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Revista Crítica de Ciências Sociais

101 | 2013
Perspetivas interdisciplinares sobre consumo e
crédito

Streeck, Wolfgang (2013), Tempo comprado – A


crise adiada do capitalismo democrático

João Rodrigues

Publisher
Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra
Electronic version
URL: http://rccs.revues.org/5407 Printed version
ISSN: 2182-7435 Date of publication: 1 septembre 2013
Number of pages: 153-157
ISSN: 0254-1106

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João Rodrigues, « Streeck, Wolfgang (2013), Tempo comprado – A crise adiada do capitalismo
democrático », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 101 | 2013, colocado online no dia 17
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Revista Crítica de Ciências Sociais, 101, Setembro 2013: 153‑166

Recensões

Streeck, Wolfgang (2013), Tempo comprado – A crise adiada do capitalismo


democrático. Coimbra: Actual, 293 pp.
Publicado originalmente na Alemanha, político­‑culturais e comunicacionais das
em 2013, e rapidamente traduzido para bases materiais dos capitalismos realmente
português, este é um notável livro de existentes, que, pelo menos em última
“macrossociologia” ou de “economia polí‑ instancia, lhes subjazem, cometem erros
tica”, enquanto história racionalizada da intelectuais e políticos custosos. Neste
evolução do capitalismo nos últimos qua‑ contexto, Streeck defende a validade de
renta anos. O sociólogo alemão Wolfgang um projeto intelectual realista, baseado
Streeck, diretor do prestigiado Instituto em pressupostos inspirados na economia
Max Planck para o Estudo das Sociedades, política marxista, mas também em tradi‑
em Colónia, desenvolve em livro as suas ções intelectuais que com ela dialogaram,
Lições Adorno, organizadas pelo Instituto como o institucionalismo crítico de Karl
de Estudos Sociais de Frankfurt em home‑ Polanyi: “Elaborar uma teoria macrosso‑
nagem a um dos seus fundadores, Theodor ciológica da crise [financeira e orçamental
Adorno. Entre outros temas, o livro analisa das democracias capitalistas ricas] e uma
criticamente o destino de algumas das teses teoria social da democracia sem referência
que, precisamente na esteira da Escola à economia enquanto atividade político­
de Frankfurt, diagnosticaram, sobretudo ‑social tem de parecer absolutamente
entre os anos sessenta e setenta, a crise errado, tal como o pareceria qualquer con‑
de legitimidade de uma economia capi‑ ceção de economia na política e sociedade
talista avançada, supostamente domada que ignorasse a sua organização capitalista
por cima do ponto de vista técnico, mas atual” (p. 20). Confirma­‑se que, para estu‑
ética e culturalmente contestada por dar o capitalismo e as suas configurações
baixo. Daí até à crítica à possibilidade histórico­‑espaciais concretas, é preciso
de uma democracia pós­‑nacional com transgredir as barreiras disciplinares,
poder redistributivo na União Europeia, já que no seio das abordagens mais discipli‑
na atualidade, Streeck constrói um per‑ nadas, o capitalismo se tornou num objeto
curso organizado em três densas, mas que tende a primar pela ausência, quer seja
claras lições – “da crise de legitimidade por razões metodológicas, quer seja por
à crise orçamental”, “reforma neolibe‑ razões de policiamento e de conveniência
ral” e “neoliberalismo na Europa” –, político­‑ideológica.
enquadradas por uma introdução e con‑ Pelo contrário, neste livro as forças sociais
clusão substantivas. que suportaram e suportam o capita‑
O seu ponto de partida é a desvalorização lismo, em geral, e as que suportaram e
e subestimação, em alguma teoria crítica, suportam a sua declinação neoliberal,
do papel crucial dos capitalistas e dos emergente a partir da década de setenta,
mercados, sobretudo financeiros, da base em particular, têm primazia na análise.
material do conflito social e das classes É assim dada especial atenção aos recursos
com as suas frações, lutas e alianças. Assim, institucionais, económico­‑ financeiros,
os que desligam as supostas dinâmicas políticos e ideológicos mobilizados para,
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em capitalismos com democracias cada concretamente na “compra de tempo”


vez mais limitadas, se conseguir um neces‑ porque passaram pela mobilização sem
sário consenso, mais ou menos passivo, precedentes da “instituição misteriosa
mais ou menos ativo, das classes sociais da modernidade capitalista”, o dinheiro.
subalternas. Este consenso era tanto mais Significa isto que foi sobretudo por via do
indispensável quanto as classes subalternas acesso ao consumo a crédito que amplos
tinham conseguido no pós­‑guerra ganhos segmentos das massas acabaram por
relevantes, traduzidos numa certa incrus‑ aceitar transformações regressivas, como
tação social­‑democrata de um capitalismo foi também por via do acesso ao crédito
obrigado a concessões relevantes no campo que os Estados as geriram. O tratamento
regulatório e redistributivo, implicando da moeda, do crédito, de resto breve, é o
processos combinados de desglobaliza‑ ponto menos conseguido do livro. Este
ção e de desmercadorização, entretanto parece partilhar um diagnóstico equivo‑
largamente revertidos. É também sobre cado, segundo o qual a inflação elevada
essa reversão e regressão e sobre as suas teria tendencialmente origens monetárias,
contradições que este livro se debruça, isto é, proveniência nas ações dos bancos
sendo que a expressão “tempo comprado” centrais.
revela o fio condutor da resposta a uma das Streeck constrói uma cronologia, por
questões sociais mais difíceis do ponto de referência inicial mais ou menos explícita
vista intelectual e político: como é que as aos desenvolvimentos da economia norte­
classes subalternas aceitaram o capitalismo ‑americana, com algumas adaptações às
transformado pela neoliberalização, com economias europeias centrais, onde o
o seu cortejo de desemprego, fragilização, processo de financeirização teria assen‑
ainda que lenta, dos Estados sociais, sobre‑ tado, inicialmente, em políticas monetárias
tudo na sua dimensão de provisão pública geradoras de inflação elevada, de resto
de bens e serviços sociais e de regulamen‑ rapidamente trocadas, no final dos anos
tação das relações laborais, e consequente setenta, por políticas ortodoxas centra‑
aumento generalizado das desigualdades das no combate à inflação. Seguiu­‑se o
de rendimento e de riqueza? aumento da dívida pública que foi, nos
Assim, e para lá da análise de alguns dos anos oitenta, essencial para a expansão
mecanismos disciplinadores clássicos, dos mercados financeiros cada vez mais
de que as frações dominantes do capital liberalizados em contexto de desaceleração
lançaram mão ou de que se aproveitaram do crescimento e, fundamentalmente, na
para contrariar e reverter a sua perda de dívida privada a partir daí. Streeck estaria
poder e de lucros, visível de forma dra‑ em terreno mais sólido se tivesse retirado o
mática nos anos setenta, – do desemprego processo inflacionário desta história, dado
elevado, que fragiliza a ação coletiva dos que este ocorre num período anterior à
trabalhadores, à multiplicação de hipóte‑ financeirização, que teve nas políticas de
ses de fuga e de “greve de investimento” combate à inflação um dos seus motores.
por via da construção da globalização –, A financeirização é o processo material a que
Streeck indica­‑nos outros mecanismos o neoliberalismo dá cobertura ideológica.
assentes na “compra” da lealdade de fra‑ O capital, sobretudo na sua forma finan‑
ções da classe operária e das classes inter‑ ceira, tem horror à inflação, que reduz os
médias em muitos países desenvolvidos, seus rendimentos e beneficia os devedores.
contendo o conflito social latente. Estes Seja como for, o processo político de
mecanismos de integração assentaram mais aumento do peso do setor financeiro
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inseriu os Estados e amplos segmentos atrás referidos contiveram, na dupla aceção


