontrá-lo, senão estou perdido!
— Fazemos o possível. Mas se ele viu você liquidar os
outros dois, já estará muito longe da casa. Sentimos muito
por você, Nerguyev.
O traidor da MVD passou a mão pela testa. Se Konstantin
Mikavarian o vira matar os colegas, suas horas estavam
contadas. A MVD mandaria meia dúzia de exterminadores
para caçá-lo.
Olhava obsessivamente as imagens idênticas nas três
telas. O olho de “Telemorte” enviado continuava
procurando, mas devia convencer-se de que Mikavarian...
Ouviu o alçapão abrir-se, mas nem sequer voltou-se para
olhar. Tampouco Karba se voltou, nem nenhum de seus
companheiros... Mas voltaram-se quando ouviram o forte
golpe atrás deles. Era como se algo tivesse caído dentro do
fundo camuflado da barcaça.
Algo? Não. Alguém. Uma pessoa. Uma mulher.
Os quatro homens ficaram petrificados ao ver a formosa
loura, pistola na mão, olhando-os friamente. Ainda estava
recuperando o equilíbrio depois do salto que a colocara ali
dentro sem utilizar a escada, mas suas atitudes eram firmes,
segura.
— Alô, Basili Nerguyev! — saudou amavelmente.
Este ergueu o olhar e sua palidez tornou-se absoluta
quando avistou, no vão do alçapão, o torvo semblante de
Konstantin Mikavarian, ainda mais ameaçador que o grande
revólver que ele empunhava.
— Terrivelmente surpreendido, não é verdade, Basili?
Compreendo. Agora tenha a bondade de virar as costas... E
não espere auxílio: os quatro homens lá de cima sofrerem
pequenos contratempos. De costas, sim? Com as mãos
levantadas, por favor.
Nerguyev passou a língua pelos lábios, hesitando. A
expressão daqueles belos olhos azuis não lhe agradava nem
um pouco, pois via neles a morte.
Voltou-se lentamente. “Baby” se aproximou e, súbito,
golpeou-o na nuca, derrubando-o de bruços sobre o painel de
controle, chocando-se contra este e contra Karba, antes de
deslizar para o chão. Imediatamente, a pistolinha, apoiada lá
de cima pelo revólver de Mikavarian, tomou a cobrir Karba e
os outros dois.
— O “Telemorte”... — disse Brigitte. — Façam-no
voltar. E sem acidentes. Desça, Konstantin.
O espião russo desceu os degraus de madeira. Como
todos os demais, Brigitte inclusive, tinha que permanecer
curvada, mas isso não tirava eficiência à sua atenta
vigilância. Karba assim o compreendeu e dedicou-se a
cumprir as instruções da bonita loura, que deixou os três
encarregados dos controles aos cuidados do russo e revistou
o pequeno recinto. Logo encontrou os outros dois
“Telemortes”, metidos num vão, do outro lado do fundo
falso, que devia estar bem perto da sala de máquinas.
Quando voltou para junto do espião soviético e dos outros,
olhou para as telas e viu agora uma rua de Varna. O
“Telemorte” estava regressando.
— Tragam-no para a barcaça e metam-no aqui dentro.
Que não fique na coberta. Você se incumbe deles,
Konstantin?
— Não se preocupe.
Sorrindo, ela voltou para cima, onde Johnny acabava de
atar solidamente o único dos quatro homens que ficara vivo.
Os outros três estavam a um canto cobertos com uma velha
lona.
— Volto ao hotel? — perguntou Johnny. — Aquele tipo
vai nos escapar.
— Duvido. Se deixar o hotel será para vir aqui. De
qualquer modo, tentarei descobrir algo interessante. Fique
atento, pois o “Telemorte” está de regresso. E quando
terminar aí, desça para fazer o mesmo com Nerguyev, que
está dormindo.
— Continua confiando no outro russo?
