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RESENHA
BEAUVOIR, Simone de. (1970) O Segundo Sexo – Livro 1: Fatos e Mitos. 4ª Edição.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro.
Celeste Chaves Barra
Denise Raissa Lobato Chaves
Raissa Cruz dos Santos
Para introduzir o sua obra, a autora vem a submissão da mulher?. Para iniciar
inicia a discussão sobre a definição de esta discussão, a autora realiza um paralelo
gênero e a sua associação intrínseca ao entre a submissão das minorias étnicas e a
sexo, e também questiona a concepção do submissão da mulher e apresenta o
“ser mulher” cuja construção é seguinte contraponto: as ditas “minorias”
determinada a partir da relação de (judeus, negros, etc.) foram consideradas
alteridade com o “ser homem”, ou seja, inferiores devido a acontecimentos
um se define apenas com relação ao outro. históricos (diáspora, escravidão africana,
Isto se dá devido ao fato da alteridade ser etc.), porém, no caso das mulheres, não
parte do conhecer e do classificar, ambos houve um evento e nem consequências
intrínsecos na cultura e na consciência dele. Sendo assim, a condição de
humana. E, a partir desta perspectiva, a subjugação é similar, no entanto, não se
autora apresenta o dualismo do Outro ‐ do trata do mesmo fenômeno, visto que a
estrangeiro e do diferente ‐ associado à mulher compõe a humanidade e sua
construção da mulher a partir do que se relação com o homem é de extrema
concebe como homem, e que, portanto, importância, pois “mas mesmo em sonho a
ela deva ser o seu contrário (oposição e mulher não pode exterminar os homens. O
simetria). Questiona‐se então o laço que as une a seus opressores não é
reconhecimento deste Outro com base comparável a nenhum outro.” (p. 13).
neste Um, na qual um depende do outro Para encerrar a parte introdutória,
para se estruturar e se configurar, sendo o a autora expõe que a supremacia do
Outro submisso a este Um. homem fora colocada como um direito no
Após isto, é apresentada a questão decorrer da história da humanidade e, tal
principal a ser tratada no livro: De onde condição continua se perpetuando com o
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passar dos séculos apesar do avanço das “É exercendo a atividade sexual que os
homens definem os sexos e suas relações,
lutas feministas. Então, para a autora, o como criam o sentido e o valor de todas as
problema se encontra na busca pela funções que cumprem: mas ela não está
necessariamente implicada na natureza do
interrupção deste processo, uma vez que ser humano.” (p. 28)
os homens continuam a se beneficiar do A autora apresenta as diferenças
direito de subjugar que lhe fora concedido. fisiológicas entre a mulher e o homem, nas
Sendo assim, com base na explanação quais o corpo feminino se mostra com
feita, a autora se propõe a discutir neste força muscular inferior, capacidade
livro os pontos de vista da biologia, da respiratória inferior e dentre outras
Psicanálise e do materialismo histórico características (peso, tamanho do cérebro,
acerca da mulher; será apresentada como comprimento dos órgãos, etc.) que se
a mulher foi definida como o Outro e quais mostram menores se comparados ao corpo
foram as consequências do ponto de vista masculino. Tais fatos, na perspectiva da
masculino; e então, para concluir será autora, não podem ser negados, porém, a
descrito o mundo que é proposto à autora ressalta que estes dados não têm
mulher, a partir do seu ponto de vista. sentido por si só, uma vez que:
“(...) no momento em que o dado fisiológico
(inferioridade muscular) assume uma
Parte I: Destino significação, esta surge desde logo como
Capítulo I – Os dados da Biologia dependente de todo um contexto; a "fraqueza"
só se revela como tal à luz dos fins que o
Neste capítulo a autora apresenta, homem se propõe, dos instrumentos de que
dispõe, das leis que se impõe.”(p.55)
a partir do ponto de vista biológico, a
reprodução como base da separação e Para concluir, a autora argumenta
diferenciação das espécies em machos e que os dados biológicos não sustentam
argumenta que as especificações biológicas uma vez que as diferenças biológicas em si
assim se apresenta uma relação de a noção de “fraqueza” e “inferioridade”
sexos. Para a autora, a redução dos “o corpo da mulher é um dos elementos
irredutível uma vez que: mundo. Mas não é ele tampouco que basta
para a definir” (p. 57). Sendo assim, a
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autora defende que os papéis destinados a autora retoma a construção do falo e
cada sexo são construídos socialmente e afirma que a superioridade e autoridade
são desprovidos de fundamento científico, masculina, no viés psicanalítico, não é
ou seja, a subjugação é construída conferido ao falo em si, mas ao construto
socialmente e não apresenta justificativa simbólico em volta daquele que o possui: o
biológica. homem. Sendo assim, a autora argumenta
que há toda uma construção simbólica
Capítulo II ‐ O ponto de vista Psicanalítico acerca do homem e seu falo, para além de
Neste capítulo a autora teve com um olhar apenas sexual:
sexualidade feminina no corpo teórico da novamente que o constructo simbólico foi
psicanálise freudiana, na qual a libido é elaborado em um contexto e o método
pensada como energia sexual de essência psicanalítico é forçado a admiti‐lo em sua
masculina, mas que atua da mesma construção teórica. Sendo assim, o falo é
claro também que: “Esta [a libido] uma soberania em diversos campos, e a
desenvolve‐se (...) de maneira idêntica nos mulher, necessita buscar outros meios de
uma fase oral que as fixa ao seio materno, sublimar os desejos provenientes do status
finalmente a fase genital: é então que se Neste ponto, a autora retoma a
castração mais complexo que do menino, mulher no Complexo de Édipo na qual a
devido a menina se identificar primeiro condição para a dissolução é alienar‐se ao
com o pai e posteriormente rivalize e se modelo do pai ou da mãe. E assim, tal
aliene ao modelo da mãe. Após isto, a postura de alienação coloca mulher na
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condição de objeto, pois se entende que domínio de outros homens (escravidão) e
todas as atividades que a mulher pode também se torna proprietário da mulher. E
realizar são associadas à sublimação e à esta por sua vez é confinada a trabalhos
busca de um substituto para o falo domésticos que também são
perdido. Sendo assim, desvalorizados, e assim: “a opressão social
“Quando uma menina sobe a uma árvore é, a que sofre é a conseqüência de uma
seu ver [da psicanálise], para igualar‐se aos
meninos: não imagina que subir numa árvore opressão econômica.” (p. 75). Sendo assim,
lhe agrade; para a mãe, a criança é algo para Engels, a mulher se igualará ao
diferente do "equivalente do pênis"; pintar,
escrever, fazer política não são apenas "boas homem quando ambos obtiverem direitos
sublimações". Há, nessas atividades, fins que
são desejados em si: negá‐lo é falsear toda a jurídicos iguais e, para isto, a mulher
história humana.” (p. 71‐72). necessita se envolver com a atividade
Para concluir, a autora afirma pública. Então, mostra‐se o destino da
considerar algumas perspectivas mulher estreitamente associado ao próprio
psicanalíticas, no entanto, a própria socialismo, pois na sociedade socialista não
Psicanálise contribuiu para o pensamento haverá divisão entre homens e mulheres,
de subjugação da mulher por estar inserida existirão apenas trabalhadores iguais entre
em um contexto cuja significação do si.