da população nos circuitos dos merca‑ da palavra, a crise de um capitalismo cada
dos financeiros, mascarando problemas vez mais divorciado da democracia. Aqui
de procura, alimentando uma cada vez chegados, Streeck coloca­‑nos em melhores
mais agressiva e atomizada sociedade de condições não só para compreender a
consumo e de endividamento, por um longa gestação da atual crise, mas sobre‑
lado, e incrementando a participação de tudo para nos mostrar como o reforço da
segmentos politicamente relevantes da lógica neoliberal que a acompanha não
população na especulação e no rentismo deve surpreender ninguém, dado o lastro
financeiros, por outro, sendo estas cama‑ político e institucional com múltiplas
das que detêm mais voz política num escalas, nacional e supranacional, que o
contexto de apatia e descrença política bloco social neoliberal, o tal “povo dos
generalizadas entre as classes populares. mercados”, acumulou. Uma das expressões
Estes processos de financeirização e de deste lastro é precisamente o “Estado endi‑
mercadorização erodiram identidades vidado”, fruto da perda de poderes fiscais,
políticas e sociais contra­‑hegemónicas da capacidade da finança para socializar
e deram “cobertura política” para uma os custos da crise ou da interdependência
transição estrutural que assentou na “des‑ entre dívida privada e dívida pública, num
democratização do capitalismo através da contexto em que o esforço descoordenado
deseconomização da democracia” (p. 30). dos privados para reduzir a sua dívida pro‑
Isto quer dizer que a reconfiguração dos voca, por via da crise de procura, rombos
Estados operada pelo neoliberalismo nas finanças públicas. Streeck indica­‑nos
assentou num progressivo bloqueamento de forma competente que é a fraqueza
da capacidade democrática para moldar seletiva dos Estados, e não qualquer disfun‑
o curso das economias. No fundo, o “povo ção democrática traduzida numa suposta
do Estado”, aquele que depende do acervo inflação de exigências sociais, que explica
dos direitos e serviços sociais, tornou­‑se estruturalmente parte dos atuais níveis de
cada vez mais impotente perante o “povo endividamento público em muitos países.
dos mercados”, isto para usar uma útil Crucialmente, a política do endividamento,
dicotomia forjada por Streeck. Esta com‑ com escala internacional, tem tradução
plementa a clássica trilogia da “saída, voz numa opaca diplomacia financeira, onde se
e lealdade” do economista político Albert cruzam instituições internacionais, frações
Hirschman. A impotência democrática foi do capital que operam nessa escala e Estados
também o resultado de um lento mas eficaz com distintas posições, credoras e devedo‑
processo de mudança institucional – da ras, dada a lógica do chamado desenvolvi‑
tal expansão dos mercados financeiros à mento desigual e combinado, reeditada pelo
entrega da condução da política monetária capitalismo neoliberal. O endividamento
a bancos centrais ditos independentes e internacional constitui um mecanismo pode‑
que não respondem perante a democracia, roso de afirmação de formas de exercício de
passando por um Estado fiscal cada vez autoridade política pós­‑democráticas, dado
mais regressivo, até porque com cada vez que o “povo do Estado” democrático não
menos condições institucionais e político­ consegue operar numa escala dotada de um
‑ideológicas para taxar a finança e os altos forte viés neoliberal.
rendimentos. Streeck conduz­‑nos, então, na sua ter‑
Neste quadro estrutural, a crise de 2007­‑08 ceira e última lição, a um dos centros
veio revelar como os processos e mecanismos mais concretos da crise do casamento do
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capitalismo com a democracia, com a voz é, sem política cambial, tida como “uma
popular: a União Europeia, em geral, e a espinha cravada na garganta do totalita‑
Zona Euro, em particular. Este capítulo rismo de um mercado único” (p. 265),
contém uma das mais lúcidas análises as comunidades políticas nacionais, onde
sobre a natureza da integração europeia muitos cidadãos ainda sentem justificada‑
disponíveis em português, expondo de mente que há um destino comum, ficam
forma clara a sua natureza irremediavel‑ desprovidas das bases materiais de que é
mente neoliberal e pós­‑democrática e os feita a soberania democrática. A desvalori‑
mecanismos que sustentam todas as ilusões zação cambial é uma espinha cravada, até
europeístas, ainda tão influentes entre as porque, na sua ausência, os ajustamentos
elites intelectuais, políticas e económicas, fazem­‑se pela “desvalorização interna”,
em especial nesta periferia europeia. ou seja, pela queda dos salários diretos
Beneficiando do intenso trabalho coletivo e indiretos (as prestações sociais), um
de investigação do Instituto que dirige sobre processo muito mais socialmente injusto
este tema, Streeck começa por mobilizar e economicamente destrutivo.
a história das ideias, em particular as teses Como Streeck enfatiza, isto não é um des‑
federalistas neoliberais de Friedrich Hayek, tino inexorável, fruto de inefáveis lógicas
um dos pensadores do fundamentalismo de globais, mas sim o resultado de uma per‑
mercado e de uma “democracia limitada” versa construção política contra as nações,
no século xx. A apresentação das teses de contra os povos, contra a democracia.
Hayek serve para nos mostrar como a União A severidade socioeconómica deste pro‑
Europeia é a expressão institucional mais cesso é particularmente sentida hoje nas
acabada do neoliberalismo enquanto projeto periferias europeias, estruturalmente pre‑
de construção e expansão da disciplina de judicadas por uma moeda forte e sem poder
mercado, suportado por instituições sem beneficiar de transferências significativas,
escrutínio democrático – do Tribunal de dado o peso residual do orçamento euro‑
Justiça Europeu ao Banco Central Europeu peu. De qualquer forma, Streeck é muito
– e por regras do jogo que criam um colete­ claro sobre as razões para a inexistência
‑de­‑forças, o que apoda de “Estado de de uma União Europeia sem orçamento
consolidação”, que prende os Estados­‑nação redistributivo digno desse nome, em que
e logo as democracias realmente existentes as regiões ricas financiariam maciçamente as
à austeridade permanente e a reformas regiões pobres, aguentando­‑as à tona.
estruturais de matriz neoliberal continuadas. Com efeito, a Europa não é um Estado
A escala europeia é a escala política das e não o será, até porque os povos não o
frações mais extrovertidas do capital, dos desejam, o que significa que o federalismo
credores, e as suas instituições estão bem só pode ser furtivo, clientelar e perverso,
calibradas para consolidar o poder do “povo incapaz de mobilizar lealdades populares.
dos mercados” sobre as classes populares. E, mesmo que os povos o desejassem, seria
Sem financiamento monetário por parte mais do que duvidoso que as transferências
dos seus bancos centrais, que reduza a pudessem substituir com o mesmo sucesso
dependência dos Estados face aos merca‑ a mobilização de instrumentos de política
dos financeiros; sem controlos de capitais, à escala nacional. Mas, infelizmente, como
que reduzam a chantagem do capital Streeck sublinha, nada nos diz que as
que pode facilmente sair; e, ponto a que alianças sociais que sustentam o Euro, e
Streeck dá primacial importância, sem a que na periferia incluem elites extrover‑
possibilidade de desvalorizar a moeda, isto tidas, as que gostam de moeda forte para
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viajar e importar bens de consumo mais ou entre outras medidas, o incumprimento da


