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KANT: METAFÍSICA E POLÍTICA

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EDITORA DA UFBA FUNDAÇÃO EDITORA UNESP

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Flávia M. Garcia Rosa José Carlos Souza Trindade

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José Castilho Marques Neto

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Daniel Tourinho Peres

KANT: METAFÍSICA E POLÍTICA

EDUFBA - UNESP
Salvador-Ba
2004

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©2004 by Daniel Tourinho Peres
Direitos para esta edição cedidos à Editora da
Universidade Federal da Bahia.
Feito o depósito legal.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, a não ser
com a permissão escrita do autor e da editora, conforme a Lei nº 9610 de 19 de fevereiro de 1998.

Revisão
do autor

Projeto capa e miolo


Angela Garcia Rosa

Ilustração da capa
“Dois jogadores de cartas”, Cézanne, 1892-93

Biblioteca Central - UFBA


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Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado da Bahia

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para URANIA e FERNANDO
para ROSA e PAULA

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS 9

INTRODUÇÃO 11

MUNDO INTELIGÍVEL E PRÁXIS: A FACULDADE DE JULGAR


ENTRE O INTELIGÍVEL E O EMPÍRICO 21
Juízo, Síntese e Sistema 25
Juízo Prático e Forma da Sociabilidade 39
A Passagem para o Direito 54
Do Direito aos Direitos 61

DETERMINAÇÃO E LIMITES DA PROPRIEDADE 75


O Estado da Questão 76
Estado de Natureza e Estado Civil: ainda às voltas com
a tese modal 81
Posse Inteligível, Posse Empírica e Aquisição 84
A Posse Ideal e o Postulado Jurídico como Juízo Sintético a priori 89
Síntese Intelectual e Síntese Empírica: a razão prática e o empírico 95

A POLÍTICA NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO 109


Teoria e Prática da Política 112
A Esfera Pública como Passagem 123
Opinião Pública e Propriedade 130
Da Idéia de República à Democracia Representativa 139

CONSIDERAÇÕES FINAIS 155

BIBLIOGRAFIA CITADA 161

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AGRADECIMENTOS

Este livro é o resultado, com poucas modificações, de minha


tese de doutorado (Lógica, Metafísica e Política em Kant – um estudo sobre
a faculdade de julgar prática), apresentada ao Departamento de Filosofia
da Universidade de São Paulo, no ano de 2002. Agradeço muito ao
Prof. Dr. José Arthur Giannotti por ter, com sua amizade generosa e
orientação rica e cuidadosa, reforçado em mim certas obsessões e in-
cutido outras. Agradeço também aos Profs. Drs. Maria Lúcia Cacciola,
Valério Rohden, Tércio Sampaio Ferraz Junior e Ricardo Ribeiro Terra
pela atenção que concederam ao meu trabalho. Espero ter consegui-
do incorporar algumas de suas sugestões. No Departamento de Filo-
sofia da USP, gostaria de agradecer ainda a Maria Helena Barbosa e
Marie Pedroso.
Durante meu período em São Paulo encontrei no Grupo de Ló-
gica e Filosofia Política do CEBRAP e no Grupo de Estudos sobre a
Filosofia Alemã do Departamento de Filosofia da USP um espaço
para discussão franca e rigorosa. Além disso, Maria Lúcia me acolheu
com carinho no seu seminário sobre a Crítica do Juízo, e Ricardo Terra
e Marcos Nobre me convidaram para participar, também no CEBRAP,
do “Grupo Temático Fapesp: Moral, Direito e Democracia – um es-
tudo sobre obra de Jürgen Habermas”, onde pude apresentar resulta-
dos parciais do que agora se transformou em livro.
Conforme o trabalho foi sendo feito, partes foram apresentadas
em seminários, colóquios e congressos. Agradeço todas as observa-
ções que me foram feitas por amigos e colegas, em especial a Carlos
Nelson Coutinho, Denilson Werle, José Rodrigo Rodrigues, Luciano

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Codato, Luís Nascimento, Luiz Repa, Márcio Sattin, Marcos Nobre,
Maurício Keinert, Paulo Licht dos Santos, Rosa Gabriella de Castro
Gonçalves, Soraya Nour, Vinícius de Figueiredo, e também a Maria
Fernanda, Moacyr Novaes, José Carlos Estevão, Marisa Lopes, Fernão
Sales e Pedro Paulo Pimenta.
O Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia
me liberou por um período de quatro anos para que o doutorado
fosse feito. Agradeço a essa instituição, assim como a todos os colegas
de Departamento, em especial ao amigo João Carlos Salles Pires da
Silva, a oportunidade que me foi concedida.
Para a pesquisa, contei com o Apoio da Capes, Programa PICDT.
Gostaria de estender tal agradecimento ainda a FAPESB (PRODOC:
CADCT/UFBA) e ao CNPq, que financiam a continuidade de meus
trabalhos.
Este livro é dedicado a meus pais, Urania e Fernando, cujo apoio
e incentivo são constantes, e a Rosa e Paula, minha mulher e minha
filha, que a cada dia me conquistam mais e mais e fazem com que
tudo valha a pena.

Salvador, 12 de Setembro de 2004

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INTRODUÇÃO

A filosofia prática de Kant sempre despertou suspeita. Aquela


que mais fama angariou para si tem sua origem, salvo engano, em
Hegel: a moral kantiana não passa de um formalismo vazio, tautológico,
incapaz de fazer frente a todo particularismo em que recai a razão que
visa de modo imediato o universal. Com sua filosofia do direito a
situação é ainda mais grave – para Schopenhauer ela não passa de uma
obra que revela uma mente já cansada pela idade; além do mais, dá
mostra de uma paixão cega pela simetria e, por aí, descamba no
dogmatismo. Mas, é preciso convir, a crítica ao suposto formalismo
vazio é aquela que tem mais peso e influência. Crítica que, contudo,
escamoteia todo o esforço de Kant em construir passagens – seja entre
razão teórica e razão prática, seja no interior de cada um desses domí-
nios1 . Deixando de lado a questão da alegada senilidade de Kant, a
segunda crítica que lhe dirige Schopenhauer bem que está próxima
da crítica hegeliana, uma vez que a paixão pela simetria é apenas apego
ao formalismo, isto é, à idéia de sistema – se há princípios sintéticos a
priori para a razão teórica, então tem de haver, custe o que custar, também
para a razão prática.
Aqui se tem como pano de fundo para esta breve introdução es-
sas duas objeções irmãs2 . Trata-se então de analisar, no interior do
sistema, no cruzamento de lógica, metafísica e política, o formalismo
jurídico-político kantiano, mas justamente para mostrar que ele não
se encontra indefeso frente a qualquer positividade e particularidade
que se lhe apresente, mas vai navegando entre Cila e Caríbide. É o
que já se via, desde o final dos anos de 1760, na reflexão 6634, por

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exemplo: “O princípio de Huchetson é não-filosófico, [primeiro]
porque ele apresenta um novo sentimento como fundamento de ex-
plicação; segundo, porque vê nas leis da sensibilidade fundamentos
objetivos. O princípio de Wolff é não-filosófico, pois ele faz, de pro-
posições vazias, princípios, e faz conhecer o abstractum de todos os
qvasitis antes do fundamento de conhecimento do qvasitis. Como se
quisesse buscar o fundamento da fome no desejo de felicidade.” (XIX,
120). Leva-se então a sério a idéia de sistema, ainda que não se vá
analisá-lo em sua completitude. O que importa destacar é que tal idéia,
na medida em que resulta da forma (lógica) da própria razão, acaba
por exigir a unidade de razão teórica e razão prática, ou melhor, dos
usos teóricos e práticos da razão, ela que governa nossos conheci-
mentos em geral (KrV, B 860). É preciso porém acrescentar: ela go-
verna os conhecimentos em geral, mas também as ações, isto é, a práxis
- daí ela ser, por outro lado, prática (e isso, diga-se logo de passagem,
como razão pura). Ou seja, tanto os objetos do conhecimento quanto
as ações estão ambos subordinados às funções lógicas da razão, funda-
mento objetivo da gênese das categorias teóricas, mas também das
categorias práticas, ou seja, das unidades discursivas fundadoras de
toda a objetividade. Pois uma categoria, seja ela teórica ou prática, na
medida em que é um conceito, é uma unidade discursiva.
Se a relação, que Kant explora como fio condutor na primeira
Crítica, entre tábua lógica dos juízos e tábua das categorias, entre fun-
ções de unidade dos juízos e categorias do entendimento, ou seja,
entre lógica formal e lógica transcendental, sempre gerou, para sorte
da filosofia, mais controvérsia que consenso, o que dizer da tábua das
categorias práticas! Se as categorias teóricas contam ainda, para sua
compreensão, com duas versões da Dedução Transcendental, todo o de-
senvolvimento da Analítica dos Princípios, e mesmo com o Esquematismo,
com relação às categorias práticas Kant é de um laconismo poucas
vezes visto: “Nada mais aqui acrescento para explicar o quadro pre-
sente porque ele é por si mesmo bastante compreensível” (KpV, V, 67
– T. 81). Ele informa que a liberdade pode ser considerada como uma

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causalidade cujo fundamento se encontra fora do mundo sensível;
que são as categorias modais que fazem a passagem dos princípios
práticos gerais para a moralidade, e diz ainda por onde se deve come-
çar em investigações que têm por objeto a práxis. Algo diferente do
que ocorreu com a filosofia teórica, a tábua das categorias da liberda-
de não ocupou tanto assim os estudos kantianos. Salvo juízo em con-
trário, está para ser escrito um comentário que dê conta desse mo-
mento da segunda Crítica. Com relação às categorias jurídicas a situa-
ção ainda é mais inquietante. Nos Trabalhos prévios à Doutrina do Direito
Kant desenvolve o esboço de umas tantas tábuas, mas quando o texto
é publicado encontra-se apenas uma alusão a um de seus momentos:
“os objetos do meu arbítrio podem ser apenas três” e isso “segundo as
categorias da substância, causalidade e comunidade entre mim e o
objeto externo, a partir das leis da liberdade” (MdS. VI, 247)3.
Isso significa, então, que Schopenhauer tem razão em sua de-
núncia de apego à simetria? A aposta que se faz aqui diz que não.
O título deste trabalho, Kant: Metafísica e Política, se tem algo de pre-
tensioso, não se constitui em um blefe infundado. Na verdade as car-
tas já estão em parte abertas, pois se trata de um estudo sobre a facul-
dade de julgar prática. De certo modo, o que se pretende é estabelecer
ao menos um esboço de dedução metafísica dos conceitos jurídicos-po-
líticos puros. Projeto que não é de forma alguma estranho às inten-
ções de Kant, ainda que ele não o tenha realizado explicitamente na
forma de uma dedução – pensada em termos kantianos, bem enten-
dido. Assim, de forma alguma se quer afirmar uma intenção profun-
da da filosofia crítica, algo como um espírito que impõe correções à
sua letra, muito pelo contrário. “Há muito que se deseja – e não se
sabe quando, mas talvez um dia se cumpra esta aspiração – poder en-
contrar, por fim, em vez da infinita multiplicidade das leis civis, os
princípios dessas leis; só aí poderá residir o segredo de simplificar,
como se diz, a legislação. Mas as leis são aqui apenas limitações da
nossa liberdade que a restringe às condições que permitem a ela estar
de acordo integralmente consigo mesma; referem-se, pois, a algo que

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é inteiramente de nossa própria obra e de que podemos ser a causa
por intermédio desses conceitos” (KrV. B 358). Ora, o direito racional
é aquele que, para Kant, deve estar no fundamento de toda legislação
civil e nessa medida ele é, justamente, o conceito integrativo de todos
os princípios das diversas legislações civis e de suas reformas. Mas o
direito racional, como instância normativa às legislações positivas de-
rivada da forma da razão, precisa ainda de uma passagem. Como Kant
escreve na Doutrina do Direito, “todo Estado contém em si três pode-
res, quer dizer, a vontade universalmente unificada em uma tripla pes-
soa (trias politica): o poder soberano (soberania) na pessoa do legislador, o
poder executivo na pessoa do governo (em conformidade com a lei) e o
poder judiciário (como capacidade de atribuir a cada um o que é seu a
partir da lei) na pessoa do juiz, idênticos [gleich] às três proposições de
um silogismo prático: a premissa maior, que contém a lei de tal von-
tade, a premissa menor, que contém o mandamento de proceder se-
gundo a lei, isto é, o princípio da subsunção sob ela, e a conclusão,
que contem a sentença judicial quanto ao que é de direito no caso em
pauta” (MdS, VI, 312). Mas se então os três poderes do estado pare-
cem ser “derivados” da forma do silogismo, por outro lado o silogismo
tem a forma de um juízo, pois em primeiro lugar, as formas dos
silogismos são tantas como as formas do juízo conforme exprimam
uma categoria de relação (KrV B 361); não bastasse isso, tem-se ainda
a seguinte passagem da primeira crítica: “a razão, no seu uso lógico,
procura a condição geral do seu juízo (da conclusão) e o silogismo da
razão não é, ele mesmo, mais do que um juízo [obtido] por meio da
subsunção da sua condição numa regra geral...” (KrV. B 364). De modo
semelhante, mais adiante: “A função da razão em suas inferências con-
siste na universalidade do conhecimento por conceitos, e o próprio
silogismo é um juízo determinado a priori em toda a extensão de sua
condição” (KrV. B 378).
Mas buscar uma dedução metafísica de nada adiantaria, se não
fosse igualmente encontrada uma “dedução transcendental”, quando
então o uso da razão não é lógico e expresso na forma do silogismo,

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mas sim transcendental, isto é, expresso na forma juízo. Na segunda
Crítica, após a tábua das categorias da liberdade, Kant se ocupa da típi-
ca, isto é, do “esquematismo” da razão prática, ou melhor, da faculda-
de de julgar prática. A rigor, é na típica que se encerra a dedução
transcendental, tantas vezes procurada no faktum da razão. Pois é ela
que torna imanente o uso dos conceitos práticos. Ora, o fio condutor
que será perseguido aqui trata justamente de analisar a faculdade de
julgar em seu exercício, faculdade que faz a passagem do transcendental
(inteligível) ao empírico (sensível). Mesmo não chegando propria-
mente à gênese de todos os conceitos práticos puros, acredita-se, con-
tudo, que se conseguiu demonstrar ao menos duas coisas: (a) que
Kant pensou tais passagens como parte constitutiva do sistema da prá-
tica, e não como um mero apêndice ou agregado e (b) o modo como
ela se dá via reflexão, isto é, via juízo reflexionante, ou seja, por meio
do juízo que parte do caso em direção à regra, regra da qual ele já está
de posse, porque a priori, ainda que ela só se torne clara em sua aplica-
ção, ou seja, por meio de uma análise que parte do contexto de aplica-
ção. Ora, tal reflexão cuida justamente de tornar claras as determina-
ções que são exigidas pela razão, mas que empiricamente, isto é, his-
toricamente, têm uma realização apenas precária. A racionalidade prá-
tica, em seu âmbito jurídico-político, é então esse vai e vem entre
instituições jurídicas históricas e seu correspondente inteligível, isto
é, entre ser e dever-ser. Desse modo ela não resulta em um formalismo
vazio; mas também não é, de modo algum, uma racionalidade subs-
tantiva, nem tampouco aposta cega no empirismo. Além disso, de
modo algum Kant pode ser acusado de ecletismo, ao tomar ora um
princípio material, ora um princípio formal. Se ele distingue entre
matéria e forma, como de resto já fazia a tradição, sua novidade con-
siste justamente em dar o primado à ultima, vinculando-a, além dis-
so, ao sujeito transcendental e à sua legalidade, que passam então a
comandar a formação de esquemas, isto é, de representações que, pró-
ximas da sensibilidade, acabam por representar os conceitos puros,
ou seja, apresentam para tais conceitos seus objetos.

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Uma coisa, porém, deve se ter sempre diante dos olhos: se ambas
as faculdades de julgar, teórica e prática, fazem um movimento que vai
do discursivo ao sensível, ou seja, dos conceitos até à sensibilidade, tra-
ta-se de um movimento análogo, ou seja, um movimento que, a des-
peito de sua semelhança, guarda diferenças que não podem ser despre-
zadas. Pois se as categorias teóricas sintetizam um múltiplo que é dado
na intuição sensível, as categorias da razão pura prática sintetizam um
múltiplo que é dado no nível do entendimento – e só então se irá bus-
car a passagem para a sensibilidade, isto é, para o sentimento de respei-
to. Como aqui se trata antes de tudo da razão jurídico-política, pode-se
deixar de lado essa última passagem, relativa ao sentimento de respeito,
na media em que a legislação jurídica deixa de lado a âmbito da inten-
ção. Algo relevante, porém, será uma análise, mesmo breve, do senti-
mento provocado pela Revolução Francesa. De todo modo, porém, éti-
ca e direito estão marcados pela tensão entre transcendência dos princí-
pios puros e imanência da formação de seus esquemas - isto é, de suas
apresentações sensíveis - em relação à práxis. Silber insiste nesse aspec-
to da filosofia prática de Kant, mais exatamente em relação ao problema
da realização do bem soberano como tarefa moral4 . Aqui, transpõe-se
tal problemática para o âmbito jurídico-político.
Parte-se então de uma análise mais geral do juízo e da faculdade
de julgar prática em seu exercício, até se chegar ao direito propria-
mente dito, ainda no primeiro capítulo. Tendo agora o direito em
vista (segundo capítulo), a análise se concentra no problema da de-
terminação da propriedade particular que, como posse empírica, é
“esquema” da posse inteligível. Ou seja, procura-se mostrar como o
conceito de posse inteligível, unidade discursiva, vai se inscrevendo
no real. A determinação da propriedade é, por excelência, o problema
da política, porquanto é a pretensão a uma posse jurídica (direito pri-
vado) que obriga à formação e instituição de um estado civil, isto é,
estado de justiça distributiva legislando quanto ao meu e teu jurídi-
cos. Mas isso não significa que se compartilha da leitura liberal-con-
servadora que muitos realizam de Kant. Bobbio é o melhor exemplo

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de tal leitura, ao afirmar que, para a filosofia jurídico-política de Kant,
não é a liberdade como autonomia que realmente importa, e sim a
liberdade negativa, liberdade como não-impedimento5 . Essa se ex-
primiria justamente no direito privado, insulado de toda interferência
do direito político. Mas o problema da propriedade tem destaque en-
tão por duas razões: primeiro porque, mesmo que ela seja “condição”
para a autonomia dos indivíduos, ela não deixa de ameaçar tal autono-
mia; segundo, porque no “Direito privado”, ao menos nos textos pre-
paratórios para o que depois será publicado, Kant faz uma ampla aná-
lise sobre a relação entre os conceitos jurídicos e seus esquemas.
A análise irá se concentrar, depois, em alguns elementos do di-
reito político e da política propriamente ditos (terceiro capítulo). E aí
se tem, mais uma vez, o movimento que vai dos conceitos puros da
razão, isto é, das idéias, aos seus esquemas, ou melhor, à simbolização
de tais idéias. Pois toda instituição jurídico-política historicamente
construída é momento de realização da idéia república, isto é, da re-
pública noumenon. Assim, a política como doutrina do direito posta
em prática6 é aquela atividade que, a um só tempo reflexionante e
determinante, caminha no sentido da correção de todas as pretensões
jurídicas historicamente constituídas, ou seja, atividade de positivação
da razão mas que, por conter em si um momento de negatividade, se
sabe sempre precária.
Ora, a lógica transcendental não é, em uma de suas caracteriza-
ções possíveis, a lógica da verdade (KrV, B 87)? Não é ela que instaura
a possibilidade da verdade ou falsidade, e isso na medida em que ela
contém as condições da validade objetiva dos juízos? Se assim é, ela
ainda precisa, contudo, ser seguida de uma “lógica prática”, quando
então os diversos juízos são confrontados não apenas com a experiên-
cia, mas também com os juízos dos demais. O mesmo vale para os
juízos práticos, quando então a primeira seria vista como contendo as
condições de validade objetiva dos juízos práticos, isto é, a possibili-
dade deles serem ditos justos ou injustos. Já a “lógica prática” teria,
neste último caso, no uso público da razão, no exercício público da

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faculdade de julgar, a única pedra de toque da “verdade” dos juízos
práticos. É nesse sentido, por exemplo, que a opinião do povo pode
ser tida como fundamento subjetivo da determinação da proprieda-
de, pois o fundamento objetivo resta sendo o conceito de uma posse
simplesmente jurídica, e que um sistema de propriedade deve ser al-
terado conforme se altere a opinião que o sustenta. Na verdade, essa
opinião comum dá mostra de um acordo mais profundo, acordo que
se apresenta no nível dos juízos, e não apenas quanto à adesão, ou ao
assentimento, que se concede ao juízo. A formação de uma opinião
pública esclarecida é portanto solidária com a boa formação de juízos,
isto é, das decisões que são tomadas a partir de juízos bem formados.
No final pode-se até afirmar que é um Kant pouco ortodoxo este
que se desenha aqui, bem distante de qualquer hiper-racionalismo.
Um Kant que abandona o ar rarefeito do a priori para se imiscuir na
zona incerta das opiniões. Mas afinal, entre um ou outro Kant, quem
possui a régua que deveria supostamente medir qual o mais fiel?

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NOTAS
1
Para uma leitura que insiste na construção das passagens, ver Ricardo Ribeiro
Terra, Passagens – Estudos sobre a filosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003.
2
O modo como Kant enfrenta tais questões, mas no período que vai de 1762 a
1772, em verdade mais vinculado ao problema da virtude do que ao problema jurí-
dico, é analisado por Figueiredo, Vinícius B. de. 1762-1772 – Estudo sobre a relação
entre método, teoria e prática na gênese da crítica kantiana. Tese de Doutoramento, São
Paulo, FFLCH-USP, 1998, em especial Capítulo 3.
3
Para uma tentativa de sistematização dessas tábuas, ver Monika Sänger, Die
kategoriale Systematik in den ‘Metaphysichen Anfangsgründen der Rechtslehre’ – Ein Beitrag
zur Methodenlehre Kants, Berlim, Walter de Gruyter, 1982, 197 a 241.
4
Silber, J. “Der Schematismus der praktischen Vernunft” in Kant-Studien 56, 1966.
5
Cf. Bobbio, N. “Kant e as duas liberdades” in _______, Ensaios escolhidos, trad.
Sérgio Bath, São Paulo, Chardim, s/d, p. 21 a 34.
6
A solução da difícil tradução de ausübende Rechtslehre por “doutrina do direito posta
em prática” foi proposta por Cruz, J. H. B. Autonomia e Obediência: o problema do
direito de resistência na filosofia moral e política de Immanuel Kant, Tese de Doutoramento,
São Paulo, FFLCH-USP, 2004.

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MUNDO INTELIGÍVEL E PRÁXIS:
A FACULDADE DE JULGAR ENTRE
O INTELIGÍVEL E O EMPÍRICO

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Na filosofia prática de Kant, o conceito de mundo
inteligível responde, antes de tudo, a uma exigência
normativa. É ele que deixa entrever uma nova ordem
(prático-racional), à qual o mundo moral, como mun-
do humano, ou da ação, deve estar submetido. O sis-
tema de Kant, porém, não se contenta em afirmar tal
normatividade; aponta, também, para o seu modo de
realização, ainda que esta última resulte sempre pre-
cária. Destarte, a alternativa entre formalismo vazio,
tautológico, ou terrorismo da vontade pura, caminhos
que aparentam ser os únicos possíveis para quem de-
nuncia o normativismo supostamente excessivo de
Kant, se mostra no fim das contas má leitura, de resto
perdoável apenas ao se levar em conta que uma má
leitura nem sempre significa equívoco ou cegueira fi-
losófica. Pode-se dizer tudo de Hegel, menos que sua
leitura seja sinal de tibiez, ou resultado de uma posi-
ção filosófica atoleimada – o que também vale para
Schopenhauer. Simplesmente é um outro ponto de
vista, uma outra perspectiva filosófica. É claro que

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ela também tem seus custos, os quais, porém, não cabe analisar aqui.
Mas não deixa de ser no mínimo irônico que a filosofia política tenha
sofrido, ao menos dos anos setenta do século passado para cá, um
novo impulso, movimento que em grande medida é acompanhado
por uma reivindicação crescentede pertença à família kantiana1 . E o
que se quer dividir e apropriar de um tal espólio é, justamente, o seu
formalismo. A grandeza da Kant está então em seu formalismo; sua
fraqueza, porém, no caráter monológico que ele atribui à lei moral,
ou seja: a lei moral não deixa entrever nenhuma dimensão de
intersubjetividade, e o sujeito prático-transcendental é antes de tudo
um solipsista, isto é, alguém que decide sozinho, a partir de uma ex-
periência em pensamento, quanto à validade universal da máxima da
sua ação. Para afastar tal objeção, não basta contudo afirmar que ela,
na compreensão que tem do sujeito moral kantiano como membro
de um mundo inteligível, acaba rompendo com uma cláusula restritiva
imposta pelo próprio Kant, a saber: nada transpor para o mundo inte-
ligível que dependa do empírico, mas apenas a “simples forma da con-
formidade a leis em geral” (KpV, V, 70 – T. 84), tal como expressa no
conceito de dever e na formulação do imperativo categórico. É preci-
so, isso sim, analisar até que ponto e em que dimensão a filosofia
prática kantiana permite, se é que não impõe, uma compreensão do
mundo inteligível como instância intersubjetiva – isto é, que se tece
entre sujeitos - e normativa de uma práxis social, (e, aqui no caso,
jurídico-política) sem de forma alguma perder de vista o sentido da
realização, em sociedade, da liberdade segundo leis universais2 . Antes
porém, cabe uma breve análise acerca da construção do sistema e do
modo Kant pensa a relação entre síntese e juízo. Como resultado des-
sa primeira parte, espera-se chegar a uma leitura do mundo inteligível
não apenas como instância normativa à práxis, isto é, à experiência da
liberdade. Certo, se por um lado o mundo inteligível resta, no limite,
transcendente, por outro lado Kant não deixou de considerar a pers-
pectiva de sua realização em um mundo etípico. Pois afirmar que a lei
moral, que a faculdade de julgar irá traduzir na forma do tipo, fornece

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“realidade objetiva, se bem que apenas prática, à razão”, significa afir-
mar que a lei moral “transforma o uso transcendente desta [da razão]
em um uso imanente” (KpV. V, 48 – T. 61)
Kant insiste, um bom número de vezes, na unidade entre razão
teórica e razão prática, de modo que toda diferença reside apenas em
seus usos. Outra tese kantiana, que parece ser aceita sem maiores pro-
blemas (ao menos por comentadores benevolentes), cuida de afirmar
que a razão pura é por si mesma prática. Como afirma Riedel, esta
última tese implica que deve haver uma faculdade de julgar pura prá-
tica3 . Essa implicação não deveria levantar contra si qualquer suspei-
ta, uma vez que uma análise da faculdade de julgar se encontra pre-
sente em um momento crucial da segunda Crítica, a saber, a “típica da
faculdade de julgar prática pura”. O que, porém, parece levantar con-
tra si um sem número de reservas, é uma outra conseqüência das
duas teses, desta vez formulada por Silber: “desde que há apenas uma
razão subjacente à variedade dos [seus] usos racionais, há do mesmo
modo apenas um processo racional ou judicante em uma variedade
de usos”, ou seja, “quer a faculdade de julgar opere em termos de
conceitos do entendimento, quer em termos de idéias da razão práti-
ca, o seu procedimento, a atividade da faculdade de julgar, é, em am-
bos os casos, essencialmente o mesmo”4 . Ora, como Kant escreve na
abertura de Teoria e Prática, “é evidente que entre teoria e prática exi-
ge-se ainda um intermediário formando a ligação e a passagem de
uma a outra, por mais completa que seja a teoria; pois ao conceito do
entendimento, que contém a regra, deve-se acrescentar um ato da
faculdade de julgar permitindo ao prático decidir se o caso recai ou
não sob a regra” (TP, VIII, 274 – T. 57).
Postos esses termos, uma análise da faculdade de julgar pode en-
tão ser vista como fazendo parte da problemática mais geral da
metafísica e que Kant formula, em carta de 1772 a Marcus Herz, na
seguinte questão: “sobre que fundamento repousa a relação entre aqui-
lo que chamamos em nós representação e o objeto” (X, 130); proble-
mática tanto mais misteriosa quando a representação é um conceito

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a priori, isto é, um conceito puro do entendimento, uma categoria.
A questão não se torna menos difícil quando a representação do objeto
é pensada como sua causa, isto é, segundo a legislação da liberdade, a
qual se exprime não em termos de conceitos puros do entendimento,
mas como idéias da razão prática. Mais ainda, como Kant afirma na
Fundamentação, apenas o homem, como ser racional, tem a faculdade
de agir segundo a representação de leis (Grund, IV, 412 – T. 47), às
quais devem estar submetidas as suas ações em vista de objetos, quan-
do então se decide da possibilidade de querer ou não a ação (KpV, V,
57 – T. 72). Aqui, porém, não se pretende dar conta, em sua inteireza,
da solução kantiana para o problema da metafísica, o que implicaria
uma análise não apenas da primeira Crítica, mas sim das três Criticas e,
no limite, de todo o sistema. Problemática mais modesta, trata-se ape-
nas de saber sobre que fundamento repousa a relação entre nossos
conceitos jurídicos a priori, por exemplo, o conceito de um meu e teu
externos em geral, e um objeto como propriedade particular, ou seja,
como se dá a passagem da universalidade do conceito, representação
discursiva, ou refletida, para a particularidade do caso. Isso porém vai
ficando mais claro a partir do que será tratado mais adiante, quando a
análise se concentrar de forma mais direta sobre o problema dos con-
ceitos jurídicos puros, esses que são, todos eles, “elementos metafísicos
do fundamento” da Doutrina do Direito5 . Por enquanto, cabe analisar a
operação da faculdade de julgar em seu uso prático, em larga medida
a partir de uma analogia com o seu uso teórico.
Neste primeiro capítulo deixa-se de lado, tanto quanto possível,
a distinção entre ética e direito - a qual só comparece de modo mais
efetivo no seu final -, pois o que está em jogo é a relação, no juízo,
entre conceitos práticos, isto é, entre representações prático-discursivas
(ou refletidas) e ação, ou melhor, entre conceitos puros práticos e ato
a partir da liberdade. Se for exato, como afirma Eric Weil, que Kant
não funda uma moral no sentido tradicional do termo, e sim um dis-
curso sobre a moral, o qual se pretende absolutamente válido para
todo ser dotado de razão 6 , é necessário pensar, por outro lado,

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a relação entre tal discurso e o conjunto dos sistemas de regras de
conduta para situações concretas, relação que irá se tecendo por meio
do exercício da faculdade de julgar.

Juízo, Síntese e Sistema

Todo juízo, não importa sua natureza, é uma ligação de conceitos


sob a unidade da consciência. Tal afirmação vale não apenas para juízos
sintéticos, mas também para juízos analíticos, nos quais, contudo, a
condição da predicação é dada de modo imediato pelo próprio sujeito
do juízo7 . Ou seja, a distinção entre juízos analíticos e sintéticos não
pertence à lógica, mas à lógica transcendental, na medida em que é
nela que está em causa o fundamento da ligação de conceitos presente
no juízo que se quer válido. Mas não é sobre este ponto que vale a
pena insistir, e sim quanto ao fato de que também os juízos práticos,
na medida em que são juízos, são ligações de conceitos, isto é, de
unidades discursivas, de sorte que eles estão igualmente incluídos
naquela ciência da simples forma do pensamento em geral, a que Kant
chama de Lógica. Ora, se a lógica cuida, então, da forma do pensamen-
to, isso significa que ela lida, na verdade, com as leis necessárias do
entendimento e da razão em geral (Logik. IX, 13) para a ligação de
conceitos em um juízo. Na Crítica da Razão Pura, será tarefa da dedu-
ção transcendental, momento da lógica transcendental, justamente de-
monstrar em que medida as funções de unidade lógicas são, ao mes-
mo tempo, funções de unidade da intuição e que se chamam concei-
tos puros do entendimento (KrV, B 105) para a determinação de um
objeto x como objeto de conhecimento. E aqui, onde a tábua lógica
dos juízos se mostra como fio condutor de uma tábua dos conceitos
puros do entendimento, isto é, das categorias, na determinação do
objeto de conhecimento, pode ser encontrada, mais uma vez,
a clivagem do sistema kantiano em seu plano mais geral, a saber,
a clivagem entre teoria e prática, entre filosofia teórica e filosofia prá-
tica. Pois a reflexão transcendental, ao investigar a possibilidade de

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juízos sintéticos a priori, cuida de, separando o joio do trigo, expor o
conteúdo transcendental que a faculdade de julgar em seu uso
cognitivo põe como condição a priori para a constituição da objetividade
teórica. Se há, então, um conteúdo transcendental que faz parte da
constituição do objeto como objeto de conhecimento, não será tam-
bém possível contar com um conteúdo transcendental prático, isto é,
com um conteúdo transcendental que entre na linha de montagem da
objetividade prática?
A primeira Crítica tem, no § 10, um de seus momentos cruciais.
Nele, Kant afirma a introdução de um conteúdo transcendental na
constituição da objetividade teórica: “O mesmo entendimento, pois,
e isso por meio dos mesmos atos pelos quais estatuiu nos conceitos,
mediante a unidade analítica, a forma lógica de um juízo, introduz
também, mediante a unidade sintética do múltiplo na intuição em
geral, um conteúdo transcendental nas suas representações do múlti-
plo” (KrV. B 105). Sem pretender dar conta de tudo que está em jogo
em tal passagem8 , cabe apenas afirmar que tal conteúdo transcendental
resulta da atividade que a faculdade de julgar, ou melhor, o entendi-
mento, exerce sobre o múltiplo dado na sensibilidade sob a forma do
espaço e do tempo. Se a matéria do fenômeno é dada segundo as for-
mas do espaço e do tempo, a síntese que se exerce sobre tal matéria e
a torna objeto de conhecimento dá-se conforme as formas lógicas do
juízo são postas em atividade produtora sob condição sensível. É a
partir de um tal exercício que as categorias têm sua aquisição originá-
ria9 , ou melhor, que o conteúdo transcendental é introduzido na re-
presentação do múltiplo como objeto de conhecimento, de forma que,
vista desta perspectiva, a representação pode ser dita conceito puro do
entendimento. Muito bem: não era tarefa da Dedução Transcendental
justamente mostrar a legitimidade do vínculo entre formas lógico-
discursivas e dado sensível, ou seja, entre conceito e intuição? Se for
esse o caso, quando se trata da razão prática Kant efetua uma guinada.
Pois, como afirma Kaulbach, ele “concede, para as categorias da liber-
dade, a prerrogativa de que o dado a que elas se devem referir,

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para que então possuam realidade objetiva, não se tem de esperar na
intuição sensível (...) O dado, que está no fundamento [da realidade
objetiva] das categorias práticas, encontra-se no pensamento; consis-
te na ‘forma de uma vontade pura’, que ela irá compreender como
‘algo’ aquilo que vem a ser dado na própria razão”10 . A síntese prática,
presente no juízo prático, não se dá então, nos mesmos termos da
síntese teórica, sob condição sensível, e sim sob a idéia de liberdade, a
qual transporta o sujeito agente para um contexto no qual ele decide
por uma ação e justifica o seu agir para a obtenção de um fim.
Se há, porém, um conteúdo prático transcendental, uma coisa pre-
cisa ser posta desde o início. Não há qualquer razão de tipo substancial na
filosofia de Kant, e se isso vale para a razão teórica, vale igualmente para a
razão prática. Se fosse o caso, não seria esta a melhor forma de defender
Kant dos ataques de Hegel, porquanto se estaria abrindo mão, na revolu-
ção copernicana em filosofia prática, da sua característica mais marcante,
a saber, o primado da forma sobre o conteúdo, o seu caráter
procedimental11 . Pois o conteúdo transcendental prático é em verdade a
forma pela qual a diversidade dos desejos é submetida “à unidade da consci-
ência de uma razão prática que ordena numa lei moral, ou de uma vonta-
de pura a priori” (KpV, V, 65 – T. 79), isto é, a forma do dever tal como
expressa em um imperativo categórico12 . Ora, o conceito do dever é en-
tão o primeiro conteúdo transcendental que a razão prática põe na deter-
minação de uma ação como necessária segundo leis da liberdade. E é este
conteúdo transcendental, forma da ligação de um múltiplo, que se apre-
senta como síntese, ou melhor: a lei moral só é um princípio sintético,
uma proposição prática sintética a priori, para um ser cuja vontade não se
deixa determinar necessariamente por ela, de modo que para Deus, ou
mesmo para qualquer outro ser racional que não seja finito, a lei não é
representada na forma de um imperativo, não se exprime como dever,
mas é, pelo contrário, uma proposição analítica que deriva do conceito de
uma vontade perfeita13 , ou seja, de uma vontade que não pode escolher
outra coisa a não ser aquilo que a razão prática lhe representa como bom,
isto é, como necessário (Grund. IV, 412 – T. 47).

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Afirmar, porém, que o conceito de dever é o primeiro conteúdo
que a razão prática impõe à determinação da ação não significa atri-
buir a ele, no domínio da razão prática, o mesmo estatuto que as cate-
gorias do entendimento possuem no domínio teórico da razão. A ri-
gor, quando se exprime o termo dever, trata-se muito mais de uma
idéia do que de um mero conceito, mesmo que por esse se entenda
um conceito puro do entendimento. Quanto a esse ponto, uma pas-
sagem da primeira Crítica é esclarecedora:
O conceito é empírico ou puro e ao conceito puro, na medida em que tem
origem no mero entendimento (não numa imagem pura da sensibilida-
de), chama-se noção (notio). Um conceito extraído de noções e que trans-
cende a possibilidade da experiência é a idéia ou conceito da razão. Quem
uma vez se habituar a esta distinção achará intolerável ouvir chamar idéia
a representação da cor vermelha, que nem sequer deverá chamar noção
(KrV, B 377).

Uma categoria do entendimento, apesar de ser um conceito puro,


não é uma idéia, e isso na medida em que tem sua origem a partir da
atividade legisladora e objetivante que o entendimento exerce sobre a
imaginação, atividade que resulta na formação de esquemas, sendo
esquema “a representação de um processo geral da imaginação para
dar a um conceito a sua imagem” (KrV, B 179). Uma idéia, por sua
vez, tem sua origem no mero entendimento; mais ainda, a ela não
corresponde nada na experiência. Ora, isso não pode significar, po-
rém, que se está a atribuir à idéia de dever, idéia prática, a mesma
função que se atribui às idéias no uso teórico da razão, a saber: uma
função meramente reguladora da experiência, e não determinante.
Tal não pode ser o caso, uma vez que o conceito de dever faz conhecer
–e exige - uma determinação da vontade pela razão pura prática. Ora,
essa determinação se faz conhecer por meio das categorias da liberda-
de, mas apenas quando o momento da modalidade é considerado pela
reflexão transcendental. Pois antes da introdução de tal momento, as
máximas apenas operam sobre conteúdos fornecidos pela faculdade

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de desejar, permanecendo indeterminada sua relação com a razão pura
prática em seu exercício (KpV, V, 67 – T. 80), ou seja, nada se decide
quanto à aptidão da máxima particular para uma legislação universal
da liberdade.
Uma vez dado este passo, que vai no sentido da análise dos con-
teúdos transcendentais que a faculdade de julgar revela em seu exer-
cício, já se está além da lógica, pois esta “trata das proposições práticas
quanto à forma, as quais se opõem nessa medida às teóricas” (Logik. IX,
110). E como o que importa aqui é analisar a origem do conceito de
dever no exercício da faculdade de julgar prática e na imposição de
sua forma à diversidade dos desejos sob uma consciência, tal análise é,
segundo texto da própria Lógica, tarefa da Metafísica (Logik, IX, 94),
com o que as proposições práticas se distinguem das especulativas
(Logik. IX, 110). Ora, na Fundamentação é possível ver Kant reafirmar
esse mesmo movimento:
A questão que se põe é portanto esta: É ou não é uma lei necessária para
todos os seres racionais a de julgar sempre as suas ações por máximas tais que
eles possam querer que devam servir de leis universais? Se essa lei existe,
então ela tem de estar já ligada (totalmente a priori) ao conceito de um ser
racional em geral. Mas para descobrir esta ligação é preciso, por bem que
nos custe, dar um passo além, isto é, para a metafísica, posto que para um
campo da metafísica que é distinto da filosofia especulativa, e que é a
metafísica dos costumes (Grund. IV, 426 – T. 66)14 .

Todo o progresso, então, na investigação acerca dos objetos da filo-


sofia prática vai no sentido da lenta construção do sistema da metafísica,
isto é, do “sistema de conceitos racionais puros, independentes de qual-
quer condição de intuição” (MdS. VI, 375). Mas antes de tal sistema ser
apresentado como o conceito integrativo15 (Inbegriff) de todas as leis da
razão pura prática e, mais ainda, como conceito integrativo de leis de-
terminando a priori deveres particulares, ou seja, na medida em que tal
sistema é o sistema das leis puras práticas em geral e dos deveres a elas
correspondentes, abstração feita de toda e qualquer determinação

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particular, abre-se a perspectiva, para a razão prática, de uma outra le-
gislação que não a legislação da natureza, a saber, a perspectiva de um
mundo inteligível e da legislação a ele correspondente.
Essa perspectiva se apresenta então na forma de um sistema da
razão, de um duplo sistema, a saber: o sistema da natureza e o sistema
da liberdade, conforme se tome a razão em seu uso teórico ou prático.
Mas como compreender tal sistema em sua completitude? Onde co-
meça e onde termina tal sistema16 ? O que importa ter presente é que
o sistema, se tomado como filosofia, é mais amplo do que um siste-
ma de conceitos racionais puros. A este respeito, uma passagem da
Doutrina da Virtude é lapidar:
Se há, para um objeto qualquer (irgend einen Gegenstand), uma filosofia (siste-
ma do conhecimento racional por conceitos), então tem de haver, para esta
filosofia, também um sistema de conceitos puros da razão, independentes de
toda condição de intuição, isto é, uma metafísica (MdS. VI, 375).

