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101 | 2013
Perspetivas interdisciplinares sobre consumo e
crédito
João Rodrigues
Publisher
Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra
Electronic version
URL: http://rccs.revues.org/5407 Printed version
ISSN: 2182-7435 Date of publication: 1 septembre 2013
Number of pages: 153-157
ISSN: 0254-1106
Electronic reference
João Rodrigues, « Streeck, Wolfgang (2013), Tempo comprado – A crise adiada do capitalismo
democrático », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 101 | 2013, colocado online no dia 17
Fevereiro 2014, criado a 30 Setembro 2016. URL : http://rccs.revues.org/5407
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capitalismo com a democracia, com a voz é, sem política cambial, tida como “uma
popular: a União Europeia, em geral, e a espinha cravada na garganta do totalita‑
Zona Euro, em particular. Este capítulo rismo de um mercado único” (p. 265),
contém uma das mais lúcidas análises as comunidades políticas nacionais, onde
sobre a natureza da integração europeia muitos cidadãos ainda sentem justificada‑
disponíveis em português, expondo de mente que há um destino comum, ficam
forma clara a sua natureza irremediavel‑ desprovidas das bases materiais de que é
mente neoliberal e pós‑democrática e os feita a soberania democrática. A desvalori‑
mecanismos que sustentam todas as ilusões zação cambial é uma espinha cravada, até
europeístas, ainda tão influentes entre as porque, na sua ausência, os ajustamentos
elites intelectuais, políticas e económicas, fazem‑se pela “desvalorização interna”,
em especial nesta periferia europeia. ou seja, pela queda dos salários diretos
Beneficiando do intenso trabalho coletivo e indiretos (as prestações sociais), um
de investigação do Instituto que dirige sobre processo muito mais socialmente injusto
este tema, Streeck começa por mobilizar e economicamente destrutivo.
a história das ideias, em particular as teses Como Streeck enfatiza, isto não é um des‑
federalistas neoliberais de Friedrich Hayek, tino inexorável, fruto de inefáveis lógicas
um dos pensadores do fundamentalismo de globais, mas sim o resultado de uma per‑
mercado e de uma “democracia limitada” versa construção política contra as nações,
no século xx. A apresentação das teses de contra os povos, contra a democracia.
Hayek serve para nos mostrar como a União A severidade socioeconómica deste pro‑
Europeia é a expressão institucional mais cesso é particularmente sentida hoje nas
acabada do neoliberalismo enquanto projeto periferias europeias, estruturalmente pre‑
de construção e expansão da disciplina de judicadas por uma moeda forte e sem poder
mercado, suportado por instituições sem beneficiar de transferências significativas,
escrutínio democrático – do Tribunal de dado o peso residual do orçamento euro‑
Justiça Europeu ao Banco Central Europeu peu. De qualquer forma, Streeck é muito
– e por regras do jogo que criam um colete claro sobre as razões para a inexistência
‑de‑forças, o que apoda de “Estado de de uma União Europeia sem orçamento
consolidação”, que prende os Estados‑nação redistributivo digno desse nome, em que
e logo as democracias realmente existentes as regiões ricas financiariam maciçamente as
à austeridade permanente e a reformas regiões pobres, aguentando‑as à tona.
estruturais de matriz neoliberal continuadas. Com efeito, a Europa não é um Estado
A escala europeia é a escala política das e não o será, até porque os povos não o
frações mais extrovertidas do capital, dos desejam, o que significa que o federalismo
credores, e as suas instituições estão bem só pode ser furtivo, clientelar e perverso,
calibradas para consolidar o poder do “povo incapaz de mobilizar lealdades populares.
dos mercados” sobre as classes populares. E, mesmo que os povos o desejassem, seria
Sem financiamento monetário por parte mais do que duvidoso que as transferências
dos seus bancos centrais, que reduza a pudessem substituir com o mesmo sucesso
dependência dos Estados face aos merca‑ a mobilização de instrumentos de política
dos financeiros; sem controlos de capitais, à escala nacional. Mas, infelizmente, como
que reduzam a chantagem do capital Streeck sublinha, nada nos diz que as
que pode facilmente sair; e, ponto a que alianças sociais que sustentam o Euro, e
Streeck dá primacial importância, sem a que na periferia incluem elites extrover‑
possibilidade de desvalorizar a moeda, isto tidas, as que gostam de moeda forte para
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Graeber, David (2011), Debt: The First 5,000 Years. New York: Melville House
Publishing, 534 pp.
