Você está na página 1de 14

O Jumento Lezinho

Zé Toquinho brigou com o feitor da Fazenda Jacutinga, no Paraná, abandonou o emprego


e veio pra capital de São Paulo. Sem conseguir emprego na cidade grande, arrependeu-
se amargamente, de não haver aceitado o emprego de zelador que Vitorio lhe oferecera,
sobretudo porque Clesner teria a oportunidade de estudar com o filho do patrão, na
mesma escola.

Tempos difíceis, aqueles, para um homem analfabeto, com um filho à tira colo, numa
cidade grande, longe da família e sem o trabalho da lavoura ao qual estava habituado
desde criança.

Resolveu voltar para o Ceará. “Se houvesse um bom inverno poderia plantar e colher
milho, feijão e algodão em Iguatu, nas terras que seus irmãos herdaram do Pai”
Imaginou.

Durante a viagem, na mudança de trem em Belo Horizonte, conheceu um baiano muito


alegre e conversador que residia no interior do Município de Guanambi, Estado da Bahia.

Conhecido como Zé Pereira da Anta Gorda ( alcunha que lhe impuseram seus vizinhos
em razão do nome da sua propriedade agrícola), ele era um pouco mais velho do que Zé
Toquinho, mas aparentava ser muito jovem por ser alegre e ter um padrão de vida acima
da media de seus conterrâneos. Não demonstrava ser uma pessoa sofrida. Homem de
inteligência rara para os negócios, embora semi - analfabeto, era muito bem informado e
até radio a bateria ele possuía em sua casa, o que atraia toda a vizinha à noite para ouvir
as novelas, noticias e músicas.

Após viajarem juntos durante dois dias, Zé Toquinho ficou convencido de que o interior da
Bahia, onde o amigo recém conhecido morava, parecia de fato ser o paraíso. E resolveu
conferir.

Clesner e o Pai começaram uma vida nova, num ambiente sem luxo, nem riqueza, porem
saudável.

Ali todos tinham suas propriedades pequenas e medias onde produziam ”com o suor do
seu rosto” tudo quanto era necessário ao seu sustento e sua família.”

Na estação das chuvas, de novembro a março, plantava-se milho, feijão, algodão,


mandioca, abóbora e batata doce ( melancia e maxixe nasciam das sementes deixadas
no solo na safra anterior). Nas áreas de “alagadiço” como era denominado pelos
agricultores as áreas que permaneciam inundadas durante a estação chuvosa, plantava-
se cana de açúcar e arroz.. Da cana de açúcar moída em engenhos de madeira
fabricados artesanalmente, na região e puxados a boi fabricava-se cachaça e a rapadura
que tão bem substituía o açúcar!
Rr

Ra

Engenho para moagem de cana de açúcar, puxado por dois bois

Após a colheita, cada agricultor separava os alimentos necessários a sobrevivência até a


próxima safra ou um pouco alem e vendia a sobra. Criava-se boi, porco, galinha, ovelhas
e cabras e da mesma forma vendia-se apenas o excedente. No período das chuvas que
chamavam de inverno, havia leite de vaca em abundância e as famílias fabricavam queijo
de coalho, requeijão e manteiga.

Como se costumava dizer: comprava-se na cidade apenas sal e chita.

O meio de transporte era a montaria e o carro de boi. As celas e cangalhas usadas em


burro, cavalo ou jumento e o carro de boi eram fabricados artesãos e carpinteiros da
própria região. Cada proprietário de terras possuía um ou mais carros de boi.

Carro de boi

Dois bois, selecionados ainda quando garrotes, amansados e treinados, andavam


emparelhados puxando o carro que conduzia a família para festa ou para a feira; o
doente até o médico, a madeira pra cercar o roçado novo e a produção da lavoura para a
residência ou para cidade quando resolvia vender o excesso. O carro de boi servia até
como transporte funeral.