— Por ora, sim. Vou passar pelo hotel de que me falou,
ver se obtenho um esclarecimento. Mas estarei de volta em
menos de uma hora, pois teremos que avisar pelo rádio os
russos e os americanos. Um aviso... amistoso.

CAPÍTULO NONO
O trágico erro de Omar Al Rami
Neste mundo já sobram os meios de destruição
Relações públicas, simplesmente...

O homem que estava conversando com Ornar Al Rami na


saleta da suíte do hotel suspirou pesadamente, por fim, e
fechou a pasta.
— Os planos são perfeitos, coronel — sorriu Al Rami. —
Mas, de qualquer modo, temos o protótipo do “Telemorte”.
— Os planos seriam suficientes, Al Rami. Devo admitir
que você fez um trabalho magnífico. Entretanto, não devia
ter utilizado nenhum desses projéteis.
— Detesto os americanos — resmungou À1 Rami.
— Mas afundou um pesqueiro russo. E isso complicou as
coisas.
— Queria afundar ou pelo menos avariar seriamente os
navios americanos, mas meu pessoal não aprendeu muito
bem o manejo do “Telemorte” e dois aparelhos caíram no
mar, avariados. Não creio que seja possível recuperá-lo
nunca. O outro errou o alvo e atingiu a lancha pesqueira.
Falta de sorte. Mas, seja como for, que pode ocorrer? Que os
russos e os americanos entrem em guerra? Melhor: assim, os
russos já não terão objeções a opor em nos prestar ajuda
contra Israel.
— Tome cuidado... — murmurou o coronel Fasham. —
O Egito não está disposto a aceitar a responsabilidade de
uma guerra mundial. Nós só queríamos o artefato que
Nerguyev nos ofereceu. Só isso. Com essa arma, daremos
aos israelenses uma lição, sem necessidade da ajuda russa.
Mas uma coisa é assustar os israelenses com o “Telemorte” e
outra é provocar uma guerra.
— Já lhe disse que foi acidental.
— Foi acidental o afundamento do pesqueiro russo, mas
você atacou os destroieres americanos com esses... objetos.
Não o devia ter feito. Sabe muito bem que não recebeu
nenhuma instrução nesse sentido.
— Está bem, lamento... — resmungou Omar. — Sou um
espião e devia ter-me controlado, eu sei. Mas, repito, odeio
os americanos.
— Esperemos que esse ódio não traga consequências
funestas. E, sobretudo, esperemos que russos e americanos
se entendam para resolver essa situação que você provocou.
Inevitavelmente, terei que comunicar o ocorrido ao Cairo.
Está claro que informarei a respeito do excelente trabalho
que você realizou, mas não poderei silenciar que a culpa da
tensão russo-americana no Mar Negro cabe exclusivamente a
você.
— Acha necessário dizer isso?
— É meu dever. Lamento. E agora, podemos ir. Você
regressará à barcaça. Eu o levarei em meu carro até o cais,
depois irei ao aeroporto para tomar esse avião especial.
Quando chegarão ao Cairo os aparelhos de controle e os
protótipos que restaram?
— Talvez dentro de uma semana. E se por qualquer
circunstância não chegassem, o senhor já tem os planos,
coronel.
— Sim — Fasham bateu significativamente na pasta. —
Espero que esta arma nos seja de grande ajuda contra os
israelenses. Vamos. Minha bagagem está no carro e já
paguei a conta do hotel.
Saíram da suíte até então ocupada pelo coronel Fasham,
do exército egípcio. Ele era um homem alto, delgado, muito
moreno, de olhos negros e inteligentes. Tinha o cabelo quase
completamente branco, o que lhe ficava bem, dando um
toque de respeitabilidade à sua elegância de sexagenário
sadio.