menos conspícuos, não consigam manter dívida e o desmantelamento do Euro. Isto
um projeto que se aproxima cada vez mais se se quiser salvar a cooperação europeia
de uma “operacionalização do modelo e as democracias nacionais. A redesco‑
social hayekiano [anti­‑social­‑democrata] berta europeia do espírito de Bretton­
da ditadura de uma economia de mercado ‑Woods, dos arranjos monetários flexíveis,
capitalista acima de qualquer correção articulando cooperação internacional e
democrática” (p. 252). soberania nacional no campo monetário
Embora opte por um forte pessimismo da e financeiro, é uma das suas propostas.
inteligência e defenda que um cientista O ceticismo, fundado em boas razões, face
social não tem necessariamente de fornecer a uma moeda que está a matar a Europa
alternativas, até porque estas podem bem só pode ser social e democrata, só pode
não existir, Streeck, num vislumbre de ser socialista. Se mais nenhum mérito
otimismo da vontade, para usar a distin‑ tivesse, e tem muitos outros, este livro dá
ção gramsciana, não deixa de depositar um corajoso contributo para inscrever esta
esperanças numa ainda demasiado vaga perspetiva no debate público e na luta polí‑
resistência dos povos a esta ditadura dos tica, para dar voz aos “povos dos Estados”.
mercados. Esta terá de passar por uma
desobediência dos devedores, implicando, João Rodrigues

Graeber, David (2011), Debt: The First 5,000 Years. New York: Melville House
Publishing, 534 pp.
No seu livro Dívida, os primeiros 5000 anos, de mercado, do desenvolvimento da
o conceituado antropólogo David Graeber própria humanidade e, em última aná‑
apresenta­‑nos uma crítica arreigada ao sis‑ lise, encerra a compreensão do destino
tema económico mundial, traçando o perfil da humanidade, tal como a conhecemos
antropológico do surgimento do dinheiro, atualmente.
da dívida e dos significados que ambos Ideologicamente questiona a proliferação
foram adquirindo no decurso da história de um sistema capitalista a uma escala
da humanidade. Ao traçar o seu perfil mundial ao colocar em causa o seu primeiro
histórico, Graeber pretende sensibilizar o e mais proeminente corolário: a assunção de
leitor para todo um conjunto de assunções que todos devemos pagar o que devemos.
normalmente tácitas, comumente aceites De um ponto de vista histórico, centrando­
no meio económico, traçando paralelismos ‑se nas dívidas dos países em vias de desen‑
entre épocas, históricas e civilizações e volvimento, Graeber condena o capitalismo
alertando para as suas incongruências com selvagem e questiona o fundamento do
o objetivo de conduzir o leitor ao questio‑ próprio sistema de dívida, ao considerar que
namento e à reflexão sobre as implicações o corolário principal do sistema capitalista
morais da dívida. é muito mais uma afirmação moral do que
O tema principal e amplamente retratado um princípio económico.
de uma perspetiva antropológica centra­ Graeber evidencia em vários momentos ao
‑se em torno da dívida que, na análise de longo do seu livro que a forma como pen‑
Graeber, é a unidade principal de compre‑ samos e perspetivamos a dívida, enquanto
ensão da história do dinheiro, da economia obrigação moral de reciprocidade entre
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pessoas ou entidades com dinheiro dispo- evidências antropológicas da importância