O nível de escolaridade era pequeno e por falta de professores os pais ensinavam as aos
filhos a leitura, as quatro operações aritméticas e a assinar o nome. As famílias eram
dedicadas, inteiramente, à agricultura e pecuária de subsistência.

Os mais pobres, plantavam nas terras de outras pessoas e pagavam-lhes pelo uso da
terra com 1;/4 da produção.

As terras tinham proprietários legítimos, porem apenas uma parte pequena era cercada.
Desta forma criavam-se muitos animais soltos, principalmente caprinos e ovinos.

No período de estiagem, de abril a outubro, havia escassez de pasto para os rebanhos de


bovinos e muares. Entretanto, era o período em que os caprinos se sobressaiam,
aumentando em tamanho e em peso devido ao amadurecimento das folhas do
marmeleiro e do faveleiro, seus alimentos prediletos, ricos em proteína.

As crianças e adolescentes ajudavam a cuidar dos animais de pequeno porte, no plantio e


na colheita. As mocinhas usando a roda de fiar ou o fuso produziam as linhas de
algodão de diversas espessuras e cores. As senhoras idosas teciam no tear manual pano
para cobertor, calça e camisa para os homens e outras utilizações domesticas.

O pai de Clesner montou em terreno alugado a um fazendeiro uma olaria para o fabrico
manual de telhas e tijolos e também pagava aos donos da propriedade pelo uso da água,
da argila, bem como a lenha usada para queimar os tijolos e as telhas.

Os fazendeiros da região ficaram encantados com a qualidade do seu material e, pouco


tempo depois, Zé Toquinho já não atendia à demanda. Mas preferia trabalhar apenas
com filho, ainda que produção fosse pequena, pois temia contratar alguém e lhe tirarem o
segredo de sua arte de oleiro.

Conheceu Hercília, uma mulher negra, de apenas 18 anos e encantou-se pela mulata.
Foram morar juntos numa casa de taipa, coberta de palha de coco ouricuri. A casinha,
de chão batido, tinha um quarto, sala e cozinha e depois alguns meses foi coberta de
telha e as portas, que eram esteiras de palha de coco trançadas por Hercília, foram
substituídas por portas de imburana feitas pelo casal. (Imburana, madeira leve, de cor de
castanho claro-rosado, de média resistência, é fácil de trabalhar embora suscetível ao
apodrecimento) era muito comum na região.

Aos sábados Zé Toquinho ia à feira no Mocambo, povoado que teve o nome mudado para
Candiba e em 1962 foi emancipado como município, com território desmembrado de
Guanambi, adquirindo foro de cidade.

Viajava montado numa burra que recebeu como pagamento de telhas de um fazendeiro.
Não levava Clesner porque o animal era recém amansado. Acreditava que menino não
suportaria andar a pé mais de 3 léguas (cerca de 18 km).

Num sábado de aleluia Hercília insistiu para ir ao povoado de Candiba, que os matutos
continuavam a chamar de “Mocambo”. Ela precisava comprar um par de sandálias, pano
para um vestido e uma roupinha para Clesner pois o “o coitadinho estava nu e cru, só
tinha duas roupas puídas, começando a rasgar”. Zé toquinho, mão de vaca que era,, não
gosto muito estória.

Mas, quando ela disse que iria comprar com o dinheiro que ganhou na apanha de
algodão na roça de João Vermelho, ele mudou o tom da conversa e permitiu que eles os
acompanhassem para a feira.

Zé Toquinho comprou algumas coisas na feira e sem seguida guardou numa barraca
onde se vendia comida pronta. Clesner aproveitou e pediu ao pai que o deixasse ficar na
barraca sentado por um tempo pra descansar.

Assim que velho saiu ele perguntou a dona da barraca se havia escola ali e se era
publica.