homem se dá desta forma. Por fim, a Apesar de considerar a análise de
autora considera que a mulher se encontra Engels, a autora afirma que tal constructo
inserida num mundo de valores no qual a não foi capaz de deduzir a opressão da
estrutura econômica e social é mulher por meio da ascensão da
indispensável para pensar a sua existência. propriedade privada, uma vez que a divisão
sexual do trabalho não explica a opressão
Capítulo III – O ponto de vista do da mulher. Para a autora, a oposição dos
materialismo histórico sexos vista como um conflito de classes
Neste capítulo, a autora se utiliza não é uma tese totalmente sustentável,
da perspectiva do materialismo histórico devido ao fato de haver pontos
marxista e, para realizar uma análise congruentes como a opressão, porém não
acerca da condição da mulher, ela utiliza há na cisão de classes nenhuma base
especificamente A Origem da Família de biológica. Sendo assim, o materialismo
Friedrich Engels. Neste livro, é analisada a histórico deixa de fora questões singulares
ascensão da técnica e da relação de poder que envolvem a mulher, a relação dela
do homem por meio da propriedade com o homem e as condições sociais que
privada. No processo de fixação da lhe são impostas:
propriedade privada, o homem assume
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“Não seria possível obrigar diretamente uma atividades que exigissem esforço físico,
mulher a parir: tudo o que se pode fazer é
encerrá‐la dentro de situações em que a como pescar, colher e caçar. Em tal
maternidade é a única saída; a lei ou os realidade, o homem assegurava a
costumes impõem‐lhe o casamento, proíbem as
medidas anticoncepcionais, o aborto e o reprodução e a produção da comunidade,
divórcio. (...) É impossível, vê‐se por esse
exemplo, encarar a mulher unicamente como desempenhando um papel importante na
força produtora; ela é para o homem uma permanência da espécie e, sem ele, a
parceira sexual, uma reprodutora, um objeto
erótico, um Outro através do qual ele se busca mulher não cumpria o esforço de dar à luz
a si próprio.” (p. 79)
e cuidar de crianças.
Para finalizar, a autora afirma que, No entanto, apesar do papel da
para descobrir a mulher, é necessário maternidade se revelar importante para a
utilizar as contribuições da biologia, da espécie humana, tal fato não levou
Psicanálise e do materialismo histórico, e importância à mulher, uma vez que a
também é preciso considerar o corpo, a espécie humana não procura se preservar
vida sexual e as técnicas numa perspectiva e se manter, mas elevar‐se. Além disso, as
global existencialista. Tal perspectiva é funções naturais de engendrar e aleitar
apresentada e discutida nas partes que a mulher realiza não são atividades,
posteriores do livro.
“Eis por que nelas a mulher não encontra
Parte II: História
motivo para uma afirmação altiva de sua
existência: ela suporta passivamente seu
Nas civilizações mais primitivas, destino biológico. Os trabalhos domésticos a
que está votada, porque só eles são conciliáveis
cuja história ainda possui controvérsias com os encargos da maternidade, encerram‐na
antropológicas, a mulher desempenhava na repetição e na imanência.” (p. 83).
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de domínio feminino no qual a mulher foi uma supremacia da mulher, porém a
encerrada: autora considera que tal fato não tem
“(...) pela invenção da ferramenta, a essência de verdade, pois:
manutenção da vida tornou‐se para o homem
atividade e projeto, ao passo que na
“Dizer que a mulher era o Outro equivale a
maternidade a mulher continua amarrada a seu
dizer que não existia entre os sexos uma
corpo como animal. (...)Foi a atividade do
relação de reciprocidade: Terra, Mãe, Deusa,
macho que, criando valores, constituiu a
não era ela para o homem um semelhante: era
existência, ela própria, como valor: venceu as
além do reino humano que seu domínio se
forças confusas da vida, escravizou a Natureza
afirmava: estava portanto fora desse reino. A
e a Mulher.” (p. 86‐87)
sociedade sempre foi masculina; o poder
político sempre esteve nas mãos dos homens.”
Para a autora, tal perspectiva
(p.91)
existencialista foi capaz de compreender
Sendo assim, as mulheres nunca
como dados biológicos e econômicos
obtiveram uma relação autônoma e direta
acarretaram na supremacia do macho nas
com os homens, uma vez que serviam de
comunidades primitivas. Porém, mais
mediadoras para os direitos dos mesmos
adiante, a autora afirma que a mulher
por meio de contratos sociais, como o
adquire importância em algumas
casamento. Por fim, a autora defende que
comunidades devido à valorização da prole
as características biológicas permitiram
e do desenvolvimento da criança, e,
que o homem se firmasse soberano,
associada à composição da indústria
privilégio este que nunca fora abdicado
doméstica e ao comércio, a mulher passar
apesar de alienar sua existência à Natureza
a apresentar um papel de primordial
e à mulher. Esta, por sua vez, fora
importância. Tal fato, segundo a autora,
condenada a desempenhar o papel do
reflete nos homens um misto de respeito e
Outro e a não escolher o próprio destino,
terror. Retomando a ideia de que o homem
uma vez que o lugar da mulher sempre
se pensa pensando no Outro, o que é
fora estabelecido pelo homem e suas leis.
diferente do homem é colocado na
O homem nunca reconheceu a
categoria de Outro, e assim a mulher é
mulher como semelhante a ele por não
incluída: “Quando o papel da mulher se
partilhar as mesmas maneiras de pensar e
torna mais importante, absorve ela, em
agir, uma vez que a mulher fora
quase sua totalidade, a região do Outro.”
conservada na perspectiva do Outro,
(p. 90).