Pouco depois, saíam do hotel e Fasham indicava seu
carro. Ocuparam os dois o assento dianteiro, o coronel ao
volante. Ligou o motor e, quando se dispunha a arrancar, a
porta traseira da direita se abriu e alguém entrou
rapidamente. Os dois homens voltaram-se, com simultâneo
sobressalto... e a primeira coisa que viram foi uma
pistolinha.
Depois os cabelos louros, os brilhantes olhos...
— Quem é você? — perguntou Fasham, voz tensa, em
russo.
— “Baby”, da CIA. Por favor, cavalheiros, não
empalideçam. Simplesmente, saiamos daqui. O senhor, as
mãos no volante, naturalmente, e o senhor — indicou Omar
Al Rami, com a pistola —, com as mãos na cabeça. Em
marcha, queridos. E se disserem alguma coisa, que seja em
russo. O contrário significará a morte. Adiante, por favor.
Sete ou oito minutos mais tarde, o carro detinha-se num
ponto solitário do cais, sob as recomendações de Brigitte a
Fasham.
— Já sabem meu nome. E os seus?
— Não são de sua conta.
— De acordo. Talvez me pese menos na consciência não
saber quem matei. Qual dos dois quer ser o primeiro?
— Meu nome é Omar Al Rami.
— E é o mais sensato dos dois — sorriu ela, friamente.
— Por enquanto, sua vida está segura. E o senhor? Quer
morrer?
— Fasham — murmurou o coronel.
— Ambos árabes... Egípcios?
— Não. Não somos...
— Somos — grunhiu Omar. — Se ela é “Baby”, não
adianta querermos enganá-la, coronel.
— Ah! É coronel. Coronel Fasham. Ótimo — celebrou
Brigitte. — Suponho que nessa pasta leva os planos do
“Telemorte”, coronel. Tenha a bondade de entregar-me...
Com cuidado.
Segundos depois, a pasta estava no assento traseiro, ao
lado dela.
— Muito bem. E agora, expliquem-me esse plano
criminoso que elaboraram para forçar um confronto entre
russos e americanos. Ficam avisados de que não tenho muito
tempo a perder, já que devo enviar uma mensagem pelo
rádio ou, se não encontro um rádio, terei que ir pessoalmente
ao mar... Dou-lhe cinco minutos.
— Asseguro-lhe que foi um acidente... — murmurou
Fasham. — Não pretendíamos fazer o que está pensando.
Apenas desejávamos o aparelho...
— Está mentindo.
— Não. Ele não está mentindo — disse Omar Al Rami.
— Tudo foi um erro meu.
— Erro? Que espécie de erro?
— Queria atacar os barcos americanos, não o pesqueiro
russo.
— E diz isso tão tranquilamente... Diz isso a mim, uma
espiã americana! Está doido, Omar?
— Odeio os americanos. Eis tudo. Pareceu-me oportuno
utilizar o “Telemorte” para dar-lhes um susto. E, ao mesmo
tempo, experimentava o aparelho.
— Sua “experiência” podia ter custado a vida de muitos
homens...
— Simples pescadores russos.
— Homens. Pessoas, Omar. Quatorze pescadores que
ganhavam a vida honestamente foram vitimados pela
explosão. Você é um agente secreto egípcio?
— Sou.
— Nesse caso, conhece as regras do jogo. E talvez saiba
como “Baby” as aplica com seres como você, ou como o
traidor Basili Nerguyev. No momento, Omar, já sei tudo o
que concerne a este assunto. Pergunto-me se haverá motivos
pelos quais eu não deva matá-lo. Ocorre-lhe algum?
— Não.
— Reconheço sua integridade e, neste sentido, você
merece minha admiração. Quanto ao mais, e com toda
isenção de minha parte, lhe direi que o condeno à morte.
Plop.
A minúscula bala disparada por Brigitte cravou-se na
nuca de Omar Al Rami, impelindo-o um pouco para a frente,
mas sem impedir que continuasse sentado em posição correta
— Coronel, não faça!