No seu livro Dívida, os primeiros 5000 anos, de mercado, do desenvolvimento da
o conceituado antropólogo David Graeber própria humanidade e, em última aná‑
apresenta‑nos uma crítica arreigada ao sis‑ lise, encerra a compreensão do destino
tema económico mundial, traçando o perfil da humanidade, tal como a conhecemos
antropológico do surgimento do dinheiro, atualmente.
da dívida e dos significados que ambos Ideologicamente questiona a proliferação
foram adquirindo no decurso da história de um sistema capitalista a uma escala
da humanidade. Ao traçar o seu perfil mundial ao colocar em causa o seu primeiro
histórico, Graeber pretende sensibilizar o e mais proeminente corolário: a assunção de
leitor para todo um conjunto de assunções que todos devemos pagar o que devemos.
normalmente tácitas, comumente aceites De um ponto de vista histórico, centrando
no meio económico, traçando paralelismos ‑se nas dívidas dos países em vias de desen‑
entre épocas, históricas e civilizações e volvimento, Graeber condena o capitalismo
alertando para as suas incongruências com selvagem e questiona o fundamento do
o objetivo de conduzir o leitor ao questio‑ próprio sistema de dívida, ao considerar que
namento e à reflexão sobre as implicações o corolário principal do sistema capitalista
morais da dívida. é muito mais uma afirmação moral do que
O tema principal e amplamente retratado um princípio económico.
de uma perspetiva antropológica centra Graeber evidencia em vários momentos ao
‑se em torno da dívida que, na análise de longo do seu livro que a forma como pen‑
Graeber, é a unidade principal de compre‑ samos e perspetivamos a dívida, enquanto
ensão da história do dinheiro, da economia obrigação moral de reciprocidade entre
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Iyengar, Sheena (2012), The Art of Choosing. London: Abbacus, 336 pp.
[3.a ed.]
O livro A arte de escolher dispõe de um nos livros policiais, confirmar a culpa do
prólogo titulado “Past is Prologue” a mordomo, poderão ficar com a impressão
que se seguem sete capítulos e um epí‑ de que se trata realmente de um manual de
logo, rematados com um posfácio para autoajuda que termina com uma frase a
a edição paperback aqui recenseada. um tempo trivial e opaca. Se desistirem da
Capítulo 1 – “The Call of the Wild”; Capí- leitura com base nas opacidade e triviali‑
tulo 2 – “A Strange in Strange Lands”; dade da mesma, perderão a oportunidade
Capítulo 3 – “The Song of Myself”; Capí- de colher os elementos concretos e explí‑
tulo 4 – “Senses and Sensibility”; citos contidos em “esperança”, “desejo”,
Capítulo 5 – “I, Robot?”; Capítulo 6 “possibilidades”, “avaliação”, “lucidez”
– “Lord of the Things”; Capítulo 7 – “And e “limitações” que compõem a frase.
Then There Were None”. Para além deste O problema adensa‑se se atentarmos agora
núcleo e de seis páginas de agradecimentos, noutra frase: “Fazemos escolhas e na volta
o livro oferece ainda notas de apoio à leitura somos feitos delas. A ciência pode ajudar
de cada capítulo que, não sendo remetidas a tornar‑nos decisores mais capacitados,
do texto, evitam o vaivém que a sua leitura mas no seu âmago, a escolha permanece
na própria página ou no fim implica, e des‑ uma arte.” (p. 268). Talvez agora o desejo
crevem os factos ou histórias “inspiradoras” de conhecer o fim da história de antemão
dos conceitos, problemas e investigações, se revele menos provável, embora a frase
ou sinalizam e comentam alguma da biblio‑ esteja também na parte final do livro. Mas,
grafia que é explícita ou implicitamente no caso de acontecer, antecipando o final,
referida em cada capítulo. Por fim, o livro o leitor poderá formar a impressão de
dispõe de um profuso índice remissivo que que algo mais ocorre neste livro. Talvez
permitirá revisitações “guiadas” dos temas este seja o sentido que “arte” ali assume:
que nos capítulos ocorrem, por vezes no o que escapa à lente do cânone científico,
meio de “narrativas” de cariz pessoal ou revelando os limites que esse olhar impõe
jornalístico que poderiam, por essa razão, ao tema da escolha, expõe outras linhas
perder a referência ao interesse explicativo e elementos que, permitindo capturar a
a que estão associadas. substância do tema, se constituem numa
Livros que ostentam no título “A arte “arte de escolher”. A arte pode ser vista,
de…”, como o que aqui se apresenta, assim, mais como um caminho de supera‑
podem não passar de um receituário para ção da frustração a que o objeto condena
lidar com o problema que tratam sob uma na sua interpelação científica, do que uma
fórmula de “autoajuda”, o que muitas via natural de “figuração”, “narrativa” ou
vezes ocorre em livros de divulgação para “receituário” da decisão.