permanecendo submissa à vontade do
Por ser encaixada na categoria do
homem. E esta categoria do Outro se
Outro, a mulher é associada às
revela ambivalente, pois é dito inferior e ao
características da Natureza e serve de
mesmo tempo necessário. A vontade
subsídio para diversas representações
masculina se releva ambígua, pois exige
mitológicas. Tais fatos sugerem que houve
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que a mulher exerça o papel de “serva” e Apesar desse estatuto privilegiado,
“companheira” ao mesmo tempo: “(...) o a mulher não possuía direitos sociais e
Mal é necessário ao Bem, a matéria à idéia, políticos iguais aos homens: elas
a noite à luz. O homem sabe que para interferiam na vida pública de modo
saciar seus desejos, para perpetuar sua secundário e na vida privada, eram exigidas
existência, a mulher lhe é indispensável.” de uma fidelidade unilateral, além disso, o
(p. 101). Devido à mulher ser este Outro, casamento se mostra estreitamente
tal fato se reflete na sua história, relacionado à herança. E, em outras
proporcionando mudanças em seu destino sociedades no Período Clássico, a mulher é
no decorrer das eras. dependente de seu tutor (pai, marido,
Segundo a autora, a história da irmão, etc.) que deve reger os bens a ela
mulher se confunde com a história da associados, assim como a herança é
herança, uma vez que a propriedade passada apenas para os filhos. Quando a
privada esteve sempre no poderio do mulher detém algum direito sob a herança,
homem e a mulher se apresentava apenas o casamento já é visto como um fardo para
como parte dos bens ou como o homem, pois não o beneficia. Diante
intermediadora, nunca como detentora. disto, a autora afirma:
Devido a isto, em uma sociedade cujas
“Já que a opressão da mulher tem sua causa na
bases são a família e a propriedade vontade de perpetuara família e manter intato
o patrimônio, ela se liberta também dessa
privada, a mulher permanece alienada, dependência absoluta na medida em que
submissa e confinada aos espaços e escapa da família. Se a sociedade, negando a
propriedade privada, recusa a família, a sorte
ocupações que lhe foram designados. da mulher melhora consideravelmente.” (p.
109).
Apesar disto, a autora expõe que
em diversas culturas o patriarcado se Algumas mulheres que não eram
mostrou de maneira radical e, em outras, associadas à família e à herança, obtinham
de maneira moderada. No caso da antiga um considerável estilo de liberdade, dentre
Babilônia, a mulher possuía o status de elas as prostitutas gregas. Estas mulheres
“esposa privilegiada”, podendo garantir a recebiam considerável respeito e podia
tutela dos filhos e administrar os bens do expressar‐se mais livremente que as
marido sob algumas condições específicas. demais mulheres, porém tal situação se
No antigo Egito a mulher possuía domínio mostrava ambivalente, pois por escaparem
de sua herança, de seus filhos e até mesmo da família, situavam‐se à margem da
podia divorciar‐se, uma vez que o sociedade e, ao mesmo tempo, escapam
casamento era tratado como um contrato, da tutela do homem, podendo ser
podendo ser um casamento servil ou não. apresentada como semelhante e quase
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igual a ele. A autora argumenta que tal casamento e sobre os filhos. Os povos
representatividade que o casamento ocupa “bárbaros” concediam direitos à mulher
fora construída para beneficiar os tutores e apesar de sua fraqueza física, esta
apresenta‐se como centro de interesses incapacidade não significava uma
entre os homens, devido justamente à inferioridade moral ou social.
herança e à propriedade privada. No regime econômico do
Algumas mudanças desse cenário feudalismo, a mulher continua com
ocorrem no Estado Romano e sua política pequena autonomia e principalmente vista
republicana, na qual a mulher já obtém como parte dos bens, e é protegida pelas
direitos sobre o seus filhos e possui leis, mas somente na condição de esposa e
considerável autonomia com relação ao mãe. Ao fim da Idade Média, o destino da
seu casamento e suas posses. O que se mulher se faz incerto devido à
observa neste contexto é um afastamento desvalorização do feudo com a ascensão
do papel mais familiar que a mulher da burguesia e do modelo capitalista.
detinha em outras civilizações, porém ela Apesar de tais elementos convergirem para
continua na condição de tutelada devido a emancipação da mulher, mas a
estar sujeita a inúmeras incapacidades subordinação feminina permanece por
legais. Para a autora, no momento em que meio do casamento até mesmo no modo
a mulher alcança um status mais de vida burguês:
emancipado e potencialmente igualitário, “Vê‐se afirmar o paradoxo que se perpetua até
hoje: a mulher mais plenamente integrada na
o processo de justificação da supremacia sociedade é a que possui menor número de
masculina ocorre novamente, buscando privilégios; na feudalidade civil, o casamento
conserva o mesmo aspecto que tinha na
um pretexto para manter a mulher na feudalidade militar; o esposo permanece tutor
da esposa. Quando a burguesia se constitui, ela
condição de submissa. observa as mesmas leis.” (p.124).
A evolução da condição feminina
A autora argumenta que o
prosseguiu desde o Estado Romano,
interesse exige de burgueses e senhores
apresentando influências do Cristianismo e
feudais o controle e administração do
das culturas dos povos ditos “bárbaros”, e
patrimônio, não por julgarem a mulher
então mudanças sociais, políticas e
como incapaz de fazê‐lo, porém apenas
econômicas ocorreram repercutindo na
quando nada se opõe aos interesses
situação da mulher. Com o advindo do
masculinos são reconhecidas as
Cristianismo pela via da Igreja Católica no
capacidades femininas. Dentre as
período da Idade Média, a mulher assume
consequências da escravização da mulher
se apresenta como tentação da carne e ao
pelo casamento ‐ a dita “mulher honesta” ‐
mesmo tempo possui autonomia no
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, surge a prostituição. De maneira sofriam das mais variadas violências
hipócrita, as prostitutas eram condenadas (assédio, estupro, assassinato) e ainda
à margem da sociedade, mas ocupavam eram acusadas pelos homens de roubarem
um papel importante para os homens uma seus postos de trabalho, já que em
vez que a monogamia tornou‐se rigorosa. algumas empresas eles preferiam a mão de
A situação da mulher se modificou obra feminina por ser mais barata.
entre os séculos XV ao XIX, mas A exploração perpassa pela
principalmente nas classes privilegiadas. condição feminina independente da classe
Nos séculos XV e XVI a instrução das social ou status, enquanto a maiorias das
mulheres ainda é baixa, mas há a mulheres solteiras e viúvas do século XVIII
preocupação com a educação destas por eram oprimidas e lutavam para conquistar
parte de seu meio familiar, no século XVII um espaço digno no mercado de trabalho,
elas passam a se distinguir e ganhar espaço as mulheres casadas tinham um restrito
no meio intelectual e na arte. Graças a isto, espaço na vida social: elas tinham um
elas passam a imergir aos poucos no marido, isto implica em carregar o
universo masculino, apesar de ainda sobrenome do mesmo, ter um lar.