Porém o coronel Fasham não quis atender à advertência
da mais perigosa espiã do mundo. Ou talvez tivesse
calculado mal suas possibilidades, pensando que após
disparar uma vez a jovem loura do assento traseiro perderia o
controle por uns segundos, sob a impressão do assassinato
que vinha de cometer. Era evidente que o militar egípcio não
tinha uma noção muito exata da personalidade de “Baby”.
E a última notícia que teve dela foi um balaço na fronte,
justamente quando se virava já empunhando a pistola que
sacara de sob a axila. Foi também ligeiramente sacudido e,
por fim, caiu de bruços sobre o volante.
Aborrecida com a insensatez daquele homem, Brigitte
saiu do carro, levando a maleta... e a pasta com os planos do
“Telemorte”.
***
Konstantin Mikavarian acabou de examinar os planos e
encolheu os ombros.
— Não entendo nem uma palavra disto.
— Nem eu — admitiu Brigitte. — Não é assunto nosso,
Konstantin.
— Bem... Parece-me uma tolice queimá-los. Olhe: você
pode ficar com os aparelhos de controle e os protótipos que
restam. E eu levo os planos para Moscou. Aceita, “Baby”?
— Não. Você não acha que já temos armas suficientes
para destruir-nos uns aos outros?
— Mas é um invento interessante e poderíamos...
— Ter outro sistema para matar?
— Não me parece inteligente destruir estes planos.
— Nem eu digo que seja inteligente. Apenas humano,
Konstantin.
— Você duvida da humanidade dos russos, não é assim?
— Não. Não é isso. Nós fizemos uma aliança, mas parece
que está chegando ao fim. Meu voto é a favor da incineração
destes planos. E o seu? De suas palavras depende que nos
separemos como amigos, ou não.
O russo hesitou ainda uns segundos. Por fim, lentamente,
sacou seu isqueiro e encostou a chama aos planos. Estes
ainda não se haviam consumido de todo, quando Johnny
desceu precipitadamente ao fundo da barcaça.
— Consegui! — anunciou. — Temos...! Que é isso?
— Os planos do “Telemorte” — explicou Brigitte.
— Mas por que os queimam? Estão loucos?
— Que há? — sorriu ironicamente Mikavarian. — Seu
amigo é menos humano que um russo, “Baby”?
— Meu amigo está surpreendido, simplesmente. Que foi
que conseguiu, Johnny? O rádio?
— Tudo! Dentro em pouco chegará aqui um rebocador,
com rádio, que nos levará para o norte. Convenci-os de que
sou russo.
— Bom! — exclamou Konstantin. — Mas continuamos
queimando estes planos ou não?
Johnny soltou uma praga e Brigitte riu.
Quinze minutos depois o rebocador retirava a barcaça do
cais. E enquanto Johnny atendia a estes detalhes, “Baby” e
Mikavarian manipulavam o rádio de bordo à procura da onda
de suas respectivas esquadra, que ambos conheciam muito
bem. O primeiro a falar, por indicação expressa de Brigitte,
foi o russo, que lançou um grito de alegria quando
finalmente conseguiu comunicar-se com seus compatriotas.
“Baby” acendeu um cigarro e deixou que o espião soviético
atuasse a seu gosto, dando instruções e prestando informes
sobre todo o ocorrido. Quando ele terminou estava com a
testa molhada de suor, mas sua expressão era de alegria, de
alívio.
— Conseguido! — exclamou. — Mandarão dois
helicópteros do porta-aviões. Num deles...
— Entendo o russo, Konstantin. E agradeço sua
delicadeza pedindo um helicóptero para mim. Deixa-me
experimentar agora?
***
Quase uma hora mais tarde, dois helicópteros,
procedentes do norte, sobrevoavam a barcaça e o rebocador.