nível, faz pouco sentido fora de uma eco‑ que as relações humanas e a sua própria
nomia de mercado. Durante milénios, as natureza detêm nas transações económi‑
sociedades e os seus cidadãos encontraram cas. Neste sentido, o autor procura sair
formas alternativas e proativas de distri‑ da esfera economicista e técnica para nos
buir, consumir e prestar bens e serviços, apresentar uma visão em que parece pro‑
de estabelecer relações empresariais e de curar vislumbrar nas relações humanas e
subordinação profissional e laboral, atra‑ sociais a génese da compreensão das crises
vés de complexas teias de reciprocidade económicas dos últimos anos e as revolu‑
e oferendas entre grupos de parentesco e ções que, mais uma vez, parecem começar
sociais. Apesar da ampla fundamentação a operar­‑se.
e análise antropológica, o autor, escusa­‑se, Argumentando que, ao contrário do que,
contudo, a traçar caminhos alternativos porventura seria de supor, a dívida e os
ajustados à atual realidade económica e seus significados são muito anteriores ao
social que possam vislumbrar­‑se enquanto conceito de dinheiro cunhado, Graeber
soluções credíveis, social e moralmente sustenta que a dívida, mais do que uma
aceitáveis, de partilha e relação económica. premissa económica, encontra a sua génese
Ao longo da sua obra Graeber questiona, e transformação na esfera das oferendas,
igualmente, de forma muito marcada o da reciprocidade e da troca de presentes ou
mito económico de que o dinheiro surgiu favores que, ao se tornarem identificáveis
como forma de suplantar as dificuldades e quantificáveis, de forma nem sempre o
inerentes às sociedades que operavam mais objetiva, adquire um caráter moral
em termos de trocas diretas. Aceitando que muitas vezes se encontra na origem
que as bases da vida económica derivam, de grandes conflitos armados e revoluções
efetivamente, da natureza e necessidade civilizacionais.
humana de troca de produtos, aquisição Neste sentido, Graeber refere inúmeros
de necessidades e disposição de exceden‑ sistemas sociais nos quais o dinheiro,
tários, o autor questiona a plausibilidade enquanto unidade económica quantifi‑
da ideia amplamente difundida de econo‑ cável, era pouco utilizado pelas pessoas
mias assentes maioritariamente em trocas para adquirirem os seus produtos de maior
diretas. A propósito do que Graeber se necessidade. Ao invés, as dívidas eram
refere enquanto mito económico, o autor antes muitas vezes pagas através do ser‑
sustenta que as trocas diretas não subsis‑ viço militar, favores sexuais ou até mesmo
tiam exclusivamente com maior pendor através de vidas humanas.
e evidência no seio de uma mesma socie‑ Antropologicamente, Graeber funda‑
dade, mas antes entre sociedades mais menta precisamente a dimensão humana
distantes, ímpares ou mesmo inimigas com e social que sempre circundou o dinheiro,
o registo antropológico dos mais diversos perspetivando, na sua trajetória histórica,
sistemas económicos a nível local. Deste o desenvolvimento e a oscilação entre
modo, Graeber apresenta­‑nos uma visão épocas marcadas pelo dinheiro físico,
complexificada do surgimento do dinheiro característico de períodos históricos mar‑
numa perspetiva mais ampla decorrente da cados pela generalização da guerra, pelo
guerra, violência, ostracização e repressão caos social e tumulto governamental ou
no que Graeber define como econo‑ religioso, e épocas marcadas pelos sistemas
mia humana. Ao longo da obra, somos de crédito virtual que tendem a ser domi‑
constantemente confrontados com as nantes em períodos de alguma paz social,
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assente em redes de confiança mútua. que a antropologia nos permite conhecer,