sofrerem repúdio dos homens. No século Momento na qual ela pode finalmente
XVIII, a independência da mulher aumenta colocar em prática todos os ensinamentos
mais ainda, apesar da imposição pelo a qual foi submetida repetidamente e
casamento, a burguesia concede às exaustivamente quando criança, agora ela
mulheres maiores licenças para atuar no estava pronta para ser uma boa esposa,
mundo. uma boa mãe, papéis para qual naquela
No seio da revolução Burguesa veio época já estava predestinada.
uma tímida promessa de libertação da Para mulher, o status de casada ao
condição feminina, as mulheres finalmente mesmo tempo representa ascensão e
conseguiram chegar à vida pública através limitação, o lar implicava num papel social
do mercado de trabalho. Entretanto a a qual ela estava mergulhada em regras e
entrada da mulher no espaço público não com a liberdade cerceada, sua vida só
se deu de forma pacífica, elas eram vistas existia ao lado do marido, geralmente
como uma mão de obra menos valorizada cercada de presentes, de elogios e de
que a do homem, coisa que acontece até mimos, enquanto os maridos estavam na
nossos dias, além de desvalorizada ela vida pública aguentando os “fardos” do
tinha que se submeter às explorações do trabalho, fardos que o caracterizavam
mundo capitalista sendo menos valorizada como um ser inteligente, trabalhador,
ganhava menos, trabalhava mais horas, capaz e viril. A mulher por sua vez só
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precisava ser bonita, era um troféu a ser poderem ser felizes para sempre, mas sim
mostrado e erguido pelo homem. Poucas a conhecer um mundo conquistar um lugar
vezes ela poderia ser reconhecida como nele e por fim quem sabe encontrar uma
uma pessoa inteligente por que nem boa esposa para cuidar do seu lar nos
direito à educação tinha, quase nunca momentos em que não se encontrava.
poderia ser reconhecida como
trabalhadora por que o trabalho doméstico Parte III: Os Mitos
era desvalorizado e ainda era encarado
Na história da humanidade é
como uma responsabilidade que tinha de
evidenciada a construção de como o
carregar por ter um lar e pra quê
homem e a mulher são vistos na
reconhecê‐la como uma mulher capaz e
sociedade, seus papéis e suas vivências.
viril já que ela tinha crescido e se
Desde o patriarcado, o homem é
desenvolvido para este destino?
constituído como o ser dominador de
Assim a mulher era desobrigada
forma que a mulher é o Outro derivada do
das tarefas da vida pública, mas com isso
homem e para o homem. Um exemplo
também era apagada da glória que
dessa formação da mulher como o Outro é
traziam, de um espaço conquistado por si e
a estória de Gênesis, onde a mulher não foi
não pelo nome do marido. O destino da
criada no mesmo período que o homem,
mulher desde criança era aprender tarefas
primeiramente Deus cria o homem e
domésticas e etiquetas para arranjar um
depois, de sua costela, cria a mulher para
bom marido, ser boa esposa e boa mãe,
matar sua solidão e ser companheira desse
entretanto o homem não crescia destinado
homem.
a aprender a ser um bom marido, mas sim
a se desenvolver para enfrentar o mundo Dessa forma, na sociedade, a
hostil que lhe espera, o mundo dos mulher se torna dispensável e não exige
negócios, se preparar para ser um bom reciprocidade em relação ao homem,
herdeiro, seguir o nome da família, em tendo como papéis de mãe, amante e
momento algum faço juízo de valor e estou cuidadora do lar, sempre atendendo às
afirmando que o destino do homem é mais demandas do homem, em uma natureza
glorioso que o da mulher, mas é nítido que submissa. Entretanto, em algumas
e o destino feminino é muito mais sociedades, como na sociedade de Marx,
limitante que o dos homens. As não existe lugar para o Outro, pois é
possibilidades dadas a eles nessa época defendida autenticamente a democracia.
eram maiores, eles não eram limitados a Porém, a mulher não encontra um lugar
encontrar uma princesa encantada para próprio no qual ela seja autônoma na
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história, por exemplo: não há poesia ou presente na cultura do Egito onde a mulher
religião que pertença exclusivamente à no período da menstruação deveria se
mulher, são através dos sonhos dos manter isolada.
homens que as mulheres sonham. Dessa Essa cultura de mulher menstruada
forma, a mulher se encontra ser sinônimo de impureza ainda perdurou
reduzidamente definida em relação ao em alguns países onde as mulheres não
homem. podiam trabalhar na confecção de alguns
alimentos no período das regras, pois iriam
A mulher também ganha o
azedar ou estragar as colheitas, por
simbolismo de nascimento e morte: de lá
exemplo. No ato sexual o homem não
veio, para lá irá voltar. O parto é algo
busca somente sentir prazer, e sim
exclusivo da mulher, o que também a
dominar e explorar o corpo feminino de
associa à morte como na expressão: “a
certa forma que a mulher é vista como a
terra‐mãe encerra em seu seio as ossadas
terra que o homem ara, planta e semeia, e
de seus filhos”, pois na cultura grega são as
após esses atos ele a domina a prendendo
mulheres Parcas e Moiras que tecem o
como sua propriedade.
destino humano, mas são elas que
Assim, podemos ver como começa
igualmente cortam os fios. Porém a
a ser construído o tabu da virgindade, tal
ambivalência funciona novamente aqui: se
coisa é temida, desejada e até exigida
a germinação sempre se associa à morte,
pelos homens e se apresenta como a
esta também se associa à fecundidade, a
forma mais acabada do mistério feminino,
morte detestada apresenta‐se como novo
é o aspecto mais inquietante deste e ao
nascimento e ei‐la bendita.
mesmo tempo o mais fascinante. Em
Em muitas sociedades primitivas, o
sociedades mais primitivas, onde o poder
sexo da mulher é considerado inocente, o
da mulher é exaltado, o medo do
que difunde que a mulher precisa se
defloramento fala mais alto para os
conservar pura e após sua menstruação
homens, eles exigiam que as mulheres
deve ter um tratamento diferenciado, no
tivessem sido defloradas antes de se
sentido de quando ela perde a virgindade
relacionarem sexualmente com elas. Como
ela se torna impura e perde a inocência. A
exemplos têm os tibetanos que não
despeito disso o homem nunca possui esse
desejavam mulheres que ainda não
tabu de pureza e impureza, ele
tivessem suscitado desejos masculinos e
simplesmente se torna impuro quando
em outras sociedades o sangue do
entra em contato com a mulher
defloramento era ligado ao sangue da
menstruada, por exemplo, essa crença está
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menstruação vista como impura, como já pé; é a mediadora da salvação como Eva o
dito anteriormente. foi da danação. É como mãe que a mulher
Nas sociedades menos primitivas o é temível; é na maternidade que é preciso
defloramento era visto como algo bom se transfigurá‐la e escraviza‐la, a virgindade
realizado pelo marido, por exemplo, em de Maria tem principalmente um valor
comunidades na França o sangue do negativo: não é carnal aquela por quem a
defloramento manchado no lençol era carne foi resgatada; não foi tocada e nem
exibido aos pais e amigos um dia depois do possuída, Maria não conheceu a mácula
casamento. É que no regime patriarcal o que a sexualidade implica. Pela primeira
homem se tornou senhor da mulher e cabe vez na história da humanidade a mãe se
a ele dominá‐la da mesma forma que ajoelha diante do filho e reconhece
domina a natureza e os animais, ele assim livremente a própria inferioridade: é a
cria um sentimento de posse pela mulher e suprema vitória masculina que se consuma
a única forma de provar que é seu dono é no culto de Maria, é a reabilitação da
assegurando que a mulher nunca teve mulher pela realização da sua derrota.