Reduzir, então, o sistema à metafísica, que dele é apenas parte inte-


grante, pode levar a duas conseqüências: confunde-se o empírico com o
racional, isto é, com o transcendental, ou afirma-se que a filosofia, ocupada
que estaria em pensar o pensamento, perde todo e qualquer vínculo com o
empírico. Kant denuncia e combate com vigor a primeira forma de equí-
voco, infeliz aliança entre empirismo e racionalismo dogmático. Por outro
lado, todo o seu esforço em construir passagens visa justamente evitar o
segundo equívoco17 . A primeira tarefa, porém, ainda que não seja a única,
é a mais urgente. Antes de tudo, deve-se “indicar (angeben) os princípios da
possibilidade” da razão prática em geral, “do seu âmbito e limites de um
modo completo, sem relação particular à natureza humana”, isto é: o filó-
sofo deve, antes de tudo, ocupar-se com o “sistema da crítica”, para que
possa, depois, apresentar o “sistema da ciência” (KpV. V, 8 – T. 17), sistema
da ciência que contém, além dos princípios puros, elementos também
empíricos. A filosofia prática de Kant, se reconhece seu lastro na Crítica da
Razão Prática, não se esgota nem se confunde com esta, a menos que se
queira tomar os alicerces pelo edifício que se quer habitar.

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“À crítica da razão prática devia suceder o sistema, a metafísica dos
costumes”, escreve Kant no Prefácio à Doutrina do Direito (MdS. VI, 205). Su-
cessão lógica, isto é, imposta pelas razões da filosofia crítica. Ora, esta mes-
ma “ordem de razões” se faz presente no Prefácio à segunda Crítica. Contu-
do, esta referência a uma ordem de razões não está aqui para indicar que se
busca chegar a um primeiro princípio, a uma primeira certeza, depois a
uma segunda e assim por diante. Do movimento da reflexão presente na
construção do sistema da liberdade, pode-se dizer que ele é circular; mas
não por isso ele deixa de ser virtuoso, na medida em que a cada volta não
mais se está no mesmo grau de objetividade. Na verdade, parece tratar-se
muito mais de um movimento em espiral do que propriamente circular.
A “divisão de todas as ciências práticas”, “com efeito, a determinação parti-
cular dos deveres, como deveres humanos, a fim de os dividir, só é possível
se antes o sujeito desta determinação (o homem) for conhecido segundo a
característica (Beschaffenheit) com que ele é realmente (wirklich)” (KpV. V, 8 –
T. 16). Mas como compreender este conhecimento do homem segundo as
características com que ele efetivamente é? Parece ser o caso de se tomar a
reflexão como partindo do homem tal qual existe empiricamente, para então
avaliar, dentre as suas condições de existência, quais delas só poderiam ter
origem na própria razão prática como razão pura. Em uma anotação posta
à margem do seu exemplar das Observações sobre o sentimento do belo e do subli-
me, Kant distingue seu método do método de Rousseau da seguinte forma:
“Rousseau procede sinteticamente, e parte do homem natural; eu procedo
analiticamente, e começo pelo homem civilizado”(XX, 14). Daí Cassirer
poder afirmar, partindo desse texto, que “a metafísica não deve ser fundada
sobre fatos inventados ou hipóteses improvisadas; ela deve partir do que é
dado, quer dizer, dos fatos de que temos um conhecimento empírico. Nessa
perspectiva, o único dado de que dispomos é o homem civilizado, e não o
selvagem de Rousseau, que vaga solitário nas florestas”18 .
A análise, porém, não é antropológica, mas lógico-transcendental;
não se procede a uma simples descrição empírica da natureza humana
e de sua experiência, mas se busca aquilo que, não obstante estar ope-
rando nela, não tem nela a sua origem e fundamento19 . E dentre essas

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condições de existência está o faktum da razão, consciência da lei mo-
ral que não se confunde com nenhuma forma de vida moral histori-
camente determinada, isto é, com nenhuma moral (ética) vigente.
Razão de conhecimento da liberdade, é o faktum da razão, consciência
da lei moral, que torna possível pensar o conceito de liberdade como
“predicado da causalidade de um ser fazendo parte do mundo sensí-
vel” (KpV, V, 94 – T. 169), ao mesmo tempo em que abre, para este ser,
a perspectiva de um mundo inteligível determinado de um ponto de
vista prático, ou seja, de um ponto de vista não-especulativo, como
reino dos fins. Mas que o ponto de vista seja prático; que a tábua das
categorias por meio das quais se pensa o mundo da ação seja a tábua
das categorias da liberdade, e não apenas a tábua das categorias do
entendimento, a passagem de uma a outra tábua é efetuada pela facul-
dade de julgar, na medida em que ela, por reflexão, encontra na razão
prática pura a regra da síntese. A segunda Crítica, porém, não refaz tal
passagem; antes a pressupõe, indicando apenas o caminho percorri-
do: “Cedo compreendo que, uma vez que nada posso pensar sem
categoria, tenho antes de procurar, para a idéia da razão sobre a liber-
dade, com a qual lido, uma categoria e que é aqui a categoria da causa-
lidade” (KpV. V, 103 – T. 119) isto é, a primeira das categorias dinâmi-
cas, as quais, em sua síntese do múltiplo, não exigem, como as catego-
rias matemáticas, a homogeneidade entre os elos por elas ligados: a
condição e o condicionado, quando a primeira, a condição, a regra
prática, deve ser ela mesma incondicionada.
É justamente em função da compreensibilidade de uma ação mo-
ral, que inclui a noção de uma obrigação que não prevê exceção, que se
busca um princípio incondicionado, a lei moral. Ocorre, porém, que
em “ações efetivamente dadas na experiência como eventos no mundo
sensível, não podíamos, escreve Kant, esperar encontrar uma tal liga-
ção” expressa em uma obrigação moral. Desse modo, a causalidade da
liberdade só podia então ser “buscada sempre fora do mundo sensível,
no inteligível” (KpV. V, 104-5 – T. 121). Eis aí a presença forte do mun-
do inteligível, ponto de fuga aparentemente inescapável da fundamen-

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tação kantiana da moralidade. No mais das vezes, como se costuma ler
Kant, a relação entre sensível e inteligível é revestida de um caráter de
exclusão absoluta, exclusão difícil de ser superada: mundo sensível e
mundo inteligível são absolutamente externos um ao outro, e a ação
moral aponta para a necessidade, quem sabe por milagre ou fortuna, de
uma interseção entre ambos os mundos. Mas será esta a única leitura
possível da relação entre mundo inteligível e mundo sensível? Será que
não seria possível, mesmo necessário, encontrar um sentido mais fraco
para a oposição entre eles, sentido este que indicaria, de um lado, a
passagem de um a outro mundo, ao mesmo tempo em que apontaria,
também, para o problema da aplicação da lei moral?
Ao se tomar o conceito de um mundo inteligível em seu sentido
forte, isto é, como um mundo transcendente ao domínio da ação
efetiva, mas não menos normativo em relação a este último, dificil-
mente se escapa das objeções que, na esteira de Hegel, são feitas não
apenas a Kant, mas a toda filosofia prática que vê seu fundamento em
um princípio formal. Impotência do dever-ser ou terror da vontade
boa, parece ser esta a única alternativa que resta a Kant. A idéia de um
mundo inteligível, a idéia de uma legislação prática e de um mundo
moral, se possui, na medida em que não se obtém no mundo sensível
nenhuma realização que lhe seja plenamente conforme, um sentido
transcendente inequívoco, conhece, por outro lado, a possibilidade
de um uso imanente, uma vez que ele se põe justamente como ideal
normativo para um movimento constante de aproximação em sua
direção. É essa possibilidade que cabe agora analisar. E por uma ques-
tão de mera justiça, é preciso então reconhecer: Kant é o primeiro a
apontar para a impotência do dever-ser. Pois afirmar que a legislação
prática, dever-ser determinando a existência do homem como ser su-
pra-sensível, é a legislação de uma natureza submetida à autonomia da
razão, ou seja, é a legislação de “um puro mundo inteligível cujo equi-
valente deve existir no mundo sensível” (KpV. V, 43 – T. 56 – grifo
meu), não é contar toda a estória. A esse mundo, que Kant não vacila
em considerar como um arquétipo, vincula-se o segundo, isto é, sua

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existência no mundo sensível, mas apenas como efeito possível da
idéia do primeiro, como mundo ectípico, natureza ectípica. “Pois, es-
creve Kant, efetivamente, a lei moral transporta-nos, em idéia, para
uma natureza em que a razão pura, se fosse provida de um poder físico a ela
adequado, produziria o soberano bem, e determinaria a nossa vontade
a conferir a sua forma ao mundo sensível como conjunto de seres
racionais” (KpV. V, 43 – T. 56 – grifo meu)20 .
Kant insiste, portanto, na irredutibilidade entre ser e dever-ser, na
transcendência do dever-ser frente a qualquer uma de suas realizações
históricas, isto é, no mundo sensível. Mas a passagem não está de ne-
nhum modo vedada. Pois assim como toda teoria, como todo conceito
teórico depende, para que não seja um conceito vazio, que um algo
qualquer seja dado na intuição, como múltiplo a ser trazido sob a uni-
dade transcendental da consciência, o mesmo vale para a razão prática e
seus conceitos. Não menos do que as categorias do entendimento, tam-
bém as categorias da liberdade devem poder ser aplicadas à experiência:
“A razão pura contém assim, é verdade que não no seu uso especulativo,
mas num certo uso prático, a saber, o uso moral, princípios da possibi-
lidade da experiência, isto é, ações que, de acordo com os princípios
morais, poderiam ser encontradas na história do homem” (KrV. B 835).
E essa experiência, que se põe então como construção de um mundo
moral, é porém marcada por uma tensão fundamental, na medida em
que por meio dele não se compreende apenas o arquétipo, isto é, o
dever-ser de nossas ações, mas também o efeito possível, no mundo
sensível, deste dever-ser como princípio de determinação da vontade
(KpV. V, 43 – T. 56). Tensão que de resto está presente ao menos desde
a primeira Crítica, na qual é possível ler: “Chamo mundo moral, o mun-
do na medida em que está conforme a todas as leis morais (tal como
pode sê-lo, a partir da liberdade dos seres racionais e tal como deve sê-lo,
segundo as leis necessárias da moralidade) (KrV B 836)21 .
A idéia de um mundo inteligível como mundo moral é então
uma tarefa que deve ser realizada22 . É esta perspectiva de realização,
de aplicação, que obriga agora a considerar a idéia de um mundo

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inteligível não apenas como uma idéia transcendente - isto é, de todo
afastada do mundo sensível, e no qual, para ela, não se encontra, como
bem moral que é, qualquer equivalente (KpV, V, 120) -, mas também
de um ponto de vista imanente ao exercício da faculdade de julgar
prática. Essa imanência, porém, não se dá, como no caso da razão em
seu uso teórico legítimo, entre sínteses da intuição e conceitos do
entendimento, mas sim entre entendimento e razão pura prática, ou
melhor, na submissão da razão prática em geral (KpV. V, 66 – T. 80) às
leis que determinam a priori o que se deve ou não fazer, e isto com a
introdução, pela faculdade de julgar prática em seu exercício, das ca-
tegorias modais da liberdade. Enquanto a razão, em seu uso teórico,
conta, na aplicação das categorias do entendimento a casos in concreto
que se apresentam como dados na intuição, com os esquemas da ima-
ginação, a razão prática conta, para sua aplicação, não com a imagina-
ção, e sim com o entendimento (KpV. V, 69 – T. 83). Assim, não é um
esquema da sensibilidade que é submetido à uma idéia da razão, e sim
uma lei do entendimento, a saber, o conceito de uma lei natural, mas
apenas segundo a sua simples forma. A analogia é então completa, na
medida em que, se na razão teórica ao conceito de lei da natureza
correspondia um procedimento geral da imaginação, isto é, o
esquematismo - representar a priori aos sentidos o que até então era
simples síntese intelectual -, ao conceito de lei moral corresponde a
“imposição” de um procedimento análogo, só que ao entendimento,
isto é, à razão prática em seu uso geral e empírico23 .
É então a razão pura prática que produz, ao exercer sua legislação
sobre o modo de proceder do entendimento, o tipo, não o esquema,
da lei moral. Como escreve Kant: “A regra da faculdade de julgar sob
as leis da razão pura prática é esta: interroga-te a ti mesmo se a ação
que projetas, no caso dela dever acontecer segundo uma lei da nature-
za da qual você próprio faria parte, pode ainda ser vista como uma
ação possível por meio de sua vontade” (KpV. V, 69 – T. 83). A razão,
então, autoriza a faculdade de julgar prática a fazer uso da natureza
sensível - conjunto sistemático de fenômenos sob leis - como tipo de

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uma natureza inteligível, tornando então possível um uso imanente
de um tal conceito, a saber, do conceito de um mundo inteligível.
Nessa autorização, é a conformidade a leis em geral da natureza que
serve de modelo para a reflexão das ações humanas quanto à sua con-
formidade ou não a uma lei, a qual contudo não é mais lei natural,
mas lei da razão, ou melhor, legalidade da razão pura prática. Assim,
apenas o conceito de uma conformidade à leis em geral é transferido
para a determinação do conceito de um mundo inteligível24 .
O tipo é então a representação, no nível do entendimento, da unida-
de analítica do conceito de dever imposta pela razão pura prática e for-
mulada nos termos do imperativo categórico. É ele que traduz e torna
compreensível para um ser racional finito a exigência da lei moral. Do
conceito de lei da natureza, até o entendimento mais comum faz uso
constante, isto é, sabe encontrar casos concretos a que tal conceito
corresponde. Ao fazer uso do conceito de lei da natureza - conceito que,
de resto, possui uso empírico -, como tipo da lei moral, o entendimento,
ou melhor, a faculdade de julgar, preenche assim o vazio que ameaçava o
próprio conceito de dever moral. Um determinado caso e não outro deve
ser julgado como submetido à legislação da natureza apenas como tipo;
um determinado caso e não outro escapa da legislação da natureza e deve
ser julgado sob a perspectiva da legislação da liberdade:
Assim julga mesmo o entendimento mais comum; pois a lei da natureza
serve sempre de fundamento a seus juízos, e mesmo aos juízos de experiên-
cia. Ele a tem sempre à mão; somente que, nos casos em que a causalidade
deve ser julgada como causalidade por liberdade, ele faz dessa lei natural ape-
nas o tipo de uma lei da liberdade, porque ele, sem ter nada em mãos que
possa ser feito exemplo em casos da experiência, não poderia proporcionar o
uso, na aplicação, para a lei de uma razão pura prática (KpV. V, 70 – T. 84).

O esquematismo pode percorrer dois vetores: ou bem tornar sen-


sível um conceito do entendimento, quando o entendimento produz
então a síntese da imaginação, momento em que a imaginação se diz
produtiva, ou bem percorrer o sensível em direção à unidade do con-

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ceito, ou seja, é a faculdade de formar conceitos empíricos. Mas a
típica é um procedimento especial, porquanto se trata do esquema de
uma lei, de uma lei prática, a lei moral, e não de um conceito. Na
Religião nos limites da simples razão Kant fornece a seguinte interpreta-
ção ampliada do esquematismo: “tornar compreensível um conceito
por meio de analogia com algo sensível” (Rel. VI, 65). Ora, é este
procedimento que Kant analisará, ainda que não de modo exaustivo,
no parágrafo 59 da Crítica do Juízo:
Toda hipotipose (apresentação, subjectio sub adspectum) é, como ato de tor-
nar sensível [um conceito], dupla: ou bem ela é esquemática, pois que ao
conceito que o entendimento conhece a intuição correspondente é dada a
priori, ou bem ela é simbólica, pois que ao conceito, que só a razão pode
pensar e ao qual não corresponde nenhuma intuição adequada, é subme-
tida uma tal intuição, com o que o procedimento da faculdade de julgar é
apenas análogo àquele que se observa no esquematismo, isto é, concorda
com este apenas na regra do procedimento e não pela intuição, então ape-
nas com a forma da reflexão e não com o conteúdo (KU. V, 351 – T. 84)

A um conceito da razão é submetida uma intuição, ou melhor, a uma


idéia da razão pura prática, à idéia de lei moral, é submetido um conceito do
entendimento, o conceito de lei natural, o qual, por sua vez, pode ser apli-
cado a casos concretos. É esta submissão que produz o tipo, forma da lei
moral sobre condição sensível. E o agente moral compara seus juízos prá-
ticos singulares, todos eles formados sob condição sensível, isto é, circuns-
critos em uma determinada situação dada, com o tipo da lei moral, efeito da
razão sobre o entendimento: “Quando, escreve Kant, a máxima da ação
não é constituída de maneira a sustentar a prova em geral [por compara-
ção] da forma de uma lei natural, ela é moralmente impossível” (KpV. V,
69/70 - 84). Essa comparação, Kant afirma que não se deve contar nela o
princípio de determinação da vontade, mas apenas o tipo para a apreciação
da máxima – princípio subjetivo - segundo princípios morais - objetivos.
Mas, ao mesmo tempo, é ela que faz conhecer ao menos uma determina-
ção de um mundo inteligível cuja realização se impõe como tarefa:
sua legalidade.

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Na medida em que uma síntese empírica está submetida a uma
idéia da razão pura prática e encontra nela seu fundamento e ex-
pressão, a relação de uma a outra já não pode mais ser de
transcendência. Assim, com a típica, a idéia de um mundo inteligí-
vel torna-se, em seu uso, imanente ao exercício da faculdade de
julgar prática. Na verdade, a típica é, por assim dizer, a autocom-
preensão, sob condição sensível, isto é, empírica, da positivação da
razão pura prática25 . Positivação que se dá sob dupla face: ética e
jurídica, a primeira que se ocupa da intenção do agente e faz da
idéia de dever o móbil da ação moral, a segunda que visa tão-so-
mente a exterioridade da ação, aceitando um outro móbil. Mas
ambas vão se instituindo, a legislação ética em uma comunidade
ética e que se chama igreja, a legislação jurídica no corpo político.
A comunidade ética como igreja empiricamente constituída não é
senão a realização da igreja espiritual, isto é, a comunidade ética
dos seres racionais. A religião, como religião revelada, é positivação
da razão, revelação da razão. Algo semelhante se dá com o direito
positivo: ele é positivação do direito racional, cuja lei não espera a
sanção do estado para vigorar como lei. Ambas as comunidades
éticas e jurídicas historicamente constituídas são tidas por Kant
como esquemas, ou melhor, símbolos, isto é, como realizações mais
ou menos precárias da legislação da razão, ou seja, positivações mais
ou menos “defeituosas” da razão. Mas o direito positivo não pos-
sui em si o critério de sua correção, mas sim na razão, no direito
racional, que deve também ele ser esquematizado. É no sentido do
seu lento e contínuo progresso que os juízos práticos
empiricamente formados recebem predicados da liberdade. A de-
liberação, a determinação de um juízo particular, dá-se no âmbito
de tais esquemas. Deste modo, o juízo não se forma no vazio de
uma pura lei moral, mas na justa tensão entre sensível e inteligí-
vel, tensão que revela a legitimidade de cada uma das pretensões
privadas, seja quanto à felicidade, seja quanto a sua juridicidade.

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Juízo Prático e Forma da Sociabilidade

Do mundo inteligível, tudo o que pode ser afirmado é a sua lega-


lidade, isto é, a sua conformidade a leis; mais ainda, leis que valem
universalmente, que impõem uma ligação necessária entre A e B. As-
sim, o que a lei moral obriga é que algo que vale para um sujeito em
um estado qualquer de sua condição, deve igualmente valer para todo
ser racional. Como já foi visto, essa ligação será expressa em um juízo;
é ela, ao fim e ao cabo, que está contida no conceito de dever como
representação discursiva. Ora, a pedra de toque de todo juízo moral, e
mesmo de todo o dever, é o imperativo categórico, princípio de
universalização das máximas, forma que a lei moral assume para um
ser racional finito, quando se pode decidir pelo caráter sintético da
proposição moral. Pois até então, quando não se tinha determinado a
quem ela se dirige, restava também não decidida a questão quanto a
ela ser analítica ou sintética. Mas a quem, cabe perguntar, ela se diri-
ge? Ao ser racional que, se finito, tem em uma proposição exprimin-
do um dever uma proposição prática sintética a priori.
Até aqui, nada de novo. Mas por que reduzir tal sujeito a uma
autoconsciência solitária e que decide, por meio de uma experiência
em pensamento, da universalidade ou não da sua máxima? Se o
formalismo de Kant deve ser louvado, o caráter monológico da lei
moral deve ser recusado em nome de uma intersubjetividade que se
sobrepõe aos indivíduos e os constitui justamente como tais. Hegel,
em sua juventude, teria intuído esse problema e solução, mas não o
levou a cabo do modo como deveria ter feito. A razão comunicativa
de Habermas prende-se a tal diagnóstico e pretende, justamente, rea-
lizar aquilo que o jovem Hegel apenas esboçara26 . Ao invés de uma
experiência em pensamento – na vida solitária da alma, como diria
Habermas – “a ética do discurso espera um entendimento mútuo so-
bre a universabilidade dos interesses apenas como resultado de um dis-
curso público organizado intersubjetivamente”27 . Mas não é apenas
quanto a esse ponto que a ética do discurso, a despeito do seu

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formalismo assumido, se sente obrigada a afastar-se de Kant, e isso
justamente por crer que Hegel teria mesmo razão. Pois Habermas
deve igualmente renunciar à “diferença categorial entre o reino do
inteligível, ao qual pertence o dever e a vontade livre, e o reino do
fenomênico, que entre outras coisas abarca as inclinações, os motivos
meramente subjetivos e também as instituições do Estado e da socie-
dade”28 . Ora, na seção anterior procurou-se mostar que a típica, ou
melhor, a faculdade de julgar prática, faz uso imanente do conceito de
um mundo inteligível, de modo que há sim diferença categorial, mas
não hiato intransponível. Agora, cabe justamente tentar mostrar como,
a partir deste uso imanente, essa experiência em pensamento exige
um “discurso” organizado intersubjetivamente, onde discurso quer
dizer, reconstituída a terminologia kantiana, formação de um juízo
(representação discursiva, ou refletida) por meio de sua apresentação.
O melhor candidato para tal tentativa é, sem dúvida, o conceito
de reino dos fins. Ocorre que mesmo na primeira formulação do im-
perativo categórico, isto é, no primeiro tipo, já começa a se encami-
nhar uma possível reposta para tal questão. Ora, as diversas formula-
ções nada mais são do que “ umas tantas formulações de uma só e
mesma lei”, a lei moral, e toda diferença entre elas é mais subjetiva do
que objetiva, isto é, umas mais do que outras aproximam uma idéia
da razão da intuição, e então do sentimento (Grund. IV, 436 – T. 79).
Daí Krüger ter razão ao considerá-las como tipos, interpretação que é
seguida aqui29 . Mas no que a primeira formulação – “age de tal modo
que como se a máxima da tua ação se devesse tornar, por tua vontade,
lei universal da natureza” (Grund. IV, 421 – T. 59) – importa para o pro-
blema que está aqui em jogo? Na Fundamentação, ao menos nas duas
primeiras seções, a argumentação de Kant percorre um duplo movi-
mento: primeiro, ele procede analiticamente à investigação das con-
dições transcendentais das relações práticas, isto é, relações que têm
seus princípios na razão pura prática, e que portanto não derivam do
mero instinto ou mesmo do hábito, isto é, não derivam da experiên-
cia; segundo, ele apresenta uns tantos exemplos partindo de situações

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e relações reais de dever, ou ao menos que se acreditam reais30 . Certa-
mente os exemplos têm um estatuto problemático – e isso não apenas
para Kant, mas para a filosofia em geral. Se eles nada valem em um
contexto de fundamentação, valem porém no contexto de aplicação,
isto é, de apresentação da lei moral, quando então se faz um uso
imanente dos conceitos práticos, seja do conceito de dever e de lei
moral, seja do conceito de mundo inteligível. Sobretudo, neles é feito
um uso circunstanciado da lei moral, no qual a máxima particular da
ação deve se mostrar como apresentação possível de uma lei univer-
sal, ou seja, da lei moral; de modo algum, porém, se exige a identidade
entre máxima e lei moral.
Como a Crítica da razão prática afirma, do mundo inteligível só se
pode falar da sua legislação. Mas o que se ganha, então, com uma análi-
se dos exemplos, isto é, da lei moral em seu contexto de aplicação?
Por amor a mim mesmo, escreve Kant no primeiro exemplo, tomo como
princípio abreviar minha vida... A questão consiste apenas em saber se tal
princípio do amor de si pode tornar-se uma lei universal da natureza. Mas
então vemos que uma natureza, na qual seria lei destruir a vida, e isso
justamente pelo sentimento cuja função especial é de levar ao desenvolvi-
mento da vida, estará em contradição consigo mesma, e assim não subsis-
tirá como natureza (Grund IV, 422 - T. 60).

O que está em jogo nesse exemplo? O sujeito, como ser racional


livre, decide por abreviar sua vida, decisão que é motivada por uma
situação contingente a ele desfavorável. De toda forma, por pior que
seja sua situação, ele ainda não perdeu, ao menos de todo, sua capaci-
dade de reflexão. Mas toma tal decisão a partir de um sentimento que
lhe é dado pela natureza, logo como ser sensível, como objeto submetido
à legislação da natureza. Esse sentimento, que a natureza põe nele
como objeto de sua legislação, tem justamente como função desen-
volver a vida. Como pode o sujeito, agora como ser legislando para a
natureza, justamente legislar contra a natureza? Esse outro eu, agora
sensível, seria impiedosamente aniquilado. Esse eu natural é um objeto

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da natureza, mas é também ser racional. Ora, mesmo o dever perfeito
que se exprime aí, dever perfeito para consigo, não é, de forma algu-
ma, a expressão da identidade abstrata de uma autoconsciência, mas é,
muito mais, a expressão de uma identidade que se sabe cindida e bus-
ca reconstruir, via reflexão, sua união. Essa estrutura sintética, na qual
o eu (ser racional, legislador da natureza) está em relação com algo
dele distinto (ser sensível, submetido à legislação da natureza), se re-
vela ainda mais fortemente no segundo exemplo, até porque se trata
de um dever perfeito para com o outro, isto é, um dever jurídico: se
pergunta se a ação é justa (Grund, VI, 422 - T. 60).
Quando julgo estar em apuro de dinheiro, peço-o emprestado e prometo pagá-
lo, embora saiba que isto jamais acontecerá. Este princípio do amor de si – ou
da própria conveniência – pode talvez estar de acordo com todo o meu bem-
estar futuro; mas agora a questão é saber se é justo (...) O que aconteceria se a
minha máxima se tornasse lei universal? Vejo então imediatamente que ela
nunca poderia valer como lei universal da natureza e concordar consigo mes-
ma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria (Grund, IV, 422 - T. 60-61).

Por que ela se contradiria? Porque tornaria impossível o próprio


meio pelo qual ela quer livrar-se do apuro, a saber, a promessa. Uma
máxima que consistisse em uma falsa promessa só teria sucesso se
permanece como máxima “secreta”. Ao exigir que ela possa ser uma
lei da natureza, o imperativo obriga, justamente, a que ela se faça
conhecer, que seja objeto de conhecimento ao menos possível.
Assim, não seria de todo incorreto afirmar, por analogia, que este tipo
obriga à publicização da máxima. Mas isso talvez seja ir longe demais.
De todo modo, uma tal analogia não é imprescindível para o que se
tenta aqui. Pois o que significa natureza? Segundo o § 16 dos
Prolegômenos, natureza é “a existência das coisas na medida em que ela
é determinada segundo leis universais”. Transformar a máxima da fal-
sa promessa em lei universal equivaleria a determinar que todos aqueles
que se encontrassem em situação semelhante responderiam do mes-
mo modo, teriam sempre a mesma e única saída. Além do mais,

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a natureza também pode ser considerada como um todo dinâmico,
onde a cada ação corresponde uma reação. Assim, no contexto da Fun-
damentação, a cada promessa corresponderia um escárnio, pois “nin-
guém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia
apenas de tais declarações como de vãos embustes” (Grund. IV, 422 -
T. 61). Ora, se no exemplo anterior a síntese era uma relação vertical
entre A e B, agora se tem uma relação horizontal. Mas essa estrutura
só se revela de modo claro no contexto de aplicação, isto é, na faculda-
de de julgar operando na passagem entre inteligível e sensível.
Um novo e importante passo, decisivo, é dado com a formulação
seguinte, pois por meio dela se definem os termos da relação como pes-
soas e, mais ainda, como iguais: “Age de tal modo que uses a humanidade,
tanto na sua pessoa como na pessoa de todo outro, sempre e ao mesmo
tempo como fim e nunca apenas como simples meio” (Grund. IV, 429 –
T. 69). Pois é no conceito de fim, ou melhor, no conceito de humanidade
como fim, que a moralidade, a legislação prática, revela de modo mais
evidente sua instância “intersubjetiva”. E aquilo que representa, antes de
tudo, essa “intersubjetividade”, é a própria razão prática, que não se con-
funde com a identidade abstrata de uma autoconsciência. Que se tome o
exemplo daquele que se encontra na situação de cometer suicídio, onde
estaria aí a “intersubjetividade”? O que diz o exemplo?
Em primeiro lugar, segundo o conceito do dever necessário para consigo
mesmo, aquele que anda pensando em cometer suicídio perguntará a si
mesmo se sua ação pode estar em acordo com a idéia da humanidade como
fim em si mesma. Se, para escapar de um estado penoso, ele destrói a si
mesmo, serve-se de uma pessoa (grifo) como de um simples meio para con-
servar até o fim da vida uma situação suportável. Mas o homem não é uma
coisa (...) Portanto não posso dispor do homem na minha pessoa (grifo) para o
mutilar, o degradar ou o matar (Grund. IV, 429 – T. 70).

A relação de dever que proíbe o suicídio é “intersubjetiva”, ainda


que se trate de um caso de dever do agente para consigo mesmo, pois,
assim como no primeiro exemplo relativo ao tipo da lei natural, o sujeito

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se relaciona consigo como se fosse um outro, a saber, como idéia de hu-
manidade, como ser puramente racional -coisa que ele de resto não é, já que
também é fenômeno. Em todos esses casos que se acreditam reais, tem-se,
a partir do tipo, uma “intersubjetividade” antes de tudo projetada no
mundo inteligível, e que encontra na idéia de humanidade um outro
ponto de passagem. Pois quando se trata de dever isso significa: dever
diante da humanidade, da idéia de humanidade, de modo que não é pre-
ciso ter na natureza algo cuja existência seja um valor em si31 , passo este
que vai além da mera consideração da legalidade universal da natureza:
Admitindo, porém, que haja algo cuja existência em si mesma tenha um
valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser uma razão (Grund)
para leis determinadas, então estará nele, e apenas nele, a razão (Grund)
para um imperativo categórico possível, quer dizer, para uma lei prática.

Ora eu digo: o homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em
si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela
vontade (Grund. IV, 428 – T. 67/68).

O que significa tal admissão? Será ela tão-somente um postulado, de


resto incapaz de provar o que quer que seja, pois impossível lhe atribuir
qualquer outro estatuto que não o de uma hipótese mais ou menos arbitrá-
ria, e isso apenas do seu valor de face? Que tipo de ligação entre o homem,
como ser racional, e o conceito de algo que é em si mesmo fim está aí
projetada e deve ser reconhecida pela faculdade de julgar? É verdade, essa
afirmação de Kant se dá no bojo da argumentação que conduz à terceira
formulação do imperativo categórico: “Age de tal modo que trates a huma-
nidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca apenas como meio”. Ocorre que não
é possível recorrer a tal imperativo para dar conta da ligação postulada, uma
vez que é esta que encaminha para ele, e não o contrário. Entre um e outro
momento do argumento, porém, é possível ler o seguinte:
Eis aí a razão desse princípio [objetivo da vontade]: a natureza racional existe
como fim em si. É assim que o homem se representa necessariamente sua

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própria existência; e, neste sentido, este princípio é um princípio subjetivo
das ações humanas. Mas é também assim que qualquer outro ser racional
se representa igualmente assim sua existência, em virtude exatamente do
mesmo princípio racional que é também para mim; é portanto simultane-
amente um princípio objetivo, do qual como princípio prático supremo se
têm de poder derivar todas as leis da vontade (Grund. IV, 429 – T. 69).

O próprio Kant afirma que apenas na terceira seção se encontra-


rão as razões para o postulado. Mas uma coisa é desde logo certa: essa
última afirmação de Kant não é, de forma alguma, uma simples
reafirmação da primeira; nela, o jogo entre princípio objetivo e prin-
cípio subjetivo permite entrever a natureza da ligação aí presente. Para
isso, basta que se recorra a uma passagem da Lógica na qual Kant trata
da forma de uma proposição analítica: “A todo x, ao qual convenha o
conceito de corpo (a + b), também convém a extensão (b)” (Logik, X,
111). Transposta para a questão em pauta, é possível então afirmar: “A
todo x, qual convenha o conceito de ser racional (a + b), também
convém o conceito de fim em si mesmo (b)”. Pois é justamente isso que
significa “o homem se representa necessariamente assim sua própria
existência”. Ora, não deixa de ser à primeira vista paradoxal que uma
proposição analítica seja então a razão de um princípio sintético a priori,
isto é, de um princípio objetivo da vontade. Tal parece ser o caso,
dado que o juízo que veicula uma tal representação é um princípio
subjetivo das ações humanas. Pois assim como todo corpo, objeto da
intuição externa, só pode ser refletido, em um juízo de conhecimen-
to, como extensão, - ainda que não apenas como extensão -, também
a razão prática ao pensar o ser racional pensa-o sempre como fim,
podendo ainda pensá-lo, além disso, como meio – nunca, porém -
imposição imposta pela razão pura prática -, como simples meio. Na
experiência moral e no juízo moral que a ela dá forma (ainda que
como dever-ser), o homem vem justamente preencher o lugar que,
na fórmula, está ocupado pela variável x. Mas então, como princípio
prático da vontade de um ser que não se deixa necessariamente deter-
minar, em suas ações, pela razão, a ligação, que até há pouco se tinha

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como analítica, se apresenta agora como sintética a priori. Dito de ou-
tro modo: aquilo que, para Deus, não passa de simples verdade analí-
tica, assume, para um ser racional finito, a forma da obrigação. E isso
pela seguinte razão: se o sujeito, considerado empiricamente, se põe
sempre na condição de fim, não se segue daí, porém, que ele necessa-
riamente põe o outro na mesma condição.
Do ponto de vista da lógica formal, as proposições “todos os cor-
pos são extensos e portanto são objeto da geometria” e “todos os seres
racionais são fins em si e portanto são objetos de respeito” não apre-
sentam qualquer distinção entre si. Ora, é justamente a análise lógi-
co-transcendental dos juízos práticos que revela a síntese aí presente.
Síntese, porém, que não é imposta de fora, não deriva da experiência,
mas que é exigida pela razão, exigência que resulta do ato de esponta-
neidade da faculdade de representação32 . Por outro lado, o sujeito que
age não sabe a priori até que limite sua ação cuida de respeitar A ou B
como seres racionais33 , e que portanto devem ser reconhecidos sem-
pre na sua qualidade de fins em si. Esse reconhecimento, mesmo pre-
sidido por uma síntese pura, começa com a experiência, ou seja, a
partir do exercício, na história, da faculdade de julgar34 ; apenas a exi-
gência por reconhecimento, a síntese que ela veicula, já está fixada a
priori, ou seja, é ela que torna possível a experiência moral, a experiên-
cia da liberdade, e isso justamente como história35 . Em formulação
ainda mais radical: quando se deve aplicar a um fenômeno, o conceito
de um ser racional? Se o sujeito deve saber o exato limite da ação no
fenômeno para respeitar a humanidade, o ser racional, que de resto é
um conceito noumênico, ou seja, se ele deve respeitar no fenômeno um
limite que é noumênico, sua reposta à questão lançada não passa, con-
tudo, de mera opinião36 , a qual pode sim ser mais ou menos esclarecida,
mas isso é tudo. Daí então o seguinte descompasso: pois se experiên-
cia da liberdade, a história, tem início pelo mal, na medida em que ela
é obra do homem como ser a um só tempo sensível e inteligível, seu
sentido, porém, encontra-se nas determinações que lhes são apresen-
tadas pela razão pura prática e que possuem, para ele, caráter de

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obrigatoriedade, de necessidade prática, as quais se expressam, como
já se disse, em uma legislação ética e em uma legislação jurídica. Mas
ambas as legislações só se encontram disponíveis, como efetivas, a
partir da reflexão sobre a prática e o agir humanos, ou seja, elas não
são um produto imediato e pronto da razão pura prática, mas são o
resultado da reflexão, cuja regra é o imperativo categórico37. Ao pen-
sar a legislação da razão prática, a sua dupla legislação, e isso quanto a
seus princípios, Kant não pensa tanto em um conjunto já determina-
do e estanque de leis e de deveres a elas correspondentes. Muito mais,
o que está desde o início determinado é o procedimento de univer-
salização por comparação que a razão exige; pois “quando se trata do
juízo objetivo sobre se algo é ou não dever, pode-se, de tempo em
tempo, errar; mas quando se trata do juízo subjetivo se, ao proferir tal
juízo [objetivo], eu o comparei [aquele algo] com minha razão práti-
ca (aqui judicante), eu não posso me enganar, pois que então eu não
teria julgado praticamente, de modo que não há lugar nem para erro
nem para verdade” (MdS. VI, 401). Daí então ser possível conciliar a
resoluta afirmação do caráter a priori e necessário, isto é, valido para
todo ser racional, das idéias de humanidade e de uma república per-
feita, por exemplo, com a seguinte passagem da Lógica: “A idéia de
humanidade, a idéia de uma república perfeita, de uma vida feliz e
coisas que tais estão ausentes na maioria dos homens” (Logik, IX, 93).
E elas estão ausentes porque tais homens não fazem uso da sua razão
prática como faculdade de julgar prática, e então não sabem que ser
racional implica em uma forma determinada de sociabilidade confor-
mada por normas jurídicas.
De todas as formulações que recebe a lei moral, a fórmula que
determina a humanidade como um fim em si mesma é aquela que pos-
suiu maior força no pensamento político, notadamente no pensamento
de esquerda, e isso em um momento crucial. Vorländer faz uso dela na
sua tentativa de aproximar Kant e Marx; Bernstein, no bojo da segunda
internacional, não deixa de afirmá-la como primeira expressão do soci-
alismo ético38. Do lado do marxismo ortodoxo, por sua vez, a recusa do

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vínculo não poderia ser diferente, ainda que variando em seu tom:
a ética kantiana está de tal modo vinculada ao seu idealismo formalista,
que de forma alguma pode ela guiar a ação política de emancipação do
proletariado na luta de classes contra o capital e a burguesia. E, num
certo sentido, até que os marxistas de linha-dura tinham razão: fundar
um socialismo ético não significa deixar o destino do proletariado na
dependência de uma conversão moral, e portanto individual e privada,
da classe exploradora? Essa não é, porém, a perspectiva de Kant – ou ao
menos não é a única, e com certeza não é a melhor. Pois uma outra
perspectiva se apresenta, tão logo se deixa de ver na formulação em
pauta apenas mais uma expressão da lei moral, que em seu sentido mais
estrito aponta para a necessidade da possível conversão da máxima da
ação em lei universal, o que só pode ser realizado pela vontade (indivi-
dual e privada) daquele que quer. Não que tal necessidade esteja aí au-
sente; contudo, há mais do que isso, e justamente no conceito de fim,
isto é, de um objeto do livre arbítrio, em uma de suas relações possíveis
com o conceito de dever.
Esse último passo não deixa de ser algo surpreendente, sobretudo
quando se tem diante dos olhos não apenas a Fundamentação, mas tam-
bém a Doutrina da Virtude, na qual é possível ler: “O fim é o objeto do
arbítrio (de um ser racional), pela representação do qual este [o arbí-
trio] é determinado a uma ação que consiste em produzir esse objeto...
[eu] não posso jamais ser coagido a ter um fim: pelo contrário, apenas eu
posso tornar algo um fim para mim” (MdS. VI, 381). Mas o que não
pode deixar de ser observado é que o conceito de fim é aí introduzido
na perspectiva de uma doutrina ética, isto é, de uma doutrina da virtu-
de. Assim, ele entra, antes de tudo, como princípio material de deter-
minação do arbítrio e que será expresso no conceito de um fim que é ao
mesmo tempo um dever, com toda a sobrecarga moral pesando no in-
divíduo, por conta da eleição que ele deve realizar quanto às máximas
de sua ação39 . Kant porém, na mesma introdução à Doutrina da Virtude,
apresenta, ao lado da maneira própria à doutrina da virtude, uma outra
maneira de conceber a relação entre fim e dever:

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Nós podemos pensar de duas maneiras a relação entre o fim e o dever: ou
bem partimos do fim e acabamos por descobrir a máxima das ações con-
formes ao dever, ou bem, de modo inverso, partimos dessa máxima e ter-
minamos por descobrir o fim que é ao mesmo tempo um dever. A Doutri-
na do Direito toma a primeira via. Ela deixa ao livre arbítrio de cada um a
determinação de que fim ele quer dar à sua ação. Mas a máxima da ação
está determinada a priori, a saber: que a liberdade do agente possa coexistir
com a liberdade de todos segundo uma lei universal (VI, 382).