Deste tema, tratam precisamente os últi‑ estudar e analisar.
mos cinco capítulos do livro de Graeber, Perante o atual momento e contexto
ao evidenciar uma grande profundidade de económico e social, o livro de Graeber
análise antropológica e história universal. constituiu­‑se enquanto obra de extrema
Graeber salienta, ainda, que nas fases ou atualidade e cognitivamente inquietante,
nos impérios nos quais o dinheiro físico que procura conduzir­‑nos a refletir sobre
predominava, as trocas eram efetuadas a obrigação moral inerente a um sistema de
através de pedaços de metal, com valor dívida, sendo que a questão do que consti‑
relativamente arbitrário, ou de escravos tui uma dívida, quem deve pagá­‑la, e como
numa sociedade liderada por forte pendor deve ser reembolsada, deverá constituir­‑se
político­‑governamental, ao invés das fases enquanto um processo contínuo de revi‑
em que predominava o crédito virtual, são. Ao estabelecer a centralidade da sua
marcadas pela fragmentação da autoridade obra em torno da importância e omnipre‑
e poder político em que imperavam a vas‑ sença do conceito de dívida nas relações
salagem, a servidão ou os juramentos de sociais humanas em todas as sociedades
obrigação, o dízimo e o tributo. e momentos históricos, Graeber advoga
Historicamente, Graeber identifica duas a favor de um modelo de comportamento
correntes distintas ao nível civilizacional económico, no qual a partilha, mais do
que estabeleceram distintas conceções que a reciprocidade, deveria perspetivar­‑se
dos tributos fixos. Por um lado, o sistema enquanto o principal corolário da política
egípcio em que o Estado definia de modo económica a nível mundial. Este mesmo
quantificável o tributo ou imposto a pagar sentimento parece ter tido o seu expoente
ao próprio Estado. Por outro lado, o máximo em movimentos sociais, como o
sistema mesopotâmico, alicerçado numa “Ocuppy Wall Street” ou as manifestações
relação de tributos ou impostos a elites sociais no âmbito da crise das dívidas
societais, como o clero ou mercadores, soberanas em alguns países no velho
que quantificavam as relações anteriores continente. Contudo, a maior crítica que
de oferendas, estabelecendo um sistema se pode fazer a Graeber é a de que tem o
de dívida social a classes proeminentes. mérito de identificar e nos apresentar um
Ao longo de toda a obra, o autor parece conjunto impressionante de evidências
fazer o constante exercício de conduzir do caminho que a sociedade traçou até
o leitor a traçar paralelismos entre as chegar ao modelo económico e social
evidências históricas e antropológicas atual e a lacuna de não nos indicar, cla‑
que vai traçando e a realidade económica ramente, soluções ou indicações de como
e social com que nos deparamos atual‑ poderemos progredir de agora em diante,
mente. Graeber procura, deste modo, num mundo globalizado e uma realidade
trazer alguma clarividência, definindo com características e desafios seguramente
que a realidade atual é apenas travestida distintos e particulares.
de novas circunstâncias, permanecendo
os significados e os mecanismos trans‑ Hugo Miguel Pinto
formadores relativamente idênticos aos Ana Rita Carvalho
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Iyengar, Sheena (2012), The Art of Choosing. London: Abbacus, 336 pp.
[3.a ed.]
O livro A arte de escolher dispõe de um nos livros policiais, confirmar a culpa do
prólogo titulado “Past is Prologue” a mordomo, poderão ficar com a impressão
que se seguem sete capítulos e um epí‑ de que se trata realmente de um manual de
logo, rematados com um posfácio para autoajuda que termina com uma frase a
a edição paperback aqui recenseada. um tempo trivial e opaca. Se desistirem da
Capítulo 1 – “The Call of the Wild”; Capí- leitura com base nas opacidade e triviali‑
tulo 2 – “A Strange in Strange Lands”; dade da mesma, perderão a oportunidade
Capítulo 3 – “The Song of Myself”; Capí- de colher os elementos concretos e explí‑
tulo 4 – “Senses and Sensibility”; citos contidos em “esperança”, “desejo”,
Capítulo 5 – “I, Robot?”; Capítulo 6 “possibilidades”, “avaliação”, “lucidez”
– “Lord of the Things”; Capítulo 7 – “And e “limitações” que compõem a frase.
Then There Were None”. Para além deste O problema adensa­‑se se atentarmos agora
núcleo e de seis páginas de agradecimentos, noutra frase: “Fazemos escolhas e na volta
o livro oferece ainda notas de apoio à leitura somos feitos delas. A ciência pode ajudar
de cada capítulo que, não sendo remetidas a tornar­‑nos decisores mais capacitados,
do texto, evitam o vaivém que a sua leitura mas no seu âmago, a escolha permanece
na própria página ou no fim implica, e des‑ uma arte.” (p. 268). Talvez agora o desejo
crevem os factos ou histórias “inspiradoras” de conhecer o fim da história de antemão
dos conceitos, problemas e investigações, se revele menos provável, embora a frase
ou sinalizam e comentam alguma da biblio‑ esteja também na parte final do livro. Mas,
grafia que é explícita ou implicitamente no caso de acontecer, antecipando o final,
referida em cada capítulo. Por fim, o livro o leitor poderá formar a impressão de
dispõe de um profuso índice remissivo que que algo mais ocorre neste livro. Talvez
permitirá revisitações “guiadas” dos temas este seja o sentido que “arte” ali assume:
que nos capítulos ocorrem, por vezes no o que escapa à lente do cânone científico,
meio de “narrativas” de cariz pessoal ou revelando os limites que esse olhar impõe
jornalístico que poderiam, por essa razão, ao tema da escolha, expõe outras linhas
perder a referência ao interesse explicativo e elementos que, permitindo capturar a
a que estão associadas. substância do tema, se constituem numa
Livros que ostentam no título “A arte “arte de escolher”. A arte pode ser vista,
de…”, como o que aqui se apresenta, assim, mais como um caminho de supera‑
podem não passar de um receituário para ção da frustração a que o objeto condena
lidar com o problema que tratam sob uma na sua interpelação científica, do que uma
fórmula de “autoajuda”, o que muitas via natural de “figuração”, “narrativa” ou
vezes ocorre em livros de divulgação para “receituário” da decisão.
o grande público, especialmente quando A sugestão que o título do livro de Sheena
se trata de psicologia. Considere­‑se, pois, Iyengar avança encontra um sinal seu na
esta frase: “Equilibrar esperanças, desejos afirmação de que “‘Escolha’ pode signifi‑
e a apreciação das possibilidades avaliando car tantas coisas diferentes e o seu estudo
as limitações lucidamente: esta é arte de abordado de modos tão distintos que um
escolher.” (p. 277). Na verdade esta é a livro não pode conter a sua completude.”
última frase do livro. Aqueles que gostam (p. xii), ao qual se junta o truísmo de que
de dar um “salto” ao fim para, como a escolha perpassa por todo um espectro
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de ação que vai “do trivial à transformação servirá bem o leitor pela competente des‑
da vida” (p. xiii). crição do estado da arte, essencialmente do
A escolha estará, pois, por todo o lado ponto de vista da biologia e da psicologia
e levanta de antemão a suspeita de que, social e intercultural, apoiado em notas a
por essa mesma razão, a determinação cada capítulo, já acima referidas. Afinal,
do que é a escolha seja ela mesma elusiva a perplexidade dos leitores será mais um
face ao poder de fundamentação lógico­ sinal da competência da descrição (insis‑
‑matemático ou da observação laboratorial timos de leitura agradável e não muito
ou de campo. Disso mesmo é testemunha exigente) que parece conseguir transmitir
a breve história da decisão a partir da a mais óbvia interpretação do que hoje se
publicação da Teoria dos jogos e com- sabe sobre escolha e decisão no campo
portamento económico de von Neumann científico, abstendo­‑se no mesmo passo
& Morgenstern (19531), que viu acentuar­ de assinalar “o” caminho, seguindo inclu‑
‑se o declínio lento mas firme da sua pre‑ sivamente, por vezes, um tom provocatório
missa racional normativa (maximização da pelo caráter dilemático da exposição,
utilidade esperada), a par da crescente ado‑ e fugindo assim a qualquer tentação de
ção dos elementos descritivos, decorrentes estabelecer receitas prontas a usar.
de premissas inaugurais das ciências sociais Mas este livro acrescenta ainda outro
e sustentados em crescente evidência de ponto de interesse: Iyengar discorre sobre
anomalias à luz do paradigma da raciona‑ temas centrais da nossa vida atual (e.g.
lidade laplaciana (Gigerenzer, 20082). consumismo, tolerância, globalização,
No posfácio em que Iyengar faz um resumo religião) que consegue fazer girar em torno
inteligente da obra, não repetidor do da escolha ou do escolher, o que funciona
“essencial” de cada capítulo, procede­‑se a como um magneto que tudo atrai na vida
uma alusão à receção pública das primeiras individual, grupal ou em sociedade.
edições do livro, que se caracteriza pela Antes, porém, é importante sublinhar que,
perplexidade dos leitores que se manifestam do ponto de vista da psicologia, “A arte
“um pouco esmagados pela complexidade de escolher” percorre os themata de onde
da escolha e pela enorme quantidade atualmente emergem as principais discus‑
de informação.” (p. 269). Quanto a nós, sões em torno da decisão e da escolha.
tal perplexidade não dependerá verdadeira‑ Não envereda, claro está, por discussões
mente da escrita, por vezes de uma fluidez e académicas sobre teorias normativas,
clareza invejáveis, num registo pessoal, pon‑ prescritivas e descritivas da decisão, mas
tuado por referências à literatura universal, remete no caso das últimas para a evidência
à investigação científica ou à vida simples e interpretação científicas, por vezes pro‑
do dia a dia. Porventura decorrerá antes blemáticas e não definitivas, que permitem
da natureza intrínseca do objeto “escolha”, traçar os contornos afetivos, cognitivos,
que insistentemente surge como refratário motivacionais, culturais e políticos que
a uma definição única. enformam as escolhas do dia a dia, como
Não obstante o estilo e os seus efeitos as de longo prazo. Bom exemplo disso é a
quanto a uma definição prescritiva de sequência que Iyengar consegue imprimir
“escolha”, uma vez lido por inteiro, o livro no livro, começando na noção da escolha