relações com outros homens. A mulher também é a própria
Dessa forma, o que o homem ama substância das atividades poéticas dos
e detesta antes de tudo na mulher, amante homens, compreende‐se que a mulher se
ou mãe, é a imagem imortal de seu destino apresente como sua inspiradora: as Musas
animal, é a vida necessária à sua existência, são mulheres. A Musa é mediadora entre o
mas que a condena à finidade e à morte. criador e as fontes naturais em que deve
Desde o dia em que nasce, o homem haurir. É através da mulher, cujo espírito se
começa morrer: é a verdade que a mãe acha ligado profundamente à natureza,
encarna. Embora tente distingui‐las, que o homem sondará os abismos do
encontra numa e noutra, amante e mãe, silêncio e da noite fecunda. A Musa não
uma só evidência: a de sua condição cria nada por si mesma, é uma Sibila
carnal. Ao mesmo tempo deseja realiza‐la, ajuizada que docemente se fez serva de
venera a mãe, deseja a amante; ao mesmo um senhor, e mesmo nos domínios
tempo rebela‐se contra elas na aversão e concretos e práticos, seus conselhos serão
no terror. úteis.
Na idade média, ergue‐se a O homem conseguiu escravizar a
imagem mais acabada da mulher propícia mulher, mas desse modo despojou‐a do
aos homens: a figura da Virgem Maria que lhe tornava a posse desejável.
cerca‐se de glória. É a imagem invertida de Integrada na família e na sociedade, a
Eva, e pecadora; esmaga a serpente sob o magia da mulher dissipa‐se em vez de se
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transfigurar, reduzida à condição de serva, próprio sujeito. O apego do filho ao seio
ela não é mais a presa indomada em que materno é principalmente o apego à vida
se encarnavam todos os tesouros da em sua forma imediata, em sua
natureza. Desde o aparecimento do amor generalidade e em sua imanência, a recusa
cortês, é lugar‐comum dizer que o à desmama é a recusa ao abandono a que
casamento mata o amor. Os ritos do o indivíduo é condenado desde que se
casamento destinam‐se primitivamente a separe do todo, é a partir de então que se
defender o homem contra a mulher; ela pode qualificar como “sexual” o gosto que
torna‐se sua propriedade; o casamento conserva pela carne materna doravante
também é uma servidão para o homem, é destacada da sua.
então que ele se vê preso na armadilha da Eis, portanto, porque a mulher tem
natureza. um duplo e decepcionante aspecto: ela é
Para arrancar a mulher à Natureza, tudo a que o homem aspira e tudo o que
para escraviza‐la ao homem mediante não alcança. Ela é a sábia mediadora entre
cerimônias e contratos, elevaram‐na à a Natureza propícia e o homem: é a
dignidade de pessoa humana, deram‐lhe tentação da natureza indomada contra
liberdade. Mas a liberdade é precisamente toda sabedoria. Do bem ao mal ela encarna
o que escapa a toda a servidão e se carnalmente todos os valores morais e
concede a um ser originalmente habitado seus contrários; é a substância da ação e o
por forças maléficas, ela se torna perigosa. que se lhe opõe, o domínio do homem
E dessa forma o homem só aceitou a sobre o mundo e seu malogro. Só que ela é
mulher no mundo masculino fazendo dela Tudo à maneira do não essencial: é todo o
uma serva, frustrando‐a de sua Outro. Enquanto outro, ela é também
transcendência; a liberdade que lhe outra e não ela mesma, outra e não o que
outorgaram só podia ser de uso negativo, dela é esperado. Sendo tudo, ela nunca é
ela empenha‐se a recusar. A mulher só se isso justamente que deveria ser; ela é
tornou livre tornando‐se cativa, renuncia a perpétua decepção, a própria decepção da
esse privilégio humano para encontrar de existência que não consegue nunca se
novo sua força de objeto natural. atingir nem se reconciliar com a totalidade
É também, interessante observar o dos existentes.
“complexo de Édipo”, consideram‐no Montherland inscreve‐se dentro da
muito frequentemente como produzido longa tradição dos homens que
por uma luta entre as tendências retomaram, por sua conta, o maniqueísmo
instintivas e as imposições sociais, mas é orgulhoso de Pitágoras. Ele estima, depois
antes de tudo um conflito interior do de Nietzsche, que somente as épocas de
114
fraqueza exaltaram o eterno feminino e poético de Breton, há uma analogia no
que herói deve insurgir‐se contra a Magna papel que designam à mulher: ela é um
Mater. Especialista do heroísmo, empenha‐ elemento de perturbação; ela arranca do
se em destrona‐la. A mulher é a noite, a homem o sono da imanência, boca, chave,
desordem, a imanência. porta, ponte, é Beatriz iniciando Dante no
Lawrence situa‐se nos antípodas de além. A mulher é enigma e põe enigmas;
um Montherland. Não se trata pare ele de suas múltiplas caras, em se adicionando e é
definir as relações singulares da mulher por isso que ela é revelação.