A velha não entendeu bem porque não sabia o que significava escola publica mas
respondeu:

-Saindo da feira você vai passar pela Igreja. Desce uma ladeira e sobe outra. No finzinho
da ladeira, do lado esquerdo tem um Grupo Escolar do Governo. Não tem errada. Só
existe uma escola neste lugar. Concluiu a senhora.

- Quando meu pai procurar por mim a senhora diz que fui ali no mato fazer uma
“necessidade” e volto logo. Saiu apressado.

Passou em frente a igreja católica, contemplou rapidamente a imagem de Nossa Senhora


das Dores, fez o sinal da Cruz, pediu-lhe proteção e seguiu a procura da escola. Logo
percebeu uma construção de tijolo, coberta de telhas com uma sala de cada lado e ao
centro um saguão que certamente serviria para as crianças brincarem no recreio. Uma
sala estava vazia e na outra havia aula.

Clesner pendurou-se numa das janelas na tentativa de falar com a professora mas não
conseguiu em razão de sua altura. Fez uma pilha de tijolos e finalmente conseguiu. Os
alunos perceberam e desviaram atenção e a professora reclamou. Clesner, com medo
desceu dos tijolos. Refez o susto e repetiu o ato. A professora percebeu a sua presença
na janela e com uma régua na mão dirigiu-se, eufórica, à janela.

-Vai embora moleque! Você está atrapalhando minha aula, disse a professora olhando os
trajes pobres do menino.

- Eu quero me matricular na sua escola, repetiu.

-Vá embora, já disse!

O pequeno saiu de cabeça baixa, triste, pensativo e quase se esbarrou na zeladora que
acabara de chegar.

-Desculpe senhora. Vim ver se podia me matricular mas a professora me expulsou aos
berros.

-Você mora aonde meu filho?

-Nos Paus Preto, na roça. Não é tão longe. São apenas 3 léguas dá para eu vir todos os
dias sozinho..

- Ta vendo aquela sala fechada? Segunda feira vai chegar uma nova professora do
Governo e vai matricular muita gente. Dizem que é uma moça muito bonita e educada. É
a espora do dentista doutor Terta.

-Eles moram aqui? Indagou Clesner.

- O dentista mora naquela rua que fica no fundo da igreja, bem lá embaixo.

Clesner agradeceu e saiu em disparada, de volta à feira.

Zé Toquinho com um chicote na mão tinha a cara de um monstro das cavernas.

- Clesner ! Gritou ao longe:

- Calma, papai! Fui procurar uma coisa muito boa e encontrei. Não me bata.

- O que, então você encontrou...? Fale logo.

-Uma escola pra estudar

O pai desmanchou-se em alegria.

- Onde é a escola?
-Fica lá em cima. Nós podemos ir agora a casa da professora. A escola é pública. O
senhor não precisa pagar.

O velho que há pouco era um Leão enraivecido, agora parecia um anjo e seguia
apressado, os passos do filho em direção a casa da professora.

“Dr. Tertuliano – Dentista”- a placa indicava o caminho.

Clesner entrou no consultório e foi logo ao assunto:

- Boa tarde. Meu nome é Clesner e quero me matricular na escola da nova professora.

O dentista, um jovem de pouco mais de 25 anos, recém formado e muito educado,


sorridente, cumprimentou Clesner e o pai e disse:

- A professora é minha esposa. Ela foi a Guanambi tomar posse e buscar alguns
materiais que vai precisar pra dar aulas. Terça feira estará na escola pra fazer a matricula
dos novos alunos.

Zé Toquinho, cheio orgulho disse:

-Doutor ele é meu filho, tem 8 anos mas já sabe ler e escrever. Ele escreve e ler minhas
cartas e faz a contas do material que eu vendo e do que eu recebo.

- Muito bem! Dona Adélia vai adorar. Ela gosta de menino inteligente.

E passando carinhosamente a mão no pescoço de Clesner, disse:

-Depois quero ver como estão estes dentinhos.

O pequeno e frágil garoto quase não dormiu nos dias que se seguiram. Não via a hora de
começar a freqüentar a nova escola.