Um deles era grande e teve que permanecer suspenso,
enquanto o manietado Basili Nerguyev e os três que tinham
manejado os controles do “Telemorte” eram colocados a
bordo. O outro era tão pequeno e leve que pôde pousar na
coberta da barcaça. O rebocador foi dispensado por
Mikavarian e Johnny subiu ao aparelho pequeno, olhando de
soslaio o piloto russo, que não entendia nada de nada, mas
conhecia perfeitamente suas ordens de transportar pessoal
americano a um dos destroieres cercados.
Por fim, já distanciado o rebocador e suspenso o
helicóptero grande sobre a barcaça, na coberta desta só
restavam Mikavarian e “Baby”.
— Colocamos a carga de plástico? — perguntou sorrindo
o russo.
Ela assentiu, sorrindo também.
Minutos após, uma das pequenas, mas poderosas cargas
de explosivo que sempre existiam na maletinha famosa
estava fixada aos controles do “Telemorte”, com o
detonador-receptor pronto para funcionar.
Voltaram os dois à cobertura e ergueram a cabeça para o
helicóptero grande, cujo piloto novamente manobrou para
descer.
— Bem... — disse o russo. — Parece que tudo terminou.
— E satisfatoriamente. Ou não, Konstantin?
— Não esqueça de acionar o emissor para explodir a
barcaça.
— Tenho boa memória. Algo mais? Algo que eu possa
fazer, Konstantin?
— Creio que não... Se todos os espiões fossem como
você, nossa vida seria bem mais simples.
— Fiz um curso especial de public relations. E nele
aprendi que ninguém é bom de todo, nem de todo mau. Eu
mesma, por exemplo, posso matar friamente um homem com
uma bala na nuca e em seguida confiar num agente da MVD.
Entende?
— Sim. Você disse public relations? Pois também quero
fazer um desses cursos, embora compreenda que seus
conhecimentos sobre a matéria excedam aquilo que se pode
aprender estudando.
— Você é muito perspicaz, Konstantin. Com efeito, de
nada servirá esse curso a quem não tenha compreendido por
si mesmo que a bondade e a cordialidade são o que há de
melhor na vida.
— Ainda assim, penso que farei meu curso de public
relations tão logo regresse à Rússia.
— Ótimo! — riu Brigitte. — Na próxima vez em que nos
enfrentarmos, trocaremos toda uma série de cortesias... antes
de disparar o primeiro tiro.
— Neste caso — riu Mikavarian —, será melhor que não
nos tornemos a ver... Você é mesmo loura?
— Sou — disse ela e, vendo-o hesitar: — Como se atreve
a me estender a mão?
— Talvez isso não fosse bem interpretado...
O helicóptero grande aguardava, quase tocando a coberta.
“Baby” estendeu a mão ao russo, que a apertou sorrindo
timidamente. Depois ele subiu ao helicóptero e este logo
ganhou altura. Ela por sua vez entrou no outro, que também
se elevou. A barcaça ficou abandonada, balançando sobre as
ondas.
E poucos segundos depois, de seu helicóptero, Konstantin
Mikavarian via a barcaça transformar-se numa bola de fogo,
antes de desaparecer rapidamente no negror do mar. Olhou
depois para o helicóptero pequeno, com um estranho sorriso.
Realmente, sempre se aprende algo na vida. Mesmo sendo
espião.
E no pequeno helicóptero, Brigitte e Johnny conversavam
animadamente em inglês sobre sua breve chegada a um dos
barcos americanos.
— Teremos que nos pendurar na escadinha, mas já estão
avisados e, naturalmente, preparados para receber-nos.
— Eu desembarcarei em Istambul, para regressar a Varna
e concluir o assunto da retirada de Bob Sterling. Gostarei de
saber como os russos explicarão o ocorrido.
— Isso é com eles. Certamente deixarão passar nossos
barcos, que devem ter pressa em sair do Mar Negro... por
esta vez. Nada de abusar e excitar os ânimos... Aí os temos!