com o homem, mas sim de recoloca‐los Stendhal, desde infância, amou as
ambos dentro da verdade da vida, ela mulheres sensualmente; projetou nelas as
envolve a animalidade em que o ser aspirações de sua adolescência; imaginava‐
humano mergulha suas raízes. Lawrence se de bom grado salvando de um perigo
recusa com paixão a antítese sexo‐cérebro, uma bela desconhecida e conquistando‐lhe
há nele um otimismo cósmico que se opõe o amor. Stendhal pede às mulheres,
radicalmente ao pessimismo de primeiramente, não se deixarem cair nas
Shopenhauer, o simples ciclo sexual é armadilhas da gravidade; pelo fato de as
insuficiente porque recai na imanência: é coisas pretensamente importantes
sinônimo de morte, porém vale mais ainda encontrarem‐se fora de seu alcance,
essa realidade mutilada: sexo e morte, do correm menos do que os homens, o risco
que uma existência desligada do humo de se alienarem a elas; têm maiores
carnal. possibilidades de preservar essa
A originalidade do catolicismo de naturalidade, essa ingenuidade, essa
Claudel está num otimismo tão obstinado generosidade que Stendhal coloca mais
que o próprio mal retorna ao bem. Claudel alto do que qualquer outro mérito; o que
adere a toda criação; sem o inferno e o ele aprecia nelas é o que chamamos hoje
pecado, não haveria nem liberdade e nem de autenticidade: é o traço comum a todas
salvação. Quando fez surgir este mundo do as mulheres que ele amou ou inventou
nada, Deus premeditou a queda e a com amor.
redenção, aos olhos dos judeus e dos Evidencia‐se por esses exemplos
cristãos, a desobediência de Eva colocara que, em cada escritor singular, se refletem
as mulheres em má situação: sabe‐se os grandes mitos coletivos: a mulher foi‐
quanto os padres da Igreja desprezaram a nos apresentada como carne; a carne do
mulher. homem é engendrada pelo ventre materno
Apesar do abismo que separa o e recriada nos amplexos da amante. Por
mundo religioso de Claudel do universo esse aspecto a mulher apresenta‐se à
115
natureza. Porém, esses mitos orquestram‐ mudança na postura e condição social da
se para cada um de maneira diferente: o mulher, esta nova realidade pode ser
Outro é singularmente definido segundo o observada em alguns momentos históricos
modo singular que Um escolhe para se pôr. como em 1917, Alexandra Kollontai torna‐
Para cada um deles, a mulher ideal será a se a primeira mulher a integrar um
que encarnar mais exatamente o Outro governo; em 1955, a norte americana
capaz de o revelar a si mesmo. negra Rosa Parks, recusa‐se a ceder o lugar
Finalmente, a autora conclui a um branco no ônibus; Djamila Boupacha
afirmando que atualmente é muito difícil é considerada heroína de guerra da
às mulheres assumirem independência da Argelina.
concomitantemente sua condição de Logo o contexto social do século XX
indivíduo autônomo e seu destino reivindicava novas abordagens sobre
feminino, e sem dúvida, é mais confortável temas vinculados à exclusão social, seja de
suportar uma escravidão cega que gênero, geração raça ou religião. Na
trabalhar para se libertar: os mortos introdução do volume 2 do livro, Simone
também estão mais bem adaptados à terra discute a condição feminina situada nesse
do que os vivos. Então, o que se deve momento histórico marcado por grandes
esperar é que os homens assumam sem conquistas, mas que carrega fortemente o
reserva a situação que se vem criando, ranço do passado dominador. Isto pode ser
somente então a mulher poderá viver sem observado no trecho:
tragédia. Assim ela será plenamente um “As mulheres de hoje estão destronando o mito
da feminilidade; começam a afirmar
ser humano “quando se quebrar a concretamente sua independência; mas não é
escravidão infinita da mulher, quando ela sem dificuldade que conseguem viver
integralmente sua condição de ser humano.
viver por ela e para ela, o homem‐ até hoje Educadas por mulheres, no seio de um mundo
feminino, seu destino normal é o casamento
abominável – tendo lhe dado a alforria”. que ainda as subordina praticamente ao
(p. 309). homem.” (p.7).
Sexo – Livro 2: Experiência vivida. 2ª agora no segundo volume a autora discute
116
submissão ao outro? E quais as formas de impossibilitar o desenvolvimento da
enfrentamento desenvolvidas por ela? autonomia, autoconfiança e condenando‐a
A autora ressalta que não pretende a existir através do sentido dado pelo
encontrar verdades absolutas nem outro.
explicações mágicas sobre a condição Segundo Simone, a “desmama
feminina, entretanto busca descrever precoce” do menino é compensada e
como se desenvolve a situação feminina justificada por uma superioridade
“no estado atual da educação e dos adquirida posteriormente, desta forma o
costumes” (p.7). contexto social nega‐lhe afetos e
superestima o sexo através da figura do
Parte I: Formação pênis, sustentada através de:
Capítulo I – Infância “um sentimento de superioridade, sua
valorização surge, ao contrário, como uma
compensação — inventada pelos adultos e
ardorosamente aceita pela criança — para as
Neste capítulo Simone discute a durezas da última desmama; deste modo, ela
diferença de tratamento dos gêneros se acha defendida contra a saudade de não
ser mais uma criança de peito, de não ser
durante o desenvolvimento infantil, uma menina. Posteriormente, o menino
encarnará em seu sexo sua transcendência e
segundo a autora inicialmente os dois sua soberania orgulhosa” (p.14).
sexos são tratados igualmente, com os
Desta forma é imposto ao menino
mesmos anseios e receios infantis. Em
a autoridade, ele é criado pra ser o homem
síntese a autora afirma que como todo ser
da casa, o senhor de negócios e para
humano “de maneira imediata a criança de
alcançar isso precisa passar pela privação,
peito vive o drama original de todo
assim ele ouve várias vezes “homem não
existente, que é o drama de sua relação
faz birra”, “homem não chora”, “homem
com o Outro.” (p.10).
não brinca de coisas de menina”.
Entretanto ao longo dos anos
A menina, por sua vez, já é
ocorre uma diferenciação no tratamento
estimulada a ser carinhosa, afetuosa,
do menino e da menina, enquanto para o
prendada, para futuramente tornar‐se uma
menino é exigido muito cedo maturidade,
dama respeitável e bonita. A mulher não
e uma contenção nos episódios de birras e
tem nada a oferecer além de sua beleza e
demonstração de afeto. Para as meninas
castidade, portanto para ser uma boa
esse momento se mantém e até se
menina ela precisa obedecer ordens como:
prolonga, o que á primeira vista é
“não discuta”, “comporte‐se como
considerado um privilégio, futuramente se
mocinha”, “não se meta nessas
tornará um ônus no sentido de
brincadeiras agressivas dos meninos”.