Na terça feira, acordou de madrugada e saiu com Hercília para fazer a matrícula.

A professora é uma pessoa encantadora e de uma beleza física e espiritual imensuráveis.

Daí em diante, Clesner acordava na madrugada, quando os galos começavam a parar de


cantar e saia sozinho pela estrada, ainda escura, para chegar à escola antes das 7 horas.

Algumas semanas depois ele chegou atrasado. A professora estava terminando a


chamada. Na porta da sala levantou o braço e disse:

- Bom dia! Ainda posso entrar pra assistir a aula?

- Entrei não dei falta em você.

O menino agradeceu e sentou-se no fundo da sala com as mãos do rosto, tentando se


recuperar do cansaço.
No dia seguinte, D. Delia já fechava a porta da sala para iniciar a aula quando ele,
atrasado, chegou correndo e sem dizer nada, sentou-se.

A professora percebeu que ele estava muito pálido e pediu a zeladora um copo com água,
oferecendo-lhe.

-Não professora, não comi nada hoje e se beber água vomito.

Ela pegou o seu lanche, na gaveta da mesa e deu ao aluno.

Ele, ofegante, chorando muito, conseguiu comer todo o lanche.

Passados alguns minutos ela tomou-lhe e pulso e percebeu que a pressão estava
voltando ao normal.

Com um sorriso falou

-Filho você não sair de casa, pela manha, sem comer alguma coisa.

-Não é a fome, professora. Já me acostumei a passar fome desde que nasci. A questão é
a onça. Se não fosse ela eu não precisava correr tanto.

D. Delia apanhou a ficha de matricula e não entendeu o porquê da onça.

Meu filho, não chore! Não foi uma onça. Deve ter sido um cachorro grande. Você mora
depois do cemitério e naquela existem muitos moradores. Onça fica em mata fechada.

- D. Delia, eu não moro perto do cemitério e nem vou pro cemitério porque se aquela que
vi hoje me pegar, ela me leva pra toca e me come todinho, não deixa nem um pedacinho
pra enterrar. A bicha é muito grande, do tamanho de um garrote!

- Eu moro depois da Anta Gorda já quase nos Paus Preto. De casa pra escola eu ando
tres léguas. Acordo de madrugada quando os galos começam a amiudar o canto. No
caminho atravesso uma mata fechada de quase uma légua de distância e como é muito
cedo “ainda ta tudo escuro”.

-Ontem eu ouvi a onça rosnar perto de mim e danei a correr até sair da mata. Só parei
quando minhas pernas não agüentavam mais. Descansei e me atrasei pra aula. Hoje eu
vi a bicha preta atravessar a estrada numa carreira, que nem bala, atrás de um veado.
Ouvi o baque do animal que ela pegou. Mesmo me tremendo de medo consegui correr e
atravessar a mata. E pra não atrasar de novo continuei andando ligeiro. Por isto desmaiei
quando entrei aqui.

Passado o susto iniciou a aula e ao término levou a aluno ate sua residência onde
mediu-lhe a pressão arterial e deu almoço. Já no final da tarde quando os raios solares
estavam mais suaves, escreveu um bilhete convidando Zé Toquinho a vir à escola no dia
seguinte e providenciou uma pessoa pra levar Clesner até sua casa, de bicicleta.
Clesner leu o bilhete e o ficou bravo, achando que o filho havia feito alguma traquinagem
na escola.

No dia seguinte, sábado, dia da feira, Clesner foi para escola, na garupa da mula,
agarrado à cintura de Zé Toquinho.

Ao chegar estava com as costas e bunda doendo. Não sabia o que teria sido pior: viajar
na mula ou vir a pé.

O velho entrou na sala de aula acompanhado do filho e ao cumprimentar a professora foi


logo dizendo:

- Dona pode me contar tudo que lhe aprontou porque ele cair no chicote sem pena, e sem
dó!