Ora, ao pensar de uma outra maneira a relação entre fim e dever,


o direito, no que importa à relação entre os indivíduos, desonera-os,
ao menos em parte, do peso de suas decisões morais. Mas o que im-
porta é ver que a formulação da humanidade não é apenas um princí-
pio segundo o qual se deve agir, e sim, ao mesmo tempo, um princí-
pio contra o qual jamais se deve atentar. Assim, já na Fundamentação há
espaço, ainda que não explorado de modo explícito, para se pensar a
legislação jurídica e tudo o que dela decorre como provindo da razão
pura prática, como se torna claro a partir do segundo exemplo que
analisa tal formulação, qual seja, fazer falsa promessa, atentado contra
o direito dos homens à liberdade e propriedade (Grund. IV, 430 – T.
70). Mas não apenas esse segundo exemplo dá testemunho da possi-
bilidade, ou melhor, da necessidade da legislação jurídica determi-
nando a relação entre os indivíduos, pois o quarto exemplo acrescenta
um elemento fundamental: “Pois o sujeito sendo um fim em si, se
essa representação deve ter para mim todo o seu efeito, os seus fins
têm ser tanto quanto possível meus fins” (Grund. IV, 430 – T. 71). Ou
seja, a fórmula que afirma a humanidade como um fim em si mesma
exige um acordo quanto a fins, o que só é possível, Kant irá afirmar
anos mais tarde em Paz Perpétua, por meio do direito: apenas nele, no
direito, “é possível a união dos fins de todos” (ZeF. VIII, 386 – T. 171).
Se o que se propõe aqui está correto, o imperativo categórico não
apenas trata de determinar a relação entre sujeito e lei moral, mas,
isso sim, indo além do âmbito interno do sujeito e da determinação
da sua vontade, acaba por exigir uma certa formação social segundo

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a liberdade, para a qual é possível – moralmente possível - uma legisla-
ção externa entre os arbítrios acompanhada de correspondente coer-
ção40 . É justamente isso que se deixa ler logo adiante: “A necessidade
prática de agir segundo esse princípio, quer dizer, o dever, de modo
algum repousa sobre os sentimentos, impulsos e inclinações, mas ape-
nas sobre a relação dos seres racionais entre si”, relação por meio da qual a
“razão vincula cada máxima da vontade considerada como legisladora
universal a todas as outras vontades (Grund. IV, 434 – T. 77– grifo meu).
Ora, é dessa forma da relação que, então, “decorre uma ligação sistemá-
tica dos seres racionais” (Grund. IV, 433 – T. 77), sendo que a humani-
dade, então considerada como fim em si, é determinada como condi-
ção restritiva para a adoção de fins subjetivos, isto é, como condição
suprema que limita a liberdade de todos (Grund. IV, 430 – T. 72). As-
sim, não parece ser gratuito que o tom esteja próximo da Doutrina do
Direito, cuja lei universal cuida justamente de limitar a liberdade de cada
um à possibilidade do seu acordo com a liberdade de todos segundo
uma lei universal (MdS. IV, 230-231), afastando todo obstáculo que
com esta não possa coexistir. E o motivo para tal semelhança de tom
não é outro: o reino dos fins, como ligação sistemática de diversos seres
racionais sob leis comuns e no qual todos os fins particulares são deixa-
dos de lado, antes de ser uma comunidade ética, isto é, uma comunida-
de de seres virtuosos, é o reino do direito41 .
Em verdade, esse reino do direito, como ligação sistemática dos
seres racionais sob leis comuns, e que é, ao mesmo tempo, um reino
possível dos fins, é um ideal (Grund. IV, 433 – T. 76), ou melhor, uma
idéia prática (Grund. IV, 436 - 79), a qual seria efetivamente realizada
fossem seguidas as máximas que decorrem do imperativo categórico
(Grund. IV, 438 – T. 82). De todo modo, o reino dos fins indica não
aquilo que é dado, e sim aquilo que deve ser realizado pelas ações
efetivas – ainda que de modo negativo, como aquilo contra o qual não
se deve agir. Para as ações reais, sendo todas elas condicionadas, a ra-
zão busca, na idéia prática, aquilo que seria sua condição, a saber, a sua
condição originária. Como Kant afirma já na primeira Crítica:

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Daí ser a idéia prática sempre altamente fecunda e, em relação às ações reais,
incontestavelmente necessária. A razão pura tem, nela, causalidade própria
para tornar efetivo o que está contido em seu conceito; a partir daí não se
pode dizer, de modo indiferente e displicente, que a sabedoria é apenas uma
idéia; mas, justamente porque ela é a idéia da unidade necessária de todos os
fins, terá ela de servir de regra para toda a prática como condição originária, ao
menos como [condição originária] limitativa (KrV. B 385).

Desta passagem, duas coisas devem ser retidas: em primeiro lugar,


ela lida com a idéia de sabedoria, que é um ideal para a virtude e pedra de
toque da verdade de todos os juízos morais; em segundo, e é isso o que
mais importa para o contexto, que a unidade dos fins não é apenas unida-
de possível, mas unidade necessária e originariamente posta pela razão
como condição (trascendental-prática) de toda ação real. Um pouco mais
adiante Kant avisa que sua intenção na primeira Crítica é analisar a razão
em seu uso especulativo. Assim, ele pode então deixar de lado as idéias
práticas. Ora, como o que aqui está em jogo são justamente tais idéias,
tentou-se uma análise que vinculasse forma lógica e conceitos práticos,
isto é, tratou-se de saber até que ponto a razão não “será, também, uma
fonte de conceitos” (KrV. B 386) a dar forma a uma práxis social, isto é,
jurídico-política. Nem mais nem menos, o que se pretendeu aqui enca-
minhar foi uma espécie de “dedução metafísica” dos conceitos práticos
que dão forma à vida humana em sociedade e que, portanto, não provêm,
já que são metafísicos e a priori, da experiência ou dos sentidos, e sim da
razão pura como razão prática.
Mas antes de entrar propriamente na questão jurídica, cabe ainda
analisar mais um ponto: “quando se julga objetivamente se algo é ou não
dever, pode-se, de tempos em tempos, errar”. Isso que Kant afirma para
um dever de virtude, vale igualmente para um dever jurídico – no pri-
meiro caso o sujeito compara a máxima de sua ação com a lei da sua
própria vontade pensada como legisladora, ao passo que no segundo a com-
paração se dá em relação à vontade geral, ou seja, à razão prática pensada
como vontade geral, a qual pode vir a ser a vontade de um outro (MdS.
VI, 389), desde que ela, em sua ação, se qualifique como compatível com

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a liberdade de todos segundo uma lei universal. E o que importa consi-
derar é que, para evitar o erro da avaliação de um dever, o sujeito moral
não pode prescindir do juízo dos demais. Por quê? Ora, a formulação
que obriga o sujeito a tratar a humanidade sempre como fim em si e
nunca apenas como meio integra o outro de modo tal a fazer dele não um
ser passivo, mas sim um ser ativo, isto é, que participa da formação dos
juízos práticos. Pois respeitar o outro na sua condição de fim significa,
para usar uma expressão anacrônica a Kant, apenas reconhecer-lhe antes
de tudo o direito de pretender a uma determinada concepção de vida boa42 ,
e não submetê-lo à concepção daquele que julga, decide por uma ação e
efetivamente age com vista a um fim. Assim, não causa espécie que tal
formulação, de resto negativa, acabe por introduzir, do ponto de vista da
quantidade do juízo, uma pluralidade de fins (Grund, IV, 436 – T. 80)
possíveis, isto é, moralmente possíveis quanto a sua integração no siste-
ma da moral.
Que se aproxime, então, tal formulação do imperativo categóri-
co das máximas do pensamento: pensar por si mesmo, pensar pondo-
se no lugar do outro, pensar sempre de modo coerente consigo mes-
mo (Logik, IX, 57), em especial da segunda de tais máximas, tal como
Kant a formula na Antropologia: pensar (em comunicação com outros
homens) a si mesmo na posição de todo outro, que é então princípio
positivo e liberal de adequação das diversas concepções (Antrop, VII,
228-9) de vida boa sob um princípio comum, o que só é possível se
todos puderem comunicar sem reservas suas pretensões. Como re-
sultado de tal aproximação tem-se, como observa Nour, que a “máxi-
ma de ‘procurar em si mesmo a (suprema) pedra de toque da verdade’
é completada pela seguinte: ‘não apenas o nosso entendimento, mas
também o entendimento dos outros pertence à pedra de toque da
verdade’”43 dos juízos. Na Fundamentação não há, é verdade, um uso
explícito da máxima de um pensamento alargado. Mas isso não signi-
fica que ela não esteja aí presente, como se deixa ler na seguinte passa-
gem: “Pois aquele que eu quero utilizar [como simples meio] para os
meus intuitos por meio de uma tal promessa não pode concordar com

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a minha maneira de proceder a seu respeito, não pode portanto con-
ter em si mesmo o fim desta ação. Mais claramente salta aos olhos
esse conflito diante da idéia de humanidade em outros homens, quan-
do tomamos para exemplo ataques à liberdade ou à propriedade alheia”
(Grund, IV, 429/430 – T. 70 – grifo meu). Nessa passagem, na qual
Kant opera com os conceitos de reflexão acordo e conflito, o desacor-
do a que se faz primeiro referência se revela como caso do conflito no
nível dos princípios, quando a máxima é comparada, via reflexão, ao
imperativo categórico sob a forma do tipo.
É na Crítica da faculdade de julgar que a máxima de um pensamento
alargado adquire cidadania filosófica. Mais ainda, segundo a terceira
Crítica é justamente essa máxima, como máxima de um pensamento
alargado, que libera o sujeito das condições privadas e subjetivas do
seu juízo e permite que sua reflexão se dê a partir de um ponto de
vista universal (KU, V, 295 – T. 198), condição sine qua non, por sua
vez, para a comunicabilidade das pretensões de validade universal que
cada juízo traz em si. Condição sine qua non, critério interno, ou es-
sencial, mas em todo caso apenas formal. Na reflexão 2147 Kant fala
de um outro critério, que deve ser acrescido ao primeiro:
O critério extra-essencial da verdade não consiste na concordância da ra-
zão com suas próprias leis (...), mas na concordância com a razão do outro.
Esta não dá nenhuma indicação (prova), mas presunção de verdade; por-
tanto, a opinião dos outros tem um votum consultativum, mas não decisivum.
Por isso é que o impulso de comunicar está vinculado ao desejo de saber:
porque nosso juízo deve ser ratificado do ponto de vista exterior. A razão
que pensa por si própria e a que comunica: a egoísta e a pluralista, em
sentido lógico (Refl. 2147, XVI, 252)44

Uma análise mais detalhada desta questão, bem como da liber-


dade de pensar, será apresentada mais adiante em suas implicações
para a política45 . Por ora basta afirmar que o processo de comunicação
que o próprio exercício da faculdade de julgar parece impor para a
formação das regras de conduta acaba por integrar todos os indivídu-

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os em um processo comum de formação jurídico-moral, ambos pro-
cessos que se dão sob a coerção de conceitos determinados, os quais,
contudo, têm sua origem na própria razão prática.

A Passagem para o Direito

O que é uma metafísica dos costumes? A resposta de Kant para


tal pergunta pode sofrer uma dupla determinação. Como metafísica,
entende-se um sistema do conhecimento a priori por simples concei-
tos; mas como se trata de filosofia prática, de uma disciplina que tem
por objeto a liberdade do arbítrio, a exigência de tal sistema não res-
ponde apenas a uma finalidade epistemológica, mas é um dever, ou
seja, é uma tarefa a ser cumprida. Eis aí duas determinações que se
podem facilmente considerar como puras, mas às quais é preciso acres-
centar ainda uma terceira: pois se Kant afirma que é um dever possuir
tal metafísica, não é menos certo que ele se apressa em afirmar que
“todo homem a possui em si mesmo, ainda que ordinariamente de
maneira confusa” (MdS, VI, 216). É que em todo juízo moral está
presente uma pretensão à universalidade, a qual só pode repousar em
princípios a priori. Assim, a tarefa do filósofo, e de toda a ilustração, é
ir ao encalço de tais princípios, que todo homem traz em si como
metafísica obscuramente pensada e inerente à sua disposição racional
(MdS, VI, 376). Que cada homem, no exercício de sua faculdade de
julgar prática, pressuponha e faça uso de tal “metafísica”, ao mesmo
tempo em que projeta no entendimento um mundo que sabe possí-
vel graças à liberdade de seu arbítrio, é uma razão a mais para que o
filósofo crítico, na construção do seu sistema, venha distinguir entre
as determinações que têm sua origem na razão pura prática e aquelas
que podem ser contadas apenas como determinações empíricas na
formação dos juízos. Ora, é exatamente tal marcha de pensamento
que Kant, no “Prefácio” à Doutrina do Direito, afirma ser análoga à que
ele já realizou nos Primeiros princípios da doutrina da natureza:

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As coisas se passarão aqui do mesmo modo que com os (anteriores) Pri-
meiros princípios metafísicos da ciência da natureza: o direito, que pertence ao
sistema projetado a priori, deverá constituir o texto, enquanto os direitos,
que se reportam a casos particulares da experiência, serão objeto de obser-
vações em parte desenvolvidas; se não procedermos assim, não podere-
mos bem distinguir aquilo que é aqui metafísica do direito daquilo que
apenas constitui a práxis jurídica empírica (MdS, VI, 205-6).

No § A da Doutrina do Direito, Kant faz uso das três categorias


modais: “O conceito integrativo das leis, para as quais uma legislação
exterior é possível, chama-se doutrina do direito”. Tal conceito é en-
tão formado a partir da comparação entre lei da razão pura prática e lei
que tem como objeto a exterioridade da ação, lei que no entanto é
pensada apenas quanto à sua possibilidade moral. Ocorre, porém, que
tal legislação externa é não apenas possível, mas real, de forma que
não se pensa apenas sua possibilidade lógica, mas real. Se no uso do
entendimento o emprego da categoria da realidade dependia ainda de
algo a ser dado na intuição que revelasse a síntese pensada no concei-
to, qual seria o equivalente aqui? Ao partir do homem civilizado, o
correspondente que Kant pode encontrar para o múltiplo dado na
intuição é o fato desse homem falar a linguagem do direito – e tam-
bém da ética -, ou seja, das relações sociais serem pautadas, entre ou-
tras normas, por normas jurídicas. A legitimidade da lei, porém, pode
ser posta em dúvida, pode-se duvidar que sua origem se encontre na
razão pura prática. A menos, porém, que se mostre seu vínculo inter-
no, isto é, não meramente histórico e empírico, entre legislação posi-
tiva e direito natural, o qual contém, pois, os princípio imutáveis, isto
é, transcendentais, de toda legislação positiva. Não será gratuita a
sinonímia entre direito privado e direito natural no estado de nature-
za (natürliches Recht), porquanto será da necessidade lógico-
transcendental do direito à propriedade que se deduz a necessidade
de uma legislação positiva, isto é, do direito público, e isso de modo
análogo à refutação do idealismo na primeira Crítica.

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Antes, porém, de tratar desta última questão, é preciso mostrar por
onde relações e legislação jurídica são integradas no sistema da filosofia
prática, o que se dá por meio do vínculo entre categorias da liberdade e
princípios do direito. Era por meio das categorias modais que a faculda-
de de julgar refletia e representava a ação objetivamente como necessá-
ria, isto é, fazia da ação um dever (MdS, VI, 218), e assim efetuava a
passagem de princípios práticos em geral para o princípio da moralidade.
Mas tal reflexão já traz consigo outros elementos, notadamente os ele-
mentos presentes no momento da relação. No juízo prático, que opera,
no primeiro momento da relação, com o par interno/externo dos con-
ceitos de comparação, o sujeito da ação é determinado como personali-
dade, isto é, a partir da sua “liberdade e independência em relação ao
mecanismo da natureza”. Como Kant escreve na primeira Crítica, “onde
há ação, ou seja, atividade e força, há também substância, e apenas nesta
se deverá buscar a sede dessa fecunda fonte de fenômenos” (KrV, B,
250). Mas enquanto na primeira Crítica, segundo a primeira das analo-
gias da experiência, a substância era definida como permanência no tem-
po, e no limite algo particular só adquiria tal estatuto por comparação,
isto é, de maneira relativa, na Crítica da Razão Prática a determinação da
substância em termos de personalidade liga o sujeito ao mundo inteli-
gível e opera como index da identidade do sujeito na multiplicidade de
suas ações. Mais ainda, ao tomar o sujeito como independente de todo
mecanismo natural externo, encontra, interno ao sujeito, o seu princí-
pio de determinação. Se o sujeito é então, como personalidade, consi-
derado unicamente na sua relação com a razão pura prática e seu prin-
cípio, ou seja, como obedecendo apenas àquilo que provém de sua ra-
zão, por outro, como pessoa, ele é considerado como pertencente ao
mundo sensível, porém submetido à sua própria personalidade (KpV,
V, 87 – T. 103). Agora: é o conceito de pessoa que então permite a apli-
cação, a casos na experiência, dos conceitos puros e princípios práticos.
Tal conceito, Kant o define do seguinte modo na Metafísica dos Costumes:
“Pessoa é aquele sujeito cuja ação está apta a uma imputação” (MdS, VI,
222). Ora, o conceito de pessoa comparece justamente como segundo

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elemento das categorias de relação, que se escreve assim: “ao estado da
pessoa”. Por aí, o sujeito da ação permanece o mesmo quanto à sua
personalidade, pois toda atividade sua produz seus efeitos tão-somente
quanto ao seu estado, seja interno ou externo. Em verdade, até esse
ponto não se encontra ainda de modo claro a passagem ao direito, pois
o conceito de pessoa, considerada quanto ao seu estado, pode estar se
referindo tanto ao próprio sujeito que age quanto a um outro, o qual
sofre os efeitos de sua ação. Monika Sänger, porém, aponta para uma
alteração semântica de tal relação que conduz a bom caminho: “a rela-
ção prática de uma pessoa a outra não deve ser interpretada no sentido
de uma substância que atua sobre outra, mas como relação do estado de
uma pessoa que produz efeitos sobre o estado de outra”46 .
É no momento em que tal relação é pensada como recíproca que o
direito encontra sua via de integração ao sistema da liberdade, ou seja, é a
terceira das categorias de relação que permite pensar a relação jurídica como
proveniente da legislação da razão pura prática. Pois só então os diversos su-
jeitos são determinados como em comunidade recíproca de determinações
quanto aos seus estados. Pensar a comunidade jurídica significa pensar os
diversos arbítrios como coordenados, e não como subordinados uns aos ou-
tros, apenas. Mais ainda, significa pensá-los - em analogia ao princípio da
simultaneidade, o qual deriva da categoria de comunidade - em uma comu-
nidade ideal, fundamento objetivo de toda determinação empírica dos direi-
tos47 . Mas porque fundamento objetivo? Certamente não custa lembrar que,
na primeira Crítica, “a forma essencial [de uma comunidade real] consiste na
unidade sintética da apercepção de todos os fenômenos” (KrV, B 264), ou
seja, na unidade da razão como atividade de síntese a partir de princípios a
priori. Destarte, a comunidade jurídica (real) nada mais faz do que apresentar
a unidade sintética da razão prática, ou melhor, a comunidade jurídica ideal.
Mas simplesmente pensá-la como recíproca não é suficiente para
determinar tal relação como jurídica em sua especificidade própria.
No § B da Doutrina do Direito, Kant divide o movimento de reflexão
que determina a especificidade do conceito moral de direito em três
momentos: (1) “a ele concerne apenas a relação externa e em verdade

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prática entre uma pessoa e outra”; (2) “ele não significa a relação do
arbítrio [de um] com os anseios do outro, mas simplesmente com o
arbítrio do outro”; (3) “nela não intervém a matéria do arbítrio, mas se
pergunta apenas pela forma da relação entre os arbítrios”. Com tais
momentos tem-se, pois, que o conceito de direito significa uma rela-
ção prática, mas que é externa (1), não empírica (2) e sobretudo for-
mal (3) entre os arbítrios. Sänger afirma que o segundo momento
visa excluir implicações empíricas do conceito de estado (Zustand), de
modo a que se chegue a um estado não-empírico da pessoa, sem con-
tudo tornar impossível uma passagem para o empírico. Tal estado, ela
afirma, é “o estado de um livre uso do arbítrio em geral”48 , que terá
no direito sua condição formal, na medida em que este é “o conceito
integrativo das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser uni-
ficado com o arbítrio de outro segundo uma lei universal” (MdS, VI,
230). Agora, tal estado permite a passagem para o empírico porque os
diversos sujeitos são considerados, em suas relações exteriores, não
quanto a ações meramente possíveis, mas sim quanto a seus atos, isto é,
suas ações efetivas e que lhes podem ser imputadas. É nessa reflexão,
que extrai de uma síntese empírica o seu fundamento racional, que os
diversos sujeitos podem então se reconhecer como sujeitos de direito
que limitam reciprocamente a liberdade de uso de seu arbítrio à con-
dição de sua universabilidade. Mas é quanto ao último momento, o
momento da forma da relação entre os arbítrios, que cabe insistir mais
um pouco, porquanto é a partir daí que se entrevê o caráter necessário
da relação. Pois a relação jurídica não é uma relação que pode ou não
ter lugar; ela é necessária, a ela se vincula o conceito de obrigação –
mais ainda, de uma obrigação que não prevê qualquer exceção, que é
dever estrito. Nesse ponto, a questão é mais uma vez modal. Ao se
retornar à tábua das categorias da segunda Crítica, vê-se que o corres-
pondente prático das categorias modais teóricas de necessidade e con-
tingência é o par dever-perfeito/dever-imperfeito. Aqui parece haver
uma dificuldade, pois que tipo de analogia pode ser estabelecida entre
dever-imperfeito e contingência? Considerar uma ação como dever

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não é justamente determiná-la como necessária, porque prescrita pela
razão pura prática? Ao analisar o § VII da “Introdução” à Doutrina da
Virtude é possível ver onde está a contingência:
se a lei [que determina deveres apenas éticos] só pode ordenar a máxima da
ação, e não as próprias ações, [isso] é um sinal de que ela deixa ao livre arbí-
trio um certo espaço de jogo (latitudo) quanto à execução (observância), quer
dizer, ela não pode indicar de modo preciso como e até que ponto deve efetuar-
se a ação em vista do fim que é ao mesmo tempo um dever (MdS, VI, 390).

Assim, a contingência não estando no fim - e tampouco na máxi-


ma -, está na maneira de levar a cabo a ação. Quando, no § B da Doutrina
do Direito, Kant afasta qualquer consideração da relação entre o arbítrio
de um e o desejo, ou anseio, do outro, é também essa problemática que
está em questão, porquanto tal relação é o caso de uma ação de benevo-
lência (ou de crueldade). Em verdade, nenhuma consideração quanto
ao fim das ações, sejam fins do próprio agente, sejam fins de qualquer
outro, parece entrar como componente da reflexão jurídica, a menos
que esse fim seja ele mesmo, não apenas um dever, mas acima de tudo
um direito. Kant, contudo, não segue essa última via, e é com todo
rigor que evita introduzir qualquer consideração com respeito a fins
em matéria de reflexão jurídica, ao menos quando se trata de analisar os
fundamentos racionais do direito, que poderiam então ser tomados como
uma instância tão-somente pragmática de regulação das relações sociais
(conforme terceiro momento do § B).
O caminho de Kant, porém, pode ser encontrado nesta mesma passa-
gem citada acima: pois enquanto as leis éticas fornecem leis para as máxi-
mas das ações, as ações são objetos da legislação jurídica. Não quanto ao fim
a que se dirige a ação, ou seja, não quanto à sua matéria, mas apenas quanto
à sua forma. O que marca então a especificidade da legislação jurídica é a
possibilidade dela ser exterior, de sorte que ética e direito se distinguem quanto
ao modo da obrigação, da realização do dever Verpflichtung (MdS, 220). A
legislação jurídica, uma vez que ela pode ser externa, determina direitos e
deveres externos; mais ainda, a partir dela, como escreve Kant, “um outro,

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em virtude de seu direito, pode sem dúvida exigir de mim ações conforme
à lei, mas não que essa lei seja ao mesmo tempo o móbil dessas ações”
(MdS, VI, 391)49 . Dito de modo mais claro: “direito e faculdade de coagir
significam o mesmo” (MdS, VI, 232), uma vez que a coerção se opõe a todo
obstáculo ao uso da liberdade segundo leis universais. Cabe dizer, porém,
que não se trata de qualquer coerção, mas apenas a coerção que tem assegu-
rada a sua possibilidade moral.
Como que remetendo a essa passagem da Doutrina do Direito, na
“Introdução” à Doutrina da Virtude Kant afirma que o princípio supre-
mo da doutrina do direito é uma proposição analítica:
Que a coerção externa, na medida em que ela constitui uma resistência ao
obstáculo que se opõe à liberdade externa que concorda consigo mesma se-
gundo leis universais (um obstáculo ao obstáculo à liberdade), possa ser com-
patível com fins em geral, é evidente (klar) segundo o princípio de contradi-
ção, e não tenho necessidade de sair do conceito de liberdade para discernir a
coerção, quaisquer que sejam os fins que alguém queira se propor. Então, o
princípio supremo do direito é uma proposição analítica (MdS, VI, 396).

De forma alguma deve-se pensar, a partir daí, que no direito só há


proposições analíticas. Pois quando o que é objeto de reflexão não é o
conceito de liberdade que concorda consigo mesma, mas sim os objetos
pensados sob tal conceito, isto é, os atos de um arbítrio livre e os estados
deles decorrentes, os princípios do direito são então proposições sintéticas
a priori. A primeira comparação, quando então o conceito de liberdade é
comparado ao conceito de coerção moralmente possível em vista do acordo
entre ambos, revela apenas a unidade originária e formal da razão prática,
ou melhor, da idéia do arbítrio unificado de todos. Fazer desta idéia con-
dição objetiva, e portanto necessária, para todo ato do arbítrio naquilo
que ele possui de exterior, é um ato de síntese . É, por assim dizer, a
construção do conceito de direito. E quanto a este ponto “a razão preocu-
pou-se, tanto quanto possível, de dotar o entendimento de intuições a
priori”, tornando assim possível a construção do conceito de direito. O
entendimento, porém, é uma faculdade discursiva de conhecimento, isto

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é, ela opera apenas com conceitos e juízos, jamais com intuições, que
pertencem à sensibilidade. Quanto a esse ponto, quanto a essa distinção
entre entendimento e sensibilidade, vital para a revolução copernicana,
não se deve esperar que Kant possa estar abrindo mão dele. O que pode
então significar tal passagem? Que a razão se preocupou em dotar o en-
tendimento de um procedimento a priori, por meio do qual ele pode
tornar sensível o conceito do direito. Afirmar então que o entendimento
dispõe de intuições a priori significa apenas isso: ele dispõe de um proce-
dimento a priori de sensibilização de conceitos e idéias práticas. Na Crítica
da Razão Prática a típica se ocupa justamente da análise de tal procedimen-
to. Boa parte do capitulo seguinte trata justamente de apontar para um tal
procedimento no âmbito da razão jurídica, fazendo assim do ideal de
exatidão matemática do meu e teu jurídicos (MdS, VI, 375) aquilo que
justamente ele é: um ideal.

Do Direito aos Direitos

Acima foi feita alusão à analogia entre a dedução do direito de propri-


edade e a refutação do idealismo. É agora o momento de enfrentar breve-
mente tal questão. Para tanto, é importante retornar a uma passagem do
“Prefácio” à Doutrina do Direito, que afirmava a analogia com os Primeiros
princípios metafísicos da ciência da natureza: “o direito, que pertence ao sistema
projetado a priori, deverá constituir o texto [dessa doutrina do direito]; os
direitos, porém, que se referem a casos particulares da experiência, serão
objetos de observações em parte desenvolvidas” (MdS, VI, 205). Entre um
e outro momento tem-se a construção do sistema, que vai do universal e
abstrato, mas posto como condição de possibilidade de toda experiência
jurídica, até os casos particulares, que devem justamente ser subsumidos
sob tal universal. Do conceito de direito, porém, não se chega a casos parti-
culares, a menos que se possa contar com princípios sintéticos a priori. Se o
direito tem como sua função garantir e determinar um estado do uso livre
do arbítrio em geral, na medida em que este se deixa unificar segundo leis
universais, são justamente as pretensões jurídicas particulares dos diversos

61

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sujeitos de direito que devem ser por aí determinadas, e isso quanto à sua
legalidade e legitimidade. Entre o direito, que determina a forma da relação
externa dos diversos arbítrios em vista dos seus estados, e os direitos, há
justamente que dar “conteúdo” a tal conceito de estado. Sänger afirma que
o preenchimento de tal conceito começa com a divisão da doutrina do
direito, isto é, com a afirmação do direito inato à liberdade50 , como inde-
pendência diante de outro arbítrio obrigante (MdS, VI, 237), ou ainda como
faculdade (Befugnis) de agir. Deste direito, a igualdade inata, a qualidade do
homem de ser seu próprio senhor, e mesmo a qualidade de ser um homem
justo, não são verdadeiramente distintas. A rigor, consideradas as coisas
dessa perspectiva, isto é, do direito inato à liberdade, há apenas um único
direito, e não direitos (MdS, VI, 238).
No Nachlass, Kant faz “depender” o direito inato e interno à li-
berdade do direito externo e adquirido da propriedade. Sua intenção
é, antes de tudo, afirmar a necessidade de um conceito de posse sim-
plesmente jurídica, o qual estaria no fundamento de toda relação jurí-
dica de propriedade. Seu adversário é o empirista jurídico, ou seja,
aquele que reduz a relação jurídica de propriedade a uma relação tão-
somente física; mais ainda, que tem na posse física uma instância
normativa a regrar as determinações do meu e teu externos. Reduzir
a posse jurídica à posse apenas física seria tornar, e isso por meio do
princípio da liberdade segundo leis universais, todo o utilizável exter-
no a nós inutilizável (res nullius vsus), de modo que o direito seria
apenas a “faculdade do sujeito servir-se exclusivamente das determi-
nações inerentes a ele mesmo”. Mas “porque, numa tal relação, esse
sujeito está diante de objetos externos; [porque] as determinações
internas também dependem de coisas externas, e sem estas não pode-
riam existir, então o direito seria impedir a todos ter suas determina-
ções internas (...) ou seja, a dependência do uso livre dos objetos ex-
ternos com relação à posse física elimina igualmente o direito inato à
posse de si mesmo, ou o arbítrio destrói o seu próprio direito inato, o
que se contradiz (...) Pois que é direito inato o direito de fazer uso
exclusivo de mim e de todas as determinações externas, nas quais

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dependo naturalmente, como relações externas, dos objetos do arbí-
trio, ou seja, [poder] contá-los como meu e teu possíveis, então o
princípio que elimina o meu e teu provoca dano jurídico ao direito
inato, o que se contradiz” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 309/310).
Afirmar que as determinações internas dependem de coisas ex-
ternas não significa fazer destas fundamento das primeiras, mas ape-
nas do seu exercício. E isso não em matéria jurídica, ou seja, se as
determinações internas, como direito inato, se revelam como funda-
mento de toda relação jurídica externa, por outro lado, a liberdade do
arbítrio é liberdade de atuar no mundo e sobre os seus objetos.
A liberdade interna deve se poder fazer externa, o mundo das coisas é
mundo para o arbítrio. Fazer da relação física entre arbítrio e objeto
condição da relação jurídica, é tomar uma relação natural do exercício
do arbítrio como sendo uma relação jurídica. Mas a relação jurídica
não diz apenas da relação entre arbítrio e objetos a ele externo; muito
mais, por meio dela se pensa uma relação entre um sujeito e algo a ele
externo - algo, porém, que a ele está de tal modo ligado, “que qual-
quer alteração [no objeto externo], por meio de um outro que não [a
pessoa que o possui], é igualmente alteração [da pessoa]” (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 212). Nesse nível, não se está apenas cuidando da
apresentação do direito do ponto de vista simplesmente formal, isto
é, como limitação recíproca da liberdade à condição de sua universa-
lidade, mas se pensa a relação jurídica como dinâmica. Assim, o direi-
to privado consistirá, em grande parte, numa reflexão acerca do pro-
blema da aquisição do objeto externo como meu e teu jurídicos, que
deve conduzir da apreensão do objeto pelo arbítrio no espaço e no tempo
até a apropriação pensada como ato de uma vontade legislando univer-
salmente quanto ao exterior (MdS, VI, 258/259).

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NOTAS
1
Rawls, mas também Habermas, são os principais expoentes de uma tal reivindica-
ção. Mas aqui não se pretende analisar o legado de Kant, sua importância, para a
filosofia política contemporânea. Com relação a esse ponto, pode-se consultar o
“Prefácio” que Kersting acrescenta à edição de bolso do seu Wohlgeordnete Freiheit,
Surhkamp, Frankfurt am Main, 1993. Também se pode consultar Alessandro Fer-
rara, para quem a distinção kantiana entre juízo determinante e juízo reflexionante
permanece relevante para a capturar a real polaridade das duas concepções de justi-
ça hoje dominantes, ou seja, entre liberais e comunitaristas – Justice and Judgment –
the rise and prospect of the judgment model in contemporary political philosophy, Londres,
SAGE, 1999, em especial a “Introdução”. Com relação a Habermas e seu trabalho
anterior a Faktizität und Geltung, Wellmer, A. Ethik und Dialog – Elemente des moralisches
Urteils bei Kant und in der Diskursethik, Frankfurt am Main, Surhkamp, 1986. Tam-
bém Ricardo Terra, “Notas sobre sistema e modernidade – Kant e Habermas” in
_______, Passagens – Estudos sobre a filosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003.
2
Em uma perspectiva pragmática, e não tanto prática, o que implica um conheci-
mento da natureza do homem tal qual ele se fez, é possível ler na Antropologia: “O
homem é determinado/destinado, por sua razão, a estar com outros homens em
sociedade e, por meio da arte e da ciência, a cultivar-se, civilizar-se e moralizar-se,
por maior que seja sua tendência animal a abandonar-se passivo às seduções do
conforto e do bem-viver que ele chama de felicidade; muito mais, ele é determina-
do/destinado a se tornar ativamente, na luta contra os obstáculos devidos a baixeza
de sua natureza, digno da humanidade” (VII, 325). A perspectiva pragmática apre-
senta e determina os meios – a arte e a ciência, as quais cultivam, civilizam e mora-
lizam os homens – para a realização de uma determinação que é dada pela razão – a
vida em sociedade com outros homens.
3
Riedel, M. Urteilskraft und Vernunft – Kants ursprüngliche Fragestellung, Frankfurt am
Main, Suhrkamp, 1989, p. 111.
4
Silber, J. R. “Procedural Formalism in Kant’s Ethics”, in Review of Metaphysics, V.
XXIII, n. 2, 1974, p. 201.
5
É Riedel quem alerta para o fato de que Kant também chamava os “primeiros
princípios”, modo pelo qual ficou consagrada a tradução de Anfangsgründe, presente
no próprio título dos Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, de
“Elemente des Grundes”. Op. cit. p. 107.
6
Weil, Eric, Problèmes kantiens, Paris, Vrin, 1990, página 148.
7
Reich, Klaus, The completeness of Kant’s table of judgments, trad. Jane Kneller e Michel
Losonsky, Stanford, Stanford University, 1992. Longuenesse, Béatrice, Kant et le
pouvoir de juger, Paris, PUF, 1993. Heidegger, Kant et le problème de la métaphysique,
trad. Walter Biemel, Paris, Gallimard, 1981. De passagem, cabe frisar que a leitura
de Heidegger tem implicações não apenas quanto à filosofia teórica de Kant, mas

64

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também em relação à sua filosofia prática, porquanto a imaginação transcendental
estaria na origem também dessa última (Kant et le problème de la métaphysique, p. 213).
No domínio da filosofia prática, porém, (Kant insiste várias vezes, como se verá) é
o entendimento que “esquematiza”. Para uma análise da razão prática que se apro-
xima da leitura de Heidegger, do segundo Heidegger pelo menos, ver Loparic, Z.
“O fato de razão – uma interpretação semântica” in Analytica 4 – número 1, Rio de
Janeiro, 1999. O problema agora é que se abandona “o ponto de vista da filosofia da
reflexão” (página 22), o que de certo modo equivale a dizer: abandona-se o ponto
de vista do próprio Kant. Assim, a passagem entre lei moral e sentimento de respei-
to, central para Loparic, é tida como mais um caso de “harmonia preestabelecida”
(página 34). Aqui se insistirá justamente na importância da reflexão.
8
Para tanto, ver Longuenesse, Béatrice. Kant et le pouvoir de juger, p. 220 e seguintes.
9
O tema da aquisição originária das categorias não será aqui desenvolvido. Uma
boa análise do problema e de sua trajetória nos estudos kantianos pode ser encon-
trada em Oberhausen, M. Das neue Apriori – Kants Lehre von einer “ursprünglichen
erwerbung” aprioricher Vorstellung, Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1997, em especial
o capítulo IV: “Die acquisitio originaria der reinen Begriffe”, páginas 165 e seguin-
tes, onde o autor defende que a aquisição das categorias se dá a partir das regras do
pensamento (lógica), e se deixam conhecer a partir da atividade legisladora do en-
tendimento instado pela sensibilidade. Ver também Longuenesse, B. Kant et le pouvoir
de juger, p. 284, que se refere a tal questão.
10
Kaulbach, F. Das Prinzip Handlung in der Philosophie Kants, Berlim, Walter de
Gruyter, 1978, p. 299. A passagem de Kant a que ele se refere encontra-se em KpV,
V, 65/66 – T. 79: “Estas categorias da liberdade (...) têm, em seu fundamento, ao invés
de uma intuição - que não se encontra na própria razão, mas que deve ser extraída
de outro lugar, a saber, da sensibilidade -, a forma de uma vontade pura como dada na
razão, por conseguinte, na própria faculdade de pensar; segue-se pois daí que, uma
vez que todas as prescrições [ou preceitos] da razão pura prática se têm a ver apenas
com a determinação da vontade e não com as condições naturais (do poder prático) da
execução do seu propósito, os conceitos práticos a priori tornam-se, no vínculo com o
princípio supremo da liberdade, imediatamente conhecimentos e não precisam
aguardar intuições para adquirir significação”.
11
Sobre o primado da forma sobre a matéria na filosofia teórica, ver Longuenesse,
Kant et le pouvoir de juger, p. 185 e seguintes. Com relação à filosofia prática, Kant
repete um sem número de vezes afirmações como: “se se tivesse previamente in-
vestigado de modo analítico a última [a lei prática], ter-se-ia descoberto que não é o
conceito de bem, como um objeto, que determina e torna possível a lei moral, mas,
inversamente, é a lei moral que determina e torna possível acima de tudo o concei-
to de bem, na medida em que merece absolutamente esse nome” (KpV, V, 63-64 –
T. 78). Ora, o que define uma ação como dever é o imperativo categórico, lei formal
da nossa razão prática; de resto, o método analítico é aquele que Kant utiliza nas
duas primeiras seções da Fundamentação. Com relação ao caráter procedimental da