1
  von Neumann; J. Morgenstern, O. (1953), Theory of Games and Economic Behavior. Princeton,
NJ: Princeton University Press [3.ª ed.]
2
  Gigerenzer, G. (2008), Rationality for Mortals. New York: Oxford University Press.
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como instintiva ou consciente e livre (situa‑ somos obrigados a contemplar na organi‑


ções extremas de vida ou morte de animais zação social atual (e.g. consumo, saúde,
e seres humanos), seguindo para as condi‑ finanças) e da abundância de opções
ções individuais intrínsecas e extrínsecas. dentro de uma mesma escolha. É o caso do
E daqui decorre que, neste jogo de condi‑ questionário realizado por Iyengar em paí‑
cionantes internas e externas, que podem ses do Leste da Europa, pouco tempo após
ou não ser extremas, a circunstância da a queda do Muro de Berlim (Alemanha,
escolha seja sempre determinada por uma Polónia, Ucrânia, Rússia), em que cidadãos
perceção, mais ou menos verídica, quanto desses países se referem a uma opção entre
ao maior ou menor controlo que sobre sete marcas de refrigerantes (Coca­‑Cola,
ela detém aquele que escolhe (uma vez Pepsi, etc.) como uma escolha simples
mais ser humano ou animal). Este desen‑ entre beber/não beber refrigerante. A edi‑
volvimento vai adensando o problema ção dos elementos da própria estrutura ou
da escolha, revelando uma tessitura para arquitetura da escolha parece determinada
a qual todos estes fatores contribuem de por uma vivência em que as marcas não
forma desigual. são um atributo a dar atenção, alterando
A autora parte de uma definição de deci‑ a própria natureza da escolha. Mas a esta
são ou escolha que, no mundo ocidental, questão intercultural acresce uma outra,
é familiar e remete para o livre arbítrio e mais funda, sobre o valor da variedade
para o poder de controlo e de formação de de escolha, pelo menos em território dos
identidade individuais e, em última análise EUA, e que está intimamente associada
da felicidade (o “American Dream”). à liberdade de escolha (mas poderia
Ilustração interessante e eloquente é a de forma algo mitigada ser também na
da lista de escolhas feitas ao longo de um Europa Ocidental). Recorrendo à série
dia inteiro por um grupo de estudantes “The Simpsons”, em que o mercado de
norte­‑americanos a viver em Tóquio, Springfield, chamado Monstromart, tem
que revelam que qualquer ato mais ou como lema a frase “Onde comprar é uma
menos automático, habitual ou trivial desconcertante provação” (p. 206), Iyengar
era considerado uma escolha (no sentido consegue resumir o problema da escolha
de deliberação) por parte de um sujeito – especialmente no consumo: ao ver em
consciente, determinado a cumprir um muitas opções de escolha uma vantagem,
plano. As listas equivalentes feitas por podemos estar a reduzir a possibilidade de
alunos japoneses com o mesmo propósito bem escolher devido a limitações cogniti‑
correspondiam a folhas quase em branco. vas (de cálculo, de memória, de perceção,
Muitas comparações interculturais são des‑ conduzindo à confusão e fadiga) e afetivas
critas de forma anedótica ou com evidência (desapontamento e arrependimento asso‑
científica, resultando na fragilização da ciados à escolha feita nessas condições),
conceção familiar de escolha como depen‑ independentemente do fator motivacional
dendo exclusivamente de uma “vontade” que, em primeiro lugar, determinou desejo
individual e consciente. A autora discorre ou a necessidade de consumo. A pesquisa
sobre como estas diferentes experiências que tornou Iyengar famosa na área do
subjetivas (na verdade também coletiva marketing e da psicologia da decisão é pre‑
e culturalmente determinadas) implicam cisamente aquela em que o fator número
vivências distintas da cidadania e da ética. (variedade) de opções é manipulado com
Um outro ponto de realce neste livro é o consequências contraintuitivas (capítulos 5
da questão da abundância de escolhas que e 6). Se condescendemos que ter muitas
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opções é equivalente a uma condição para do que acontece num caso equivalente nos
o exercício de liberdade de escolha, não EUA em que a decisão e responsabilidade
damos conta de que nem sempre saímos são exigidas aos pais, revela­‑se para estes
mais contentes com a decisão tomada, últimos como um momento insuperável
como seria de esperar, como podemos e originador de sentimentos de culpa
inclusive sentir mais felicidade escolhendo inultrapassáveis. Embora esta experiência
num contexto em que a quantidade de seja também difícil e marcante para os pais
opções é menor. franceses, estes mostram­‑se mais capazes
Por fim, referimo­‑nos a dois exemplos de lidar com a perda e motivados para
impressivos pela mescla de implicações enfrentar a vida.
que escolhas aparentemente privadas O segundo caso, relativo a suicídio/
(consideradas individualmente ou em /eutanásia voluntário/a, é o da escritora
família) podem ter com consequências Jane Aiken Hodge, que decidiu e planeou
muito relevantes do ponto de vista ético, suicidar­‑se aos 91 anos de idade, solitaria‑
social e político. É o caso da descrição que mente e em segredo (armazenou durante
Iyengar faz de escolhas como são as de anos os comprimidos necessários para o
“desligar” a máquina de um paciente (uma efeito), não obstante não ter, para a idade,
criança) em suporte de vida artificial ou do qualquer problema de saúde “fatal” ou não
suicídio na terceira idade. As dimensões controlado. Fê­‑lo, contudo, sem incorrer
ética e técnica (de descrição dos processos em qualquer delegação de responsabilida‑
e seus efeitos nos decisores) associadas a des inerentes a quem eventualmente esti‑
elementos de perceção e avaliação sob vesse ligado à assistência do seu suicídio.
quadros culturais distintos, transmitem A força desta evidência (casuística neste
o sentido poderoso que a escolha assume último caso ou quasi­‑experimental no pri‑
nas nossas vidas seja para glosar o caráter meiro) é essencialmente problematizadora,
individual ou coletivo da escolha, seja lembrando que, na prática, tais decisões
para salientar a sua dificuldade intrínseca. e escolhas são feitas efetivamente e,
No primeiro caso, trata­‑se da compara‑ tal como os animais ou homens em situa-
ção intercultural (EUA/França) sobre a ções extremas, a perceção de que contro‑
responsabilidade em escolhas reais que lamos a situação e, por isso, decidimos
consistem em manter ligado ou fazer voluntariamente, assume intensidades e
desligar o suporte artificial de vida de formas diversas, fazendo justiça à neces‑
uma criança que terá sempre, mesmo que sidade de aceitar que “escolher é uma
mantida viva, profundas lesões cerebrais arte” no sentido que a autora em várias
numa condição de total dependência. instâncias do livro sugere.
A delegação da escolha nos médicos, como
sucede num caso em França, ao contrário Miguel Oliveira