- Fique calmo, seu Zé! Não aconteceu nada demais. Ele é o melhor aluno da sala.
Inteligente, comportado e estudioso. Disse a professora, acariciando o menino. E
continuo:

- O senhor mora muito longe e ele não agüenta vir a pé pra escola todos os dias. Por isto
eu combinei com meu esposo que vamos ficar com ele em nossa casa durante a semana,
sem despesa nenhuma para o senhor e, nos fins semana o senhor leva ele e traz na
segunda feira.

_ Não pode dona. É sempre assim. Toda professora quer me tomar ele e eu dou. Só
tenho ele pra me ajudar e eu sou o pai e a mãe dele. Responde.

Nenhum argumento o convenceu.

Clesner começou a chorar e em prantos gritava:

- Eu quero estudar! Preciso estudar! Eu vou ser gente grande. Vou ser engenheiro pra
construir pontes, estradas, açudes e arranha céus. Vocês vão ver, custe o que custar.

Finalmente o velho voltou a falar:

_ Vou comprar um “animal manso e uma cela” daqui até segunda feira. Posso lhe
garantir, dona professora. Até logo!

E saiu pra feira.

Domingo, após o almoço, sentado à sombra do juazeiro que ficava em frente a sua casa,
Clesner divisou ao longe o vulto de cavalheiro que se aproximava. Era o negro Vitalino
montado, “em pelo” num jumento grande e ligeiro.

Vitalino apeou do jegue e ainda com o cabresto na mão falou:

- Seu Zé boa tarde, eu não posso vender o Jegue porque eu preciso trocar por um cavalo.
“O sinhô sabe um homão do meu tamanho montado num sofre muita desfeita”.” Me
chamam até preguiçoso”.
_ “Nego tu veio aqui pra dizer que mijou praz trás e vai me deixar na mão, sem o
jumento?

- Não assim, retrucou Vitalino. A gente troca num cavado.

- E tu me volta quanto? Perguntou Zé toquinho?

- A cela do Jegue. É o que tenho agora. E não vai servir mesmo pro cavalo.

- Pronto fechado. Vá buscar a cela e leve o cavalo.

-Mas o senhor nem mostrou o animal...

-Ora homem. Tem três ali.Escolha o que quiser!

E Vitalino saiu feliz da vida. Acabara de concretizar um sonho: possuir um cavalo.

No restante da tarde Clesner se ocupou com o Jumento.Pisou milho no pilão e colocou


numa cuia com água para amolecer. Levou o animal para a beira do tanque e enquanto
lhe dava banho e cortava as crinas o amarrou pra comer capim verde. Findo o banho
trouxe-o de volta para casa e deu pra comer a cuia de milho.

Já estava escurecendo quando o menino entrou em casa, após soltar o jegue no pasto.

Hercília, também satisfeita, perguntou:

- E aí meu filho, gostou do presente?

- Gostei muito, o jumento é mansinho, é lezinho.

Em agosto Zé Toquinho, foi novamente, convidado a ir à escola de Clesner para uma


reunião no sábado pela manha. Desta vez não ficou bravo e nem preocupado. Trouxe ate
presente para a professora: uma banda de um bode, já salgada e temperada com raízes e
sementes silvestres.

A sessão de entrega das provas, com o resultado dos dois primeiros bimestres do ano
letivo começou e pai e filho ficaram apreensivos porque o nome de Clesner não se ouvia.

Ao final D. Delia, orgulhosamente anunciou: Clesner da Silva Souza – aprovado com


média dez e pro movido para o segundo ano!

E entregou o boletim e um presente: eram livros novinhos de Olga Pereira Mettig, para o
segundo ano, oferecidos por Dr. Tertuliano.