Muito perto, distinguiram luzes sobre o mar. Um círculo
de luzes possantes, rodeando os destroieres americanos. A
direita, o molhe iluminado do gigantesco porta-aviões
soviético. Quando estavam já descendo sobre um dos barcos,
viram justo a este uma grande lancha branca, para a qual
algo estava sendo arriado.
— Os pescadores russos... — murmurou “Baby”.
— Devem sentir-se felizes, creio.
— Pois eu não me sentirei feliz até que os russos nos
deixem sair do cerco... Há mais de uma dúzia de navios, que
nos arrasariam em poucos minutos.
— Esperemos que não o façam. Agora já sabem a
verdade e Mikavarian os informará suplementarmente dentro
em pouco.
— A respeito desse russo... Foi minha vista ou você
apertou-lhe a mão?
— Não foi sua vista, Johnny.
— E por que apertar a mão de um agente da MVD?
— Public relations... — sorriu “Baby”. — E não me diga
que minhas relações públicas deram maus resultados.
***
Ao amanhecer seguinte, os dois destroieres americanos,
tranquilamente, cruzavam o Canal do Bósforo, rumo ao
Mediterrâneo.
Ali, no Mar Negro, graças à astúcia, à perícia e ao
extraordinário savoir faire da melhor espiã de todos os
tempos, não havia acontecido nada. Nada.

A PRESSÃO ARTERIAL DO TIO CHARLIE


— Queimou? — grunhiu Pitzer. — Você queimou os
planos, destruiu os protótipos...! Como quer que eu explique
isso à Central? Conseguiu ter em suas mãos os planos de
uma arma nova, os protótipos já construídos, tudo... e os
destrói! Como explico isso ao Conselho?
— Com este microfilme — sorriu Brigitte. — Você é tão
nervoso, tão excitável, que não deixa as pessoas acabarem de
falar. Parece que sua pressão arterial está subindo, como a de
Miky Grogan. Deve cuidar-se, tio Charlie... Que seria de
mim sem você?
Charles Pitzer nem a ouvia agora. Estava abrindo a
pequena cápsula de plástico e lançou um grito de alegria ao
ver surgir o diminuto microfilme.
— Como conseguiu este microfilme? Não me disse que o
russo chamado Mikavarian estava com você e que...?
— Estava comigo quando queimamos os planos originais,
mas não no carro, quando, depois de matar o coronel Fasham
e o tal Omar, microfotografei-os com meu isqueiro antes de
voltar à barcaça.
— Com todos os diabos...! — Pitzer lançou uma
gargalhada tremulante de alegria. — Você é prodigiosa,
querida!
— Miss Montfort — apareceu Peggy no living, sorrindo:
— as maletas já estão prontas e confirmei a reserva de sua
passagem para Madri.
— Obrigada, Peggy.
— Madri? — voltou Pitzer, junto à janela, a ponto de
olhar contra a luz o microfilme. — Que vai você fazer em
Madri?
— Conseguir transporte para Torremolinos, onde alguém
me espera. — Passarei dois ou três dias estupendos, deitada
ao sol, com boa companhia e bom vinho. Olé, Málaga!
Pitzer encolheu os ombros, sorrindo, e finalmente
examinou o microfilme. E seu sorriso desapareceu, seu rosto
ficou branco, seus olhos quase saltaram das órbitas...
— Este microfilme está velado! — disse com voz
patética. — Não há nada nele, está velado, negro...!
— Velado, um microfilme de “Baby”? — pareceu
surpreender-se ela. — Ora vamos, tio Charlie, isso é
impossível. Deixe-me ver... — tomou-lhe o microfilme,
olhou-o a contraluz e sua expressão tornou-se de puro
assombro. — Oh, é verdade! Semelhante coisa nunca me
aconteceu... E agora, adeus, tio Charlie, que eu vou a
Torremolinos apanhar sol e beber vinho... Olé, Málaga!
A SEGUIR:

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