65

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razão prática, pode-se ver principalmente as leituras de Kersting – Wohlgeordnete
Freiheit, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1993; Die politische Philosophie des
Gesellschaftsvertrags, Darmstadt, Primus, 1994, e Maus, I. Zür Aufklärung der
Demokratietheorie – Rechts – und demokratietheoretische Überlegungen im Anschluss an Kant,
Frankfurt sobre o Meno, Suhrkamp, 1994, e Silber, J. “Procedural Formalism in
Kant’s Ethics”, in Review of Metaphysics, Vol. XXIII, n. 2, 1974.
12
Na Fundamentação Kant escreve: “E então são possíveis imperativos categóricos,
pois que a idéia de liberdade me torna um membro do mundo inteligível, por meio
do qual, se eu fosse apenas um tal membro, todas as minhas ações seriam sempre
conformes à autonomia da vontade; mas na medida em que eu me percebo, ao
mesmo tempo, como membro do mundo sensível, elas devem ser conformes a essa
autonomia, dever categórico que é representado em uma proposição sintética a priori,
pois que à minha vontade afetada por desejos sensíveis vem acrescentar-se ainda a
idéia dessa mesma vontade, mas enquanto vontade pura e por ela mesma prática,
pertencente ao mundo inteligível, vontade pura que contém a condição suprema da
primeira segundo a razão (mais ou menos como às intuições do mundo sensível
são acrescidos os conceitos do entendimento, os quais, por si mesmos, não signifi-
cam nada mais que a forma de uma lei geral, e tornam assim possíveis as proposi-
ções sintéticas a priori sobre as quais repousa todo conhecimento da natureza)”
(Grund. IV, 454 - 104). Essa passagem adianta questões que serão tratadas mais adi-
ante; no momento, importa ver que o único conteúdo que a razão prática impõe às
máximas é a forma da lei, a saber, sua universalidade. A condição não é material,
mas formal, ou seja, toda matéria possível para uma vontade determinada pela lei
moral deve estar subordinada à sua condição formal, que lhe é anterior.
13
A propósito da lei moral e do imperativo categórico como uma proposição sinté-
tica-prática a priori e da sua diferença para com a lei moral como lei de uma vontade
racional perfeita, ver Fundamentação: “Eu ligo à vontade, sem condição pressuposta
de qualquer inclinação, o ato a priori, e portanto necessariamente (embora só
objetivamente, quer dizer, partindo da idéia de uma razão que teria pleno poder
sobre todos os móbiles subjetivos). Isto é pois uma proposição prática que não de-
riva analiticamente o querer de uma ação de um outro querer já pressuposto (pois
nós não possuímos uma vontade tão perfeita), mas que o liga imediatamente com o
conceito da vontade de um ser racional, como algo qualquer que nele não está
contido” (Grund, IV, 420 – T. 57). A propósito de ser a lei moral, para um ser
racional perfeito, uma proposição analítica, Guido de Almeida parece afirmar algo
semelhante – Almeida, Guido de. “Kant e o ‘facto da razão’: cognitivismo ou
decisionismo moral?” in Studia Kantiana, volume 1, número 1, Rio de Janeiro, 1998,
página 63: “Com efeito, sendo a razão o poder de subsumir o particular a princípios
universais, não poderíamos dizer que a conformidade a princípios é precisamente o
característico de uma vontade racional? E não bastaria isso, então, para considerar
como analítica a ligação desses conceitos na fórmula da lei? Com efeito, podería-
mos dizer, ao que parece, que a lei moral diz que uma vontade perfeitamente raci-
onal, isto é, uma vontade que sempre se conforme a princípios universais conforma

66

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suas máximas a princípios universais”. Quanto a estender ao imperativo categórico
o caráter analítico da ligação de conceitos, não parece ser possível: o dever exprime
já uma síntese, ou seja, uma ato particular da reflexão que liga a priori a possibilidade
de conformindade à lei de uma vontade imperfeita ao dever de se conformar.
14
O mesmo no Canon da primeira Crítica: “Contudo, saber se a própria razão, nos
atos pelos quais prescreve leis, não é determinada, por sua vez, por outras influências e
se aquilo que, em relação aos impulsos sensíveis se chama liberdade, não poderia ser,
relativamente a causas eficientes mais elevadas e distantes, por sua vez, natureza, em
nada nos diz respeito do ponto de vista prático, pois apenas pedimos à razão, imediata-
mente, a regra de conduta; é, porém, uma questão simplesmente especulativa, que
podemos deixar de lado, na medida em que o nosso propósito está dirigido apenas para
o fazer e o deixar de fazer” (B 831). Dito de modo mais ríspido: de uma perspectiva
prática, toda a discussão sobre o caráter compatibilista ou não da concepção kantiana
da liberdade parece ser ociosa, ao menos no âmbito deste trabalho. Encontrar uma
outra perspectiva para o problema da liberdade, que não a especulativa, aponta para
mais uma dimensão da guinada radical que Kant dá na solução dos problemas filosófi-
cos, sem abrir mão de considerar tal tarefa como sendo metafísica. Por outro lado,
também se deixa de lado, aqui, o problema da restrição, na primeira Crítica, da incidên-
cia da filosofia transcendental no domínio do uso apenas teórico da razão.
15
Na tradução de Inbegriff por “conceito integrativo”, e não por “conjunto”, como é
o costume, segue-se Béatrice Longuenesse, que traduz Inbegriff como “concept
intégratif ”. Cf. por exemplo em Kant et le pouvoir de juger, p. 339 .
16
Como o objeto aqui em análise é antes de tudo prático, isto é, como aqui se
analisa a filosofia política de Kant e sua integração ao sistema da prática, faz-se eco-
nomia do sistema da natureza.
17
Para uma leitura da filosofia prática de Kant, em especial da sua filosofia política,
que insiste no problema da passagem, ver Ricardo R. Terra, Passagens – Estudos sobre
a filosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003.
18
Cassirer, Ernst. Rousseau, Kant, Goethe, trad. Jean Lacoste, Paris, Berlin, 1996, p. 52.
19
É possível estabelecer aqui um paralelo com uma célebre passagem da primeira
Crítica que pode ser esclarecedor: “Se, porém, todo o conhecimento inicia com a expe-
riência, não é por isso que todo ele deriva da experiência. Pois bem pode ser o caso de
nosso conhecimento de experiência mesmo ser um composto daquilo que recebemos
das impressões, e daquilo que nosso poder de conhecer produz por si mesmo (apenas
instado pelas impressões sensíveis), adição que não distinguimos dessa matéria ele-
mentar, a não ser quando um longo exercício nos torna atentos e aptos a separar o que
está assim composto” (KrV, B 1). Dieter Henrich coloca uma tal análise da origem no
centro do programa Crítico, isto é, na dedução transcendental, a qual tem como mode-
lo os Deduktionsschriften, textos jurídicos que, desde o século XIV e ainda em voga no
XVII, tratavam de justificar pretensões jurídicas controversas apelando para duas or-
dens de razões: quid facti e quid iuris. Mas species facti por si só não resolve a quaestio iuris,

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a qual deve provar a legitimidade (e a legalidade) da pretensão por meio de uma análise
da origem do direito em questão e que se alega possuir (Henrich, Dieter. “Kant’s Notion
of a Deduction” in Förster, Eckart, Kant’s Transcendental Deductions – the three Critiques
and the Opus postumum, Stanford, Stanford University Press, 1989, páginas 31 e 36).
Mas é evidente que não se trata para Kant de buscar a origem no tempo em que se
inicia o conhecimento, e sim na faculdade que o torna possível. Esse ponto retornará,
em especial quando da análise do direito à propriedade, no qual o problema da origem
tem grande peso e se presta a sérios equívocos.
20
Não se pretende insistir na análise do conceito de bem soberano, união de virtude –
elemento formal - e felicidade – elemento material. Importa sobretudo ver a tarefa im-
posta pela razão a um ser racional finito. Para uma análise do bem soberano, que tem nele
o conceito central da posição de transcendência e imanência da razão prática e da sua
legislação em relação ao mundo sensível, ver Silber, J. “Der Schematismus der praktischen
Vernunft”, Kant-Studien 56, 1966. A melhor ação que se põe para a promoção do bem
soberano ocupa, segundo Silber, a função de símbolo, isto é, torna compreensível, para a
sensibilidade, o mandamento incondicional da razão.
21
Na segunda Crítica a mesma tensão se encontra ainda, dentre outras, na seguinte
passagem: “Essa lei de todas as leis apresenta, pois, como todos os preceitos morais
do evangelho, a disposição moral em toda sua perfeição, a qual, enquanto um ideal
da santidade, não é atingível por criatura alguma, constituindo no entanto o arqué-
tipo do qual devemos esforçar-nos por nos aproximar e ao qual, num progresso
ininterrupto mas infinito, devemos procurar nos assemelharmos” (KpV. V, 83 – T.
99). É evidente que Kant não está fundando uma moral do evangelho, como tal
passagem pode sugerir. Uma moral do evangelho, como no caso da moral cristã,
pode ser no melhor dos casos símbolo, esquema da moralidade pura, isto é, sua
representação “sensível”, no sentido de que os cristãos assim a compreendem, e
isso empiricamente.
22
Silber escreve: “A tarefa moral exige a realização de uma idéia transcendente da
razão, do bem supremo”. Silber, “Der Schematismus der praktischen Vernunft”,
Kant-Studien 56, p. 262.
23
Um tal procedimento de universalização pode ser visto operando na seguinte passa-
gem da introdução à Metafísica dos Costumes: “No que diz respeito ao prazer prático,
a determinação da faculdade de desejar que tal prazer deve necessariamente anteceder
como causa se irá chamar, no sentido estrito, de desejo, ao passo que o desejo ‘crônico’
será chamado de inclinação; e, porque a ligação entre prazer e faculdade de desejar, na
medida em que o entendimento a julga válida segundo uma lei universal (de todo
modo apenas para o sujeito), se chama interesse, o prazer prático torna-se nesse caso um
interesse da inclinação; por sua vez, quando o prazer apenas pode seguir uma deter-
minação anterior da faculdade de desejar, ele será chamado de prazer intelectual, e o
interesse tomado pelo objeto, interesse da razão” (MdS. VI, 212). O que interessa nes-
sa passagem é que de um lado temos o entendimento que julga uma ligação como
válida para o sujeito a partir de uma lei universal, o que significa: a validade universal

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é apenas empírica e repousa sob determinações de uma faculdade de desejar particular,
no caso, a faculdade de desejar do sujeito em questão; mas do outro lado tem-se uma
ligação cuja validade não é empírica, e que tampouco é válida para o sujeito, apenas, e
segundo as determinações (empíricas) deste. Neste último caso, o entendimento está
submetido à razão pura prática; a ligação é válida não apenas para o sujeito, mas para
todo ser racional. Mas aqui não se sustenta que o procedimento de universalização
presente em tal passagem visa a produção de esquemas, ou melhor, do tipo; não é este
de modo algum o caso. O que importa é que nesta passagem o entendimento se en-
contra na mesma condição que é atribuída à imaginação no esquematismo
transcendental da primeira crítica, ou seja, ela pode ser meramente passiva e reprodutora,
ou ativa e produtora – a imaginação transcendental na primeira crítica é ativa quanto
justamente está submetida as regras do entendimento, e não “reflete” apenas sobre o
que lhe é dado na sensibilidade. Por outro lado, o esquematismo aqui não se refere ao
esquematismo do entendimento, mas sim “ao problema mais geral que, em domínios
muito diferentes, reclama a solução chamada de ‘esquematismo’, recurso que “impõe-
se a nós quando devemos julgar, quer dizer, ‘decidir se uma coisa está ou não subme-
tida a uma regra dada” (Lebrun, G. Kant e o fim da metafísica, trad. Carlos Alberto Ribei-
ro de Moura, São Paulo, Martins Fontes, 1993, página 292), ou seja, aqui no caso
esquematismo significa, não o procedimento da imaginação segundo uma regra do
entendimento, mas sim o procedimento do próprio entendimento a partir de uma
regra da razão pura prática.
24
“É então permitido o uso do mundo sensível como tipo de uma natureza inteli-
gível, desde que eu não transfira para este as intuições e tudo o que delas depende,
mas me refira apenas à simples forma da conformidade à lei em geral (cujo conceito
se encontra também no mais comum uso da razão, mas que não pode ser determi-
nado a priori em nenhuma outra intenção, a não ser para o uso prático da razão).
Pois leis são, como tais, idênticas (einerlei), tirem-se os seus princípios de determi-
nação de onde se quiser” (KpV. V 70 – T. 84)
25
É justamente nesse exercício da faculdade de julgar, na formação dos tipos, que
se dá a Ilustração, na medida em que é por meio da típica que a lei moral encontra
sua forma de apresentação. Já Krüger tomava a típica como “a instrução moral
exata”. Critique et Morale chez Kant, trad. M Regnier, Paris, Beauchesne, 1961, p. 115.
É ao tornar compreensível, por meio de uma apresentação em algo sensível, a idéia
(representação) de um mundo inteligível, e portanto do próprio caráter inteligível
do homem do membro de um tal mundo, que se pode dizer que a típica consiste
na autocompreensão do homem como ser submetido à razão pura prática.
Habermas, “Trabalho e Interação” in Técnica e ciência como ideologia, trad. Artur
26

Morão, Lisboa, Edições 70, 1987.


27
Habermas, “¿Afectan las objeciones de Hegel contra Kant también a la ética del discur-
so?” in Aclaraciones a la ética del discurso. Trad. José Mardomingo, Editoral Trotta, p. 24.
28
Habermas, idem, p. 23. Habermas se afasta ainda em um outro ponto, quando

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funda, ou melhor, deriva o princípio de universalização dos pressupostos univer-
sais da argumentação, e não, como teria feito Kant, do faktum da razão, isto é, da
experiência de estar intimado ao dever: idem, p. 24.
29
Krüger, Critique et Morale chez Kant, p. 105 seguintes. Paton irá encontrar cinco
formulações. Não cabe aqui discutir esse ponto, mas apenas observar, com Silber,
que o número de formulações pode ser tão ilimitado quanto diversa é a sensibilida-
de. Silber, J. “Procedural Formalism in Kant´s Ethics”, p. 206.
30
Após apresentar e analisar, na Fundamentação, os quatro exemplos de máximas,
Kant escreve: “Esses são apenas alguns dos muitos deveres efetivos – ou que pelo
menos tomamos como tais -, cuja divisão, a partir do princípio único enunciado,
cai claramente diante dos olhos” (Grund. IV, 423 – T. 62)
31
Com relação ao direito, Balthazar Barbosa Filho lança sérias dúvidas quando à
possibilidade de uma dedução transcendental do direito em Kant, o que acabaria
por tornar sem sentido a expressão razão prática- jurídica, ou mesmo faculdade
jurídica de julgar segundo conceitos a priori – o que dizer então de uma faculdade
política de julgar, de uma filosofia política? Assim, o direito restaria no âmbito dos
imperativos hipotéticos, no registro do pragmático, e não do prático. Um dos pon-
tos toca justamente nessa questão: “para que o direito se torne uma concepção ne-
cessária, para que ele possa ser realmente deduzido, não é suficiente que o outro
seja apenas postulado. A passagem da moralidade à legalidade parece exigir que o
sujeito ético possa fundar o direito e o poder. Pode ele fazê-lo?”; e ainda: “Em Kant,
o outro jamais é conceitualmente necessário, mesmo como postulado. Com efeito,
da mesma forma que não podemos jamais construir a idéia de liberdade, nem, por
conseqüência, dar exemplos de moralidade, não podemos igualmente construir a
idéia de uma pluralidade de agentes livres... Os atos feitos por dever aparecem sem-
pre como atos conformes ao dever. De outro lado, a forma mesmo de toda dedução
transcendental (ao menos no domínio prático) é necessariamente exprimida na pri-
meira pessoa. Na medida em que eu penso, eu só posso agir sob a idéia de minha
autonomia. Mas isso é tudo. Para aquilo de que se incumbe a prova, o outro pode
muito bem não passar de um ser natural” (Barbosa Filho, B. “Sur une critique de la
raison juridique” in Les Cahiers de Fontenay, n 67/68, setembro de 1992, 127139).
32
Riedel, Manfred, op. cit. p. 118.
33
Silber, J. “Procedural Formalism in Kant´s Ethics”, p. 217.
34
Se as leis morais, e mesmo os seus princípios, se distinguem de tudo o que é
empírico, Kant contudo não deixa de afirmar que as leis, mesmo sendo a priori, “em
verdade exigem ainda uma faculdade de julgar aguçada pela experiência, a fim de,
por um lado, diferenciar em que casos ela tem sua aplicação; por outro, a fim de
obter acesso à vontade do homem...” (Grund, IV, 389 – T. 16).
35
Como Kant escreve na quarta proposição de Idéia de uma história universal: “Dão-
se então os primeiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à cultura, que con-
siste propriamente no valor moral do homem; aí, desenvolvem-se pouco a pouco

70

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os talentos, forma-se o gosto e tem início, por meio mesmo de uma ilustração pro-
gressiva, a fundação de um modo de pensar que pode transformar, com o tempo, as
toscas disposições naturais para o discernimento moral em princípios práticos determinados (grifo
DTP) e assim finalmente transformar um acordo extorquido patologicamente em
vista da sociedade em um todo moral” (Idee, VIII, 21 - T. 14). Dentre os talentos que
se desenvolvem ao longo da história não há que se menosprezar o desenvolvimento
do poder mesmo de julgar. Ora, é ao refletir sobre o curso da história, mediadora
entre natureza e razão, que os diversos sujeitos passam a ter clareza dos princípios
que determinam suas ações, e isso não apenas nos seus princípios subjetivos, mas,
isso sim, nos princípios objetivos, isto é, daqueles que determinam e orientam como
se deve agir. Afirmar que a exigência é posta a priori significa dizer que o primeiro
dever consiste em adotar, no julgamento de suas ações, a perspectiva da razão, tal
como ela se apresenta no postulado a priori do progresso. Que tal perspectiva seja
ela mesma, por meio de um acordo extorquido patologicamente, imposta pela na-
tureza, apenas confirma o caráter mediador da história. Mas então o mecanismo da
natureza não é puro mecanismo, mas mecanismo a serviço de um fim (causalidade
segundo fins), de modo que determinações impostas pela natureza se revelam em
sua conformidade com determinações impostas pela razão, e, a partir de uma pers-
pectiva da liberdade, passam a ter seu fundamento na razão mesma (causalidade
segundo a representação de fins). Como afirma Kaulbach, “essa natureza é descrita
de modo tal, como se nela a razão tivesse poder ilimitado: aquilo que Kant afirma
dela a partir de uma hermenêutica crítica, Hegel irá depois afirmar, em discurso
dogmático, sobre a razão na história” (Kaulbach, F. Das Prinzip Handlung in der
Philosophie Kants, Berlim, Walter de Gruyter, 1978, p. 275.). Cabe afirmar que a
distinção entre uma causalidade segundo fins e uma causalidade segundo a repre-
sentação de fins, que aqui se aplica a um outro contexto, encontra-se presente em
um texto no qual Lebrun analisa a obra de arte em Kant: Lebrun, G. “Œuvre de
l’Art et Œuvre d’Art”, Philosophie 63, Paris, Minuit, 1999.
36
É Fichte quem, em uma carta a Reihold datada de 29 de Agosto de 1795, formula o
problema de modo tão radical, mas exato: “Até onde devo me interrogar, onde devo
cessar de me interrogar, qual é o limite [de minha ação]? Kant teria respondido... até o
limite do ser racional. Eu replico: isso eu compreendi perfeitamente; mas onde se
encontra o limite dos seres racionais? Com efeito, os objetos de minhas ações são
sempre fenômenos no mundo sensível; quais serão, dentre os fenômenos, aqueles aos
quais aplicarei o conceito de ser racional e aqueles aos quais não aplicarei? Você sabe
muito bem, deveria responder Kant. Mas se está resposta é justa, ela, de todo modo, não é
nada filosófica. Eu monto um cavalo sem lhe pedir permissão e sem pretender, de mi-
nha parte, lhe servir de montaria; mas porque tenho mais escrúpulos diante do locador
de cavalos? Que o pobre animal não possa se defender não vem ao caso. É uma questão
séria saber se, apoiado pela opinião geral, eu monto e cavalgo um cavalo de modo tão
injusto quanto o russo que, apoiado também ele na opinião geral, caça, vende e, por
prazer, açoita um servo”. A tese de que a solução de Fichte é também a de Kant encon-
tra-se em Philonenko, “Science et opinion dans la Critique de la faculté de juger” in _______,

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Métaphisyque et Politique chez Kant et Fichte, Paris, Vrin, 1997. Aqui não se está a desco-
nhecer a seguinte passagem da Religião: “Não é de forma alguma necessário saber de
todas as ações possíveis se elas são justas ou injustas. Mas relativamente a isso que
quero realizar, devo não apenas julgar ou opinar que ela não é injusta, mas devo estar
assegurado, e essa exigência é um postulado da consciência que se opõe ao probabilismo,
quer dizer, a esse princípio que toma a simples opinião segundo a qual tal ação bem
que poderia ser justa, como suficiente para realizá-la. Podemos definir a consciência
do seguinte modo: é a faculdade de julgar moral judiciária [richtende moralische Urteilskraft]
que se julga a si mesma (...) A consciência não julga as ações como casos que tombam
sob a lei, pois é isso que faz a razão, na medida em que é subjetivamente prática (...);
mas aqui, [na consciência moral] a razão julga a si mesma, para saber se ela se encarre-
ga de tal juízo relativo às ações com todas as precauções (...)” (Rel. VI, 186). Mas a que
sentença pode chegar tal faculdade de julgar moral judiciária senão a uma opinião?
Certo, não uma simples opinião, porquanto se garante, como dever, ao menos o modo
de sua formação. Uma opinião esclarecida, poderia ser dito. Essa mediação, pela opi-
nião, entre o transcendental e o empírico não é sem conseqüência para o último capí-
tulo deste livro, quando tal problema retornará de modo talvez mais claro.
37
Na Metafísica dos Costumes podemos ler a propósito da virtude: “Se não for um efeito
de princípios refletidos, firmemente estabelecidos e sempre mais transparentes, a vir-
tude, como todo outro mecanismo procedente da razão técnico-prática, não estará
armada para desafiar todos os casos que se apresentam, nem suficientemente assegura-
da contra as alterações que novos atrativos podem suscitar” (VI, 383/4). Com isso, o
efetivo acima se refere não apenas às legislações empíricas, mas mesmo às legislações
puras, isto é, aos princípios metafísicos da ética e do direito. Pois há um primado do
juízo moral mesmo sobre o conceito de lei moral – e, a fortiori, de uma lei jurídica pura.
O conceito de uma lei moral é o conceito exigido pela faculdade de julgar prática como
elemento necessário para o seu exercício. Sobre o primado da forma juízo em relação
ao uso teórico da razão, ver Longuenesse, op. cit. 156.
38
Sobre a ética kantiana e o socialismo, pode-se consultar: Harry van der Linden:
Kantian Ethics and Socialism, Cambridge, Hackett, 1988. Em especial o apêndice apre-
senta um bom resumo do debate, no início do século XX, entre marxistas e kantianos.
39
Está muito além das intenções deste trabalho analisar o modo como se dá, na
Doutrina da Virtude, a passagem do elemento formal, a universalidade da lei que é
expressa no dever, para o elemento material, o qual é expresso no conceito de um
fim que é ao mesmo tempo um dever.
40
Para a relação entre imperativo categórico e coerção moralmente possível, ver
Daniel Tourinho Peres, “Imperativo Categórico e Doutrina do Direito” in Cadernos
de Filosofia Alemã 4, São Paulo, 1998, páginas 43 a 64.
41
Langthaler, Rudolf. Kants Ethik als “System der Zwecke”, Berlin, Walter de Gruyter,
1990. Em especial sua análise presente no capítulo dois da primeira parte: “Der
genau bestimmte Stellenwert des ‘Reich der Zwecke’: das Reich der Zwecke als
“Reich des Rechts” , páginas 34 a 46.

72

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42
Kant efetivamente escreve: “com relação ao dever meritório perante um outro, o
fim natural de todos os homens é sua felicidade própria. Certo, é verdade que a
humanidade poderia subsistir, mesmo se ninguém contribuísse para a felicidade
dos demais – contanto que também nada lhes subtraísse intencionalmente; mas
isso seria um acordo apenas negativo e não positivo com a humanidade como fim em si,
se cada um não se esforçasse, na medida de suas forças, por contribuir com os fins
de seus semelhantes. Pois que se o sujeito é um fim em si mesmo, os seus fins têm
de ser tanto quanto possível os meus, para que aquela idéia possa exercer em mim
toda a sua eficácia” (Grund. IV, 430 – T. 71).
43
Nour, S. À Paz perpétua de Kant. São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 80.
44
É certo que consulta pode permanecer como experiência em pensamento. De
todo modo, essa experiência integra o ponto de vista do outro. Ainda com relação
ao segundo exemplo relativo ao segundo tipo: “Pois aquele que eu quero utilizar
para meu intuito por meio de uma tal promessa não pode de modo algum concordar
com a minha maneira de proceder a seu respeito, não pode portanto conter em si
mesmo o fim desta ação” (Grund. IV, 429/430 - T. 70).
45
Cf. p. 123 e seguintes.
46
Sänger, Monika. Die kategoriale Systematik in den “Metaphysischen Anfangsgründen
der Rechtslehre”, Berlim, Walter de Gruyter, 1982, p. 181. Muito do que segue deve às
análises de Sänger. A aproximação, porém, entre teoria e prática, entre filosofia teó-
rica e filosofia prática, não encontra seu fundamento no fato da filosofia prática
tomar de empréstimo um modelo de pensamento que pertence à filosofia teórica
(192), mas à unidade da razão e da faculdade de julgar.
47
Sobre a relação entre juízo disjuntivo, categoria de comunidade e reciprocidade
da relação jurídica, ver Sänger, M. Die kategoriale Systematik p. 184/186.
48
Sänger, M. Die kategoriale Systematik, p. 182.
49
Cf. ainda MdS, VI, 218/219: “Em toda legislação (pouco importa que ela prescreva
ações internas ou externas, e estas últimas sejam a priori pela simples razão, sejam pelo
arbítrio de um outro) há duas partes: primeiro, uma lei que representa objetivamente como
necessária a ação a cumprir, quer dizer, que faz desta ação um dever; segundo, um
móbil que vincula subjetivamente à representação da lei o princípio de determinação do
arbítrio para tal ação (...) Cada legislação pode então se diferenciar do ponto de vista do
móbil. A legislação que faz de uma ação um dever e deste, ao mesmo tempo, o móbil
da ação, é ética. Aquela, porém, que não inclui o seu móbil na lei, ou seja, que permite
um outro móbil que não a idéia de dever, é jurídica”. Mas é importante não perder de
vista que “todos os deveres, simplesmente por serem deveres, pertencem à ética; mas
nem sempre sua legislação está contida na ética”
50
Sänger, M. Die kategoriale Systematik, p. 182.

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DETERMINAÇÃO E LIMITES
DA PROPRIEDADE

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Uma passagem da Doutrina do Direito define com
clareza o que cabe a uma constituição na definição
da propriedade particular. “A constituição civil é ape-
nas o estado jurídico por meio do qual é assegurado
(gesichert) a cada um o seu, sem que esse, contudo,
seja propriamente definido (ausgemacht) ou determi-
nado” (MdS, VI, 256). A clareza se desfaz tão logo se
tenha diante dos olhos o seguinte texto, também da
Doutrina do Direito: “A indeterminação, tanto do ponto
de vista da quantidade como da qualidade, no objeto
exterior passível de aquisição, faz deste problema (...)
um dos mais difíceis quanto à sua solução (...) Mas,
ainda que este problema seja resolvido pelo contrato
originário, se tal contrato não se estender a toda a
espécie humana, então a aquisição permanecerá, em
todo caso, apenas provisória” (MdS, VI, 266). Mais
do que a articulação em seu nível mais geral entre
o problema da política, qual seja, o estabelecimento
de uma constituição republicana, a única plenamente
conforme à idéia de contrato originário e aos

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princípios do direito político, e o problema da determinação da pro-
priedade particular, a intensão aqui é analisar a passagem que o Juízo,
a faculdade de julgar prática, deve efetuar entre a posse em geral, como
meu e teu externos possível, e as diversas posses particulares, como
cada uma das pretensões à posse jurídica de um objeto particular do
arbítrio, que reivindicam para si a sanção do Estado. Só mais adiante
se verá a solução política para tal questão1 .
Com isso não se pretende negar, muito pelo contrário, a possibilidade,
e mesmo a necessidade, de uma articulação mais geral dos temas. Contudo,
sem a análise da faculdade de julgar nesse seu exercício não é possível ver
tudo o que está em jogo na passagem do direito privado (em última instância,
direito à propriedade) para o direito público; mais ainda, não se deixa ver
como o problema do direito é um problema político e como esse encontra
parte de sua solução na filosofia da história, isto é, como cada determinação
empírica de um ordenamento jurídico parece implicar, como caso de aplica-
ção de princípios práticos determinantes, uma reflexão orientada por princí-
pios teleológicos. Mas não é justamente esta articulação que está presente na
segunda das passagem de Kant a que se fez referência? O que fazer, contudo,
com a afirmação de que cabe à constituição civil simplesmente garantir a cada
um o seu, sem contudo defini-lo ou determiná-lo? Se uma constituição civil
é, ainda que aos trancos e barrancos, a realização da idéia de contrato originá-
rio; se a ela cabe então apenas assegurar, mas não determinar a propriedade
particular, como pode Kant afirmar que o problema da indeterminação da
quantidade e da qualidade terá sua solução com a realização da idéia de con-
trato originário?

O Estado da Questão

Antes de tudo é preciso ter claro o estado da questão da proprie-


dade na discussão kantiana, e como certos conceitos estão aí operan-
do, uma vez que soluções propostas resultam do peso que se dá a um
ou outro conceito2 . Todo o problema gira entorno daquilo que Clau-
dia Langer afirma ser a ambivalência da determinação do fim do con-

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trato, fim que é posto como “garantia (Sicherung) do direito dos ho-
mens”. Mas tal garantia pode ser tomada em um sentido conservador,
i. e., como contrato e instituição do estado de direito em oposição à
anarquia do estado de natureza, ou ainda em um sentido progressista
e que apontaria para uma realização progressiva, por meio de refor-
mas corretivas, da idéia de contrato e da correspondente “garantia do
direito dos homens em sentido eminente”3 , direito que tem como
conteúdos seus a liberdade, a igualdade e a independência. Desneces-
sário apontar para as opções ideológicas presentes em tal ambivalência:
conforme se interprete de um ou outro modo, tem-se o Estado, ou
como cão de guarda da propriedade, ou como investido de uma fun-
ção social de distribuição da propriedade em conformidade com o
princípio da igualdade. De um ponto de vista filosófico, porém, a op-
ção pela primeira leitura tem forte apoio no que se costuma chamar
de tese modal, tese que, ainda que por razões diferentes e que não
cabe aqui analisar, a não ser nos detalhes de interesse, é compartilha-
da, entre outros, por Kersting e Vuillemin. Formulada nos termos de
Vuillemin, ela se escreve do seguinte modo: “por meio do contrato
social, um direito provisório é transformado em um direito peremp-
tório (...). Segundo Kant, o contrato social deve confirmar e proteger
o direito natural de propriedade, sem alterar o que quer que seja em
seu conteúdo” 4 .
Vuillemin afirma a tese modal, mas não deixa de apontar para a
tensão entre o postulado jurídico que funda o direito e a propriedade,
a idéia de contrato originário e os princípios do direito político. No
limite, trata-se de apontar para um conflito entre o postulado jurídi-
co, que garante a legitimidade da propriedade privada, e a autoridade
soberana. A solução encontrada por ele, que restitui em certa medida
a legitimidade decisória da vontade soberana, seria a introdução
efetuada por Kant de um princípio de tipo prudencial mas que, mes-
mo sendo universal, por ficar a cargo do soberano (de fato) pode con-
ter elementos arbitrários, isto é, cuja necessária conformidade com
a idéia de contrato não estaria garantida. De todo modo, se correções

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devem ser feitas, essas parecem visar ainda a manutenção do sistema
de propriedades e não tanto a instituição de uma ordem justa de pro-
priedades investida de caráter social5 . Como afirma Vuillemin, inter-
venções do soberano no sistema de propriedades seriam levadas na
conta do risco a que se submetem os particulares que querem, com a
instituição do estado civil de direito público, preservar seus direitos.
A posição de Kersting, por sua vez, é bem mais complexa e vem
sofrendo pequenas alterações em seu confronto com outras leituras,
em especial a de Claudia Langer. Em uma rápida varredura de seus
textos, é possível detectar ao menos duas posições, a primeira em
Wohlgeordnete Freiheit, onde ele escreve, contra Gerhard Luft, que Kant
não “fornece qualquer motivo para vínculo entre o conceito de pro-
priedade e o fim da garantia de liberdades iguais, e não se deve tam-
bém pretender (meinen), ‘segundo critérios universais da divisão da
propriedade’, procurar por tal motivo”6 . Já a segunda posição cuida
de afirmar que “o salto modal na teoria da propriedade, que vai do
provisório ao peremptório, não exclui, da parte do Estado, correções
e iniciativas políticas de divisão” da propriedade7 . O que porém ele
não parece estar disposto a aceitar, ao menos ainda, é a possibilidade,
em termos kantianos, de se ver estruturalmente fundada, i. e, a priori,
a necessidade de tais correções, isto é, a necessidade de uma justiça
social, justiça material, talvez porque acredite, como ele mesmo afir-
ma, que “a pergunta sobre critérios justos de repartição pertence às
zonas obscuras da consciência moral”.8 Contudo, não é a pergunta e
sim a resposta que pertence a tal zona, como reconhece o próprio
Kersting, ao afirmar que, se todos querem justiça, quando se trata de
casos concretos, a unanimidade é rompida.
Contrária à posição de Vuillemin e Kersting, há não apenas as
leituras de Langer e Luft, mas também a leitura que Ingeborg Maus
realiza de Kant. Como afirma Maus, que interpreta a revolução
copernicana, isto é, a passagem de uma teoria material do direito para
uma teoria procedimental, no sentido de uma institucionalização re-
flexiva dos princípios do direito natural e da formação democrática

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do poder soberano, “a premissa fundamental de Kant e que está ins-
crita na idéia de uma república, que ninguém pode ser livre sem pro-
priedade pessoal, não se opõe por isso à meta de que todos devem ser
livres, independentes economicamente e qualificados para a legisla-
ção, mas é ela o princípio normativo que, segundo Kant, deve dirigir
a realização dessa meta”9 . Assim, todo desenvolvimento econômico
que seja uma ameaça a essa liberdade que se afirma universalmente
deve ser revisto e reformado pelo poder político; mais ainda, nenhu-
ma propriedade particular contingente, isto é, positiva e provisória,
pode ser vista como sacrossanta, mas apenas a propriedade fundada
no direito racional. Além do mais, não é porque Kant decide pela
propriedade privada que se deve tomar como incompatível com tal
decisão uma diferenciação no tratamento dos diferentes objetos que
podem ser propriedade. Pois uma coisa é possuir bens de consumo,
outra bem diferente é possuir bens de produção, os quais podem exi-
gir legislação específica10 . Porém, posto nesses termos, o problema
pouco avança para a sua solução. Tal não é o caso ao se trazer para a
discussão, como de resto faz o próprio Kant, a questão que trata de
saber sob que condições essa propriedade fundada no direito racional
encontra reconhecimento: uma tal propriedade, uma tal posse, que
como posse simplesmente jurídica se encontra no fundamento de toda
e qualquer propriedade particular, “só pode ser encontrada, como posse
simplesmente jurídica, em um arbítrio unificado, com o que a condi-
ção a priori da unificabilidade do arbítrio em vista de um objeto perfaz
a condição da possibilidade de uma posse simplesmente jurídica da
coisa e do meu e teu” (Vor. Rechtslehre,XXIII, 227) 11 .
Mesmo que se aceite, como parece ser o caso, que a diferença entre
um direito provisório, presente no estado de natureza, e um direito pe-
remptório, sancionado pelo Estado, é da mesma natureza que a diferença
entre cem táleres possíveis e cem táleres reais, ou seja, que a diferença aí
é modal e não uma diferença real, não há qualquer razão para restringir
todo o escopo de determinação da idéia de contrato à simples passagem
de um direito provisório a um direito peremptório, ou seja, para uma

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alteração na determinação quanto a modalidade da posse. Como o pró-
prio Kant afirma, é o problema da determinação da quantidade e da qua-
lidade que se encontraria resolvido com a extensão, para toda a espécie
humana, da idéia de contrato originário, movimento esse que é solidário,
no sentido de não permitir uma solução de continuidade dos problemas,
com a passagem de um direito provisório a um direito peremptório. De
todo modo, como afirma Langer, “que a instituição da propriedade priva-
da deva ser respeitada e garantida pelo Estado não significa o mesmo que
toda forma e toda quantidade de propriedade privada o tenham de ser”;
além do mais, a teoria política kantiana não pretende apenas afirmar, frente
ao Estado, o direito do indivíduo à propriedade, mas também “fundar
um direito do Estado de alterar uma dada ordem de propriedades segun-
do princípios de justiça”12 .
Terminada então esta breve análise de conjuntura dos debates
kantianos, o estado da questão é então o seguinte: a tese modal, que con-
tém o núcleo da teoria kantiana da propriedade, parece impor uma leitu-
ra que vê no Estado apenas o cão de guarda da propriedade (Vuillemin e
primeiro Kersting). Essa teoria porém não se apresenta sem problemas,
Kant sendo forçado a adotar um princípio de tipo prudencial a ser adotado
pelo soberano e que visa a manutenção do sistema de propriedade, o que,
para os particulares, entra na conta do risco (Vuillemin). Certo, alguns
elementos parecem indicar, por outro lado, a necessidade de correções
no sistema de propriedades no sentido de uma divisão mais justa, neces-
sidade que se apresenta, para falar como os economistas, ex post, jamais
porém fundada a priori (segundo Kersting). Ora, ao atribuir caráter
normativo à idéia kantiana de que todos devem ser proprietários, Maus
está justamente afirmando a necessidade a priori e estrutural de tal correção,
enquanto Langer determina, também a priori, os critérios e condições a
serem satisfeitos pelas correções, critérios e procedimentos que não en-
tram na conta do risco, mas que, muito pelo contrário, Maus não vacila
em integrá-los como fazendo parte daquela que seria, ao lado da teoria de
Rousseau, a teoria da democracia mais conseqüente do século dezoito e
que põe as bases para toda teoria moderna da democracia. Há, porém,

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diferenças significativas também entre as leituras de Langer e Maus. En-
quanto Langer interpreta a filosofia política kantiana como uma teoria
das reformas políticas segundo princípios, a qual reflete condições de
realização tanto prospectiva como situativamente13 , Maus interpreta a
passagem do direito natural - critério normativo das instituições jurídicas
e horizonte de uma política democrática - para o direito positivo, como
socialização do poder levada a cabo por uma soberania extrajurídica mas
não menos fundante. A práxis social possui então uma latitude maior de
inovações, as quais, reflexivamente, se consolidam em leis, enquanto,
por sua vez, o aparato do Estado está totalmente submetido à
juridicização14 .

Estado de Natureza e Estado Civil: ainda às voltas com


a tese modal

O sistema de propriedades não se encontra insulado das interfe-


rências do Estado, pouco importa de que natureza seja esta interfe-
rência, se arbitrária ou democrática. Muito menos, porém, ele é ex-
terno à práxis, uma vez que tem justamente aí sua origem e fim. Mas
é o seu vínculo à práxis que parece lhe garantir um igual vínculo ao
modo de governo democrático, no qual não é a vontade do soberano-
representante, e sim a vontade do povo que “faz” a lei. A tese modal
tinha como primeira conseqüência afirmar que ao Estado cabe apenas
sancionar aquilo que, desde o estado de natureza, é tido como direito.
Se isso pode ser verdadeiro quanto à posse em geral, não vale contudo
para a propriedade particular, isto é, para a propriedade empírico-con-
tingente. O que o postulado jurídico afirma, não custa insistir,
é a necessidade de que todos devem poder ser proprietários, mas não
que um sistema de propriedades qualquer é, perante a razão, inviolável.
Ora, o problema da passagem da universalidade da regra para a parti-
cularidade do caso está intimamente ligado ao problema da passagem
do estado de natureza para o estado civil, isto é, para o estado de justi-
ça distributiva. É este o ponto.

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Kant caracteriza o estado de natureza de várias formas: estado de
guerra, ainda que latente; estado no qual a justiça está ausente; estado
sem leis (públicas), ou ainda estado de direito privado. A partir dessa
última caracterização, quando se tem que cabe ao estado civil garantir
justamente a efetividade do direito privado, tem-se que cabe ao Esta-
do garantir, como de direito, aquilo que já era então de direito antes
mesmo de sua instituição. Nesse momento, retomar a divisão que
Kant apresenta no final da “introdução” à Doutrina do Direito é um
ponto importante para que se avalie a pertinência da tese da perma-
nência das determinações, agora no interior do estado civil, do que
era tido como direito no estado de natureza:
A mais alta divisão do direito natural [Naturrecht] não pode consistir (como
sói acontecer) em natural e social [natürliche und gesellschaftliche], mas tem
de ser aquela entre direito natural e [direito] civil [natürliche und bürgerliche
Recht]: o primeiro é chamado direito privado; o segundo, direito público.
Pois o estado de natureza não está oposto ao estado social, mas ao [estado]
civil; porque naquele pode haver sociedade, mas não [sociedade] civil (ga-
rantidora do meu e teu por meio de leis públicas), então o direito no pri-
meiro [estado] chama-se direito privado (MdS. VI, 242).