o grande público, especialmente quando A sugestão que o título do livro de Sheena
se trata de psicologia. Considere‑se, pois, Iyengar avança encontra um sinal seu na
esta frase: “Equilibrar esperanças, desejos afirmação de que “‘Escolha’ pode signifi‑
e a apreciação das possibilidades avaliando car tantas coisas diferentes e o seu estudo
as limitações lucidamente: esta é arte de abordado de modos tão distintos que um
escolher.” (p. 277). Na verdade esta é a livro não pode conter a sua completude.”
última frase do livro. Aqueles que gostam (p. xii), ao qual se junta o truísmo de que
de dar um “salto” ao fim para, como a escolha perpassa por todo um espectro
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de ação que vai “do trivial à transformação servirá bem o leitor pela competente des‑
da vida” (p. xiii). crição do estado da arte, essencialmente do
A escolha estará, pois, por todo o lado ponto de vista da biologia e da psicologia
e levanta de antemão a suspeita de que, social e intercultural, apoiado em notas a
por essa mesma razão, a determinação cada capítulo, já acima referidas. Afinal,
do que é a escolha seja ela mesma elusiva a perplexidade dos leitores será mais um
face ao poder de fundamentação lógico sinal da competência da descrição (insis‑
‑matemático ou da observação laboratorial timos de leitura agradável e não muito
ou de campo. Disso mesmo é testemunha exigente) que parece conseguir transmitir
a breve história da decisão a partir da a mais óbvia interpretação do que hoje se
publicação da Teoria dos jogos e com- sabe sobre escolha e decisão no campo
portamento económico de von Neumann científico, abstendo‑se no mesmo passo
& Morgenstern (19531), que viu acentuar de assinalar “o” caminho, seguindo inclu‑
‑se o declínio lento mas firme da sua pre‑ sivamente, por vezes, um tom provocatório
missa racional normativa (maximização da pelo caráter dilemático da exposição,
utilidade esperada), a par da crescente ado‑ e fugindo assim a qualquer tentação de
ção dos elementos descritivos, decorrentes estabelecer receitas prontas a usar.
de premissas inaugurais das ciências sociais Mas este livro acrescenta ainda outro
e sustentados em crescente evidência de ponto de interesse: Iyengar discorre sobre
anomalias à luz do paradigma da raciona‑ temas centrais da nossa vida atual (e.g.
lidade laplaciana (Gigerenzer, 20082). consumismo, tolerância, globalização,
No posfácio em que Iyengar faz um resumo religião) que consegue fazer girar em torno
inteligente da obra, não repetidor do da escolha ou do escolher, o que funciona
“essencial” de cada capítulo, procede‑se a como um magneto que tudo atrai na vida
uma alusão à receção pública das primeiras individual, grupal ou em sociedade.
edições do livro, que se caracteriza pela Antes, porém, é importante sublinhar que,
perplexidade dos leitores que se manifestam do ponto de vista da psicologia, “A arte
“um pouco esmagados pela complexidade de escolher” percorre os themata de onde
da escolha e pela enorme quantidade atualmente emergem as principais discus‑
de informação.” (p. 269). Quanto a nós, sões em torno da decisão e da escolha.