117
Assim ela aprende que para ser amada que se quiser fazer história será através de
precisa estar voltado ás necessidades e um erro para ser tomada como exemplo,
satisfação do outro. Simone representa ou através da admiração passiva de sua
esta ideia nos trechos: beleza ou por sua retidão, reputação e
“Todas as crianças tentam compensar a bondade como se observa nas santas.
separação da desmama através de condutas de
sedução e de parada; ao menino obrigam a Neste contexto é possível
ultrapassar essa fase, libertam‐no de seu compreender porque muitas mulheres
narcisismo fixando‐o no pênis; ao passo que a
menina é confirmada na tendência de se tornam‐se obsessivas com a beleza, as
fazer objeto, que é comum a todas as
crianças.” (p.22). princesas e as deusas sempre são
qualificadas como belas e jovens enquanto
“[...] na mulher há, no início, um conflito entre
sua existência autônoma e seu "ser‐outro"; as bruxas são velhas e feias, desta forma
ensinam‐lhe que para agradar é preciso
procurar agradar, fazer‐se objeto; ela deve, beleza por si só basta para conquistar o
portanto, renunciar à sua autonomia. [...]
coração do príncipe.
fecha‐se assim um círculo vicioso, pois quanto
menos exercer sua liberdade para Entretanto quando saímos dos
compreender, apreender e descobrir o mundo
que a cerca, menos encontrará nele recursos, contos para realidade observamos
menos ousará afirmar‐se como sujeito [...]” mulheres anoréxicas, transfiguradas por
(p.23).
produtos químicos, peles esticadas, corpo
Essa situação é reforçada quando
modificado em nome da dita “beleza” que
se estuda a história cultural, observa‐se
nunca chega, ela nunca será bonita ou boa
que no decorrer do tempo desde a
o bastante. Tudo isso não é movido em
mitologia até os dias de hoje se contam a
nome da beleza, mas sim pela obtenção de
os grandes feitos executados pelos
afeto, como uma forma de ser vista
homens. Pode‐se falar exaustivamente da
admirada, ou seja, outra forma de pôr se
coragem dos príncipes encantados, da
como objeto. Como diz Simone:
grandiosidade dos deuses gregos, da
“A suprema necessidade para a mulher é
bravura dos semideuses e da seduzir um coração masculino; mesmo
intrépidas, aventurosas, é a recompensa a que
primogenitura de Adão. E por outro lado a todas as heroínas aspiram; e o mais das vezes
futilidade das deusas, a queimação de não lhes é pedida outra virtude senão a beleza.
Compreende‐se que a preocupação da
bruxas na idade média, a feiura das vilãs aparência física possa tornar‐se para a menina
uma verdadeira obsessão; princesas ou
dos contos de fadas, a passividade das
pastoras é preciso sempre ser bonita para
princesas e por fim. a desgraça trazida por conquistar o amor e a felicidade; a feiúra
associa‐se cruelmente à maldade, e, quando as
Eva e Pandora. desgraças desabam sobre as feias, não se sabe
muito se são seus crimes ou sua feiúra que o
Acarretando assim uma frustração
destino pune [..]” (p.33).
feminina já que não poderá ser grandiosa
De acordo com a autora a mulher é
como eles, e informando a sutilmente a ela
vitima e algoz da sua própria condição, a
118
submissão exige seu preço, mas também artes até sua casa, forçando a mulher se
tem suas compensações, ela ao retirar a identificar a todos os momentos com
liberdade também oferece a fuga da papéis rígidos e pré‐estabelecidos e
responsabilidade quando esta não se adequa a eles sofre.
Como tudo tem seu preço e todo o Retomando o volume 1 do livro,
sacrifício tem sua compensação, para nele Simone consegue desmistificar o
autora aprende a se tornar mulher vítima e argumento biológico que sustenta a
algoz da sua própria condição. Desta inferioridade feminina, no volume 2
forma, a perda da liberdade oferece percebe‐se que além dos impactos trazidos
também a fuga da responsabilidade. Esta pelos argumentos biológicos, os saberes
troca é crucial quando a mulher se fornecidos pela cultura e as relações sociais
encontra num mundo a qual não foi também consolidam o mito da
ensinada a encarar e sem ferramentas para inferioridade feminina, impactando na
sobreviver. Pensando desta forma subjetividade e na interação entre homens
liberdade em troca de segurança pode e mulheres.
parecer um negócio atraente, mas de alto
custo. Nas palavras de Simone: Capítulo II – A Moça
“[...] ao lado da autêntica reivindicação do Ao término da infância inicia‐se
sujeito que quer para si liberdade soberana, há
no existente um desejo inautêntico de demissão uma nova fase: A adolescência, entretanto
e de fuga. São as delícias da passividade que
as duas fases não tem características
pais e educadores, livros e mitos, mulheres e
homens, fazem brilhar aos olhos da menina; rígidas e de certa forma situação de uma
ensinam‐lhe já na primeira infância a
apreciá‐las”(p.39). fase já podem ser encontradas na outra,
mas umas características se tornam mais
“Jogos e sonhos orientam a menina para a
passividade: mas ela é um ser humano antes de frequentes que outras e há ainda o
se tornar uma mulher; e já sabe que aceitar a
si mesma como mulher é demitir‐se e aumento de obrigações morais e sociais.
mutilar‐se; e se a demissão é tentadora, a Quando a autora descreve as duas
mutilação é odiosa.”(p.35).
fases – a infância e a moça – é observável
Em síntese, conclui‐se que desde a que a infância e uma fase marcada de mais
infância a mulher aprende a se colocar e se liberdades e sonhos se quando relacionada
que na maior parte das vezes implica em ainda tem o privilégio da birra infantil, da
Além disso, essa condição é sustentada por ao longo do crescimento é exigido cada vez
119
família esse destino ainda lhe parece mulheres organizarem sozinhas uma longa
viagem, a pé ou de bicicleta, ou dedicar‐se
distante logo não lhe assombra de a um jogo como o de bilhar, de bolas etc.
imediato. Além de uma falta de iniciativa que provém
de sua educação, os costumes tornam‐lhe a
De acordo com a autora, a moça já independência difícil. Se passeiam pelas ruas,
olham‐nas, abordam‐nas.” (p.72).
sente o peso do seu corpo junto com a
proximidade de seu destino, quando “Ela volta à noite para seu lar tomada de um
cansaço colossal e com a cabeça cheia das
criança a menina ainda podia sentir de ocorrências do dia. . . Como é então
recebida? A mãe manda‐a logo fazer alguma
certa forma a autonomia e apropriação do
compra. Há também que terminar as tarefas
corpo, mas depois este corpo começa a se caseiras deixadas em suspenso e cumpre‐lhe
ainda cuidar de sua roupa. É‐lhe impossível
modificar, por exemplo, ocorre o dar atenção a todos os pensamentos íntimos
que continuam a preocupá‐la. Sente‐se
crescimento dos seios e acontece a
infeliz, compara sua situação com a do
menarca. Além disso, as expectativas irmão que não tem deveres a cumprir em
casa e revolta‐se.”(p.71).