Como afirma Alain Renaut, nessa passagem Kant funda filosofica-


mente o problema da relação entre sociedade e Estado. Mas será que
ele, como diz Renaut, entende por sociedade civil o que hoje se enten-
de por Estado? O próprio Renaut afirma que a expressão sociedade
civil designa a esfera pública, para depois reduzi-la ao Estado15 . Este
último passo, porém, parece indevido, e é perfeitamente possível ficar
com a oposição entre “esfera privada” e “esfera pública”16 . Se assim for,
é possível uma outra caracterização do estado de natureza, ou melhor,
do estado de direito privado: estado no qual o meu e teu são afirmados
a partir de juízos privados, isto é, de um uso privado da razão. Certo, o
estado de natureza não é um estado de indivíduos atomizados, mas sim
o estado de uma práxis social precária, marcada sobretudo pela insociável
sociabilidade, ou seja: uma práxis que se dá em um tecido social sob

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ameaça constante de ruptura. Instituir um estado no qual seja definido
legalmente para cada um o que ele deve reconhecer como seu significa:
“é necessário sair do estado de natureza, no qual cada um age segundo
sua própria cabeça” (MdS. VI, 312). Assim, entre a sociedade e o Estado
há a formação de uma vontade e opinião pública que se institucionaliza
por meio de leis também públicas17 . No estado de natureza, “a nin-
guém é assegurado fazer, a partir de seu próprio direito, aquilo que lhe
parece justo e bom, [grifo a partir daqui] sem depender, para isso, da opinião do
outro” (MdS. VI, 312), ou seja, é necessária a formação de uma opinião
comum, de um juízo comum e público sobre o justo e o injusto, ou
melhor, sobre o que de direito.
É porque reduz toda a atividade legislativa à atividade do Estado, ou
melhor, à figura do soberano, que a tese modal (na leitura de Vuillemin)
vê como necessariamente arbitrária a intervenção da legislação pública na
determinação da propriedade particular, devendo-lhe caber apenas san-
cionar o que é de direito desde o estado de natureza, isto é, o que é de
direito no âmbito do direito privado. Mas o que é, então, de direito no
estado de natureza? Menos do que uma propriedade particular qualquer,
o que é de direito é a pretensão jurídica de ter como propriedade um
objeto externo do arbítrio. Mais ainda, é a faculdade de apresentar tal
pretensão, quando então o postulado da razão jurídica acerca do meu e
teu externos ganha o estatuto de lei permissiva18 . Mas o que mesmo a
tese modal não pode recusar, é o caráter provisório do meu e teu no
estado de natureza, no estado de direito privado. Quanto a esse ponto,
escreve Kant, “o modo de se ter algo externo como seu no estado de natu-
reza é uma posse física, que tem para si a presunção jurídica de torná-lo, por
meio da unificação da vontade de todos em uma legislação pública, um
estado jurídico, e vale, na espera, comparativamente, como posse jurídica”
(MdS. VI, 257).
No direito privado, tudo o que se tem é, então, uma presunção jurí-
dica, que de resto pode ou não se confirmar como justa na particularida-
de do caso. “A presunção [Präsumption], escreve Kant em uma reflexão,
não é uma antecipação [Antizipation], porque não é determinante,

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mas limita-se a dizer que qualquer coisa é determinável sob uma regra
que está ainda para ser encontrada. Ela serve então para ensaiar essa deter-
minação e assim submeter o fenômeno a expoentes [exponierer], ela é o
princípio do juízo [Prinzip der Beurteilung] dirigido ao fenômeno” (Refl.
4677, XVII, 659 ). Qualquer coisa é determinável sob uma regra que
ainda está para ser encontrada, parece ser esse o sentido do direito priva-
do, que encontra sua “verdade” na idéia de uma legislação pública, no
estado de direito. Além do mais, ela submete o fenômeno da liberdade, o
meu e teu externos, ao seu expoente, à sua condição19 , a saber, à institui-
ção de um estado civil determinando universalmente o direito, e isso em
conformidade com a vontade unificada de todos.
Nesse sentido, o direito privado tem estatuto de centralidade as-
segurado na reflexão sobre as sínteses práticas, isto é, na reflexão so-
bre a aplicação das idéias jurídicas, sem contudo esgotá-la. Mas im-
porta agora retornar ao problema da determinação da propriedade par-
ticular, analisando certos conceitos.

Posse Inteligível, Posse Empírica e Aquisição

Com o direito privado há uma ampliação do sistema do direito.


Até então, o axioma do direito se punha como regulação dos diversos
usos da liberdade à condição de sua coexistência possível com a liber-
dade de todos segundo uma lei universal20 . Assim, a cada um estava
assegurado o uso legítimo da liberdade, isto é, cada um tinha na legis-
lação jurídica a salvaguarda do seu direito interno e inato, isto é, o
direito à liberdade. A experiência da liberdade, porém, exige uma
ampliação da legislação jurídica, na medida em o direito à liberdade
parece implicar um direito quanto ao uso das coisas, isto é, um direito
externo. A relação de posse de um objeto externo como relação jurí-
dica não é senão expressão da exteriorização da liberdade, ou melhor,
de sua positivação. “Todos possuem um direito sobre um solo (...),
pois tornar lei o contrário, eliminaria a liberdade como poder positi-
vo” (Vor. Rechtslehr, sXXIII, 278). Positivação da liberdade, um sistema

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de propriedades resulta então do exercício da vontade como vontade
de posse (Vor. Rechtslehre, XXIII, 277), vontade que, como razão práti-
ca, julga do uso conveniente dos objetos do arbítrio (MdS. VI, 213).
A liberdade do homem face ao mundo e a natureza não significa sua
independência, mas sim a possibilidade de submeter mundo e natu-
reza à realização de seus fins livremente eleitos, ainda que tal liberda-
de seja apenas relativa21 . Afirmar porém que todos têm um direito
sobre um solo não significa de modo algum afirmar que todos possu-
em aí um direito irrestrito, que a vontade de posse não conhece qual-
quer limite. “Tudo depende apenas, escreve Kant, de quanto solo (Es
kommt nur darauf an wie veil Boden)” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 278). Ora,
é esse limite que torna possível, no âmbito do direito, o acordo de
todos os fins, acordo necessário para que a liberdade de um não seja
obstáculo à liberdade do outro, uma vez que se afirmar como possui-
dor de algo significa negar ao outro todo uso legítimo da coisa.
A liberdade, na medida em que ela pode coexistir com a liberda-
de de todos, é o único direito inato, e mesmo a igualdade inata não é
dela verdadeiramente distinta (MdS. VI, 238). Os outros direitos, por
sua vez, Kant afirma que eles são adquiridos, e tal é o caso, justamen-
te, do meu e teu externos, da propriedade. A ampliação do sistema do
direito, como “conceito integrativo das condições sob as quais o arbí-
trio de um pode ser unificado com o arbítrio do outro segundo uma
lei universal” (MdS. VI, 230), até uma legislação externa que regula
meu e teu externos, resulta da insuficiência do axioma do direito para
decidir conflitos quanto aos direitos não mais intatos, mas adquiri-
dos, ou melhor, que são objetos de aquisições jurídicas como
positivações da liberdade. Em um conflito quanto a propriedades,
todos de pronto reivindicam seu direito interno e inato, seu direito
à liberdade, de modo que se faz necessário determinar a quem cabe o
ônus da prova (MdS. VI, 238). A reflexão, quando integra em seu
âmbito objetos externos como meu e teu jurídicos possíveis, o faz
pelo fato de uma relação jurídica ser sempre uma relação entre pesso-
as, entre arbítrios, e portanto intersubjetiva.

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O que significa, então, possuir algo externo como meu jurídico?
O que é, finalmente, um meu jurídico? “O meu jurídico, escreve
Kant, é aquilo a que estou de tal modo ligado, que o uso que um
outro dele fizesse sem o meu consentimento me lesaria” (MdS.VI,
245). Antes de tudo, a relação jurídica de propriedade parece ser uma
relação entre sujeito e objeto, para, apenas depois, ser pensada como
relação entre sujeitos. E isso é verdade, mas em um sentido muito
preciso: é uma relação entre sujeito e objeto mas que exige, como seu
fundamento, uma relação entre pessoas. Assim, o conceito de lesão,
que representa um obstáculo na relação de propriedade, indica ao
mesmo tempo uma outra relação que não a relação entre arbítrio e
objeto, e sim entre os diversos arbítrios em torno do uso possível dos
objetos externos. Em verdade, aquele que pensa a relação jurídica ex-
terna como uma relação imediata entre arbítrio e coisa, possui uma
representação tão-somente obscura da relação jurídica (MdS. VI, 260),
de modo algum uma representação clara e distinta. Tal teria sido, da
perspectiva de Kant, o erro de Locke, que via no trabalho, relação
imediata entre arbítrio e coisa, o fundamento da propriedade: tal con-
tinuaria sendo o erro dos libertarianos que, como Nozick, afirmam
que as coisas não vem ao mundo sem as suas titularidades: “A situação
não é a de uma coisa ser produzida e permanecer em aberto quem
deve ficar com ela. As coisas vêm ao mundo já vinculadas a pessoas
que têm titularidades sobre elas”22 , e portanto insuladas e protegidas,
seja da interferência de outras pessoas privadas, seja da autoridade
pública. O que Kant exige, para que se pense como jurídica, isto é,
submetida a uma legislação da razão prática, a relação entre arbítrio e
coisa, é uma mediação pelo universal, o que só é possível por meio de
um conceito da razão e que traz consigo realidade objetiva, isto é, que
satisfaz a pretensão de universalidade das relações jurídicas.
Daí a necessidade do conceito de posse inteligível, posse sem
detenção, (MdS. VI, 245/6), o qual faz abstração de toda condição de
espaço e tempo, para a aquisição do objeto externo como meu e teu
jurídicos. É o conceito de posse inteligível que aponta para essa medi-

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ação do universal; é ele que afirma o reino do direito como
intersubjetivo23 : “pois toda relação jurídica é uma simples relação in-
teligível entre seres racionais uns com os outros e por esse meio com
os objetos do arbítrio” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 213), ou ainda: “é claro
que um homem que estivesse só sobre a Terra não teria propriamente
nada externo como seu, nem poderia adquiri-lo (...) Não há, propri-
amente falando e compreendendo os termos literalmente, o menor
direito (direto) sobre uma coisa, mas apenas designa-se por aí aquilo
que pertence a alguém diante de uma pessoa, a qual compartilha com
todos (no estado civil) os outros uma posse comum (MdS. VI, 261).
Assim, o direito sobre a coisa é, na verdade, o direito do uso privado
diante de todos os demais que, de resto, encontram-se em posse co-
mum da coisa: “O direito sobre uma coisa é um direito que autoriza o
uso privado de uma coisa que eu compartilho com todos os outros
em posse coletiva (que ela seja originária ou instituída) (MdS. VI, 261).
Os conceitos de posse inteligível e de posse comum certamente
não têm a mesma extensão, uma vez que o primeiro se aplica a todo o
direito privado, isto é, não apenas ao direito real, mas também ao di-
reito pessoal e pessoal de modo real, enquanto o segundo aplica-se
tão-somente ao âmbito do direito real, direito sobre coisas. Como no
direito pessoal e no direito pessoal de modo real a relação jurídica
limita-se a ser uma relação entre arbítrios, a posse aí é sempre deriva-
da, ou melhor, a aquisição é sempre derivada, derivada de um arbítrio a
outro e sempre em benefício mútuo. Por sua vez, no direito real há
que se poder pensar a aquisição de um outro modo que não como
aquisição apenas derivada, ou seja, há que se poder pensá-la como ori-
ginária. Se o postulado jurídico funda a possibilidade de um meu e
teu externos em geral, o direito real, na medida em que se põe como
direito ao uso privado da coisa, exige uma mediação para a particula-
ridade do caso. Ou seja, na passagem de uma posse em geral para a
propriedade particular é a teoria da aquisição que está operando. E é
ela, ao fim e ao cabo, que se apresenta no problema da determinação
dos limites da propriedade particular: “A indeterminação, tanto do

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ponto de vista da quantidade como da qualidade, no objeto exterior
passível de aquisição, faz deste problema (que concerne apenas à aquisição
originária e única), um dos mais difíceis quanto à sua solução. Dito isso,
é preciso, contudo, que haja uma aquisição originária qualquer, pois nem toda
aquisição pode ser derivada” (MdS. VI, 266 – grifos DTP).
Quantidade, qualidade, modalidade: não estivessem ausentes, na
última passagem citada, as categorias da relação e se estaria diante de um
problema que envolve toda uma tábua das categorias, ou melhor, uma
tábua dos conceitos jurídicos puros como condições a priori da experiên-
cia político-jurídica. Mas será mesmo que tal momento da tábua das ca-
tegorias não está aí presente? No § 4 da Doutrina do Direito Kant afirma
que os objetos externos do meu arbítrio podem ser apenas três: “1) uma
coisa (corpórea) externa a mim; 2) o arbítrio de um outro para um deter-
minado ato (prestatio); 3) o estado de um outro em relação a mim”, e isso
segundo “as categorias da substância, da causalidade e da comunidade
entre mim e os objetos externos a partir das leis da liberdade” (MdS VI,
247), ou seja, segundo categorias da relação a partir das leis da liberdade
(jurídica). Para que se veja, então, onde opera a categoria de relação na
posição do problema em questão, basta que se atente, ao se restituir intei-
reza ao texto, para o fato de que se trata não de uma aquisição qualquer e
sem mais, mas sim para o problema da determinação da quantidade e
qualidade de um objeto passível de aquisição originária, o que só é possível,
a partir das leis da liberdade, em relação a uma coisa, jamais em relação ao
arbítrio ou ao estado de uma outra pessoa, essas últimas que são aquisi-
ções derivadas do arbítrio do outro24 .
Posta nesses termos, a questão retoma a problemática mais geral
da metafísica e que Kant formula na carta a Marcus Herz, a que já se
vez referência25 . Pois agora trata-se de saber sobre que fundamento
repousa a relação entre nossos conceitos jurídicos a priori, por exem-
plo, o conceito de um meu e teu externo em geral, e um objeto como
propriedade particular, ou seja, trata-se de saber como se dá a passa-
gem da universalidade do conceito para a particularidade do caso.

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A Posse Ideal e Postulado Jurídico como Juízo Sintético
a priori, ou: como são possíveis juízos sintéticos a priori

No § 6 da Doutrina do Direito, que trata da “dedução do conceito


de posse simplesmente jurídica de um objeto externo”, Kant escreve:
“A pergunta: como é possível um meu e teu externos, resolve-se na-
quela outra: como é possível uma posse simplesmente jurídica, e esta,
por sua vez, em uma terceira: como é possível uma proposição jurídi-
ca sintética a priori” (MdS. VI, 249). O que se pergunta, então, é pela
possibilidade de um objeto jurídico, a saber: a propriedade, uma rela-
ção, a partir das leis da liberdade, entre um sujeito e objeto a ele exter-
no, na qual a liberdade de um se põe em acordo com a liberdade de
todos. Essa relação, é isso que Kant está afirmando, é expressa em um
juízo. Por sua vez, como Kant escreve na Lógica, “um juízo é a repre-
sentação da unidade da consciência de diferentes representações, ou a
representação de suas relações na medida em que elas constituem um
conceito” (Logik, IX, 101). Conforme a Doutrina do Direito, é o con-
ceito de posse simplesmente jurídica externa que é constituído pelo
juízo como representação da relação de diferentes representações26 ,
com o que se vê refeito o elo entre a segunda e a terceira questão. Mas
e a primeira? Ora, o que se trata de saber, é se a relação entre o sujeito
e um objeto do seu arbítrio é uma relação objetiva ou se ela não passa
de uma mera relação subjetiva, razão pela qual a primeira questão
resolve-se na segunda.
De que natureza, então, pode ser a relação, a síntese prática entre
um arbítrio e o seu objeto? Na Introdução à Metafísica dos Costumes,
Kant define o arbítrio como a faculdade de fazer ou não fazer algo
segundo conveniência, faculdade que, tendo em si, e não no objeto, o seu
princípio de determinação à ação, está ainda ligada à consciência do
poder de sua ação para a produção do objeto (MdS. VI, 213). Quando
porém, o princípio interno de determinação, “por conseqüência, a
conveniência, encontra-se na razão do sujeito”, não se tem mais um
simples arbítrio, mas a vontade, a qual, “na medida em que ela pode

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determinar o arbítrio, é a razão prática”. Por sua vez, “um objeto do
meu arbítrio é algo que tenho fisicamente em meu poder [Macht], para
dele fazer uso” (MdS. VI, 246). Certo, a relação bem que pode visar o
uso conveniente do objeto, mas não é como relação física, como a
feliz adequação entre o desejo por um objeto e a capacidade de pro-
duzi-lo que ela irá se afirmar como jurídica. Exigir porém, que a con-
veniência seja ela mesma um dever, e, mais ainda, que ela seja posta
pelo arbítrio pela simples razão de ser um dever, é pedir demais, é ir
além do âmbito jurídico, o qual se limita à relação externa e formal
entre os arbítrios, abstração feita dos seus princípios internos de de-
terminação. Não obstante, uma certa conformidade entre uso conve-
niente do objeto e razão prática está aí em jogo, e a relação entre um
arbítrio e o seu objeto pode afirmar-se como jurídica na justa medida
de uma tal conformidade. Como Kant afirma na definição nominal
do meu e teu externos: “o meu externo é aquele que, externo a mim,
seria uma lesão (dano à minha liberdade que pode estar em acordo
com a liberdade de todos segundo uma lei universal) impedir-me
quanto ao seu uso conveniente” (MdS VI, 248). Como todo obstácu-
lo a um impedimento da liberdade de um arbítrio é por si mesmo
justo (MdS. VI, 231), a relação jurídica de propriedade é a forma que
um arbítrio impõe aos demais no exercício de sua liberdade. Porém,
por mais simples que este último passo pareça ser, ele envolve certa
dificuldade. No limite, o que está em jogo parece ser a suspensão do
princípio neminem laede. Por quê?
Ora, o que o direito externo à propriedade garante é um certo uso
da liberdade, ou melhor, é o exercício desse único direito interno que é
o direito inato, originário, à liberdade (MdS.VI 237). Porém, ao se afir-
mar como possuidor jurídico de algo, um arbítrio acaba por afastar todo
outro arbítrio do uso possível da coisa: “posse é a ligação (Verknüpfung)
de um objeto comigo, em razão (vermöge) da qual minha liberdade afas-
ta o arbítrio de todo outro do uso do mesmo objeto” (Vor. Rechtslehre,
XXIII, 212). O esquema que Kersting apresenta para a teoria da aquisi-
ção27 pode ser estendido a todo o direito de propriedade real:

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Para todo x e todo g: se x faz A em relação a g, então x se torna Proprietário
de g e possui, perante toda pessoa y, o Direito de excluir y do Uso de g e,
em razão da Faculdade de Coerção ligada analiticamente ao Direito, pos-
sui também a Justificação para a aplicação da coerção28 .

Nos termos de Kant, o problema se constrói da seguinte maneira: “eu


não designarei uma maçã como sendo minha porque a tenho em minhas
mãos, mas apenas se eu puder dizer que a possuo, mesmo a tendo largado
e posto em um lugar qualquer (...) Pois aquele que quiser arrancar a maçã
de minha mão (...), me lesaria do ponto de vista do meu interno (da liber-
dade), mas não do ponto de vista meu externo” (R, L. VI, 247/248). Dito de
outro modo, a posse física, empírica, de um objeto exterior, pode ser con-
dição subjetiva do seu uso (MdS VI, 245); jamais, porém, é condição sufici-
ente para a objetividade da relação jurídica. Mas isso em relação ao concei-
to, a posse devendo então poder ser pensada como posse inteligível (possessio
noumenon) e sem detenção, posse ideal, assim como a relação de exterioridade
entre sujeito e objeto é pensada como diferença, e não sob condições sen-
síveis, isto é, como distintas posições no espaço e no tempo (MdS. VI, 245).
Quanto ao juízo e ao princípio de sua certeza que estão aí em jogo, uma
passagem da Lógica (Logik, IX, 111) é esclarecedora:
Chamam-se proposições analíticas aquelas cuja certeza repousa sobre a iden-
tidade dos conceitos (do predicado com a noção do sujeito). As proposi-
ções cuja verdade não se funda na identidade dos conceitos devem ser
denominadas sintéticas.

Observações. – 1) A todo x, ao qual convenha o conceito de corpo (a + b),


também convém a extensão (b) – é um exemplo de uma proposição analítica.

A todo x, ao qual convenha o conceito de corpo (a + b), também convém


a atração (c) – é um exemplo de uma proposição sintética. As proposições
sintéticas aumentam o conhecimento materialiter, as analíticas, apenas
formaliter. Aquelas contém determinações (determinationes), estas apenas
predicados lógicos.

2) Princípios analíticos não são axiomas, pois são discursivos. E princípios


sintéticos só são também axiomas quando são intuitivos.

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Transposta para o âmbito do direito, o que a problemática de tal
passagem da Lógica permite ver é que ao direito inato corresponde, como
critério suficiente da verdade de um juízo, ou melhor, de uma propo-
sição jurídica acerca do meu interno, os princípios de identidade e de
contradição29 . Mas, como afirma Brandt, “a lógica da identidade e da
contradição fornece um critério necessário, mas não suficiente da ver-
dade”30 de uma proposição que diz do meu e teu externos, e isso na
medida em que essa é a expressão de um juízo sintético, e não de um
juízo analítico. “Proposição, escreve Kant: Algo externo é meu apenas
na medida em que eu, sem a posse empírica (física) do mesmo, tenho de
ser por todos julgado como estando de posse intelectual dele” (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 212 - grifo), condição que só pode ser satisfeita, de
um ponto de vista lógico-transcendental, por um juízo sintético a priori,
pelo postulado da razão jurídica31 .
Mas as questões que acima foram tidas como diferentes formulações
de uma mesma questão e que consistia em saber, por fim, da possibilidade
de juízos jurídicos sintéticos a priori, constituem, isso sim, a conexão entre
dois juízos em uma relação de condicionado à sua condição: “se há um
meu e teu externos jurídicos, então deve haver um juízo jurídico sintético
a priori”. É assim, então, que se tem, no § 1 da Doutrina do Direito, a afirma-
ção de um juízo tão-somente problemático quanto ao meu e teu externos:
“então, algo externo apenas seria algo meu, se eu puder afirmar que é pos-
sível eu ser igualmente lesado pelo uso que um outro faz da coisa, de cuja
posse, em verdade, eu não estou” (MdS VI, 245). Há que se passar, então,
do direito inato e interno, que encontra seu fundamento no axioma do
direito e nos princípios de identidade e de contradição, para um direito
externo, passagem que é solidária da ampliação do uso da razão jurídica e da
postulação de uma posse inteligível: “A proposição jurídica a priori em vista
da posse empírica é analítica”, aquele que arranca a maçã das mãos de alguém
tem a máxima de sua ação em contradição com o axioma do direito. Dito
de outro modo: “a proposição de uma posse empírica conforme ao direito
não vai além do direito da pessoa em vista dela mesma” (MdS. VI, 250), isto
é, não funda qualquer direito externo.

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O que Kant pretende demonstrar é que toda limitação do direito
interno às condições da posse real, física, acaba por eliminar todo o
direito; mais ainda, toda posse real tem como seu pressuposto e fun-
damento uma posse ideal (Vor. Rechtslehre, XXIII, 211), virtual (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 212), na qual se faz justamente abstração de todas as
condições da posse empírica no espaço e no tempo (MdS. VI, 250) e
se observa tão-somente as determinações do arbítrio pela razão jurí-
dica. Ou melhor: as condições de espaço e tempo não são tomadas
como limitações jurídicas do meu e teu externos que se impõem ma-
terialmente, mas toda e qualquer posse empírica, e por isso mesmo
no espaço e no tempo (possessio phaenomeno), passa a ser considerada
como determinação intelectual dos diversos arbítrios em uma relação
segundo leis da liberdade. Se a possibilidade de uma posse inteligível
se deixa ver apenas como conseqüência do postulado jurídico (MdS.
VI, 255), é porque, como afirma Brandt, “o postulando da razão pre-
enche os meros conceitos jurídicos do mesmo modo que a intuição
preenche os simples conceitos lógicos”32 , ou seja, dá nova matéria
sobre a qual, então, a razão prática pode exercer sua reflexão e esten-
der até aí sua legislação.
Assim, esse momento da afirmação de um princípio formal não
significa que se está caindo em um formalismo vazio, muito pelo con-
trário. Como Kant afirma na Lógica, “proposições sintéticas aumen-
tam o conhecimento materialiter” (Logik, 111), e do postulado jurídi-
co, agora com o estatuto de lei permissiva, pode-se então ter ciência
de uma determinação do nosso arbítrio, de uma faculdade (Befugnis),
que até então não se podia extrair de “simples conceitos do direito em
geral”, a saber, a faculdade de “impor aos demais uma obrigação que,
caso contrário, eles não teriam: abster-se do uso de certos objetos do
nosso arbítrio, porque nós os tomamos, em primeiro lugar, sob nossa
posse” (MdS, VI, 247)33 . Mas aqui não é tanto a posse do objeto em
sua materialidade que é feita objeto de análise, e sim a relação entre os
arbítrios, ou melhor: faz-se da forma da relação matéria para a refle-
xão, que analisa então da sua conformidade ou não com as leis da

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liberdade34 . É essa reflexão que, pelas leis da liberdade, vem ser auto-
rizada à razão prática; é ela que permite à razão, por meio de um afas-
tar as condições empíricas e mesmo sem uma intuição a priori, uma
ampliação e a correspondente elaboração de proposições jurídicas a
priori (MdS. VI, 255). A prova de tais proposições, Kant afirma que
pode ser, como ele irá mostrar, posteriormente conduzida de modo
analítico, isto é, através da análise das condições de validade do
todo meu e teu empírico em geral.
Se o postulado faz, como lei permissiva, as vezes de intuição,
é porque ele permite a análise das pretensões empíricas quanto à
sua conformidade ou não com a razão prática jurídica e suas deter-
minações. No limite, é o conflito quanto ao meu e teu empírico
que encontra sua solução no conceito de uma posse ideal, e cuja
solução empírica será o acordo, ainda que historicamente precá-
rio, de todos quanto aos limites dos diversos meu e teu externos
possíveis. Vista então como condição para o acordo empírico dos
diversos arbítrios, a relação jurídica, e mesmo o conceito de posse
simplesmente jurídica, é “uma relação simplesmente inteligível de
seres racionais entre si” e é nessa medida que se faz abstração de
toda e qualquer condição de espaço e tempo (Vor. Rechtslehre, XXIII,
213). Mas, por outro lado, “o princípio da idealidade da posse na
determinação do meu e teu é analítico, i. e., repousa sobre o prin-
cípio de contradição e é em verdade a condição incontornável,
porém não suficiente, para a determinação dos limites do meu e
teu empíricos” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 214). Mais ainda, “a posse
intelectual, em verdade tal como exigida pelo meu e teu, não pode
ser dada sem uma posse física qualquer do mesmo objeto, isto é:
sem um certo fenômeno da tomada de posse como objeto da expe-
riência, não se pode saber se uma tal determinação pertence ao
arbítrio do sujeito” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 213). A aparente difi-
culdade de tais passagens, que parecem apontar para o justo con-
trário da abstração até então permitida, pode ser resolvida se aten-
tarmos para o fato de que, agora, não é mais a validade objetiva das

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pretensões que está em jogo, e sim a realidade objetiva das deter-
minações: “Nós não temos, escreve Kant, conhecimento quanto à
realidade de uma posse, a não ser na medida em que ela se faz
conhecer por meio da ligação empírica do objeto com o sujeito no
espaço e no tempo” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 213). O que importa
saber, para a determinação dos limites, é até que ponto há uma
concordância entre possessio noumenon e possessio phaenoumenon, essa
última que contém, de um ponto de vista jurídico, o simples “fe-
nômeno da determinação intelectual de um arbítrio em vista de
um objeto externo que se encontra sob o poder do sujeito” (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 214).
A análise do juízo jurídico acerca do meu e teu externos, a dedu-
ção do direito à propriedade, não se pode completar sem a análise da
teoria da aquisição, porquanto é nessa que a razão prática jurídica se
faz, por assim dizer, sensível, isso é, tem assegurada sua passagem à
experiência. Além disso, o direito privado, que inscreve sua realidade
jurídica desde o estado de natureza, só irá encontrar sua verdade na
passagem para o direito público, no estado civil como estado de uma
vontade unificada de todos: “o modo de se ter algo externo como seu no
estado de natureza é uma posse física, que tem para si a presunção jurídica de
torná-lo, por meio da unificação da vontade de todos em uma legislação
pública, um estado jurídico, e vale, na espera, comparativamente, como posse
jurídica” (MdS. VI, 257).

Síntese Intelectual e Síntese Empírica: a razão prática


e o empírico

Assim como as sínteses do entendimento presidem, no conheci-


mento teórico da natureza, a formação das diversas sínteses empíricas
e se inscrevem como princípios transcendentais de toda experiência
possível, também na razão jurídica há um movimento semelhante em
vista da formação e constituição de uma experiência jurídica segundo
juízos sintéticos a priori, os quais são, então, “princípios a priori da

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possibilidade da experiência da ação segundo leis da liberdade” (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 303). Aqui, como a análise se concentra no direito à
propriedade, no direito real, vai-se deixar de lado as duas outras figu-
ras do direito privado, a saber, o direito pessoal e o direito pessoal de
modo real. As categorias porém, que dão orientação às diversas sínte-
ses, não são somente aquelas presentes na primeira Crítica, mas sim,
em um primeiro momento da objetividade prática, as categorias da
Crítica da razão prática e em seguida as categorias jurídicas35 . E a pri-
meira das determinações consiste justamente em ter como permitida
uma ação que toma como um meu e teu jurídico um objeto do arbí-
trio do qual todo outro deve abster-se, sob pena de coerção. Ou seja,
a partir da tábua da segunda Crítica, a qual é composta de uns tantos
modos da categoria de causalidade (KprV. V, 65 – T. 80), importa aci-
ma de tudo o primeiro par categorial do seu quarto momento, o mo-
mento da modalidade: o permitido (Erlauben)e o não-permitido
(Unerlauben) (KprV, 66 – t. 81), donde se pode extrair a possibilidade
moral da coerção e, mais ainda, de uma coerção que de outro modo,
isto é, sem o conceito de uma posse inteligível e sem o postulado da
razão jurídica, eles não teriam.
É então o primeiro par das categorias modais da liberdade que,
“ao submeter a diversidade dos desejos à unidade da consciência de
uma razão prática” (KprV. V, 65 – T. 79), torna possível pensar a posse
de um objeto externo e, mais ainda, a sua conveniência, no âmbito de
uma relação jurídica. Reduzir a diversidade a uma tal unidade é,
justamente, tarefa do juízo jurídico sintético a priori de modelo
discursivo-reflexivo que, como função de unidade, percorre as diver-
sas sínteses empíricas em busca de sua síntese transcendental36 .
Mas porque composta por categorias da liberdade, a síntese jurídica
não se refere a um objeto como unidade da diversidade das intuições,
antes o pressupõe como dado:
O primeiro conceito pertencente ao conhecimento é o conceito de um
objeto (Objekt) em geral. Mas para o conhecimento de um direito é o
conceito de um objeto (Objekt) do arbítrio e para o conhecimento de um

96

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objeto do arbítrio, o conceito da posse da condição do uso efetivo de um
objeto (Gegenstand) dado’ (Vor. Rechtslehre , XXIII, 222).

Posse da condição do uso do objeto, e não posse do objeto. A rigor, “o


conceito de direito não é o conceito de uma relação imediata do sujeito
com coisas externas, pois a ele corresponde de modo imediato o conceito
de obrigação” (Vor. Rechtslehre XXIII, 319) em vista da liberdade do outro;
mas posse da condição do uso efetivo, pois é este uso efetivo que vem dar,
por meio da pretensão que ele veicula, realidade jurídica à posse intelec-
tual. Porém, se “o princípio da realidade da posse, exigida para o uso
exclusivo do objeto, é a condição da posse no espaço e no tempo e tal
condição é sensível” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 305), tal condição não é fun-
damento da relação, mas antes tem de poder ser subsumida sob as cate-
gorias37 . Assim, Kant não está limitando a posse às condições de espaço e
tempo, pois o que se busca é justamente a possibilidade do preenchi-
mento “adequado de cada idéia da razão”, o que seria impossível no caso
de tal limitação, porquanto “a liberdade não pode ser submetida a nenhu-
ma lei sensível” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 306).
De todo modo, uma idéia prática deve poder ser aplicada ao fenôme-
no, a objetos da experiência, pois é essa aplicação que constitui sua realidade
prática. Ocorre porém, que o conceito jurídico, “que tem seu lugar na
simples razão”, como é o caso de uma idéia, “não pode ser aplicado imedi-
atamente a objetos da experiência, mas tem que ser antes aplicado ao con-
ceito de uma posse em geral como conceito puro do entendimento” (MdS.
VI, 253). Quando então, se espera que Kant vá justamente tratar, como
indica o próprio título do § 6, da “aplicação do princípio da possibilidade do
meu e teu aos objetos da experiência”, o que se tem mais uma vez é, ao
menos em um primeiro momento, a reafirmação da necessidade da
abstração, ou melhor, de um conceito que abstrai de toda condição de espa-
ço e tempo, o conceito de ter (Habens). Mas eis que então a posse inteligível
é um conceito de entendimento, ao qual se pode aplicar uma idéia jurídica,
um conceito da razão. E como conceito do entendimento jurídico ele pode,
ainda que puro, ser aplicado ao conceito empírico de posse.

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No uso teórico da razão, a aplicação de um conceito puro, de
uma categoria, à síntese empírica, se dá por meio de um esquema da
imaginação, e aí as formas a priori da intuição fornecem justamente a
matéria da síntese, o que garante a possibilidade de juízos teóricos
sintéticos a priori e dos seus respectivos esquemas, esses últimos que
são o efeito que o entendimento, como imaginação transcendental,
provoca no sentido interno (KrV, B 153)38 . No âmbito prático, po-
rém, como não é possível qualquer recurso às formas da sensibilida-
de, é o entendimento que, ele mesmo, esquematiza, ao refletir as sín-
teses empíricas como aplicações possíveis das categorias jurídicas.
“Todas essas [categorias], escreve Kant, precedem as relações no es-
paço e no tempo, e o meu e teu são determinados por cada uma delas”
(Vor. Rechtslehre, XXIII, 302). Para que tenha de modo claro como se
dá tal determinação, a categoria é então analisada em sua aplicação. O
que Kant afirma de um conceito em geral vale igualmente para uma
categoria jurídica: “um conceito só pode ser claro por meio de sua
aplicação na comparação” (Refl. 2878, XVI, 556), com o que, então, a
posse empírica, que a razão exige, ou melhor, quer que seja pensada
como uma sua determinação em relação ao arbítrio livre e portanto
segundo conceitos do entendimento (MdS, VI, 253)39 , é comparada
com a posse ideal, dando assim origem a uma teoria do esquematismo
do direito privado, a saber, a teoria da aquisição.
Contudo, é preciso esclarecer um ponto, e não custa insistir: se
as condições sensíveis não desempenham qualquer papel na forma-
ção e na determinação do conceito de uma posse inteligível, elas, por
outro lado, fornecem as condições por meio das quais “a existência da
posse intelectual” é reconhecida, e isso na medida em que produzem
“a apresentação (Darstellung) desta em uma experiência possível” (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 217). Apresentação, isto é, esquema, enquanto o
esquematismo, agora avançando um pouco, é justamente o processo
pelo qual o entendimento, aqui no caso entendimento jurídico, lida
com esses esquemas (KrV B, 179). E é justamente aí, no esquematismo,
que está a diferença entre posse física e posse ideal: “A diferença entre

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a posse física e a posse intelectual, ou virtual, é apenas a diferença
entre o esquematismo dos conceitos jurídicos e os próprios conceitos
jurídicos” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 273)40 .
Ainda que não seja de imediato evidente, tendo chegado até aqui
está-se mais perto do ponto de que se partiu, a saber, da determinação
da propriedade particular e da redução da passagem do estado de na-
tureza para o estado civil como correspondendo a uma simples altera-
ção na modalidade da posse. Senão, vejamos:
A possibilidade de ter algo externo como seu pode ser discernida (eingesehen)
a priori, se o objeto externo do arbítrio é pensado por meio de conceitos
puramente intelectuais – daí que há princípios puros do meu e teu. Mas a
posse (o ter) no espaço e no tempo, e com isso o meu empírico, não é por
esse meio determinada (Vor. Rechtslehre, XXIII, 277).

Quando eu declaro (verbalmente ou por meio de um ato): “eu quero que


algo externo deva ser meu”, então eu declaro todo outro como obrigado a
abster-se do objeto do meu arbítrio, uma obrigação que ninguém teria
sem esse meu ato jurídico (MdS. VI, 255).

Se tal ato, por um lado, na medida em que a ele corresponde para


todos uma obrigação, deve ser considerado como uma determinação
intelectual do arbítrio pela razão prática, o que não se pode, contudo,
deixar de ver é que, por outro, um tal ato dá-se no espaço e no tempo.
Não fosse assim, as categorias jurídicas nada mais seriam do que con-
ceitos vazios. Além do mais, é por meio dele que a propriedade parti-
cular começa então a ser determinada, ou seja: tem-se, por meio de
um tal ato, a passagem da posse jurídica em geral, cuja possibilidade,
segundo o postulado jurídico, é necessária, para as diversas proprie-
dades particulares, que são todas acidentais (Vor. Rechtslehre, XXIII, 215).
Ao retornar-se ao § 4 da Doutrina do Direito, a questão centrada no
direito real, é possível ver que o objeto externo do arbítrio é uma
coisa corpórea a ele externa, tal relação sendo pensada segundo a pri-
meira das categorias de relação, a categoria de substância (MdS. VI,
247). Para simplificar, tome-se então o solo como tal substância.

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O caso é paradigmático, porquanto sua existência como coisa (Ding)
independe da ação de qualquer arbítrio. E se o direito externo, se o
meu e teu jurídico, é sempre um direito por aquisição, há ainda que
se considerar ser o solo o objeto da “primeira aquisição de uma coisa”.
O postulado jurídico afirma, então, como necessário um meu e
teu externo possível; mais ainda, como lei permissiva ele se constitui
como o primeiro passo para possibilidade jurídica da aquisição de um
objeto externo, a qual se apresenta, então, como esquema para a idéia
de um direito externo em geral. Em verdade o postulado, sem consi-
deração do esquematismo que dele resulta, é uma proposição idênti-
ca: um objeto do arbítrio, que se define pela possibilidade que o arbí-
trio tem de fazer uso dele, seria excluído do uso, o que se contradiz.
“Mas, escreve Kant, quanto eu posso adquirir permanece por esse
meio indeterminado, pois se eu pudesse adquirir tudo em conjunto,
minha liberdade não limitaria a liberdade de um outro, mas a elimi-
naria” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 278). O que isso significa, então? Ora, o
postulado como lei permissiva dava ao arbítrio a faculdade de, por
meio da afirmação da posse de um objeto, limitar a liberdade dos de-
mais. Agora, o que se afirma é a necessidade de limitar essa própria
faculdade, essa vontade de posse (Wille zum Besitz). Afinal, o que o
direito à propriedade visa é o acordo de todos, e não a destruição de
uns para a glória de outros.
Com relação ao solo, o postulado da razão prática é formulado
do seguinte modo: “tem de ser possível, para todos que vivem sobre a
Terra, adquirir originariamente um solo” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 317),
ou seja, todos tem o direito de fazer uso privado (MdS, VI, 260) do
solo, direito esse que não é derivado do direito de nenhum outro –
daí a aquisição ser orignária, e não derivada. É essa aquisição que irá
então apresentar as determinações de toda posse particular como fato
jurídico. Antes dela, o que se tem é a “posse indeterminada de um
solo qualquer”, isto é, a “posse potencial”, a “possibilidade da tomada
de posse do particular” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 316). Mas se é possível
uma aquisição originária do solo, isto é, a aquisição de um direito por

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meio de um ato unilateral do arbítrio41 , a liberdade de todos está ga-
rantida na medida em que o uso particular encontra seu fundamento
não na determinação particular da propriedade, mas sim na posse ori-
ginária comum do solo, ou melhor, na relação entre propriedade par-
ticular e posse comum originária, a primeira devendo poder ser
subsumida na segunda.
Assim como todo e qualquer conceito da razão, o conceito de uma
posse comum originária não é um conceito empírico e tampouco depen-
de de condições temporais; resulta porém, aqui nesse caso, de uma refle-
xão sobre relações jurídicas sob condições espaciais: da “unidade de todos
os lugares sobre a superfície da Terra como superfície esférica” (MdS, VI,
262). É, pois, da posse comum originária que se deriva toda e qualquer
propriedade particular, posse comum que antecede todo ato jurídico do
arbítrio em vista de um uso privado das coisas, isto é, do solo. Mais ainda,
como conceito da razão ela possui a priori o princípio a partir do qual cada
um pode fazer uso privado das coisas segundo leis jurídicas, e é tal prin-
cípio que, por sua vez, reflete sobre as relações jurídicas sob condições
temporais e faz da primeira ocupação o esquema do conceito de um di-
reito sobre as coisas: “a primeira tomada de posse, então, não contradiz o
direito do outro (lex iusti), não fosse por outra razão, porque é o primei-
ro, i. e., nenhum outro tomou até então posse de um solo” (Vor. Rechtslehre,
XXIII, 324) como objeto de uso privado.
Essa passagem para o empírico, porém, não se faz sem proble-
mas: é necessário, como ainda se irá ver, que haja uma passagem do
juízo privado ao juízo público, o que corresponde à entrada no estado
civil de direito público. “Todo arbítrio livre faz de si o ponto central
de suas necessidades”, escreve Kant (Vor. Rechtslehre, XXIII, 274). A ser
assim, um ato unilateral do arbítrio, como é o caso da aquisição origi-
nária, só pode significar para os demais uma obrigação na medida em
que ele puder ser subsumido sob a idéia de um arbítrio unificado, e é
sob esta que repousa, ao fim e ao cabo, “toda determinação de limite
do meu e teu externo, ou seja, todo o direito externo acidental” (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 215). Mas o estado onde os diversos arbítrios se

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encontram unificados é o estado civil. De todo modo, já no estado de
natureza a posse é um direito, só que provisória. Pois apenas no esta-
do civil ela se torna peremptória. O que se ganha aí, porém, não é
uma simples determinação modal. O que se ganha é, isso sim, um
processo por meio do qual os juízos empíricos quanto ao meu e teu
vão sendo corrigidos. Qual é esse processo, senão a política?