Olen, Helaine (2012), Pound Foolish: Exposing the Dark Side of the Personal
Finance Industry. New York: Portfolio Penguin, 292 pp.

Nas últimas décadas, temos vindo a assistir financeiros. Com maior expressão nas
a transformações socioeconómicas profun‑ economias capitalistas mais desenvolvidas,
das que têm conduzido a uma crescente como os Estados Unidos da América e o
participação das famílias nos mercados Reino Unido, observa­‑se um crescente
164 | Recensões

papel do setor financeiro na mediação da plano de pensões privado, os chamados


provisão pública, em resultado da gradual 401(k), e a cultura de comissões do setor
retirada do Estado das suas funções sociais, financeiro é exposta no capítulo 5. Já o
forçando as famílias a recorrer a este setor capítulo 6 desconstrói o mito da existên‑
para aceder a bens e serviços outrora cia do investimento perfeito, enquanto o
providenciados pelo Estado como, por capítulo 7 explora a literatura de autoa‑
exemplo, nas áreas da educação, saúde e juda dirigida às mulheres. O capítulo 8
pensões. Esta tendência tem sido também debruça­‑se sobre os mitos que circundam
sustentada pela degradação socioeconó‑ o investimento no mercado imobiliário e,
mica decorrente da estagnação salarial, por fim, o capítulo 9 critica a opção polí‑
da deterioração das condições laborais e tica da educação financeira como solução
da desigualdade na distribuição de rendi‑ para as más decisões financeiras dos consu‑
mentos. Porém, as famílias também fica‑ midores. Na conclusão a autora apresenta
ram mais expostas às flutuações do ciclo algumas propostas para a resolução das
económico, como ficou bem patente com questões abordadas ao longo do livro.
a crise financeira internacional de 2007­‑08, No final do livro, encontram­‑se algumas
que delapidou as poupanças entretanto notas que permite uma leitura fluente e
investidas em fundos de pensões e causou a ritmada dos capítulos.
desvalorização generalizada das habitações Helaine Olen, autora da coluna “Money
compradas a crédito. Makeover” no diário Los Angeles Times,
A severidade das consequências individu‑ e focando­‑se na realidade norte­‑americana,
ais e coletivas da crise criaram o contexto analisa criticamente a indústria da autoa‑
adequado para o florescimento da litera‑ juda financeira, estabelecendo uma ligação
tura de autoajuda financeira, que também estreita entre, por um lado, o desmantela‑
já vai percorrendo o seu caminho em mento dos sistemas de provisão públicos
Portugal. É neste ambiente de extraordi‑ que crescentemente transferem para o indi‑
nário crescimento do setor financeiro e de víduo a responsabilidade pela sua segurança
crescente fragilidade financeira das famí‑ financeira futura e, por outro lado, o movi‑
lias que o livro Pound Foolish: Exposing the mento das finanças pessoais – acarinhado
Dark Side of the Personal Finance Industry pela literatura da autoajuda – que reforça e
da jornalista Helaine Olen adquire parti‑ legitima este processo de individualização
cular interesse. da proteção social. Um exemplo paradigmá‑
Após uma breve introdução, o primeiro tico destas transformações diz respeito aos
capítulo, intitulado “What Hath Sylvia planos de poupança­‑reforma 401(k), que
Wrought?” remete o leitor para o período visam a transferência de parte do salário do
da grande depressão nos EUA e apresenta­ trabalhador para fundos de investimento,
‑nos Sylvia Feldman, a precursora das o que se traduz num aumento do risco
finanças pessoais. O segundo capítulo, individual, já que o valor da reforma passa
“The Tao of Suze”, e o terceiro, “The Latte a depender do funcionamento volátil dos
is a Lie”, relatam a emergência de um novo mercados financeiros. Por outro lado, estes
mercado editorial e os mitos propagados planos implicam novas decisões financeiras,
por dois influentes gurus financeiros, Suze uma vez que compete ao indivíduo decidir
Orman e David Back, respetivamente. quanto e em que aplicações financeiras
Os restantes 6 capítulos focam­‑se sobre‑ investir, tornando imperioso um aumento
tudo nos produtos e na cultura da indústria da capacitação financeira, que a literatura
financeira. O capítulo 4 trata o complexo de autoajuda procura colmatar.
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Centrando­‑se na emergência de celebrida‑ crédito” (Bach, 2006, em The Automatic