Em novembro nasceu o primeiro filho de Hercília e Zé Toquinho. Era moreninho e Zé


Toquinho desconfiava que não era seu filho pois se parecia com ele. “Seguro esta negra
pela saia o dia e a noite trabalhando e será que ela ainda teve tempo de trair? Interrogava
a si mesmo.”
Descobriu um vidente, Dona “Antonha” distante duas léguas de onde morava e foi tirar as
dúvidas.

Ao entrar na sala cheia de enfeites, flores mortas e estátuas de santos das igreja católica,
a velha morena e gorda de prono foi lhe dizendo:

- “Você tem filho que daqui ha alguns anos vai doutor e agora ta de miolo mole porque
acha que o nenezinho não é seu filho. Deixa de ser besta homem vai cuidar de tua mulher
e dos filhos que vem mais por ai. No mais tardar, uma menina no final do ano que vem”.

Zé Toquinho ficou pasmo. Antes de falar sobre o seu problema a velha havia adivinhado
tudo. Pagou a consulta e retornou e a chegar em casa encontrou o pequenino, sorrindo,
deitado numa esteira trançada com palhas de coco ouricuri, enquanto a mãe preparava o
jantar. Apanhou o filho nos braços e o beijo e acariciou durante longos minutos. Estava
cego antes e não percebeu que apesar de moreno o menino era sua cara!
Naquele ano chovera menos do que nos anos anteriores.
Outubro chegou com dias quentes, sol inclemente e nenhuma nesga de nuvem para
amenizar o calor. Não havia sinal de chuva, prenuncio do inicio de uma longa estiagem no
sertão da Bahia.
Cearense, acostumado às secas, Zé Toquinho começou a se prevenir. Comprou milho em
quantidade e começou a engordar porco. Matava o porco, vendia a metade,
principalmente espinhaço, costela e pernil por um preço mais baixo. O restante fritava e
acondicionava em latas de querosene lacradas com cera de abelha. Os tiradores de mel
lhe davam a cera e não sabia pra que servia. A banha era guardada em latas em
separado da carne.
Hercília fez vários potes grandes, queimados no forno de telhas e, todos foram usados
para guardar milho, feijão e arroz com casca. Os alimentos eram misturados à cinza
produzida no forno de telhas para se manterem livres de gorgulhos ou outras pragas.
A pastagem seca e a falta de água levavam os animais a perder peso e às vezes à morte.
Lezim emagreceu e ficou fraco. Andava de devagar e quando passava em frente a
porteira de uma fazenda amuava. Ficava rodando em torno de si mesmo e por mais que
apanhasse não saia do lugar.
Clesner descia da cela e o puxava pelo cabresto até distanciar da fazenda.
Um dia Clesner bateu em Lezim até seu braço cansar e ele permaneceu frente da cancela
da fazenda, imóvel.
Ao desmontar o jumento rodou e ele caiu na sua frente. Ao levantar percebeu que
lágrimas escorriam dos olhos do animal.
Descobriu, então, que animais irracionais também sofrem e têm sentimentos.
Acariciou o animal e depois pediu a uma senhora que lavava roupas uma cabaça de água
pra dar a jegue.
A senhora observando o estado de magreza do jumento sentencio:
- Este animal está passando muita fome
E Clesner completou:
-Durante o dia ele e carrega para escola e da escola pra casa. A noite fica numa roça
onde só tem talo de milho seco.
A senhora trouxe um feixe de capim napier para o jumento.
Clesner esperou, pacientemente, que amiguinho terminasse de pastar e seguiram para
casa, onde chegaram no final da tarde.
Ze Toquinho sentado num banco de madeira à sombra do juazeiro olhou enraivecido para
Clesner e disse-lhe:

- Isto é hora de chegar em casa, moleque? Vem brincando pelas estradas, sabendo que
preciso de você no trabalho?

- Pai, respondeu o menino quase em sussurro. Foi Lezin. O pobrezinho não agüenta mais
andar. Tá morrendo de fome. Eu paro para ele comer folha de mato e juá...

- Pois ta bem, amanha você leva as esporas e quero ver ele não “andá”.