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NOTAS
1
Cf. página 108 e seqüência.
2
Já Ricardo R. Terra afirma que a filosofia política kantiana é marcada pela presen-
ça de elementos tanto democráticos quanto liberais-conservadores, e mesmo um
único conceito pode apresentar ora elementos democráticos, ora elementos con-
servadores. Daí o traço de tensão na filosofia política kantiana. Cf. Ricardo R. Ter-
ra, A política tensa. São Paulo, Iluminuras, 1995.
3
Langer, Claudia, Reform nach Prinzipien – Untersuchungen zur Politische Theorie
Immanuel Kants, Stuttgart, Klett-Cotta, 1986, 57.
4
Vuillemin, “Kants Begrundung des Besitzrechts” in __________, L’intuitionnisme
kantiene, Paris, Vrin, 1994., 31.
5
Vuillemin, idem.
6
Kersting, Wohlgeordnete Freiheit, Frankfurt am Main, Surhkamp, 1994, p. 339.
7
Kersting, “Tranzendentalphilosophische Eigenthumsbegrunddung” in _______, Recht,
Gerechtigkeit und demokratische Tugend, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1997, p. 70
8
Kersting (org), Politische Philosophie des Sozialstaats, Göttingen, Velbrück, 2000, p. 14.
9
Maus, Ingeborg, Zur Auklärung der Demokratietheorie: Rechts- und demokratietheoretishce
Überlegungen im Anschluss an Kant, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1994, p. 25
10
Kühl, K. Eigenthumsordnung als Freiheitsordnung, Freiburg, Karl Alber, 1984, 250.
Passagem fundamental para Langer, que trata de saber “sob que condições é obtida
11

uma coordenação racional dos arbítrios privados” (Reform nach Prinzipien, p. 150) em
matéria de propriedade, com o que se afirma o vínculo entre moral, direito e política.
12
Langer, Reform nach Prinzipien, p. 153 e 159.
13
Langer, Reform nach Prinzipien, p. 14
14
Maus, idem. 9. Maus aponta para um “déficit democrático” na leitura de Langer,
uma vez que a vontade soberana adquire o caráter de vanguarda. Daí a reforma ser
sempre “pelo alto”, toda pressão vinda de baixo devendo ser sempre legal. Do
mesmo modo, a interpretação que Langer propõe da recusa do direito de resistên-
cia se daria em nome da segurança jurídica de um Estado absolutista, e não no
sentido da fundação de uma soberania democrática. Maus, idem. 28.
15
Conforme a sua “Apresentação” de Kant, Metaphysique des Mœurs I, trad. e apre-
sentação Alain Renaut, Paris, Flammarion, 1994, 35.
16
Que essa esfera pública venha contar, para sua instituição, com o Estado, isto é,
com um corpo de representantes, é uma outra questão, que será tratada adiante.
17
Mas adiante se pretende esclarecer o vínculo entre formação das instituições

103

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jurídicas, como resultado de uma práxis social que se auto-compreende, e forma-
ção do juízo prático-jurídico.
18
O estatuto da lei permissiva ainda deve ser melhor analisado, tanto no interior do
direito privado como no direito político. A lei permissiva está também presente na
passagem entre estado de natureza e estado civil.
19
“A relação entre a condição e a asserção, quer dizer, a maneira como esta está subme-
tida àquela, é o expoente da regra”. Sobre o expoente no juízo, ver Longuenesse, Kant
et le pouvoir de juger, Paris, PUF, 1993, pags 112 a 114. É de Longuenesse a sugestão de
traduzir exponieren por submeter o fenômeno ao seu expoente.
20
“Toda ação é justa se, a partir dela ou de sua máxima, a liberdade do arbítrio de
cada um pode coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal” (MdS.
VI, 230). Deste axioma se deriva a lei universal do direito: “Age externamente de
tal modo que do livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos
segundo uma lei universal” (MdS. VI, 231).
21
Langer, C. Reform nach Prinzipien, p. 148 n.
22
Locke, J. Segundo Tratado do Governo, ed. Peter Laslett, Cambridge, Cambridge
University, 1988, p. 296 a 302. Nozick, Anarchy, State and Utopia, Nova York, Basci
Books, 1974, p. 159. Apud. DeVita, Alvaro, A justiça igualitária e seus críticos, São Pau-
lo, UNESP, 2000, p. 77. Para a crítica a Locke e Nozick, ver Kersting, “Transzendental
Eigenthumsbegründung”. Para a crítica a Nozick, ver de Vita.
23
Langer, Reform nach Prinzipien, p. 149.
24
“A indeterminação, tanto do ponto de vista da quantidade como da qualidade, no
objeto exterior passível de aquisição, faz deste problema (que concerne apenas à aqui-
sição originária e única), um dos mais difíceis quanto à sua solução. Dito isso, é preciso
(muss), contudo, que haja uma aquisição originária qualquer, pois nem toda aquisição
pode ser derivada. Por conseqüência, não podemos abandoná-lo como insolúvel e
impossível em si. Mas, ainda que este problema seja resolvido pelo contrato originário,
se tal contrato não se estender a toda a espécie humana, então a aquisição permanecerá,
em todo o caso, apenas provisória” (MdS. VI, 266). Fica para mais adiante a análise não
só da necessidade lógico-transcendental de uma aquisição originária, como também
da distinção entre aquisição originária e aquisição derivada.
25
Cf. p. 23.
26
Essa definição de juízo acima apresentada é apenas lógica, de modo que ela faz abstração da
distinção entre juízos analíticos e sintéticos e, no caso destes últimos, não considera também se
eles são a priori ou a posteriori. Como Kant afirma, a lógica geral “abstrai totalmente do conteúdo
do conhecimento do entendimento e da diversidade de seus objetos e refere-se apenas à simples
forma do pensamento” (K. r. V. B 78). É no interior de uma lógica transcendental que tais
distinções se fazem necessárias: “Uma tal ciência, que determina a origem, o âmbito e o valor
objetivo desses conhecimentos, teria que ser chamada de lógica transcendental, pois ela lida apenas
com as leis do entendimento e da razão, mas apenas na medida em que se refere a objetos a priori”

104

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(K. r. V. B 82). Em seu “Sur une critique de la raison juridique”, Balthazar Barbosa afirma que,
“para começar, Kant restaura a natureza proposicional ou judicativa (quer dizer, não-
representacional) do saber e do pensamento (...) Mas o que é um juízo? Sendo dado, como
venho lembrar, que o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de
julgar e, por outro lado, que juízo se define como unidade de conhecimento e de pensamento,
podendo então ser definido, ao menos em parte, como o lugar do verdadeiro e do falso, pode-
mos dizer, nessas condições, que o entendimento é a capacidade do verdadeiro e do falso” (Les
Cahiers de Fontenay, nº 67/68, 1992, 127/128). É verdade, a definição que nos fornece Balthazar
Barbosa Filho é correta, mas como ele mesmo reconhece parcial: “o juízo (...) podendo então ser
definido, ao menos em parte, como o lugar do verdadeiro e do falso”. O problema é que está
definição “parcial”, possível na medida em que se faz abstração das condições de verdade, está no
coração da prova de que “não há, em Kant, juízos especificamente políticos, e, a fortiori, não há
Crítica da razão política”, o que acaba por conduzi-lo a inquirir acerca da própria expressão “a
filosofia política de Kant” (idem. 140). Melhor talvez, ao invés de reduzir o juízo à plena realização da
função de conhecimento em sua unidade com o pensamento (“o juízo se define como a unida-
de de conhecimento e de pensamento”), seria defini-lo como o resultado de um ato de julgar
em direção à proposição, ao verdadeiro e ao falso, mas tendência que não necessariamente é
levada a bom termo, pois nem todo juízo se converte em proposição, como é o caso, por exem-
plo, dos juízos problemáticos. Como escreve Kant na Lógica, “No juízo, a relação das diversas
representações em vista da unidade da consciência é pensada como meramente problemática.
Uma proposição problemática é uma contraditio in adjecto. Antes de ter uma proposição, tenho
primeiro que julgar; e eu julgo sobre muita coisa que não decido, o que porém tenho de fazer tão
logo determino um juízo como proposição” (Logik, IX, 109). As proposições, então, são casos
especiais de juízos e é nelas que tem lugar o verdadeiro e o falso; mas elas, contudo, não esgotam
todo o exercício da faculdade de julgar. Quem sabe assim não se encontra a especificidade dos
juízos políticos? Mais adiante será retomado o seguinte ponto: a filosofia política de Kant como
um saber a priori do político. É em uma doutrina do direito, e mais especificamente no direito
racional, que temos um saber a priori da política. Mas isso não significa de forma alguma que a
política, como dá a entender Balthazar Barbosa Filho, seria um saber a priori. Cf. mais adiante,
página 112 e seguintes.
27
Uma análise da teoria da aquisição fica para mais adiante, e será interpretada como
passagem de uma posse jurídica em geral as diversas propriedades particulares.
Kersting, “Transzendentalphilosophische Eigenthumsbegründung”, in ________, Recht,
28

Gerechtigkeit und demokratische Tugend, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1997, p. 58.


29
A todo x, ao qual convenha o conceito de liberdade (a + b), convém também o direito
à liberdade (b) – seria esta a formulação da proposição analítica. É claro que o conceito de
liberdade que opera aí é aquele de uma liberdade que se deixa estar em acordo com uma
lei universal, pois é ele que se define como direito. Que esta autonomia possa ser exercida
sob objetos externos dos arbítrios e que esteja ainda em acordo com a liberdade de todos,
é isso que exige a introdução de um princípio sintético do direito.
30
Brandt, R. “Das Erlaubnisgesetz” in Brandt (org), Rechtsphilosophie der Aufklärung,
Berlin, Walter de Gruyter, 1982, 257.

105

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31
Como afirma Kant, “princípios analíticos não são axiomas, pois são discursivos.
E princípios sintéticos também só são axiomas quando são intuitivos”. Tais juízos
sintéticos são, por exemplo, os juízos matemáticos, que podem contar com a forma
da intuição como matéria de suas sínteses. No caso de um juízo jurídico, porém,
não se pode e tampouco se deve contar com as formas da intuição, ao menos não
em um primeiro momento. Por ora deixa-se um pouco de lado essa questão, tendo
porém em vista que, para Kant, “um postulado é uma proposição prática imediata-
mente certa ou um princípio que determina uma ação possível na qual se pressupõe
que a maneira de executá-la é imediatamente certa” (Logik, IX, 112).
32
Brandt, R. “Das Erlaubnisgesetz”, p. 258.
33
Sem uma tal faculdade, o direito externo não poderia deixar de significar uma
afronta ao direito interno.
34
Com relação ao par matéria e forma como conceitos de reflexão, ver Longuenesse, Kant et
le pouvoir de juger, Paris, PUF, 1993, em especial páginas 185 a 208. Também na razão jurídica há
um primado da forma sobre a matéria, e é esse par conceitual que define o registro do possí-
vel: no caso, de um meu e teu jurídico possível. Mas aqui se vai além do registro do possível
como determinação de um ato de representação e do seu sentido, porquanto não é o ato de
pensar que está em causa, mas o ato de apropriar-se juridicamente de um objeto, ou seja, a
forma do ato por meio do qual se traz um objeto sob o poder de um arbítrio, e se exclui, a
partir daí, todo outro do uso da coisa. Como Kant escreve, “sobre o sentido da posse intelec-
tual (...) Pode-se chamar essa posse de posse virtual, para diferenciá-la da posse atual. O prin-
cípio da mesma, suficiente para a representação da distinção entre o meu e teu, é a idealidade
da posse”. A isso corresponde, no texto da Doutrina do Direito, a definição real do meu e teu
externos, que tem, no conceito de posse simplesmente jurídica, a possibilidade de sua repre-
sentação assegurada. Ocorre, porém, que a posse, para se fazer conhecer, isto é, para ter sua
realidade assegurada, precisa ainda ser posse no fenômeno, quando então ela pode ser repre-
sentada como “apreensão continuada” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 212).
35
Para uma articulação das “três” tábuas (o direito apresenta na verdade várias tentativas
para a determinação de uma), pode-se consultar , tanto do ponto de vista metódico, quan-
do do ponto de vista da constituição dos objetos, Monika Sänger, Die kategoriale Systematik
Kants, em especial páginas 122 a 127. Sänger apresenta a primeira tábua como a tábua
fundamental, que não apenas serve de fio condutor metodológico de análise metafísica,
mas também que encontra sua aplicação em todas as demais tábuas, de modo que assim se
vão constituindo todos os campos de “objetos” das metafísicas. Além do mais, as diversas
tábuas não são diferentes legalidades do pensamento, mas apontam, isso sim, para uma
diferença da razão em seus usos. À sua análise, pode-se acrescentar que é tarefa do Juízo, da
faculdade de julgar reflexionante, dirigir-se a uma ou outra tábua, conforme o objeto seja
teórico ou prático, quando então ela atua de modo determinante. O caso então, do qual a
faculdade de julgar reflexionante busca a regra, é já um caso de aplicação da regra, ou
melhor, é a própria regra, mas aplicada. Sobre a distinção entre faculdade de julgar
determinante, que parte da regra em direção ao caso, e a faculdade de julgar reflexionante,
que segue o caminho inverso, ver o § V Primeira introdução à Crítica do Juízo.

106

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36
Avançando um pouco: “As condições empíricas da aquisição fornecem, às fun-
ções dinâmicas e intelectuais, apenas um objeto e uma relação empírica a elas
subjacentes, sobre a qual uma função se aplica e recebe realidade objetiva, porém
apenas prática” Vor. Rechtslehre, XXIII, 315).
37
“A posse empírica não contém o primeiro fundamento do meu e teu, pois este se
encontra nisso: que eu tenho uma representação do objeto independente da posse
física do mesmo (...). Então, uma posse intelectual, por meio de simples conceitos da
relação de arbítrios livres, tem de ser por si mesma possível, sob a qual o objeto
empiricamente dado pode ser subsumido, i. e., o meu e o teu em geral vem a ser, por
meio de um conceito puro do entendimento, a priori determinado por categorias do
meu e teu, e não que o conceito de meu e teu dependem da experiência (Vor. Rechtslehre,
XXIII, 308). Assim, deve-se ler com reserva a seguinte afirmação de Vuillemin: “en-
quanto um conceito teórico permanece vazio sem intuição, uma idéia jurídica só tem
sentido quando abstrai de toda condição de espaço e tempo” (Vuillemin, “Ist Kants
Begründung des Besitzrechts vollständig?”, p. 36. Ou ainda em “Le droit de propiété
selon Kant”, p. 15. versão modificada do primeiro. Como afirma Kant, “apenas esses
conceitos [as categorias jurídicas] porém, como unidade sintética a priori do arbítrio,
não são suficiente para o reconhecimento (Erkenntnis) de que algo é meu ou teu e
podem ser, como as categorias de grandeza, de causa, etc, vazios”( Vor. Rechtslehre, XXIII,
228), ou ainda: “o direito, como conceito da liberdade, não se dirige segundo a posse
empírica, mas segundo a posse intelectual. Essa, porém, só pode tornar-se conheci-
mento por meio do esquematismo, caso contrário é vazia”( Vor. Rechtslehre, XXIII, 277).
38
Sobre a gênese dos esquemas teóricos como resultado da ação da síntese do en-
tendimento, ou melhor, da imaginação transcendental, sobre o sentido interno, isto
é., sobre o tempo, ver Longuenesse, Kant et le pouvoir de juger, capítulo 8.
39
Antes de tal exigência por parte da razão prática, tudo o que se tem é uma síntese
empírica, mas ainda indeterminada quanto à sua função de unidade que é a catego-
ria. Essa exigência é o equivalente prático da ação do entendimento sobre o sentido
interno no âmbito teórico, e é ela que dá origem ao esquema. Eis a passagem: “Pois
bem: a razão prática quer, por meio de sua lei jurídica, que eu pense o meu e teu na
sua aplicação a objetos, e também sua posse, não segundo condições sensíveis, mas
independentemente destas, pois se trata de uma determinação do arbítrio segundo
leis da liberdade, e só um conceito do entendimento pode ser subsumido sob um
conceito jurídico” (MdS. VI, 253). Esse “desejo” da razão, essa exigência, é uma ato
da faculdade de julgar. Buscar aí mais um traço do faktum da razão, i. e., do impe-
rativo categórico como lei moral, foge ao âmbito deste trabalho.
40
Há, contudo, que se ter atenção: “o direito como conceito da razão não pode ser
tornado sensível, a não ser por meio do esquematismo da posse, que pode ser empírico,
e não [por meio do esquematismo] do direito” (Vor. Rechtslehre, XXIII, 277).
Contra Locke e Rousseau, Kant considera a ocupação como tal ato de aquisição.
41

Mas a ocupação, a primeira ocupação, não é fundamento, mas apenas sinal, esquema.

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A POLÍTICA NOS LIMITES
DA SIMPLES RAZÃO

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Há muito não é novidade entre os interpretes apon-
tar, no sistema kantiano, para o vínculo interno en-
tre direito e história, entre doutrina do direito e filo-
sofia da história, e mesmo entre o sentido da histó-
ria e a ação política. Já Delbos, em 1926, afirmava
que a filosofia da história cuida justamente de pen-
sar as condições do surgimento e da manutenção da
ordem jurídica. Mas o que o formalismo, tantas ve-
zes acusado de vacuidade, assim como o univer-
salismo, tão facilmente associado a uma perspectiva
supra-histórica, teimavam em esconder, é que tam-
bém para Kant “todo e qualquer direito contém um
caráter histórico insuperável, que deve ser sempre le-
vado em consideração, quando e onde a criação, a
garantia e o desenvolvimento das instituições estão
por ser realizadas”1 . Com relação à política propria-
mente dita, e ainda ao juízo político, por estarem
ambos de tal modo enfronhados no empírico, não
se via muito bem como era possível qualquer víncu-
lo interno com o sistema, de modo que a política

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e o seu juízo eram tidos por preocupações marginais de Kant. No mais
das vezes, a política era tida como mera questão de exercer corretamente
as engrenagens do mecanismo social, ou melhor, natural-antropológi-
co, o qual se encontraria sob o domínio da heteronomia, jamais sob a
idéia de autonomia. O que importaria, então, para Kant, seria a lida
com a insociável sociabilidade do homem, de modo que as instituições
se visem preservadas. Aliás, quiçá tal qual uma mão invisível, a própria
natureza já estaria cuidando de tal preservação, e isso justamente ao
opor as paixões humanas de forma a neutralizá-las. Essa visão liberal-
conservadora de Kant, tanto da sua concepção da política quanto da sua
concepção da história, não parece, porém, ser correta – ou ao menos
não é, dentre as muitas leituras possíveis, a mais correta, e isso, princi-
palmente, em uma perspectiva prática. E assim como não há mão invi-
sível, também não há qualquer harmonia previamente estabelecida.
No capítulo anterior se procurou defender, contra a tese modal,
que na passagem do estado de natureza ao estado civil não está em
jogo apenas a modalidade da posse, que passaria então a ser peremp-
tória, mas que questões relativas à determinação de sua quantidade,
bem como de sua qualidade, estão aí em jogo. Era o próprio Kant
quem afirmava que, no limite, tal problema específico de determina-
ção só encontra sua solução quando se estender, para toda a espécie
humana, a idéia de contrato originário, isto é, quando a humanidade
se tornar um todo cosmopolita. Agora faz-se um pequeno
deslizamento na oposição entre Estado-mínimo e Estado social, entre
garantia da propriedade e justiça social, para um outro par de opostos
que lhe é com certa freqüência associado, a saber: segurança jurídica e
correção da norma. Uma reflexão do período que vai de 1772 a 1777
ajuda a introduzir tal “oposição”: “importam mais os direitos dos ho-
mens do que a ordem (e tranqüilidade). Ordem e tranqüilidade se
deixam instituir por opressão geral (allgemeiner Unterdrükung)” (Refl.
1404, XV, 612). Por sua vez, os direitos dos homens, os quais devem
ser respeitados por toda legislação positiva, se põem, justamente, como
institucionalização da liberdade, como condições para a realização da

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liberdade. E nessa realização, se o problema da segurança jurídica não
está ausente, é preciso ter claro que a tarefa do direito, na instituição
de um estado jurídico, não se esgota aí. Ou seja, o direito positivo,
como conjunto de leis externas relativamente estáveis, na medida em
que é instaurado como obstáculo a decisões arbitrárias em matéria
jurídica, ou seja, como momento de segurança acerca das pretensões
jurídicas lançadas por arbítrios privados, significa, se comparado à
opressão geral, um progresso. Contudo, a instituição desse estado de
justiça não resulta simplesmente da aplicação do direito privado – ao
menos não de uma aplicação por coerção (Refl. 7683, XIX, 489). Se os
homens devem sair do estado de natureza, estado de direito privado,
e entrar em um estado jurídico, é porque, dentre outras razões, eles
não estão, quanto a seus juízos, em comum acordo sobre um ou ou-
tro caso (Refl. 7710, XIX, 497). Ou seja, ver o problema do direito – e
mais ainda da justiça – como dizendo respeito tão-somente à questão
da segurança jurídica é deixar de lado uma questão fundamental, a
saber: o problema da gênese da própria legislação positiva, o proble-
ma da sua legitimidade.
Aqui parece ser o caso de afirmar o vínculo entre direito e histó-
ria. Pois o fio condutor para a construção de uma história sistemática
das ações humanas é justamente a idéia de direito (Refl. 1420, XV,
618); “na história, escreve Kant, nada há de permanente, que possa
pôr à mão uma idéia do que mudou, a não ser a idéia do desenvolvi-
mento da humanidade, e isso por meio da unidade civil e dos povos, a
qual produz a maior unidade de suas forças” (Refl. 1404, XV, 612).
Esse desafio lançado ao filósofo, por sua vez, responde a uma tarefa
em quatro momentos, cada um deles correspondente a uma das clas-
ses das categorias. Pois quando se trata de julgar a história quanto ao
seu progresso rumo ao melhor e traçar para ela um plano a priori,
toma-se a espécie humana como totalidade (quantidade); o melhor,
para o qual ela se dirige, encontra-se no que há de moral (qualidade);
não se atenta para a melhora interna de cada homem, e sim para suas
relações externas na sociedade (relação); ligar a priori o progresso rumo

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ao melhor às causas atuando presentemente na sociedade, de modo a
considerar a necessidade do progresso existente rumo ao melhor (mo-
dalidade) (Refl. 1471, XV, 649). Assim, cabe ao filósofo traçar um pla-
no a priori para a história; isso não significa, contudo, que sua tarefa
acabe por se identificar com a tarefa do político, pois filosofia e políti-
ca são complementares entre si; de forma alguma, porém, são idênti-
cas2 . No limite, enquanto o político se dirige no sentido da realização
dos princípios do direito, cabe ao filósofo esclarecer o povo quanto a
seus direitos e deveres, isto é, formar o público3 . E cabe a este, em
última instância, o juízo acerca da legitimidade e correção das leis.

Teoria e Prática da Política

A política lida, para a realização de seu fim, isto é, para o estabele-


cimento da paz entre os homens, com uma situação que, ao menos
aparentemente, não é das mais favoráveis: o fato da insociável sociabi-
lidade do homem, “a tendência dos mesmos a entrar em sociedade,
[mas] que está ligada a um conflito generalizado [durchgängigen
Widerstande] que ameaça constantemente dissolver essa sociedade”
(Idee, VIII, 20 – T. 13). Kant não vacila em afirmar que, na verdade, a
insociável sociabilidade é o meio de que se serve a natureza para rea-
lizar o desenvolvimento de todas as suas disposições. Mais ainda, é no
antagonismo das disposições no interior da sociedade humana que se
pode encontrar a causa de uma ordem legal da sociedade, antagonis-
mo que pode ser manipulado e utilizado, como Kant afirma em À Paz
Perpétua, como arte para o governo dos homens. O antagonismo po-
rém, se ele pode ser visto como o estopim dos “primeiros verdadeiros
passos que levarão da rudeza à cultura”, quando não mais se pensa no
fim e na destinação da natureza, isto é, na cultura como seu fim últi-
mo (KU, V, 432 - 361)4 , mas sim no fim terminal da criação (KU, V,
435 - 364), isto é, na paz entre os homens segundo leis da liberdade, o
antagonismo já não é, para tanto, suficiente, porquanto tal escopo
[Endzweck] repousa na “fundação de um modo de pensar que pode

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transformar, com o tempo, as toscas disposições naturais para o
discernimento moral em princípios práticos determinados”, transfor-
mando um acordo extorquido patologicamente em um todo moral
(Idee, VIII, 21 – T. 13).
É por meio da política, como doutrina do direito posta em práti-
ca (ausübender Rechtslehre), que se reconhecem os princípios (jurídi-
cos) práticos determinados; é por meio dela que se os reconhecem
em sua clareza e distinção, e isso para o indivíduo como cidadão, ou
seja, como indivíduo que é membro de um todo que se desenvolve na
história como sociedade civil sob leis externas, condição formal sob a
qual a natureza pode atingir sua intenção final (KU, V, 433 – T. 362).
Como Kant escreve na Idéia de uma história universal,
É a necessidade que força o homem, normalmente tão afeito à liberdade
sem vínculos, a entrar nesse estado de coerção (...) Apenas sob um tal
cerco, como é a união civil, as mesmas inclinações produzem o melhor
efeito (...) Toda a cultura e toda a arte que ornamentam a humanidade, a
mais bela ordem social são frutos da insociabilidade, que por si mesma é
obrigada a se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto, a
desenvolver completamente os germes da natureza (Idee, VIII, 22 – T. 15).

A tese não pode ser mais clara: a própria natureza conduz o ho-
mem para a realização do seu fim. Mas, vista de mais de perto, ela não
implica, como parecia ser o caso, em heteronomia: a insociabilidade é
obrigada, por si mesma [durch sich selbst], a se disciplinar. Muito se
tem escrito sobre o descompasso entre a quinta e a sexta proposição
do Opúsculo de 1784, porquanto essa última, ao fazer depender a
solução do problema de uma sociedade civil que administre univer-
salmente o direito da boa vontade do soberano, isto é, da sua
moralidade, dá um passo que vai além do mecanismo. Não há porém
descompasso, mas passagem, porquanto o próprio mecanismo é jul-
gado como submetido a uma intenção. Alain Renaut, ao ler os pará-
grafos 83 e 84 da terceira Crítica, indica o modo como tal passagem
pode ser realizada, e isso no interior da própria faculdade de julgar em

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seu exercício. Pois em verdade a solução da passagem articula dois
juízos reflexionantes: o primeiro, presente no § 83, no qual o homem
é fim da natureza e encontra-se submetido à sua astúcia, quando a
natureza então é julgada sob a perspectiva da sua finalidade interna; o
segundo, quando então o homem é fim da criação e a natureza, agora
julgada da perspectiva de uma finalidade externa e que se encontra na
idéia de humanidade, é feita objeto da astúcia da liberdade, ou me-
lhor, da razão em seu uso prático5 . Mas o que é central no ponto aqui
em questão: “a articulação entre os dois juízos reflexionantes se opera
então a partir da consideração do direito: efeito da astúcia da natureza,
o progresso do direito é acompanhado por uma ‘educação moral do
povo’”6 , a qual, segundo texto de À Paz Perpétua, não é causa, mas
efeito de uma boa constituição (ZeF, VIII, 366 - T. 147).
Neste ponto de passagem entre natureza e liberdade, entre teoria e
prática, a literatura kantiana tem, na esteira do trabalho de Hannah Arendt
sobre o pensamento político de Kant7 , afirmado uma solução para o pro-
blema que não deixa de causar problemas. De tal solução Renaut é caso
exemplar e quase caricatural, ao afirmar uma “solução estética do direi-
to”, na qual “natureza e liberdade ligam-se apenas na experiência subjetiva
do filósofo refletindo seu sentimento de prazer face ao progresso históri-
co do direito. No coração do ‘sistema filosófico’, é o filósofo que, ele
mesmo, surge e assegura uma mediação sem valor objetivo”8 . Quanto a esse
ponto não há que se fazer concessão: uma coisa é reconhecer que
a objetividade, a universalidade do juízo político é algo precária, que deve
ser sempre revista, e daí aproxima-lo do juízo de reflexão estético, que
revela tão-somente uma pretensão de universalidade pronta a ser
comunicada9 ; outra bem distinta é reduzir a solução a uma solução esté-
tica, por mais importante que esse seja, mesmo para a política. É no cam-
po da política que o problema do direito e da justiça encontra sua solução,
ainda que sempre precária; pois é justamente aí, e no juízo que lhe
corresponde, que se dá, como marca de sua especificidade, o cruzamento
entre o juízo determinante prático (jurídico-moral), o reflexionante-
teleológico e mesmo o reflexionante-estético 10 . Renaut, para sua

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solução, apóia-se na famosa passagem do Conflito das Faculdades (Streit,
VII, 85 – T. 102), na qual o sentimento de simpatia que os espectadores
da Revolução Francesa demonstram por ela dá indício para se afirmar
não apenas o progresso da humanidade, mas também que há uma dispo-
sição moral do gênero humano. Sem citar tal passagem, ele escreve: “os
progressos históricos do direito apresentam, para aqueles que os con-
templam, um espetáculo que parece ter por sentido terem sido obras de
uma livre providência (...); trata-se porém de um juízo estético do espec-
tador, que dá prova do sentimento de uma intervenção da liberdade na
natureza: como todo juízo estético, ele não remete a nenhum conheci-
mento, mas apenas ao sentimento de prazer e de desprazer”11 . Ao se
retomar o texto de Kant, tal juízo que revela simpatia pela revolução não
remete apenas ao sentimento dos espectadores, sentimento que beira o
entusiasmo; ele vai além, uma vez que remete para a causa de tal senti-
mento, a saber, a sua causa moral, e isso em uma dupla intervenção, for-
mal e material:
A causa moral aqui interveniente é dupla: primeiramente, é a do direito:
que um povo não tem de ser impedido, por outros poderes, de proporci-
onar a si uma constituição civil, tal como ela se lhe parece boa; em segun-
do lugar, a do fim (que é ao mesmo tempo dever): que só é em si legítima
[rechtlich] e moralmente boa a constituição de um povo que, por sua [da
constituição] natureza, é capaz de evitar, segundo princípios, a guerra ofen-
siva – tal não pode ser outra a não ser a constituição republicana (...)”(Streit,
VII, 85 – T. 102).

Ora, a experiência da revolução, que não pode deixar de ser conside-


rada – e não apenas por Kant – como um dos grandes acontecimentos do
mundo, quando se analisa o efeito que ela provoca no juízo favorável da
parte dos espectadores, o que ela revela são, justamente, os dois princípi-
os acima mencionados. Ou seja, a revolução, evento empírico, acaba por
conduzir ao reconhecimento, em um juízo também empírico – que en-
tão é feito objeto de reflexão -, de dois princípios práticos determinados
do direito político, os quais, porém, não tem sua origem na experiência,

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ou mesmo na natureza, e sim na liberdade, isto é, princípios que tem sua
origem a priori na razão prática, princípios que são originariamente ad-
quiridos e que a experiência apenas dá a ocasião de sua afirmação. Não se
nega aqui, bem entendido, a dimensão estética que uma revolução pode
ter para os seus espectadores; mas o acordo quanto a tais sentimentos, a
comunicabilidade tornada possível, revela um outro acordo de fundo,
desta feita nos juízos práticos. Assim, se a política é doutrina do direito
posta em prática, ela, enquanto doutrina, isto é, como conjunto integrativo
dos princípios do direito público-político, se impõe como política
cognoscível a priori (ZeF, VIII, 378 – T. 161). Mas, por outro lado, é pre-
ciso atenção dirigida e redobrada ao problema de uma política cognoscível
a priori. Pois de modo algum Kant está pretendendo que as questões e
problemas políticos recebem, positivamente, uma resposta a priori, isto é,
que o juízo político pode ser formado sem qualquer referência à experi-
ência e suas condições de fato, seja no calculo racional do filósofo, seja
nos gabinetes dos palácios. Com relação ao moralista despótico, por exem-
plo, que é caso de um político moral - ou seja, de alguém que se pretende
guiar por princípios da razão-, e não de um moralista político, Kant afir-
ma que, em alguns casos, ele se choca, na execução de seus princípios,
com a prudência política, e deve então ser conduzido, pela experiência,
para um melhor caminho (ZeF, VIII, 373 – T. 154)12 .
Importa agora retornar ao problema da relação entre segurança
jurídica - controle nas expectativas de comportamento - e correção da
norma - legitimidade. Quanto a isso, os dois princípios a que Kant se
refere na passagem do Conflito das Faculdades há pouco citada podem
ser cruciais, na medida em que conduzem à definição de qual a única
constituição legítima e moralmente boa, e isso não apenas por sua
natureza, mas, principalmente, segundo princípios, qual seja, a cons-
tituição republicana, ainda que apenas segundo a idéia. Idéia que po-
rém não representa uma abstração vazia, pois quando se trata de polí-
tica, “o terreno duro da facticidade [Tatsächlichkeit] não deve ser aban-
donado, se as idéias do direito e da moral devem ter uma chance de
realização”.13

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Certamente Habermas não é o primeiro a apontar para a tensão
entre facticidade e validade no interior do direito. A rigor, se Kant vê
nas relações jurídicas tantos momentos de uma integração social de-
terminada por princípios racionais, isto é, por princípios da razão prá-
tica, ele faz da questão da tensão entre facticidade e validade ponto
central da sua concepção do direito e da política, na qual deve se en-
contrar uma passagem que leva da legalidade à legitimidade. Como
escreve Kant a propósito da idéia de uma constituição republicana, a
qual tem sua fonte e origem na razão pura prática:
dada a diversidade do querer particular de todos, exige-se ainda uma causa
unificadora do mesmo de modo a suscitar uma vontade comum - o que
nenhum deles consegue -, [e] não se deve contar, na execução daquela idéia
(na práxis) com nenhum outro começo do estado jurídico a não ser o come-
ço pela força, sobre cuja coação se construirá ulteriormente o direito público
– o que, sem dúvida, permite esperar, já antecipadamente, grandes desvios
daquela idéia (da teoria) na experiência real (ZeF, VIII, 371 – T. 152).

Esse ato de força, na medida em que por meio dele tem início
um estado jurídico - ainda que precário e imperfeito -, se considerado
em idéia, não é senão a apresentação da idéia de contrato originário
( MdS. VI, 315). Certo, ele não funda a sociedade, e sim a sociedade
civil, isto é, a sociedade estruturada juridicamente para solução de
seus conflitos, a qual deve ser, então, uma societas semper reformanda,
reforma que se dirige para a correção em relação à sua idéia e cujo
agente é o político moral, agente que vem assumir o papel que cabia,
no texto de 1784 sobre a Idéia universal de um ponto de vista cosmopolita,
ao bom soberano, isto é, ao soberano dotado de vontade moralmente
boa. Então, o conflito era apresentado da seguinte forma: o homem é
um animal que, quando em meio a outros de sua espécie, necessita de
um senhor, e isso em razão de sua propensão a fazer mau uso de sua
liberdade em proveito próprio e em detrimento dos demais; esse se-
nhor porém, que deve ser por si mesmo justo, por ser um homem,
também o exige (Idee, VIII, 23 – T. 16). A natureza apenas impõe ao

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homem uma aproximação em direção a tal idéia (de uma constituição
civil perfeita); mas ao proceder assim, ela o força justamente a algo
que a sua razão prática impõe como dever e que tem, como uma de
suas condições reais para o reconhecimento de direitos, um poder
suficiente ( MdS, VI, 312).
A figura do político moral é construída por oposição ao seu con-
trário, o político moralista, isto é, por comparação com aquele que
trabalha com uma teoria do poder, com uma teoria formada
empiricamente a partir do conhecimento do mecanismo da natureza
e da natureza humana. Para o moralista político, escreve Kant, “a moral
[enquanto doutrina do direito] é mera teoria” (ZeF, VIII, 371 – T.
152), um conjunto sistemático de conceitos e princípios que podem
satisfazer cabeças filosóficas, mas que são vazios de significação práti-
ca. Para o moralista político, a constituição legal existente é sempre a
melhor, pouco importando sua aproximação ou não com o direto ra-
cional, com os princípios dos direitos dos homens (ZeF, VIII, 373).
No limite, se o problema é estabelecer uma passagem entre teoria e
prática, entre princípios racionais do direito e direito positivo, e isso
por meio da política como ausübende Rechtslehre, não é possível que tal
tarefa caiba ao moralista político. É nesse sentido, então, que Kant
escreve: “não posso pensar um moralista político”, ou seja, não posso
pensá-lo tendo em vista tal função de unidade e coexistência, isto é,
de passagem entre teoria e práxis (ZeF, VIII, 372 – T. 154).
O político moral, por sua vez, parece então ser aquele que leva a
sério a idéia do direito, ou seja, não considera que a moral, entendida
como doutrina do direito, é mera teoria sem qualquer vínculo com a
prática, mas antes a pensa como instância normativa de suas ações. Tal
afirmação da teoria, do seu valor e realidade objetivos, não deve con-
tudo apagar a distinção que há, por outro lado, entre o político moral
e o teórico do direito formado pela filosofia crítica e transcendental,
pois entre um e outro se põe justamente a distinção entre teoria e
prática, para a qual se busca uma solução. A política não é o direito,
pois se dá nas franjas deste; nunca, porém, deve atentar contra os

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princípios do direito, uma vez que visa justamente alargar-lhes até à
dimensão da práxis. Cabe ao filósofo crítico do direito apontar para as
oposições entre direito positivo e direito racional; já ao político moral
se pede mais, pois que ele deve, além de cuidar em não atentar com os
princípios normativos de sua ação, refletir acerca do modo pelo qual a
reforma pode ser levada a bom termo, isto é:
O político moral formulará para si este princípio: se alguma vez na consti-
tuição de um Estado, ou na relação entre os Estados, se encontrarem ano-
malias [Gebrechen] que não foi possível impedir, é um dever, sobretudo
para os chefes de Estado, estar ciente [bedacht zu sein] do modo como elas
poderiam, tão logo quanto possível, ser melhoradas e tornadas conforme
ao direito natural, tal como ele se oferece aos nossos olhos como modelo
na idéia da razão – e isso ainda que deva custar sacrifício ao amor próprio
(ZeF, VIII, 372 – T. 154).

Assim, o que distingue o político moral do teórico do direito é o


fato do primeiro estar “subordinado” aos imperativos hipotéticos de
uma prudência política formada empiricamente; sua ação, porém, re-
cebe orientação e sentido a partir dos princípios práticos a priori da
razão. Assim, a sabedoria política [Staatsweisheit] é a união de prudên-
cia política e moral (enquanto doutrina pura do direito) (ZeF, VIII,
376-7 – T. 159), e aquilo que até então era tido pelo moralista político
como um simples problema técnico, a saber, o estabelecimento da
paz, é tomado pelo político moral como um genuíno problema moral
(ZeF, VIII, 377 – t. 159/160). Problema moral que contudo requer,
para a sua solução, que certas circunstâncias favoráveis sejam dadas,
pois se é um dever incondicional reformar a constituição de modo a
torná-la conforme a sua idéia, por outro lado cabe determinar
empiricamente qual o momento da reforma. A esse respeito, mais
uma vez o advento da Revolução Francesa, bem como da indepen-
dência americana, serve de indício:
A sabedoria política, no estado em que as coisas agora estão, converterá num dever
a realização de reformas adequadas ao ideal de direito público: utilizará,

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porém, as revoluções, onde a natureza por si mesma as suscita, não para
desculpar uma opressão ainda maior, mas como apelo da natureza a ins-
taurar, por meio de reformas profundas, uma constituição legal fundada
nos princípios da liberdade, como a única constituição permanente (ZeF,
VIII, 373 - T. 155 – grifo meu)14 .

A conjuntura, então, faz com que a sabedoria política converta


em dever aquilo que já era a priori reconhecido como dever. Nessa
medida, a ação empírica se dá, na reflexão, em total conformidade
com a sua idéia. Assim, é o que se depreende de tal passagem, preten-
der justificar uma maior opressão é não só contraproducente, porque
contrário à prudência e ao mecanismo da natureza, sobre o qual justa-
mente a prudência se baseia, mas é também injusto, porque contrário
aos princípios práticos puros. Um e outro juízo, porém, não respon-
dem a uma mesma síntese, e tampouco se fazem conhecer do mesmo
modo. Pois se no que diz respeito à prudência nunca se pode estar
plenamente seguro de dominar todas as variáveis empíricas do curso
do mundo, no que importa à justiça, ou melhor, ao juízo acerca da
conformidade ou não de uma ação com os princípios do direito, tal
segurança surge na figura da reflexão, e isso de forma a priori. Como
Kant afirma em Teoria e Prática: “na apreciação [Beurteilung] de se foi
com prudência que se tomou ou não determinada medida, o legislador
pode sem dúvida enganar-se, mas não na apreciação, quando então
ele se interroga sobre se a lei concorda ou não também com o princí-
pio do direito” (TP. VIII, 299 – T. 85)15 .
Quanto a essa concordância, Kant fornece mais de uma formula-
ção do princípio determinante prático que opera no juízo jurídico-
político e que a reflexão trata de apresentar em sua exemplaridade
transcendental. Enquanto é possível ler em À Paz Perpétua uma for-
mulação mais próxima do imperativo categórico: “age de tal modo
que possas querer que a tua máxima deva tornar-se uma lei universal
(seja qual for o fim que ele queira)” (ZeF. VIII, 377 – T. 159), em
outros textos, como Teoria e Prática, ele o aproxima da idéia de contra-
to originário (TP. VIII, 299 – T. 85), idéia que, segundo Kersting, re-
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presenta a forma especializada do imperativo categórico no domínio
político-jurídico16 . Em uma ou outra versão, trata-se sempre de um
princípio formal e discursivo. Ora, é quando se presta a devida aten-
ção ao caráter discursivo de tais princípios que a tomada de posição
kantiana frente à liberdade de pensar e escrever como o mais autênti-
co paladino da liberdade e do direito ganha todo o seu peso e sentido
(TP. VIII, 304 – T. 92). Pois não há qualquer intuição intelectual que
possa por os agentes políticos, morais ou moralistas, em contato ime-
diato com o conteúdo da idéia, e assim dirimir os conflitos quanto às
pretensões de direito. Como Kant escreve na Doutrina do Direito, em
um trecho que põe de modo cristalino a dificuldade e a radicalidade
da política,
Aquilo que não pode ser representado a não ser pela razão pura, aquilo
que deve ser contado entre as idéias, às quais nenhum objeto adequado
pode ser dado na experiência, como é o caso de uma constituição jurídica
perfeita, isso é a coisa em si mesma ( MdS, VI, 371).