des na área financeira com presença diária Millionaire Homeowner). Como é hoje
na comunicação social norte­‑americana, sobejamente conhecido, os empréstimos
como David Bach, Robert Kiyosaki e Suze subprime, isto é, o crédito hipotecário
Orman, a autora chama a atenção para o de menor qualidade e que é sobretudo
ridículo das soluções apresentadas, como dirigido às camadas da população de mais
a promessa de enriquecimento através de baixos rendimentos, o qual cresceu de
pequenas poupanças diárias, ao mesmo 9% para 40% entre 2001 e 2006, culminou
tempo que sublinha os erros grosseiros, no incumprimento em larga escala quando
a fraude disfarçada, os conflitos de inte‑ o valor das casas já não conseguia cobrir os
resse e os efeitos perversos desta literatura. empréstimos contraídos em resultado da
Alguns exemplos bastam para a autora desvalorização da habitação e da subida
ilustrar a perversidade e a inconsequência das taxas de juro.
destas iniciativas. É o caso do que ficou No entender de Olen, existe um deno‑
conhecido como o “latte factor”, conse‑ minador comum a todas as propostas:
lho proposto por David Back (1999) em todos os conselhos veiculados implicam
Smart Women Finish Rich, o qual sugere o recurso à finança como forma de reso‑
que a aplicação financeira de pequenas lução dos problemas financeiros das
poupanças diárias decorrentes da redução famílias, quer seja através do recurso ao
do consumo de frivolidades, como tomar crédito quer ao investimento financeiro.
café na famosa cadeia Starbucks, gerará E em alguns casos há gritantes conflitos
retornos extraordinários. O autor defende de interesse, especialmente quando os
que uma poupança diária de 5 dólares per‑ conselhos financeiros promovem os inte‑
mitirá um encaixe de 2 milhões de dólares resses de grupos económicos particulares.
no momento da reforma. Contudo, este Suze Orman chega mesmo a participar
cálculo padece de vários erros, destacando­ na campanha publicitária da General
‑se o valor irrealista da taxa de retorno de Motors para promover a compra a crédito
11% utilizada nos seus cálculos. de carros novos, tendo antes condenado
Outras recomendações terão até alimen‑ a contração de dívida para este efeito e
tado a bolha imobiliária norte­‑americana, defendido, em alternativa, a compra de
aliciando o investimento no mercado imo‑ carros usados. No entanto, Orman, como
biliário com a promessa de retornos “de lembra Helaine Olen, não se absteve de
100% até ao infinito”, considerando­‑se responsabilizar os consumidores pela crise
que “investimentos de 5000 dólares cedo financeira de 2007­‑08, considerando que
se transformam em lucros de 1 milhão de esta se deveu à generalização de padrões
dólares ou mais” (Kiyosaki, 2000, em Rich de consumo excessivo.
Dad, Poor Dad). Outros autores foram mais Para além da promoção dos interesses
longe, recomendando este investimento da finança, apresentando produtos e
independentemente das condições socio‑ serviços financeiros como soluções para
económicas dos investidores, e referindo os mais variados problemas, esta litera‑
explicitamente que “não é preciso muito tura veicula os valores de uma sociedade
dinheiro para fazer um pagamento inicial individualista que legitima esses mesmos
de uma casa”, nem tão­‑pouco “ter um interesses. Segundo Olen, a força motriz
bom crédito para comprar uma casa”, deste movimento é a responsabilização
devendo­‑se “comprar uma casa mesmo dos indivíduos pela sua situação financeira
quando se tem dívidas no cartão de que assenta na ideia de que o sucesso ou
166 | Recensões

insucesso financeiro depende exclusiva‑ os consumidores estão confrontados,


mente da ambição e autodisciplina do em resultado da retração do Estado social e
indivíduo. Não é, por isso, de estranhar da estagnação salarial, não se resolvem com
que em sociedades de matriz patriarcal, literacia financeira. Pelo contrário, estes
esta literatura encontre nas mulheres a tendem a agravar­‑se porque, segundo Olen,
sua população alvo. Com efeito, o sexo a educação financeira mascara a necessi‑
feminino é frequentemente retratado como dade de uma regulação mais apertada dos
sendo financeiramente inapto e tendo produtos financeiros e das suas práticas de
uma relação demasiado emocional com comercialização.
o dinheiro, o que justificará as suas even‑ No último capítulo, com o sugestivo título
tuais dificuldades na gestão das finanças “We Need to Talk about Our Money”,
pessoais. Às mulheres é, assim, pedido Olen chega a defender contestações
que pensem e atuem no campo financeiro semelhantes ao fenómeno do “Occupy
como um homem, que sejam mais racionais Wall Street” como forma de promover
e assumam mais riscos no seu perfil de as reformas preconizadas. Em entrevis‑
investimento. tas posteriores ao lançamento do livro
Fica, pois, claro que fatores socioeconómi‑ insiste que a resolução dos problemas
cos, como a deterioração das condições de financeiros das famílias americanas passa
vida da classe média norte­‑americana e o pelo aumento do salário mínimo nacional,
crescimento das desigualdades, incluindo pela reformulação dos planos públicos de
entre géneros, bem como o crescente peso pensões e pela intervenção do governo no
económico e político da finança, não são setor financeiro, pouco ou nada regulado.
sequer abordados por esta literatura. Na senda do jornalismo de investigação e,
Mas Olen não se limita a refletir criti‑ por isso, desprovido de uma ancoragem
camente sobre a literatura da autoajuda teórica capaz de expor os mecanismos que
financeira e vai mais longe, debruçando­ conduziram ao peso crescente da finança,
‑se sobre os programas de educação e como esta se articula com a literatura
financeira que visam capacitar o consu‑ de autoajuda financeira, este livro não
midor para uma nova realidade em que deixa de expor com clareza os conflitos
a provisão do seu bem­‑estar passa cada de interesse desta indústria e a natureza
vez mais pelo consumo de produtos e fraudulenta das soluções apresentadas, que
serviços financeiros. Questiona esta aposta legitimam a expansão do setor financeiro e
promovida pelo regulador dos merca‑ a responsabilização do consumidor pelas
dos financeiros e pela própria indústria consequências de decisões cujos resultados
financeira norte­‑americana, considerando nunca são da sua inteira responsabilidade.
que estas iniciativas estão condenadas a
fracassar porque os problemas com que Vânia Costa

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