Clesner nada respondeu ao pai, apenas perguntou a si mesmo: porque é difícil ao


adultos compreenderem os animais e as crianças?

Conversou com Hercília e ela amou uma faca velha que estava sobrando na cozinha para
ele cortar o mandacaru, tirar os espinhos e dá ao jeguinho para comer. Deu certo e
Lezinho parou de amuar na frente das fazendas. Ambos ficaram amigos e de madrugada
bastava o assobio do menino e jumento se aproximava da porteira.

Clesner ensino jumento a comer mandacaru.

No final do ano as chuvas voltaram ainda que com pouca intensidade. Os sertanejos
plantaram feijão catado (cujo ciclo produtivo é de apenas 60 dias) e feijão corda que
floresce após a estação chuvosa, nos meses julho a setembro) e mandioca mas não
conseguiram sucesso com as plantações de milho e arroz. Estes alimentos ficam caros.

Clesner foi aprovado com media nove e meio e passou para o terceiro ano.Continuaria
com dona Delia porque ela lecionava, simultaneamente para o primeiro, segundo e
terceiro ano.

Em maio nasceu Lucinha, filha de Hercília e Zé Toquinho como foi previsto pela vidente.

Foi um parto difícil e ela ficou doente durante alguns meses sem poder trabalhar na olaria.

Zé toquinho resolver tudo que tinha na roça e mudar-se para Candiba que já se
organizava para tornar-se município, desmembrando-se de Guanambi onde abriu
pequeno comercio onde vendia carne, sal, açúcar, rapadura, cereais, querosene, etc.

Nas férias de julho mudou-se. Vendeu tudo, até o jumento Lezin.


Delia adiantou Clesner para o quarto ano, mas a outra professora resistiu em aceita-lo
porque ele ia fazer ainda 11 anos e também por ser morador na roça, que no seu modo
ver, não podia competir com os meninos criados na cidade.

Depois de muita luta, inclusive com ingerência do inspetor de Guanambi, Clesner


começou a cursar o quarto ano. Nas primeiras semanas foi difícil. Porem ele fez amizade
com um casal de idoso que moravam próximo a escola e estes passaram a lhe ensinar as
tarefas escolares à noite.

No final do ano foi aprovado em segundo lugar, com média sete e meio.

Havia concluído o curso primário e ponto final nos seus sonhos.

Ginásio e curso científico só existiam em Caetité, uma cidade de gente rica e orgulhosa
onde pobre não tinha acesso à educação!

Esta foi a impressão de Zé durante as viagens fez àquela cidade pra comprar rapadura e
também ver a possibilidade de ir morar lá para o filho pudesse continuar a estudar.

Choveu pouco em novembro e em dezembro.Em janeiro, nem gota de chuva.

Alem do mais o casal agora, depois dos filhos e da doença da mulher viviam em brigas
constantes.

No inicio de fevereiro Zé Toquinho comprou uma mala de couro e nela colocou suas
roupas, e os pertences do filho mais velho incluindo “os documentos da escola”, como ele
chamava.

Na madrugada de uma segunda feira depois de acordar Clesner e mandar que ele se
vestisse e calcasse as sandálias, entrou no quanto onde Hercília e as crianças mais
novas dormiam. Beijou os pequenos e falou com Hercília:

-Nega estou indo. Clesner vai comigo.

Depositou as chaves da venda e cinco mil cruzeiros numa caixa de sapatos onde a
mulher guardava sabonete, batom, água de cheiro e talco.Ela ainda sonolenta devido ao
efeito de chá que tomou na véspera para dormir, respondeu:

- Vão com Deus!

Foram e não voltaram. Em Guanambi pegaram um pau de araras para São Paulo.

A seca, a pobreza e a ignorância acabavam de produzir uma viúva com marido vivo.

Uma mulher pobre e negra, com duas crianças, era deixada à própria sorte!

Você também pode gostar