tal perplexidade não dependerá verdadeira‑ Não envereda, claro está, por discussões
mente da escrita, por vezes de uma fluidez e académicas sobre teorias normativas,
clareza invejáveis, num registo pessoal, pon‑ prescritivas e descritivas da decisão, mas
tuado por referências à literatura universal, remete no caso das últimas para a evidência
à investigação científica ou à vida simples e interpretação científicas, por vezes pro‑
do dia a dia. Porventura decorrerá antes blemáticas e não definitivas, que permitem
da natureza intrínseca do objeto “escolha”, traçar os contornos afetivos, cognitivos,
que insistentemente surge como refratário motivacionais, culturais e políticos que
a uma definição única. enformam as escolhas do dia a dia, como
Não obstante o estilo e os seus efeitos as de longo prazo. Bom exemplo disso é a
quanto a uma definição prescritiva de sequência que Iyengar consegue imprimir
“escolha”, uma vez lido por inteiro, o livro no livro, começando na noção da escolha
1
von Neumann; J. Morgenstern, O. (1953), Theory of Games and Economic Behavior. Princeton,
NJ: Princeton University Press [3.ª ed.]
2
Gigerenzer, G. (2008), Rationality for Mortals. New York: Oxford University Press.
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opções é equivalente a uma condição para do que acontece num caso equivalente nos
o exercício de liberdade de escolha, não EUA em que a decisão e responsabilidade
damos conta de que nem sempre saímos são exigidas aos pais, revela‑se para estes
mais contentes com a decisão tomada, últimos como um momento insuperável
como seria de esperar, como podemos e originador de sentimentos de culpa
inclusive sentir mais felicidade escolhendo inultrapassáveis. Embora esta experiência
num contexto em que a quantidade de seja também difícil e marcante para os pais
opções é menor. franceses, estes mostram‑se mais capazes
Por fim, referimo‑nos a dois exemplos de lidar com a perda e motivados para
impressivos pela mescla de implicações enfrentar a vida.
que escolhas aparentemente privadas O segundo caso, relativo a suicídio/
(consideradas individualmente ou em /eutanásia voluntário/a, é o da escritora
família) podem ter com consequências Jane Aiken Hodge, que decidiu e planeou
muito relevantes do ponto de vista ético, suicidar‑se aos 91 anos de idade, solitaria‑
social e político. É o caso da descrição que mente e em segredo (armazenou durante
Iyengar faz de escolhas como são as de anos os comprimidos necessários para o
“desligar” a máquina de um paciente (uma efeito), não obstante não ter, para a idade,
criança) em suporte de vida artificial ou do qualquer problema de saúde “fatal” ou não
suicídio na terceira idade. As dimensões controlado. Fê‑lo, contudo, sem incorrer
ética e técnica (de descrição dos processos em qualquer delegação de responsabilida‑
e seus efeitos nos decisores) associadas a des inerentes a quem eventualmente esti‑
elementos de perceção e avaliação sob vesse ligado à assistência do seu suicídio.
quadros culturais distintos, transmitem A força desta evidência (casuística neste
o sentido poderoso que a escolha assume último caso ou quasi‑experimental no pri‑
nas nossas vidas seja para glosar o caráter meiro) é essencialmente problematizadora,
individual ou coletivo da escolha, seja lembrando que, na prática, tais decisões
para salientar a sua dificuldade intrínseca. e escolhas são feitas efetivamente e,
No primeiro caso, trata‑se da compara‑ tal como os animais ou homens em situa-
ção intercultural (EUA/França) sobre a ções extremas, a perceção de que contro‑
responsabilidade em escolhas reais que lamos a situação e, por isso, decidimos
consistem em manter ligado ou fazer voluntariamente, assume intensidades e
desligar o suporte artificial de vida de formas diversas, fazendo justiça à neces‑
uma criança que terá sempre, mesmo que sidade de aceitar que “escolher é uma
mantida viva, profundas lesões cerebrais arte” no sentido que a autora em várias
numa condição de total dependência. instâncias do livro sugere.
A delegação da escolha nos médicos, como
sucede num caso em França, ao contrário Miguel Oliveira
Olen, Helaine (2012), Pound Foolish: Exposing the Dark Side of the Personal
Finance Industry. New York: Portfolio Penguin, 292 pp.
Nas últimas décadas, temos vindo a assistir financeiros. Com maior expressão nas
a transformações socioeconómicas profun‑ economias capitalistas mais desenvolvidas,
das que têm conduzido a uma crescente como os Estados Unidos da América e o
participação das famílias nos mercados Reino Unido, observa‑se um crescente
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