Nenhuma intuição intelectual, nenhuma intuição sensível, isto


é, dada na experiência, serve, sem mais, de fiadora. Como mediar coi-
sa em si e fenômeno, como realizar no mundo, por meio da política,
aquilo que só pode ser representado pela razão pura? Lehmann dá
pista quanto a esse ponto, ao afirmar que Kant “apenas exclui a possi-
bilidade de uma realização intuitiva da intuição intelectual; nós pode-
mos realizá-la discursivamente”17 . Se Kant em muitos momentos
guarda respeito por Platão, qual não é o seu tom de mofa em relação a
um certo platonismo redivivo, cujas verdades só se deixam revelar aos
iniciados, mas que ‘infelizmente não se deixam enunciar nem comu-
nicar universalmente pela linguagem” (VIII, 389). Mas qual a lingua-
gem de que se trata aqui?
Afirmar, com Kant, que a verdadeira política não dá um passo
sem antes ter rendido homenagem à moral (ZeF, VIII, 380 – T.
163) significa apenas que se reconhece no direito – e nos seus prin-
cípios racionais puros - condição de possibilidade para a política.

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Para pôr essa questão de um modo um tanto anacrônico, a política
deve falar a linguagem do direito, deve fazer uso do medium direito.
Pois mesmo os moralistas políticos, cuja prática é orientada pelos
princípios empíricos de uma teoria do poder, “não se atrevem a
fundar a política abertamente apenas nas manobras da astúcia e,
por conseguinte, a recusar toda a obediência ao conceito de um
direito público”; dito de outro modo, de forma alguma é possível
subtrair-se ao respeito devido ao conceito de direito, respeito que
sanciona do modo o mais solene a teoria da sua capacidade
[Vermögen] de adequar-se aos princípios práticos da razão pura (ZeF,
VIII, 376 – T. 158). Assim, ainda que o moralista político possa
fazer uso do conceito de direito com um fim meramente retórico
e justificador da sua dominação pura e simples, o político moral
reconhece no direito a condição inescapável, mas não única, para
uma política nos limites da simples razão. Nessa medida, é por
meio do direito e da idéia de universalidade nele embutida que as
diversas pretensões particulares em vista das realizações materiais
de fins encontram um termo para o seu conflito. Mas então a ra-
zão pura prática, por meio dos princípios políticos-jurídicos, não
se dirige apenas para pôr o entendimento, ou melhor, para pôr-se
em seu uso empírico em conformidade consigo mesma. Se a razão
visa o acordo do entendimento na totalidade de seu uso, dirigin-
do-o segundo princípios (Refl. 1486, XV, 714), porque o homem
vive com outros homens e portanto em estado de influência recí-
proca, a razão, quando se amplia como razão jurídica, não mais
limita sua exigência ao indivíduo, no sentido que ele deve ter sua
ação e conduta de modo conseqüente e em conformidade ao seu
plano de vida; muito mais, ela exige o acordo de todos, isto é, exige
a formação de uma vontade comum e a todos obrigante. Assim, se
cada um é autorizado a perseguir seus fins, contanto que nessa
perseguição sua ação livre não seja obstáculo à liberdade segundo
leis universais, isso significa que apenas no direito é possível a união
do fim de todos (ZeF, VIII, 386 – T. 171).

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A esfera Pública como Passagem

Se o filósofo cuida sobretudo exercer as armas da crítica, ao mesmo


tempo em que apresenta de modo claro e sistemático os princípios do
direito racional; se ao político moral cabe a tarefa de transferir para a práxis,
de modo prudente, os princípios que até então tinham validade apenas na
teoria, cabe ainda a uma terceira figura, o público, unir-se a essas duas
primeiras, para que a conformidade entre teoria e prática seja assegurada.
Na verdade, todas essas figuras apoiam-se umas nas outras de modo com-
plementar e sistemático, e não seria de todo incorreto pretender uma
analogia com a articulação entre elas e as faculdades da razão, entendi-
mento e faculdade de julgar. Pois a razão dirige o uso do entendimento
segundo princípios não-empíricos em vista do acordo na totalidade de
seu uso – aqui no caso, prático jurídico -, enquanto a faculdade de julgar
é o poder de encontrar para uma regra o seu caso (Refl. 1496, XV, 763).
Não custa lembrar: o político moral é aquele que tem o discernimento
exato dos momentos favoráveis à reforma, reforma que, segundo os prin-
cípios do direito racional, se impõe como dever. Não basta então que ele
reconheça os casos em que os princípios racionais são contraditos pelos
princípios empíricos, tarefa que cabe antes de tudo ao filósofo; mais ain-
da, ele deve ter o talento de discernir, na multiplicidade dos princípios
empíricos e das pretensões em conflitos na sociedade, quais momentos
se encaminham para o favorecimento da reforma, isto é, para o acordo
entre princípios empíricos e princípios racionais. Assim, à regra se deve
acrescentar ainda um ato da faculdade de julgar, o qual permite decidir
“se o caso recai ou não sobre a regra” (TP, VIII, 275 – T. 57). Daí o proble-
ma, pois “não se pode propor sempre e mais uma vez regras que lhe
sirvam para dirigir a subsunção”, o que iria ao infinito. Certo, a faculdade
de julgar é um talento, um dom com o qual a natureza parece brindar o
político moral. Mas então se está no limite da teoria. O que importa saber
é se tal talento não encontra alguma forma de institucionalização que
possa compensá-lo, quanto à sua ausência de regras, e dar-lhe apoio, quanto
à sua (in)certeza.

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É no segundo apêndice de À Paz Perpétua, o qual, diferentemente
do primeiro, trata do acordo, e não do desacordo entre moral e políti-
ca, que Kant irá enfrentar tal questão. Pois se no primeiro cabia antes
de tudo afirmar que não há qualquer conflito objetivo – isto é, na
teoria - entre moral e política, mas apenas um conflito subjetivo – isto
é, na inclinação dos homens e nas máximas formadas empiricamente
que dirigem sua faculdade de julgar e desejar – (ZeF, VIII, 379 – T
162), agora trata-se não apenas de afirmar a possibilidade – e mesmo a
necessidade - da passagem; muito mais, cabe apresentar o seu modo e
princípio de realização. Seu princípio é o princípio transcendental e
positivo – afirmativo - do direito público; seu modo de realização é o
fortalecimento da esfera pública como suporte da legitimidade de to-
das as pretensões de direito, na medida em que nela a racionalidade
prática encontra um dos seus meios de expressão.
Contrariamente a Hobbes, que põe as bases para uma teoria do
estado e da política ainda às voltas com o problema das guerras de
religião18 , Kant não vê na esfera pública um espaço a ser ocupado pelo
poder soberano do Estado. Na verdade, como observa Habermas, à
esfera pública cabe, por meio de sua função política, mediar Estado e
sociedade, pois se Kant pensa a soberania nos moldes de Rousseau,
ou seja, apenas à vontade unida do povo cabe o poder soberano, dis-
tingue-se deste ao pôr o uso público da razão como condição para o
exercício da soberania, ou melhor, faz do uso público da razão pres-
suposto necessário para a realização da soberania popular19 . Desse
modo, a esfera pública livre não é senão a institucionalização do uso
público e livre da razão. Mas em Facticidade e Validade, Habermas, como
que recuando em sua leitura de Kant, afirma que a arquitetônica
kantiana esconde uma relação de concorrência, ou melhor, de oposi-
ção e conflito, entre os direitos dos homens, que são fundamentados
moralmente, e o princípio da soberania popular20 . Ora, uma das con-
tribuições que Habermas pretende oferecer, ao fundar teoria do di-
reito e da democracia em sua teoria do discurso, é desfazer essa con-
corrência, esse conflito. Ocorre que, para Kant, aqui vale o mesmo

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que valia na relação entre política e moral, ou seja, não há conflito
objetivo, apenas subjetivo, isto é, relativo às máximas de ações políti-
cas em situações concretas. A esfera pública cuida justamente de apre-
sentar um nível discursivo onde tais conflitos, que de resto são
empíricos, encontram um termo de solução, na medida em que ela –
esfera pública - se opõe a uma objetividade apenas aparente21 , ou seja,
evita que algo meramente subjetivo seja tomado como objetivo. Pois
a esfera pública trata de instituir, de realizar um modo de pensar alar-
gado, no qual a faculdade de julgar deve integrar positivamente o ou-
tro ao seu campo de visão e se cristalizar - de modo sempre provisório
e pronto para ser revisto - como opinião pública. Que fique claro,
porém, que o acordo que se manifesta empiricamente como opinião
comum, isto é, pública, responde a um acordo de fundo, o qual se dá
no nível do juízo em seu exercício. Como afirma Giannotti em um
outro contexto, “a verdade não se constitui numa combinação de opi-
niões, mas se afirma no processo de julgar levando em conta os resul-
tados de sua própria atividade”22 . Simplesmente, os principais resul-
tados que aqui devem ser levados em conta dizem da clareza dos prin-
cípios que presidem a própria atividade de julgar.
O uso público da razão é definido então por oposição ao uso
privado, como aquele em que “qualquer um faz, como douto, peran-
te todo o público do mundo letrado”; por sua vez, o uso privado define-
se não mais como a esfera privada do indivíduo, mas sim como aquele
uso da razão “que cada um pode fazer num certo cargo público ou
função a ele confiado” (Aufkl. VIII, 37 – T. 13). Ora, se a legislação
jurídica visa, por um lado, proteger a autonomia privada dos indiví-
duos, por outro lado ela deve limitar a esfera privada de cada indiví-
duo àquilo que lhe é próprio (o estabelecimento e a realização de seus
fins particulares), de modo que a legislação – e a ação – pública não se
deixe determinar por um ponto de vista privado, ou seja, de modo a
não se confundir, em detrimento do primeiro, interesse público e
interesse privado. Limitar o uso privado da razão significa assim afas-
tar um obstáculo à ilustração, à formação de um interesse comum.

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Mas isso não significa, de modo algum, que a esfera pública acabe por
absorver a esfera privada, quando então se entende essa última como
individualidade, como interioridade. Assim, tanto o uso público quanto
o privado se referem a um uso externo da razão – o primeiro, à comu-
nicação de um ponto de vista, ao convencimento do outro; o segun-
do, à realização de uma determinada ação pública, que não deve ser
orientada por fins particulares ao indivíduo, mas sim pela opinião e
vontade formadas publicamente. Impedir o uso privado da razão em
função pública significa, portanto, garantir que o interesse comum é
formado sim a partir do confronto de interesses privados livremente
comunicados, mas na justa medida em que cada pretensão privada
deve passar pelo teste da sua publicização, isto é, deve ser dirigida ao
público e buscar nesse o seu apoio e consentimento. Antes desse pon-
to, porém, quando então o uso da razão se faz público e visa o con-
vencimento, a lei positiva, cuja autoridade pode a qualquer momento
do conflito ser evocada e chamada a tomar decisão, vale sem restrição
no que concerne à relação externa entre os indivíduos.
Não deixa de ser paradoxal, então, que aquele que faz uso públi-
co da razão fale em nome de sua própria pessoa (Aufkl. VIII, 38 – T.
15). Mas é que ao proceder assim ele se põe em condição de igualdade
com todos os demais, ou seja, à liberdade de pensar por si mesmo
corresponde a igualdade dos pontos de vista para a composição da
opinião comum, da mesma forma que à liberdade jurídica corresponde
a igualdade perante a lei jurídica. Igualdade da pessoa humana, em
última instância, quando então se desfaz o paradoxo. Que o mundo
letrado seja composto de indivíduos empiricamente determinados,
cada qual com seu interesse particular; indivíduos que possuem dife-
rentes níveis de instrução e portanto de uma maior ou menor eficácia
retórica; indivíduos que podem formar grupos, que podem agir como
grupo na defesa de seus interesses privados, no mais das vezes vincu-
lados à propriedade, é algo que interessa à sociologia política. Ao filó-
sofo, cabe apontar para o sentido transcendental que tal esfera adqui-
re na economia do sistema. Pois, a rigor, é à totalidade dos homens,

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à humanidade, que se refere o mundo letrado, é a ela que se dirige o
uso público da razão, sem confundi-la com o conjunto dos indivídu-
os. Para usar as palavras de Torres Filho, trata-se, no limite, de um
“público transcendental”, público não apenas de fato, mas de direi-
to 23 . A mediação entre essas duas instâncias será, mais uma vez,
efetuada pela filosofia da história, que toma a ilustração como processo
de transição que vai da menoridade à maioridade no exercício da facul-
dade de julgar.
Assim como ocorria com a filosofia da história, que via a espécie
humana como um macro sujeito no qual todas as disposições da hu-
manidade podiam ser plenamente desenvolvidas, o mesmo dá-se com
a Ilustração: tarefa sumamente difícil, senão impossível, para cada
homem tomado de maneira isolada, é quase inevitável que um públi-
co se esclareça, “se para tal lhe for dada liberdade” (Aufkl. VIII, 36 – T.
12). Como afirma Kant em O que significa orientar-se no pensamento,
À liberdade de pensar opõe-se, em primeiro lugar, a coerção civil. Dize-
mos, é verdade, que a liberdade de falar ou de escrever pode nos ser retira-
da por um poder superior, mas não a liberdade de pensar. Somente que,
quanto e com que correção nós pensaremos, se não pudermos igualmente
pensar em comunidade com outros, que nos comunicam seus pensamen-
tos e nós os nossos? (Was heisst, VIII, 144 – T. 52).

Mas é em À Paz Perpétua, no texto a que já se fez referência e que


trata da harmonia entre política e moral, que a esfera pública (a publi-
cidade, entendida como publicização) é elevada ao estatuto de condi-
ção transcendental. Aí, a forma da publicidade não é apenas condição
de toda pretensão jurídica, mas é, isso sim, condição do acordo entre
pretensão jurídica e justiça (ZeF, VIII, 381 – T. 164).
Kant apresenta a fórmula transcendental do direito público em
dois momentos: o primeiro, negativo, que recebe a seguinte formula-
ção: “todas as ações que se referem ao direito de outros homens, [ações]
cujas máximas não se harmonizem (verträgt) com a publicidade
[Publizität], são injustas” (ZeF, VIII, 381 – T. 165). Mas é no segundo

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momento, o momento positivo, que a fórmula se torna princípio
transcendental. Pois na fórmula negativa tem-se uma condição ne-
cessária, mas não suficiente para o acordo entre moral (entendida como
doutrina do direito) e política, e isso na medida em que aquele que
detém o poder não conhece a necessidade de ocultar suas máximas,
ou seja, se toda máxima justa deve poder tornar-se pública, não dá no
mesmo dizer que toda máxima pública é, por conta de sua publicida-
de, justa. Outro o caso do princípio positivo, condição não apenas
necessária, mas quiçá suficiente para o acordo entre moral e política:
Todas as máximas que necessitam [bedürfen] da publicidade [Publizität]
(para não fracassarem no seu fim) concordam simultaneamente com o
direito e a política (ZeF, VIII, 386 – T. 170).

Retornando ao problema do político moral, a saber, ao senso de


oportunidade que este deve ter para conduzir as reformas, atributo in-
dispensável para o bom exercício da sua faculdade de julgar, o que im-
porta antes de tudo determinar é a natureza do estatuto de necessidade
atribuído à publicidade. E o que importa é que tal necessidade é subjetiva,
ligada à faculdade de julgar em seu uso empírico, mas que precisa, para
seu exercício na experiência moral, ou melhor, jurídico-política, de um
princípio transcendental. Daí a necessidade que o político moral tem
de olhar para a esfera pública, se não quiser fracassar nas reformas que
se lhe impõem como dever, esfera pública que adquire, então, estatuto
transcendental. Na verdade, trata-se de apresentar de um modo talvez
mais claro, mas certamente com uma feição positiva, o mesmo princí-
pio que já vinha sendo apresentado desde Teoria e Prática: “Aquilo que um
povo não pode decidir sobre si, também o legislador não pode decidir sobre o povo”
(TP, VIII, 304 – T. 91). E se ele decide, sua legislação se revela como
resultado da ação de um déspota moral.
Mas onde está o verdadeiro ganho do princípio positivo? Ora, se
as máximas podem alcançar seu fim mediante a publicidade, isso sig-
nifica: a) que elas são conformes ao fim universal do público, isto é, à
felicidade; b) que elas estão também em concórdia com o direito do

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público, pois apenas neste é possível a união do fim de todos (ZeF,
VIII, 386 – T. 171). Dito de outro modo, a reforma deve estar em
consonância com o fim do público, ou seja, a reforma da legislação
deve caminhar no sentido da adesão voluntária do público àquilo que
estará sob legislação, quando a coerção que acompanha toda legisla-
ção externa se mostra, no momento, supérflua. Assim, a legislação
deve estar de acordo com a opinião do público sobre qual seja a legis-
lação justa, de modo que o povo está então submetido à sua própria
legislação. Pois um povo pronto para a reforma é aquele que já efetuou
tal reforma em seu modo de pensar, por um lado; mas também nos
princípios, isto é, nas máximas de suas ações, de forma que interesse
da razão (direito) e interesse particular (felicidade) encontram-se em
consonância momentânea e portanto favorável à reforma da legisla-
ção e realização da teoria24 . Ao filósofo crítico, que vê em cada passo
um momento do longo processo da ilustração, cabe fazer abstração de
todas as condições empíricas que tal princípio pode incorporar no
momento de sua realização (sempre precária e imperfeita), de modo a
chegar-se, por reflexão, à idéia de um contrato originário; e, mais ain-
da, à idéia da única constituição a ele plenamente conforme, à idéia de
uma constituição republicana.
Ao mediar, por meio do princípio da publicidade, a idéia de di-
reito e a vontade empírica do povo, fazendo depender toda formação
da vontade do processo empírico de formação da vontade e do con-
senso, Kant acaba por definir a condição do acordo entre uma práxis
reformista, mas radical, e a moralidade: por definição ela é práxis de-
mocrática e se opõe a qualquer forma de vanguarda revolucionária25
convicta de sua suposta certeza, sem que passe pela comparação com
o juízo dos demais. Além do mais, prossegue Maus, o “direito da idéia
de direito deve pôr-se em relação com o direito do povo a errar”26 , o
que significa: a realização da idéia de direito requer o uso da razão, e
os homens só podem estar aptos para tal uso a partir de seus próprios
esforços, o que implica a possibilidade de errar, mas também de se
corrigir. Destarte, faz parte então da autocompreensão da política o

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reconhecimento da sua falibilidade. Mas como realizar a idéia de di-
reito é realizar a liberdade, é preciso já estar livre27 , sobretudo para
que as pretensões sejam comunicadas, comparadas e mutuamente
corrigidas, de modo a formar uma opinião pública e uma vontade
comum. Assim, se no começo do estado jurídico se impunha algo
como uma lógica da força, de modo que era de se esperar grandes
desvios, a serem corrigidos, com relação à idéia de direito, no estado
civil é dada uma condição para que ao uso da força se substitua a ver-
dade do melhor argumento.

Opinião Pública e Propriedade

A relação entre determinação da propriedade e opinião pública


pode ser tomada como caso exemplar da mediação, no âmbito da po-
lítica, entre instância inteligível e sua realização empírica. Para tanto é
importante retomar alguns fios. No final do primeiro capítulo viu-se
que Kant, em certa medida, faz depender o direito inato à liberdade
da possibilidade de se fazer uso de objetos externos do arbítrio. Se o
arbítrio é livre porque se dirige a fins que lhes são próprios, a depen-
dência com relação aos objetos externos se dá no seguinte sentido:
eles são os meios para a realização dos fins próprios da vontade28 . O
direito à propriedade vem então ser definido como positivação da li-
berdade, a qual não pode ser obstaculizada, sob pena da razão prática
entrar em contradição consigo mesma. A questão então está em saber
de que natureza é tal direito à propriedade, ou seja, se a propriedade
possui o caráter de um direito geral e necessário – no sentido de que
todos devem ser proprietários – ou é considerada como um direito
especial e contingente, de modo que pode caber a uns mas não neces-
sariamente a todos. Segundo Kersting, cuja leitura concentra os prin-
cipais pontos da questão, a concepção de Kant teria sofrido alguma
alteração: de uma concepção que vê a propriedade revestida do caráter
de um direito geral e necessário, concepção presente mais nos Traba-
lhos Preparatórios à Doutrina do Direito, Kant passaria a considerá-la,

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no corpo do texto da Doutrina do Direito, como um direito especial e
contingente. A questão não é bizantina, pois considerar a propriedade
revestida de um ou outro caráter implica em ter ou não por necessá-
rio alguma intervenção no sistema de distribuição de bens e proprie-
dades. Implica, além disso, determinar a oportunidade de tal inter-
venção: se no momento anterior a toda distribuição, e portanto vin-
culada ao momento da aquisição, ou posterior, como intervenção de
natureza corretiva e compensatória. Se a letra da primeira concepção
não está presente no texto, está, porém, o seu espírito; quando nada,
tal concepção de modo algum é incompatível com a teoria da aquisi-
ção presente na Doutrina do Direito, de modo que mesmo ela pode ser
considerada defensável por meio de razões apresentadas pelo próprio
Kant. Mas, como o próprio Kersting não deixa de observar, toda a
determinação dos limites da quantidade e qualidade do direito exter-
no adquirível não se dá no quadro de uma teoria da aquisição originá-
ria, mas tem de ser transferida para a vontade universal legislante.
Dessa forma, “assim como a justiça da lei é garantida por conta de sua
gênese democrática, também é estabelecida uma ordem justa de pro-
priedade por meio uma legislação que satisfaz o critério contratualista”
de natureza procedimental29 .
No que pese sem dúvida um certo anacronismo nos termos em
que ela está posta, tal problemática não é de forma alguma estranha a
Kant, quando se vê que a distribuição da propriedade tem implica-
ções políticas – e isso ainda que se preste atenção, como deve ser sem-
pre o caso, a certas passagens que, como a seguinte, parecem impor
um leito de Procusto conservador:
Esta igualdade completa dos homens em um Estado, como súditos deste,
é contudo perfeitamente compatível com a maior desigualdade, em quan-
tidade ou grau, na condição de posse, seja de superioridade física ou inte-
lectual sobre os outros, seja em relação aos bens da fortuna que lhes são
exteriores ou mesmo no direito em geral respeito ao outro (TP, VIII, 291 –
T. 76).

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Não dá no mesmo, porém, quando os homens são considerados
como cidadãos, e não apenas como súditos, na medida em que agora
se imporia uma outra distinção, então entre o cidadão ativo, que par-
ticipa de algum modo da legislação, e o cidadão passivo, que apenas se
encontra sob o abrigo e império da lei. Pois cidadão ativo é aquele que
é independente, ou seja, que conduz sua vida de modo autônomo e
em nada (ou quase nada) depende do arbítrio de outrem. Ainda que
seja difícil definir os critérios a partir dos quais se decide pela inde-
pendência ou não de alguém, e portanto da sua capacidade de tomar
parte no conjunto dos cidadãos ativos, Kant não deixa de afirmar que
possui a qualidade de ser mestre de si (sui iuris) aquele que possui
certa propriedade [Eigenthum], a qual pode ser alienada – os operarii,
porque não têm outra propriedade afora sua força de trabalho, aca-
bam alienando a si mesmos e não possuem a qualidade de serem sui
iuri (TP, VIII, 295 – T. 80). Mas, uma vez definido, sobre a base de
critérios então empíricos e por meio de exemplos (MdS, VI, 313),
quem são os cidadãos ativos, a igualdade se restabelece, na medida em
cada um tem apenas um voto, não importando a quantidade de pro-
priedades e bens. Igualdade entre os cidadãos, bem entendido, não
entre os homens. Ou melhor, na qualidade de súditos todos os ho-
mens são iguais perante a lei; quanto a participar da feitura das leis,
uns são mais iguais do que outros. De todo modo, mesmo afirmando
que o exercício da soberania deve respeitar os princípios dos direitos
dos homens, há quem insista em ver aí, aparentemente com razão,
um conflito inapercebido por Kant, não apenas no nível real da polí-
tica e do direito, mas sobretudo em seu nível normativo, o que sem
dúvida complicaria as coisas30 . É como se no mesmo texto de Teoria e
Práxis não se pudesse ler a seguinte passagem:
sem querer levantar a questão de como lhes foi [aos grandes proprietári-
os] possível caber mais terra do que as que podem explorar com suas mãos
(com efeito, a aquisição por conquista de guerra não é primeira aquisição),
e como foi possível que muitos homens, que de outro modo no seu con-
junto teriam podido adquirir um estado persistente de posse, se viram

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assim constrangidos a pôr-se ao serviço daqueles para poderem viver, seria
contradizer o precedente princípio se uma lei lhes concedesse o privilégio
do seu estado (...) [pois] o grande proprietário suprime tantos proprietári-
os menores com os seus votos quantos os que poderiam ocupar o seu
lugar (TP, VIII, 296 – T. 81).

Por si só, essa passagem mostra que o modo como riqueza e pro-
priedade são distribuídas na sociedade não é uma questão indiferente
à política. Mas é em uma outra passagem, desta feita em À Paz Perpé-
tua, que a pergunta lançada em tom irônico pode obter sua resposta.
Tratando do problema da aplicação da lei, que obriga a restituir a um
povo a liberdade que lhe foi subtraída, obrigação que contudo se man-
tém atenta às circunstâncias, Kant escreve:
Pois a proibição afeta aqui apenas o modo de aquisição, o qual não deve valer
para o futuro, mas não o estado de posse que, embora não tenha título
jurídico requerido, foi, no entanto, considerada por todos os Estados no
seu tempo (da aquisição putativa) como conforme ao direito, segundo a
opinião pública da altura (ZeF, VIII, 347 – T. 125).

Antes de apontar no que esse trecho importa para o argumento


agora perseguido, é necessário fazer uma ressalva: Kant se ocupa, aí,
da relação entre Estados, não da relação entre particulares, ou seja, ele
está às voltas com a construção de um direito dos povos, ou mesmo
do direito cosmopolita, e não propriamente com o direito público,
isto é, interno ao Estado. Mais ainda, tal passagem como que remete,
mesmo se referindo a uma aquisição putativa e não à aquisição origi-
nária, justamente àquele outro importante fragmento de texto já apre-
sentado anteriormente, a saber: “a indeterminação, tanto do ponto de
vista da quantidade como da qualidade, no objeto exterior passível de
aquisição, faz desse problema (...) um dos mais difíceis quanto à solu-
ção (...). Mas, ainda que este problema seja resolvido pelo contrato
originário, se tal contrato não se estender a toda a espécie humana,
então a aquisição permanecerá, em todo caso, apenas provisória” (MdS,
VI, 266). A ressalva consiste em alertar que se trata de mais um caso

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de analogia, de resto autorizada pelo próprio Kant: “Os povos podem,
na qualidade de Estados, considerar-se como homens singulares que
no seu estado de natureza se prejudicam uns aos outros já pela sua
simples coexistência” (ZeF, VIII, 354 – T. 132). Tomados os devidos
cuidados e respeitados os limites da analogia, a nota àquela passagem
de À Paz Perpétua (ZeF, VIII, 347 – T. 125), onde a conformidade ao
direito de uma posse variava segundo a opinião pública, é ainda mais
reveladora:
A suposta proibição refere-se apenas ao modo de aquisição futura de um
direito (por exemplo, mediante a herança), ao passo que a suspensão da
proibição, isto é, a permissão refere-se à posse presente, a qual pode ainda
persistir, segundo uma lei de permissão do direito natural na passagem do
estado de natureza para o estado civil, como uma posse putativa (possessio
putativa), apesar de ser contrária ao direito [unrechtmässiger] (ZeF, VIII, 348
– T. 125).

Juntas, como de resto elas foram concebidas, as passagens afir-


mam, de modo claro, que considerações acerca de direitos, acerca do
bem fundado de direitos, variam segundo a opinião pública, variação
que se dá no tempo – e isso que vale para a relação entre Estados vale,
neste caso ao menos, também no interior de um Estado. Ao se levar
em consideração o princípio exeundum e statu naturali (Refl. 7075, XIX,
242), ou seja, que todos têm a obrigação moral [mas também jurídi-
ca] de sair do estado de natureza e entrar em estado civil de justiça
distributiva, não se deve perder de vista que tal passagem não se dá em
um único instante apenas, mas resulta em um longo e lento processo
de auto-correção reflexiva das pretensões jurídicas e das positivações
(determinações) da liberdade. Como afirma Kristian Kühl, a aplica-
ção – e se trata aqui justamente disso, de aplicação - de princípios a
priori não é um ato único, que conduz a uma norma estabelecida31 de
uma vez por todas, mas é um procedimento que, porque às voltas
com situações empíricas complexas, deve ser tomado, em certa medi-
da, como um procedimento que não se completa, isto é, que não per-

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de seu caráter de provisoriedade. De todo modo, a propriedade é jus-
tamente o momento em que o direito interno se faz externo, em que
a liberdade se exterioriza em uma experiência resultante de uns tan-
tos atos de sínteses, porém que devem ser sempre corrigidos, tão logo
se revele um conflito entre elas e as leis da liberdade e igualdade.
Simplesmente, permanecer no estado de natureza é persistir em
situação de conflito, que tem na propriedade, na pretensão à proprie-
dade como uso privado das coisas, sua principal causa. Com isso, po-
rém, não se pode recusar o direito à propriedade; apenas se transfere a
instância de solução dos conflitos, que passa a ser o Estado como “uni-
ficação de uma multiplicidade de homens sob leis jurídicas” ( MdS,
VI, 313). Mas tal Estado vai se constituindo empiricamente, isto é,
graças à situação de “vizinhança inevitável” entre os indivíduos, o que
não impede Kant de afirmar que o princípio exeundum e statu naturali
vem a ser desenvolvido analiticamente, por oposição à violência, a
partir do conceito de direito em relações externas ( MdS, VI, 307).
Pois isso não significa, de forma alguma, que o conceito de direito é
uma unidade analítica, ou melhor, que todos os juízos jurídicos são
analíticos, pois o que se afirma, analiticamente, é a verdade do vínculo
entre o postulado jurídico do § 2 da Doutrina do Direito e o postulado
do direito público, isto é, uma síntese. Ou seja, como conceito, o con-
ceito de direito é sim unidade analítica, como de resto são unidades
analíticas todos os conceitos. Mas então como função em um juízo,
tal conceito se põe como a regra para sínteses que são por ele mesmo
determinadas.
É no postulado do § 2 que se funda a seguinte proposição do
direito privado: “todo solo pode ser originariamente adquirido, e o
fundamento da possibilidade de tal aquisição é a comunidade origi-
nária do solo em geral” (MdS, VI, 262). A prova que Kant apresenta
para tal proposição consiste em afirmar para todos os homens uma
posse originária do solo conforme ao direito, isto é, todos “têm o di-
reito de estar aí onde a natureza ou o acaso os puseram”. Há, em À Paz
Perpétua, uma passagem que está em conflito aparentemente inevitá-

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vel com tal afirmação. Pois aí se pode ler: “originariamente ninguém
tem mais direito do que outro a estar em um determinado lugar da
Terra” (ZeF, VIII, 358 – T. 137). É que no primeiro caso trata-se na
verdade da posse comum originária, “conceito prático da razão, que
contém a priori o princípio segundo o qual os homens podem fazer
uso dos lugares da Terra a partir de leis jurídicas” ( MdS, VI, 262),
enquanto no segundo já se afirma um direito particular – no caso, de
um Estado sobre o seu território, mas isso pouco importa. Ora, nesse
último caso é preciso um primeiro ato jurídico de aquisição, quando
então a vontade particular, para se legitimar, “tem de estar contida em
uma vontade unificada a priori. (i. e. [ela só se legitima] por meio da
unificação do arbítrio de todos aqueles que, uns com os outros, pude-
rem vir a estar em uma relação prática)” ( MdS, VI, 263).
No direito privado, considerado em idéia, cada homem era pro-
prietário virtual, i. e., potencial; com a entrada em cena do postulado
do direito público, tem-se, por assim dizer, que “cada homem nasce
como cidadão possível” (Refl.1235, XV, 544). Cidadão não tanto de
um determinado Estado particular, mas antes cidadão do mundo, pois
a sua integração em uma determinada sociedade, que depois há de se
organizar em Estado, sempre segundo princípios práticos a priori, faz
parte tão-somente do processo empírico de formação da condição de
cidadão, realização da autonomia no âmbito das relações sociais e po-
líticas. Certo, Kant tinha boas razões para pensar, como condição úl-
tima para a realização de tal autonomia, não um Estado mundial, mas
sim uma Federação (T. P. VIII, 311 - T. 99), ou mesmo um “congresso
permanente de Estados” (MdS, VI, 351) livres. Mas tais razões, que
de resto não precisam ser aqui analisadas, se impõem em vista da apli-
cação dos princípios práticos ao empírico, ou seja, fazem parte não
das condições objetivas impostas pelos princípios práticos puros, mas
sim das condições por assim dizer subjetivas, isto é, empíricas. É bem
verdade, além disso, que quanto ao problema da propriedade, o Esta-
do apresenta um nível de solução; não a solução definitiva, que só se
completará quando a idéia de contrato for aplicada a toda a espécie

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humana. Ainda assim, uma solução provisória e incompleta é melhor
do que nenhuma32 . E tão logo se dê o momento para uma solução
comparativamente mais próxima da solução definitiva, ela se impõe
como dever.
Mas com relação à solução para o problema da propriedade no
interior do Estado, o § B da “Observação Geral” à Doutrina do Direito
contém elementos importantes. Do ponto de vista interno ao Estado,
o soberano deve ser considerado como proprietário supremo (dominus
territorii). É dele, do seu direito como proprietário supremo, que todo
direito passível de aquisição é derivado. Quando se pensava a posse
comum originária, essa respondia a condições externas ao conceito da
liberdade: à superfície limitada da Terra e ao fato de os homens se
encontrarem, postos pela natureza ou pelo acaso, em situação inevitá-
vel de vizinhança. Mas agora, o que se pensa a partir da propriedade
suprema [Obereigenthum]? Como escreve Kant, ela é “apenas a idéia
da união civil para tornar representável, a partir de conceitos jurídi-
cos, a necessária união da propriedade privada de todos [os mem-
bros] do povo sob um proprietário público universal, em vista da de-
terminação da propriedade particular” (MdS. VI, 323). Essa determi-
nação, então, pode dar-se de dois modos: segundo o princípio da agre-
gação, que progride empiricamente das partes em direção ao todo, ou
pelo princípio formal da divisão. Na verdade, Kant recusa a primeira
alternativa, porquanto apenas a segunda é compatível com os princí-
pios racionais do direito. Pois determinar a propriedade por agrega-
ção levaria a confiscar a liberdade de todos, que passariam à condição
de simples servos do governo, que concentraria para si toda a propri-
edade. Resta então o princípio por divisão que, não é difícil imaginar,
deve progredir do todo até as partes. Mas por que chamar tal princí-
pio de formal? Na Doutrina do Direito parece não haver maior explica-
ção, e fica-se sem saber exatamente qual seria tal princípio. Ao se bus-
car uma explicação para tal princípio, o § 77 da Crítica do Juízo parece
ser o melhor caminho:

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No seu conhecimento, por exemplo, da causa de um produto, o nosso
entendimento tem, com efeito, a característica de ter de ir do universal-
analítico (conceitos) até o particular (a intuição empírica dada); donde,
em relação à diversidade do particular, ele nada determinar, mas ter de
aguardar, para a faculdade de julgar, essa determinação da subsunção da
intuição empírica (se o objeto é um produto da natureza) sob um concei-
to. Ora, nós podemos igualmente pensar um entendimento que, porque
não é, como o nosso, discursivo, mas sim intuitivo, vai do universal-sintético
(da intuição de um todo como tal) até o particular, isto é, do todo às partes.
(KU, V, 407 – T. 331).

Certo, Kant aí, na Crítica da Faculdade do Juízo, trata do contingente


na natureza, daquilo que, no conhecimento do objeto, fica fora da deter-
minação aportada pela categoria, mas que ainda assim está de acordo com
essa, podendo por ela ser subsumido. Esse acordo, porém, não pode ser
conhecido de maneira determinada; ele é apenas objeto de reflexão sob
uma idéia, de resto reguladora. Ao passar do domínio do conhecimento
da natureza para as leis da liberdade, é justamente isso que muda de figu-
ra: o acordo, mesmo que não elimine toda contingência, não se faz sem
princípios determinados. No domínio da práxis, as idéias reguladoras são
determinantes. Mas com isso a razão prática não se transforma em um
intelectus archetypus, não se torna um entendimento intuitivo, ou seja, não
perde seu caráter discursivo.
Se o objeto é então um objeto da liberdade, tal como a proprieda-
de particular como fato jurídico, é a vontade que o determina em sua
diversidade, e a faculdade de julgar deve capturar tal determinação.
Assim procedendo, ela toma o todo - aqui no caso, o sistema de pro-
priedades -, segundo sua forma, como produto das partes agindo
teleologicamente. Não é então gratuito que o princípio formal de di-
visão da propriedade se aproxime do princípio transcendental do di-
reito público, o princípio da publicidade, Kant podendo afirmar que
o fundamento de toda posse empírica, isto é, positiva, se encontra na
opinião do povo ( MdS. VI, 324). Toda reforma no sistema de propri-
edades, bem como na legislação pública, tem caráter democrático, ao

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fazer da vontade do povo seu guia, pois é por meio da reforma “que se
progride da harmonia das partes à unidade do todo e as cabeças [die
Häupter] são, então, determinadas pelos membros, aos quais elas de-
vem, depois, governar” (Refl. 1447, XV, 631). Kant porém pensa a de-
mocracia, ou melhor, a república, não como mando direto do povo,
mas sim como sistema representativo. Como escreve na Doutrina do
Direito, “toda verdadeira república é - e não pode ser nada de outro -
um sistema representativo do povo, para, em seu nome, por meio de
todos os cidadãos unificados e mediados por seus deputados, zelar
pelos seus direitos” ( MdS. VI, 341). A rigor, o povo, ele sim, é o
soberano. Mas é a passagem para a política, isto é, a passagem de uma
metafísica do direito à política, a qual aplica os conceitos à experiên-
cia, que exige a solução trazida pelo sistema representativo.

Da Idéia de República à Democracia Representativa

Em sua resposta à objeção de Benjamin Constant, Kant explicita


de maneira mais clara o que está agora em jogo: “passar de uma metafísica
do direito (que faz abstração de todas as condições da experiência) a
um princípio da política (princípio que aplica os conceitos aos casos da
experiência)”, garantido, sempre, que solução do problema se deve
dar em conformidade com o princípio geral do direito (L. VIII, 429/
430 – T. 177), pois é tal conformidade, em relação à qual não se aceita
exceção, que garante que a solução se dê segundo princípios (prático-
normativos), e não de modo contingente, acidental, por meio de re-
gras meramente empíricas. Assim como Kant dizia, em À paz perpé-
tua, que a verdadeira política não pode dar um passo sem antes ter
rendido homenagem à moral (ZeF. VIII, 380 – T. 163), na resposta
tem-se que o direito não deve jamais regrar-se pela política, mas sim a
política pelo direito. O problema – um dos problemas - que ocupa
Kant em sua polêmica, ele o formula do seguinte modo: “como fazer
que em uma sociedade tão grande seja mantida, segundo princípios
da liberdade e igualdade, a harmonia” (L. VIII, 429 - 178). O que

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responde Kant? “Por meio de um sistema representativo”. Ora, Kant
não foi o único, sequer o primeiro, a pensar a política como sistema
representativo, como governo representativo. Aliás, sua contribuição
– ou a avaliação que se tem sobre ela – parece ter sido tão magra, que
mesmo um livro admirável sobre tal questão, como o de Bernard
Manin, não faz uma única referência a Kant33 . Sem ter a menor pre-
tensão de preencher tal lacuna, importa antes assuntar como Kant via
o problema.
Uma vez mais, é a relação entre teoria e prática que está em jogo.
Kant cita Constant: “toda vez que um princípio demostrado como
verdadeiro parece inaplicável, é porque desconhecemos o princípio in-
termediário que contém o meio de aplicação” (L. VIII, 427 – T. 176).
Tal é o caso com o princípio da igualdade - “ninguém pode estar vin-
culado, a não ser por leis em cuja formação tenha dado sua contribui-
ção” – que, para sua aplicação em sociedades numerosas, necessita
ainda de um princípio intermediário: “os indivíduos podem concor-
rer para a formação das leis, seja pessoalmente, seja por meio de re-
presentantes” (L. VIII, 428 – T. 176). Quanto a esse ponto, não há
qualquer discordância entre os dois filósofos. Mas, se é que há
discordância, onde ela se encontra? Justamente na natureza do prin-
cípio intermediário, que no caso do filósofo francês tem sua necessi-
dade por conta de uma aparente inaplicabilidade do princípio superi-
or, ao passo que para o filósofo alemão tal princípio resulta de uma
determinação mais precisa, bem de perto, do princípio jurídico-polí-
tico da igualdade em sua aplicação aos casos que se apresentam, e isso
segundo as regras da política (L. VIII, 430 – T. 179). É como se Kant
dissesse mais uma vez: não é possível ficar propondo, a cada instante
e para todo problema, princípios intermediários para a faculdade de
julgar, pois assim se acaba indo ao infinito. Para aqueles que não pos-
suem tal faculdade, não há que esperar que se tornem versados na
prática de seus princípios. Mas pode ser que a falta esteja justamente
aí, nos princípios. É preciso então completar a teoria; mas isso se faz,
ou melhor, deveria ser feito sempre. O que é novo em Kant, é o fato

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dele propor, não uma teoria das instituições políticas, mas sim uma
teoria que, tendo nas instituições jurídico-políticas o seu meio, é uma
teoria da institucionalização da liberdade34 . Ao invés de buscar uma
“forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum,
a pessoa e os bens de cada associado, e por meio da qual, cada um
unindo-se a todos, não obedece a não ser a si mesmo, permanecendo
tão livre quanto antes”35 , Kant persegue um modo de proceder. Sua
fidelidade a Rousseau consiste nisso: determinar mais de perto os seus
princípios. É claro que Kant visa tal forma de associação, cujo meio de
realização ele encontra na constituição republicana, a única plenamente
conforme à idéia de contrato originário (ZeF, VIII, 349-350 – T. 128).
Diz-se, com freqüência, que Kant retira toda a carga revolucionária
presente em Rousseau, o que lhe garante a simpatia de uns e a antipa-
tia de outros. Como se fosse um cobertor curto, ao transpor para a
moral o conceito de autonomia, Kant teria deixado descobertos direi-
to e política. Nada mais inexato, porém. Que tal leitura tenha se im-
posto e ainda se imponha, parece ser explicável unicamente pela se-
guinte razão: quando o assunto é política, logo se descamba para o
terreno nebuloso da ideologia. Kant bem que sabia disso - daí seu
temor pela “vocação popular” da filosofia. Homem da Aufkärung, ja-
mais se pretendeu um iluminado... Deixando de lado a digressão em
que se acabou de cair, cabe retornar ao argumento.
“Toda verdadeira república é – e não pode ser de outro modo – um
sistema representativo do povo” (MdS, VI, 341). Mais ainda: “o povo
unificado não representa o soberano, mas é o próprio soberano, pois
nele (povo) encontra-se o poder supremo originário, donde têm de ser
derivados todos os direitos dos particulares como meros súditos”. Essas
duas afirmações são de uma radicalidade extrema, uma não parece con-
viver lá muito bem com a outra. Mas, é necessário convir, elas são estri-
tamente rousseauistas. O que dizia Rousseau no Contrato Social? “Aque-
le que faz as leis sabe melhor do que ninguém como elas devem ser
executadas e interpretadas. Parece então que não podemos ter uma
melhor constituição do que aquela em que o poder executivo se encon-

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tra ligado ao legislativo”. Só que Rousseau prossegue: “Não é bom que
aquele que faz as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie sua
atenção das visões gerais, para dar atenção aos objetos particulares...
Tomando o termo no rigor da acepção, jamais existiu – e jamais existirá
- verdadeira democracia”36 . Qual a conclusão de Rousseau? “Se hou-
vesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Um
governo tão perfeito não convém aos homens”37 . Ora, se ela convém a
um povo de deuses, mas não para os homens, é porque estes estão muito
mais próximos de um povo de demônios, diria Kant (ZeF, VIII, 366 –
T. 147), como que espelhando em negativo o que já dizia Rousseau. De
todo modo, o problema da política, o estabelecimento de um estado no
qual o direito é administrado universalmente, tem solução, e isso até
para um povo de demônios – conquanto tenham entendimento e sai-
bam fazer uso do mecanismo da natureza.
Vistas as coisas desta última perspectiva, porém, o problema da
política acaba por se reduzir a um problema meramente técnico. No
melhor dos casos, o povo de demônios irá viver sob uma constituição
despótica, jamais sob uma constituição que tem seus fundamentos
nos princípios a priori da liberdade e da igualdade, princípios que per-
tencem à razão, e não ao entendimento. Ora, são justamente tais prin-
cípios que põem à vista a idéia de uma república, contanto que a dou-
trina do direito seja objeto do juízo do filósofo, e não do mero jurista,
que apenas julga empiricamente com base em leis positivas (Vor.
Rechtslehre, XXIII, 163). Kant, como Rousseau, “busca o direito na
razão e não discute fatos”38 . Mas é preciso ainda encontrar uma pas-
sagem à práxis:
Que a melhor constituição é a republicana, se esta repousa em princípios
da razão prática – a saber, princípios do direito dos homens em geral -, é
algo que pertence à teoria; que, porém, quando ela ainda não é tal, mas
para trazê-la pouco a pouco à forma, continuada e prospectivamente em
direção à paz perpétua, tem-se então que compreendê-la (reformar) se-
gundo princípios a priori, é algo que pertence à práxis do direito político
(Vor. Rechtslehre, XXIII, 163).

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Essa autocompreensão da atividade política, ao ter clareza quanto
à necessidade das reformas serem feitas segundo a comparação das
constituições existentes com os princípios a priori da razão, isto é, se-
gundo reflexão, já é ela mesma práxis. Ora, é essa mesma atividade
reflexionante que está na base de uma distinção efetuada por Kant,
quando aparentemente ele apenas retoma a tipologia de Aristóteles
sobre as formas de governo. Após afirmar que a constituição republi-
cana não se confunde com a democrática, Kant escreve:
As formas de um Estado (civitas) podem ser classificadas, seja a partir da
diferença das pessoas que detêm o poder, seja pelo modo de governar,
qualquer que seja o seu governante; a primeira chama-se efetivamente
forma de dominação (forma imperii) e só há três formas possíveis, a saber: a
soberania é possuída por um só, por alguns que se vinculam entre si, ou por
todos em conjunto, os quais perfazem a sociedade civil (autocracia, aristocra-
cia e democracia; poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a
modo de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na consti-
tuição (ato da vontade geral por meio do qual a massa se torna um povo),
pelo qual o Estado faz uso da plenitude do seu poder: nesse sentido, a
constituição é republicana ou despótica (ZeF. VIII, 352 – T. 130).

A partir dessa distinção, Kant considera ser muito mais importante o


modo de governo, pois ele irá se revelar como “o meio da realização do
republicanismo”39 . Mas isso não apenas porque a aposta no modo de
governar aponta para uma transição lenta em direção ao reino da liberda-
de, mantendo ainda certo compromisso com o poder estabelecido; mui-
to menos porque assim assegura uma reforma por cima, a única que seria
concebível para Kant. Também não é pelo fato de o povo, no fim das
contas, interessar-se muito mais pelo modo de governo, como o próprio
Kant afirma. Se é o modo de governo, e não a forma de dominação, que
está posto como o ponto central da reflexão kantiana, é preciso encontrar
um motivo filosoficamente relevante para tal posição. Ora, se tal motivo não
está presente, ao menos de maneira explícita, no texto de À Paz Perpétua,
e também não comparece na Doutrina do Direito, onde se tem igualmente
tais distinções (§ 51), é possível encontrá-la no texto preparatório a À Paz

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Perpétua, no qual Kant então afirma que a primeira divisão refere-se à
substância do Estado, ao passo que a segunda, relativo ao modo de gover-
no, diz quanto à sua forma (Vor. ewig. Frieden, XXIII, 165). Substância de
um lado, forma de outro; quer dizer: matéria e forma, ou seja: Kant está
operando, nessa distinção, com o par conceitual matéria e forma dos con-
ceitos de reflexão. A opção pelo modo de governo se torna então mais
clara: não podendo determinar nada a priori quanto à matéria, resta saber
se não é possível encontrar uma tal determinação relativa à forma, isto é,
ao modo de governar, o que ocorre com a idéia de contrato originário,
imperativo categórico operando no domínio do político-jurídico, ou seja:
o modo de governar republicano implica na conformidade com a idéia
de contrato originário. Um texto da Religião auxilia um pouco mais a
desfazer o “imbróglio”:
Nós bem que poderíamos também conceber um povo de Deus segundo leis
estatutárias, quero dizer, leis em cuja observância não interessa a moralidade das
ações, mas apenas a legalidade, e teríamos então um corpo jurídico, do qual na
verdade Deus seria o Legislador (e a constituição de tal corpo seria uma teocracia);
mas seriam os homens, como padres, que receberiam imediatamente Suas or-
dens e dirigiriam um governo aristocrático. Mas uma tal constituição, cuja exis-
tência e forma repousam inteiramente sobre razões históricas, não é ela que
constitui o problema da razão pura legisladora moral (Rel. VI 100).

Transpostos os termos para o âmbito da razão pura jurídico-legisla-


dora, é possível considerar então que toda forma imperii repousa em últi-
ma instância sobre razões puramente históricas, em circunstâncias deter-
minadas empiricamente e de modo por assim dizer subjetivo, contin-
gente, e às quais não é possível remontar (MdS, VI, 339/340). Daí o pro-
blema da razão jurídico-legisladora se concentrar, de forma precípua, no
modo de governar, a reflexão indo de um pólo a outro: daquilo que é
dado à exigência da razão. Assim, o modo de governar faz a mediação
entre, de um lado, a idéia de república, do outro, as instituições efetivas -
e isso da mesma maneira que a faculdade de julgar faz o meio de campo
entre razão e sensibilidade, ou melhor, entre razão e entendimento.

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Aceito esse ponto, vê-se a posição central dos §§ 51 e 52 da Dou-
trina do Direito. Pois se parte de uma idéia pura e que possui realidade
objetiva e chega-se até o seu esquema, símbolo:
Os três poderes no Estado, que procedem do conceito de uma república
em geral (res publica latius dicta), são umas tantas relações da vontade unificada
do povo, tal como extraída a priori da razão, e eles correspondem a uma
idéia pura, que possui realidade objetiva, de uma autoridade política
(Staatsoberhaupt). Mas essa autoridade (o soberano) é, nessa medida, ape-
nas um ente de razão, se a ela falta ainda uma pessoa física que represente
o mais alto poder político (Staatsgewalt) e dê a essa idéia eficácia sobre a
vontade do povo (MdS. VI, 338).

As formas do Estado (Staatsformen) [que podem ser apenas três e dizem da


relação entre soberano e vontade do povo] são apenas a letra da legislação
originária no estado civil, e podem então permanecer, como pertencentes
ao mecanismo das constituições - e isso por um antigo e longo hábito
(então apenas de modo subjetivo) -, pelo tempo que forem consideradas
necessárias (MdS, VI, 340).

Mais uma vez, uma analogia com a Religião permite clarificar o


que está aí em pauta. Ora, se a religião é uma relação puramente inte-
lectual entre os homens, a qual se vê então representada como igreja
invisível, por outro lado essa igreja invisível não se realizará, em sua
universalidade, sem tornar-se sensível, isto é, sem tornar-se institui-
ção (Rel. VI, 158). É que “o invisível, escreve Kant, tem ainda a neces-
sidade de ser representado, para o homem, por algo visível (então
sensível); mais ainda, de ser acompanhado em benefício da prática e,
ainda que intelectual, de ser, por assim dizer, tornado sensível (se-
gundo uma certa analogia)” (Rel, VI, 192). O homem, então, na me-
dida em que não é um ser puramente racional, exige, “para seus con-
ceitos supremos e para os seus princípios, algo que se apóia sobre os
sentidos”, ou seja, ele tem necessidade de “uma confirmação qualquer
da experiência” (Rel. VI, 109). Na religião, tal confirmação se dá por
meio da revelação, de modo que a fé pura moral torna-se fé religiosa,
isto é, fé da igreja. Mas então toda e qualquer religião merece igual

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respeito: “suas formas são apenas tentativas de pobres mortais para
representar sobre a Terra o modo sensível do reino de Deus; mas são
todas igualmente dignas de reprovação, quando tomam a forma da
exposição de tal idéia (em uma igreja visível) pela coisa mesma” (Rel.
VI, 175), isto é, quando tomam o símbolo pela coisa mesma.
Vistas as coisas dessa maneira, quando então a forma imperii é
apenas símbolo, e se liga ao mecanismo de controle das paixões e
instintos dos diversos indivíduos no seio da sociedade, vê-se que a
razão do peso dado ao modo de governar reside no fato de que é a
ele que se vincula, antes de tudo, aquela “atividade reflexionante e
totalizante, que se opõe à tensão do instinto”40 , isto é, que conduz à
solução dos conflitos, em particular os conflitos relativos ao meu e
teu. Se as formas do Estado podem então ser consideradas como a
letra da legislação originária, o modo de governar, na medida em que
nele se pensa a obrigação de adequar as instituições políticas efetivas
à sua idéia, pode ser considerado como o espírito do contrato origi-
nário (MdS, VI, 340). De modo que não era apenas a propriedade
que, no estado de natureza, era revestida de caráter provisório. An-
tes que se institua uma formação política plenamente conforme à
idéia de contrato originário, toda instituição política empírica é igual-
mente provisória, e deve mesmo ser dissolvida em sua forma origi-
nária, isto é, objetiva, puramente racional41 . Mas conceder o privi-
légio, em sua reflexão, ao modo de governo, não significa, da parte
de Kant, ser indiferente em relação às formas do Estado, às formas
de dominação. O espírito exerce sua atividade sobre a letra, de modo
que ambos devem acabar por coincidir nessa “única constituição
política estável, na qual a lei comanda por si mesma e não depende
de nenhuma pessoa particular”. Fim último do direito político, ape-
nas em um tal estado cada um pode receber peremptoriamente o seu
(MdS. VI, 341). Há apenas uma única constituição plenamente con-
forme à idéia de contrato originário, a constituição republicana, essa
que é “uma constituição democrática em um sistema representati-
vo” (Vor. ewig. Frieden, XXIII, 166) do povo.

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Agora é possível avaliar toda a importância que Kant atribui à
defesa da liberdade de pensamento, isto é, a liberdade, para todo cida-
dão, de poder comunicar sem reservas seus projetos e pretensões,
projetos e pretensões que são falíveis. No texto O que significa orientar-
se no pensamento é possível ler o seguinte:
À liberdade de pensar opõe-se, em primeiro lugar, a coação civil. Em verdade,
diz-se: a liberdade de falar e de escrever pode nos ser retirada por um poder
superior, mas não a liberdade de pensar. Sozinhos, quanto e com que correção,
então, iríamos pensar, se não pensássemos igualmente em comunidade com
os demais, a quem comunicamos nossos pensamentos e que nos comuni-
cam os seus! Por conseguinte, pode-se muito bem dizer que o poder exteri-
or, que retira aos homens a liberdade de comunicar publicamente os seus pen-
samentos, lhes toma também a liberdade de pensar (Denken, VIII, 144).

É ela, a liberdade de pensar e de fazer circular as idéias, que dá sentido


ao princípio “de um rei mal informado a um rei melhor informado”, por-
quanto faz conhecer a opinião do povo em matéria de legislação. Mas não
apenas: a defesa da comunicação e livre circulação de idéias é, ao mesmo
tempo, a defesa do princípio de correção das idéias – no caso do direito, da
correção das pretensões, da sua conformidade ao direito, tal como esse é
determinado pelo público. Desse modo, é importante perceber o quanto a
liberdade de pensar está associada à possibilidade do erro. Ao menos duas
reflexões deixam isso mais claro: uma que retoma as máximas do entendi-
mento humano comum, que Kant apresenta na Crítica da Faculdade do Juízo
(KU, V, 294 – T. 196), outra que vai além, afirmado um critério de verdade
que não é meramente lógico, isto é, formal:
Condições universais para a prevenção do erro: a) pensar por si próprio;
b) pensar a si próprio no lugar do outro; c) pensar sempre em concordân-
cia consigo mesmo. O modo de pensar 1. esclarecido, 2. ampliado, 3. con-
seqüente (Refl. 2273, XVI, 294).

O critério externo da verdade (não o critério lógico) é a comparação com outros


juízos; pois o subjetivo não se encontra em todos os outros de um mesmo modo,
de modo que a aparência [de verdade] pode ser descoberta (Refl. 2272, XVI, 294).

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Apenas por esse meio, pelo discurso público que tem em si mesmo o
princípio de sua correção, é possível chegar talvez mais próximo à unani-
midade que exige o bom governo, a uma distribuição universal do direito;
apenas por meio dele é possível chegar a uma unidade do arbítrio, presente
no ato de legislar, que serve de esquema, de símbolo para a idéia de direito
e de uma constituição civil perfeita. Unidade que, de resto, é formada
discursivamente. Quando Kant afirma um ideal matemático na determi-
nação do meu e teu - ideal de construção de um conceito na imaginação e
que se afasta, nessa medida, de todo conhecimento por conceitos, conheci-
mento formado não construtivamente e sim discursivamente -, não passa
disso: é um ideal, do qual as instituições políticas em constante “constru-
ção” e reforma devem se aproximar. A rigor, porém, deve-se considerar tal
ideal como irrealizável? Como já dizia Lehmann, não podendo ser realiza-
do por intuição intelectual, só pode ser realizado por meio do discurso.
Kersting vai no mesmo sentido, ao sustentar que a “luta pelo direito justo
há que ser conduzida apenas argumentativamente”42 . Argumentos, po-
rém, são construídos por conceitos, mas também por imagens. Que a ciên-
cia, como a físico-matemática, tenha podido afastar todo e qualquer recur-
so à doxa, deve-se ao seguinte fato: nela não apenas se faz uso de conceitos
precisos, não se aplicam apenas as categorias do entendimento; muito mais,
é a possibilidade de aplicação da matemática que lhe garante o estatuto de
ciência rigorosa (MAN, VI, 469). Destino semelhante não está, porém,
reservado à política, que se encontra irremediavelmente ligada à opinião.
Mas isso do ponto de vista do seu conteúdo, da matéria discursiva de cada
juízo, isto é, do que se entende, consoante o tempo e o lugar, por uma
constituição e governo republicanos e qual a medida a determinar o direito
de cada um. Por outro lado, porém, sua forma institui justamente um pro-
cesso de mútua correção das pretensões. A razão não visa – não pode visar
- o universal de modo imediato, e se ela se faz particular, contém também
em si o seu momento de universalização. Somente assim a respublica
noumenon, ou seja, “a idéia de uma constituição em consonância com o
direito natural dos homens” não é uma quimera, “mas a norma eterna para
toda constituição civil em geral”. “Uma sociedade civil organizada em

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conformidade com ele é a sua apresentação, segundo leis da liberdade, medi-
ante um caso na experiência (respublica phaenomenon)” (Streit, VII, 91 – T.
108– grifo meu). Certo, Kant está ciente de que há aqueles que pretendem
negar realidade objetiva a tal idéia, e mesmo ao direito político em geral,
isto é, a uma “teoria do direito político”; por outro lado, todos parecem ter,
cada qual em sua cabeça, “a idéia dos direitos que lhes são devidos” (TP.
VIII, 306 – T. 93). Contra esses, que acabam por incorrer em um salto
mortal, só é possível opor a confiança na teoria, ou melhor, na própria
razão prática.
Que a história dê ainda subsídio a tal confiança certamente não é
algo que se deva descartar43 . Mas então o filósofo não opera mais com o
método da matemática, e sim com o método publicista, a partir do qual
considera tudo em relação à idéia de um todo (Refl. 1441, XV, 629), de
sorte que então a história é escrita de modo a conter o plano para a me-
lhora do mundo (Refl. 1438, XV, 628). De todo modo, nesse discurso
cujo grau de assentimento vai pouco além da simples opinião, jamais se
deve confundir fé histórica, atrelada a gênese empírica das instituições, e
fé na razão, confiança de que sob essa gênese trabalham princípios puros
originariamente adquiridos; jamais se confundem, para dizer de modo
mais curto, símbolo e idéia. Kant pensava a realização da liberdade como
republicanismo, um modo de governar que se assemelha, em seus efei-
tos, a um sistema representativo do povo. Mas não desenhou a engenha-
ria de tal sistema. Tal tarefa, se ganha em realismo e também em eficácia
no mercado das idéias e ideologias, se afasta do grau de abstração que é
próprio da filosofia. Sua filosofia política é, por assim dizer, uma lenta
construção sistemática de passagens, ou melhor, uma reconstrução refle-
xiva e discursiva, tal qual um plano a priori, das passagens em direção à
institucionalização do “estado verdadeiro”. No interior de tal construção,
a crítica está permanentemente operante. Sobretudo ela não perde de
vista os contextos de aplicação, quando então tem o estatuto de uma teo-
ria da democratização, da institucionalização e realização progressiva e
contínua da liberdade. Ausübender Rechtslehrer, ela é a realização da “dou-
trina do direito nos limites da simples razão” (MdS. VI, 355).

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NOTAS
1
Gerhadt, Volker. “Uma teoria crítica da política: sobre o projeto kantiano À Paz
Perpétua”, trad. Peter Naumann, in Valério Rohden (org), Kant e a instituição da paz,
Porto Alegre, Editora da Universidade, 1997, p. 42
2
Com relação a esse ponto, ver Voker Gerhardt, “Der Thronverzicht der
Philosophie: über das moderne Verhältnis von Philosophie und Politik bei Kant”
in Höffe, O. Immanuel Kant – Zum ewigen Frieden, Berlim, Akademie, 1995.
3
Sobre a relação entre filósofo, político e público, pode-se ler: Soraya Nour, À Paz
perpétua de Kant, São Paulo, Martins Fontes, 2004, páginas 87 a 105. Mais adiante esse
tema retornará. Porém, deve-se tomar cuidado ao considerar o filósofo como consul-
tor dos governantes; na verdade, ele não deve exercer sua atividade em gabinete, e sim
em meio ao público. Assim, o filósofo é antes o publicista do que o conselheiro do
príncipe, ou melhor, ele é consultor em meio ao público, e não consultor privado.
4
Sobre o problema da cultura em Kant: Monique Castillo, Kant et l’avenir de la
culture, Paris, PUF, 1990.
5
Renaut, Alain, Kant aujord’hui, Paris, Flammarion, 1997, 401-2
6
Renaut, Alain, Kant aujord’hui, p. 403.
7
Arendt, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, Trad. André Duarte de Macedo,
Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993.
8
Renaut, A. Kant aujord’hui, p. 411. Na verdade ele vai além de Hannah Arendt, que
aproxima juízo político e juízo estético, e propõe assim pensar o juízo político por
analogia com o juízo estético. Mas ela não afirma uma “solução estética para o direi-
to”, o que apenas seria possível ao se perder as fronteiras entre as duas dimensões.
9
É o que faz, por exemplo, Ferrara, A. Justice and Judgment, London, SAGE, 1999,
em especial a Introdução, p. 4 e seguintes e p. 197 e seguintes.
10
Terra, Ricardo, “Determinação e reflexão em À Paz Perpétua” in ________, Pas-
sagens – Estudos sobre a filosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003, p. 99.
11
Renaut, A. Kant aujord’hui, p. 410.
12
Volker Gerhardt, Immanuel Kants Entwurf zum Ewigen Frieden, Darmstadt,
Wissenschaftliche Buchgesselschaft, 1995, p. 184
13
Volker Gerhardt, Immanuel Kants Entwurf zum Ewigen Frieden, p. 175.
14
Aqui se fará tanto quanto possível economia da questão relativa à recusa de Kant
em pensar a ação revolucionária como ação política genuína, ou seja, a impossibi-
lidade de se pensar um direito à revolução. Sobre a recusa,por parte de Kant, da
revolução e do direito de resistência, ver Cruz, J. H. B. Autonomia e Obediência: o
problema do direito de resistência na filosofia moral e política de Immanuel Kant, Tese de
Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 2004.

150

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15
Cf também ZeF, VIII, 370 – T. 152: “O deus-término da moral não recua peran-
te Júpiter (o deus-término do poder), pois este encontra-se ainda sob o destino,
isto é, a razão não está suficientemente elucidada para abarcar a série das causas
antecedentes que, segundo o mecanismo da natureza, permitam com segurança
anunciar previamente o resultado feliz ou não das ações ou omissões dos homens.
Mas quanto ao que temos de fazer para permanecermos na via do dever (e seguir
as regras da sabedoria), a razão nos indica em toda parte e de modo suficientemen-
te claro para nós levar ao fim terminal”.
16
Kersting, Wohlgeordnete Freiheit, p. 128.
17
Lehmann, G. “System und Geschichte in Kants Philosophie”, in _________,
Beiträge zur Geschichte und Interpretation der Philosophie Kants, Berlim, Walter de
Gruyter, 1966, p. 166.
18
Cf. Reinhart Koselleck, Kritik und Krise, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992
(primeira edição em 1959) – trad. brasileira por Luciana Villas-Boas Castelo-Branco,
Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999.
19
Habermas, Jürgen, Strukturwandel der Öffentlichkeit, Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1995, p. 180 e 184.
20
Habermas, Jürgen, Faktizität und Geltung – Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts
und des demokratischen Rechtsstaats, Frankfurt, Suhrkamp, 1994, p. 123 (trad. brasi-
leira por Flávio Beno Siedeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, p.
128).
21
Cavalar, G. Pax Kantiana – Systematisch-historische Untersuchung des Entwurfs “Zum
ewigen Frieden” (1795) von Immanuel Kant, Wien, Böhlau, 1992, p. 364.
22
Cf. Giannotti, J. A. Apresentação do mundo, São Paulo, Companhia das Letras,
1995, p. 18.
23
Torres Filho, Rubens R. Ensaios de Filosofia Ilustrada, São Paulo, Brasiliense, 1987,
p. 97.
24
Cf. Nour, S. À Paz Perpétua de Kant, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 99.
Maus, I. Zur Aufklärrung der Demokratietheorie – Rechts- und demokratietheoretische
25

Überlegungen im Anschluss an Kant, Frankfurt, Suhrkamp, 1994, ps. 125 a 127


26
Maus, I. Zur Aufklärrung der Demokratietheorie, p. 128.
27
Cf. Religião nos limites da simples razão: “confesso que não posso me sentir bem
com a expressão usada mesmo por homens inteligentes: um certo povo (que ela-
bora sua liberdade jurídica) não está pronto para a liberdade; os escravos de um
proprietário de terras não estão ainda prontos para a liberdade e, do mesmo modo,
os homens em geral não estão ainda prontos para a liberdade de crença. De acordo
com tal pressuposição, a liberdade nunca surgirá; pois não podemos nos tornar
prontos para esta liberdade se não formos postos em liberdade anteriormente (de-

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vemos ser livres para que possamos em liberdade usar nossas forças conforme o
nosso intento). As primeiras tentativas serão sem dúvida grosseiras e geralmente
ligadas a um estado penoso e mais perigoso do que se nos encontrássemos sob as
ordens, mas também sob os cuidados de um outro; nunca estaremos prontos para
a razão, a não ser por meio de nossos próprios esforços (e para que possamos fazer
isso, devemos ser livres)” (Rel. VI, 188)
28
Merle, Jean-Christophe, Justice et Progrès – contribution à une doctrine du droit
economique et social, Paris, PUF, 1997, p. 69.
29
Kersting, W. “Tranzendentalphilosophische Eigenthunsbegrundung” in
________. Recht, Gerechtigkeit und demokratische Tugend, Frankfurt am Main,
Surhkamp, 1997, p. 71 e 72.
30
Philonenko faz de tal conflito entre direito dos homens e direitos dos cidadãos
ponto importante de sua interpretação do pensamento político kantiano, que co-
nheceria um primado do segundo em relação ao primeiro: Philonenko, Alexis,
Théorie et Praxis dans la pensée morale et politque de Kant et Fichte en 1793, Paris, Vrin,
1988. Num certo sentido, a concorrência entre direitos dos homens e soberania,
que Habermas julga encontrar em Kant, é uma outra variação desse mesmo tema.
Cf. Habermas, J. Faktizität und Geltung, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1994, p.122/
tradução p. 128. Em Kant, se há primado, que só poderia ser dos direitos dos ho-
mens, não há subordinação, mas coordenação entre uma e outra perspectiva.
31
Kühl, Kristian, Eigenthumsordnung als Freiheitsordnung, Freiburg, Karl Alber, 1984, 238.
32
Sobre o imperativo de aceitação do provisório, ver Cruz, J. H. B. Autonomia e
Obediência: o problema do direito de resistência na filosofia moral e política de Immanuel
Kant, Tese de Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 2004, p. 103.
33
Manin, Bernard, Principes du gouvernement représentatif, Paris, Flammarion, 1996.
34
Maus, I. Zur Aufklärung der Demokratietheorie, p. 249.
35
Rousseau, Du contrat social, in Œuvres complètes III, Paris, Gallimard - Pléiade,
1964, p. 360.
36
Rousseau, Du contrat social, p. 404
37
Rousseau, Du contrat social, p. 406
38
Rousseau, Manuscrit de Genève, in Œuvres complètes III, Paris, Gallimard - Pléiade,
1964, p. 297.
39
Kersting, W. “Die bürgerliche Verfassung in jedem Staate soll republikanisch sein”
in Höffe, O. Immanuel Kant: Zum ewigen Frieden, Berlim, Akademie, 1995, p. 101.
40
Giannotti, J. A. “Kant e o espaço da história universal” in Kant, Idéia de uma
história universal de um ponto de vista cosmopolita, trad. Ricardo R. Terra e Rodrigo
Naves, Brasiliense, São Paulo, 1986. p. 133.

152

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41
O mesmo movimento pode ser encontrado na Religião: os cultos ao templo e à igreja
tinham por fundamento uma fé de ordem histórica, até que, por fim, elas são tomadas
como simplesmente provisórias e se começa a ver aí a representação simbólica e o
meio para a realização da pura fé religiosa, da pura fé moral (Rel. VI, 176).
42
Kersting, Wohlgeordnete Freiheit, p. 512.
43
Como escreve Zingano, não sem uma certa desconfiança, “navegando entre os
escolhos de um discurso que reescreve o empírico segundo o tom prático que
deseja e de uma descrição positiva que apaga de todos os acontecimentos qualquer
referência ao prático e ao projeto humano nele embutido, o discurso histórico
repousa na difícil, mas imprescindível, tarefa de elucidação dos passos empíricos
portadores de um projeto racional da humanidade”. Zingano, M. Razão e História
em Kant, São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 304

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Ao partir das objeções que acusam a filosofia práti-
ca de Kant de formalismo vazio, o que se pretendeu
foi justamente ressaltar, desde o início, a atividade
reflexionante de tal filosofia, atividade que, a des-
peito da irredutibilidade por ela sempre afirmada
entre ser e dever-ser, concorre no sentido da cons-
trução sistemática de passagens. A faculdade de jul-
gar, em sua tarefa de levar a bom termo a passagem
entre universalidade da regra e particularidade do
caso (e vice-versa), não opera então no vazio de suas
significações, mas faz um uso imanente dos concei-
tos práticos puros, esses sim determinantes. Além
do mais, aqui se procurou afirmar que a reflexão, ao
operar sobre sínteses empíricas, adquire originaria-
mente, isto é, a priori, os conceitos que são exigidos
para o seu próprio exercício, de modo que as pre-
tensões possam ser ajuizadas quanto à sua validade:
“O conceito, a idéia, o ideal. O conceito é um prin-
cípio universal de diferenciação (nota característica).
Apenas o conceito a priori tem verdadeira universa-

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lidade e é o princípio das regras (...) O empírico, segundo intuições
em imagens, ou segundo a experiência, não dá nenhuma lei, mas
apenas simples exemplos, os quais, para seu julgamento, exigem ainda
um conceito a priori” (Refl. 6611, XIX, 108). A investigação aqui
empreendida, ainda que tenha sua raiz na lógica, não se contenta
com a origem lógica dos conceitos, isto é, com a sua simples forma,
mas se encaminha para a análise da lógica transcendental, na medida
em que ela se ocupa dos conceitos quanto a suas matérias. Ocorre
porém que não se chega a nenhuma razão de tipo substancial, uma
vez que a matéria que a faculdade de julgar prática impõe não é senão
a forma que a razão, como faculdade de julgar, exige para a síntese
das representações (discursivas, isto é, refletidas). Desse modo, pro-
curou-se mostrar como se dá a passagem para a metafísica, porquanto
resultado da comparação entre conceito e unidade da razão: “a pri-
meira coisa que o homem tem de fazer, é trazer a liberdade sob a lei
da unidade; pois sem esta seu fazer ou deixar de fazer é uma pura
confusão” (, Refl. 7202, XIX, 280). Assim, um conceito prático, e no
caso aqui em pauta, os conceitos jurídicos, restam sendo sempre
representações gerais e refletidas, mas que têm sua origem na refle-
xão sobre o modo como a razão submete as ações à sua unidade, e
isso por meio de um juízo: “o juízo a partir da razão é um conceito
e vale objetivamente” (Refl. 6690, XIX, 134).
Isso sem dúvida mostra um vínculo forte entre conceitos, isto é,
entre o modo como se compreendem os conceitos, e a história, na
medida em que a apresentação dos primeiros se dá sempre nessa últi-
ma. Corre-se, porém, o risco de acabar por historicizar a filosofia de
Kant? Os capítulos segundo e terceiro cuidaram, justamente, de afas-
tar, de um modo mais claro, tal possibilidade, dando às formações
históricas da liberdade seu estatuto preciso: elas são esquemas, isto é,
movimento de tornar “sensíveis” as unidades discursivas puras. Ou
seja, se os conceitos jurídicos precisam, para a garantia de sua realida-
de objetiva, de uma síntese empírica, a sua validade objetiva é assegu-
rada antes, pois sua origem se encontra no exercício da razão prática

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pura. Isso permite tomar partido frente a alguns dos problemas que a
Kantforschung vem apontado na filosofia político-jurídica de Kant,
notadamente o problema da determinação da propriedade particular
(Estado como cão de guarda da propriedade ou como Estado Social
de Justiça Distributiva) e do caráter democrático ou não do seu direi-
to político (segurança jurídica ou correção da norma). Pois se procu-
rou demonstrar o modo como as unidades discursivas, então projetadas
em um mundo inteligível, vão se inscrevendo no empírico, bem como
a necessidade de uma passagem entre juízo privado e juízo público, a
qual é solidária da necessidade, desde o direito privado, da criação de
instituições de natureza jurídico-políticas. Toda síntese empírica é sem-
pre precária, e já aponta para o sentido e necessidade de sua correção,
cujo critério é posto pela razão prática – possibilidade de unificação
dos arbítrios, no direito privado, idéia de contrato originário, no di-
reito público.
Nessa unidade entre teoria e prática, a esfera pública tem, ao lado
do filósofo crítico e do político moral, papel de destaque, pois é nela,
em última instância, que as sínteses empíricas encontram seu mo-
mento de legitimação, quando então o fundamento subjetivo da ação
se vê posto, ao passo que o fundamento objetivo resta sempre a regra
da ação em sua pureza transcendental. Mas onde se revela o funda-
mento subjetivo? Justamente na formação de uma unidade empírica
entre as diversas vontades, isto é, na formação de uma opinião co-
mum em torno de pretensões jurídicas. Daí a liberdade de pensar e de
poder comunicar publicamente os seus pensamentos ter o peso que
tem na filosofia kantiana. Sem ela, não há critério seguro para a correção
das pretensões jurídicas. Mas o acordo que se vai tecendo
empiricamente na opinião do povo se revela apenas como índice de
um acordo mais profundo, que se dá no nível do juízo e do exercício
da faculdade de julgar. A esfera pública se revela então como instância
extra-jurídica de legitimação, pois é nela que a política encontra seu
palco por excelência. Mas, por outro lado, o direito é meio para a
política, quando então essa é entendida como doutrina do direito posta

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em prática, ou seja, como movimento de realização dos princípios do
direito racional. Nesse movimento, o direito, como intermediário,
acaba fazendo a mediação entre facticidade e validade, essa mais “re-
cente” descoberta em filosofia.
Esse acento na necessidade de construir passagens entre unidades
discursivas puras (normativas) e práxis certamente leva luz a um outro
ponto. A tese defendida - e muito - na Kantforschung de que Kant daria
um primado à segurança jurídica em detrimento da correção da norma
tem forte apoio na recusa de Kant ao direito de resistência. Mas onde
está o cerne da crítica de Kant à revolução? Dizendo de maneira bastan-
te resumida: no fato dos revolucionários terem confundido princípios
normativos e questões empíricas, como em uma espécie de anfibolia.
Pois o que fazia Danton? Tomava a idéia de contrato como se fosse um
fato, para então revogar todo o direito estabelecido (TP, VIII, 302 – trad.
89). Isso não significa, postas as coisas nesses termos, recusar os resulta-
dos da revolução, mas sim recusar o seu medium, na medida em que ele
já não fala mais a “linguagem” do direito, a qual substitui pela “lingua-
gem” da força. Nesse sentido, pode-se dizer que, para Kant, a aposta na
revolução teria como contrapartida uma recusa da política nos limites
da simples razão, ou seja, seria a recusa desses limites. Daí ele poder, ao
mesmo tempo, louvar e criticar a revolução1 . O único caminho para a
política segue então por meio de reformas, as quais são realizadas se-
gundo princípios apresentados publicamente, pois o princípio da pu-
blicidade cuida, justamente, de fazer a mediação entre idéia de direito e
vontade empírica do povo2 . Mas há que se considerar, ao fim e ao cabo,
que o soberano, o representante do povo, tem o monopólio de tais prin-
cípios? Não parece ser esse o caso, até porque Kant recusa não apenas a
revolução; ele recusa igualmente a própria idéia de uma vanguarda re-
volucionária. Certo, o soberano pode ter o monopólio da execução das
reformas, mas não do sentido de sua realização, a qual vai se tornando
mais difícil conforme as relações sociais vão se alterando e sofrem au-
mento no seu grau de complexidade. Difícil, porém, não quer dizer
impossível.

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NOTAS
1
Sobre esse ponto cf. Terra, Ricardo R. “É possível defender a legalidade e ter entu-
siasmo pela revolução? Notas sobre Kant e a Revolução Francesa” in _________,
Passagens – Estudos sobre a filosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003.
2
Maus, I. Zür Aufklärung der Demokratietheorie – Rechts – und
demokratietheoretische Überlegungen im Anschluss an Kant, Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1994, p. 127.

159

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BIBLIOGRAFIA CITADA

Kant é citado quase exclusivamente no corpo do texto e sempre na


Edição da Academia: Kants gesammelte Schriften, Berlim, Walter de Gruyter,
1902 e seguintes. O volume é apresentado em algarismo romano, seguido
no número da página. Na seqüência, quando houver, dá-se a indicação tam-
bém da tradução para o português, que podem ter sido modificadas. As úni-
cas exceções são a Crítica da Razão Pura, que é citada na edição B, e a Lógica,
por conter a paginação da Academia. Fez-se uso das seguintes abreviaturas:

KrV – Crítica da Razão Pura


KpV – Crítica da Razão Prática
KU – Crítica da faculdade do juízo
Grund – Fundamentação da Metafísica dos Costumes
MAN – Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza
MdS – Metafísica dos Costumes
Idee – Idéa de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita
TP – Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na
prática
Prol - Prolegômenos a toda metafísica futura
ZeF - À Paz Perpétua
Denken - O que significa orientar-se no pensamento?
Aufkl - Resposta à pergunta: que é o iluminismo
L - Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade
Streit - O Conflito das Faculdades
Logik – Lógica
Refl – Reflexões
Rel – A Religião nos limites da simples razão

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Vor ewig. Frieden – Trabalhos preparatórios para À Paz Perpétua
Vor. Rechtslehre - Trabalhos preparatórios para a Doutrina do Direito

Traduções:
Crítica da Razão Pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão, Lisboa, Gulbenkian, 1989.
Crítica da Razão Prática. Trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1986.
Crítica da faculdade do juízo. Trad. Antônio Marques e Valério Rohden, Lis-
boa, INCM, 1992.
Prolegômenos a toda metafísica futura. Trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1982.
Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela, Lisboa, Edi-
ções 70, 1988.
Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Trad. Ricardo R.
Terra e Rodrigo Naves, São Paulo, Brasiliense, 1986.
À Paz Perpétua in À Paz Perpétua e outros escritos. Trad. Artur Morão, Lisboa,
Edições 70, 1992.
Resposta à pergunta: que é o iluminismo, in À Paz Perpétua e outros escritos. Trad.
Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1992.
O que significa orientar-se no pensamento? In À Paz Perpétua e outros escritos. Trad.
Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1992.
Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática, in
À Paz Perpétua e outros escritos. Trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1992.
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Este livro foi publicado no formato 170 x 240 mm
Miolo em papel 75 g/m2
Impresso no setor de reprografia da EDUFBA
Impressão de capa e acabamento:
Gráfica Santa Bárbara Ltda.

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