sociais aumentam, agora o príncipe
encantado está mais próximo, logo “de Para moça a experimentação, a
uma maneira mais ou menos velada, sua tentativa, a liberdade e ousadia são
juventude consome‐se na espera. Ela
sancionadas coisa que aos rapazes era
aguarda o Homem”(p.66) incentivada. Aprisionada ás regras e aos
Durante o crescimento a diferença costumes dos pais, a jovem procura forma
de tratamento entre os gêneros fica mais
de contornar a situação e adquirir
evidente, a moça cresce vendo os seus
autonomia, na maioria das vezes essa
irmãos de mesma idade se envolvendo em promessa de libertação encontrava‐se no
brigas, saindo com os amigos, poupado dos
casamento. Para Simone o casamento
afazeres domésticos enquanto ela – a
estava além de uma união estável,
mulher – apesar de estudar, ao chegar em segundo ela:
casa vai fazer as atividades domésticas, é “O casamento não é apenas uma carreira
desencorajada a sair, fazer uma viagem e honrosa e menos cansativa do que muitas
outras: só êle permite à mulher atingir a sua
ainda tem que aguentar na rua dignidade social integral e realizar‐se
sexualmente como amante e mãe” (p.67).
passivamente o assédio masculino, já que
o recurso da discussão, da briga e da Para arranjar casamento a moça
defesa é privilégio masculino. Como deve seguir uma série de orientações de
exemplifica a autora: como agradar ao homem, e esses padrões
“Respeitam o esforço que faz o adolescente são lhes dados desde a infância através dos
para se tornar homem e desde logo lhe dão
uma grande liberdade. Da moça exigem que livros, contos e orientações de outras
fique em casa, fiscalizam‐lhe as saídas: não a mulheres, a partir disso podemos observar
encorajam em absoluto a escolher seus
divertimentos, seus prazeres. É raro ver o quanto a mulher precisa se modificar
120
para agradar o outro e quanto a regras do extenuantes sacrifícios feitos para
outro impactam a subjetividade feminina, consegui‐lo e não por afeto ao cônjuge.
logo até numa relação afetiva a liberdade e
espontaneidade feminina põe‐se em Capítulo III – A iniciação sexual
último lugar. As orientações mais comuns Durante a adolescência iniciam‐se
de acordo com a autora são: as primeiras investidas sexuais, com o
“Se desejam esboçar uma amizade, um início da puberdade há modificações
namoro, devem evitar cuidadosamente parecer
tomar a iniciativa; os homens não gostam de orgânicas e consequentemente psíquicas.
mulher‐homem, nem de mulher culta, nem de
Entretanto as condições que os dois
mulher que sabe o que quer: ousadia demais,
cultura, inteligência, caráter, assustam‐nos. [...] gêneros encontram no início da
Ser feminina é mostrar‐se impotente, fútil,
passiva, dócil.” (p.73). sexualidade são diferentes. Para Simone “a
civilização patriarcal votou a mulher à
Portanto a jovem já entra na castidade” (p.112) e a ela é incumbida à
relação afetiva em desvantagem, da obrigação de protegê‐la, de se manter
mesma maneira que se encontra em intocada, até que o outro escolhido por
outros contextos e quando aspectos como seus pais e estranho à ela possa deflorar‐
beleza, mansidão, paciência e submissão lhe.
não lhe são conferidos, na maioria das Da mesma forma como na idade
vezes, acarreta abalos na autoconfiança, média a mulher era responsável pela
autoestima e autoconceito da jovem violência masculina exercida contra ela,
podendo implicar num adoecimento das nos dias atuais esta estrutura ainda se
relações sociais. mantém. Apesar de na maioria das
A expectativa de felicidade situações a escolha do parceiro não ser
colocada no casamento também pode mais feita pelos pais, a mulher ainda se
gerar uma relação destrutiva e uma encontra culpada pela violência contra ela.
dependência social. A mulher depois de Se o marido a espanca foi por que ela fez
casada muitas das vezes tem suas algo para isso, se aparece grávida é por
expectativas frustradas, ela sai do jugo do que ela não se protegeu o suficiente, se
pai para o do marido e ainda precisa morre fazendo um aborto é porque ela foi
executar bem os papéis de esposa, mãe e irresponsável de não aceitar o filho
dona de casa. Em outras situações as indesejado e ainda se estuprada foi ela que
mulheres mesmo quando infelizes no provocou o desejo masculino com suas
casamento hesitam a separação ou roupas curtas.
mantêm o casamento devido aos Entretanto como em todos os
outros contextos, a mulher não foi
121
preparada para lhe dar com sua que perdê‐la fora do casamento legítimo
parece um verdadeiro desastre. A jovem que
sexualidade, até sua sexualidade precisa cede por fraqueza ou surpresa pensa que se
ser despertada pelo outro, ou seja, a acha desonrada. A "noite de núpcias", que
entrega a virgem a um homem que em geral
autonomia feminina com relação a sua ela não escolheu realmente, e que pretende
resumir em algumas horas — ou instantes
sexualidade é vedada. A única ferramenta — toda a iniciação sexual — não é
que possui é a fantasia, a imaginação de tampouco uma experiência fácil. .” (p.118).
fatos e acontecimentos presenciados, ela
Por mais que Simone hesite, ela
sabe que o sexo existe, mas não
acaba reproduzindo estereótipos sociais
compreende ao certo o que é e como é
com relação a mulher, isso se parece com
feito.
os mitos brasileiros com relação ao desejo
E essas fantasias e falta de
das brancas (frias) e das negras (fogosas). A
informação aumentam a dificuldade da
autora reproduz esse estereótipo entre as
mulher exercer de forma plena sua
escandinavas (frias) e espanholas e
sexualidade, sempre cercada de
italianas (fogosas),
representações negativas em torno da
“na necessidade sexual: as escandinavas são
sexualidade, dentre elas, o sexo e a sadias, robustas e frias. As mulheres
"temperamentais" são as que conciliam o
masturbação se associados à sujeira e
langor ao "fogo", como as italianas ou as
imoralidade, a dor sentida na perda da espanholas, isto é, cuja ardente vitalidade se
funde por inteira na carne. Fazer‐se objeto,
virgindade, o risco de engravidar, logo toda fazer‐se passiva não é a mesma coisa do que
ser um objeto passivo: uma mulher amorosa
a sua sexualidade está cercada de riscos
não é nem uma sonsa nem uma morta; há
que não tem consequência exclusivamente nela um impulso que sem cessar se abate e
se renova.” (p.117).
orgânica, mas também moral. De acordo
com Simone, na condição feminina a todo
A crítica colocada à autora é sobre
o momento:
a reprodução de um pensamento
“[...] não basta à jovem deixar fazerem; dócil,
lânguida, ausente, não satisfaz o parceiro nem
colonialista. Da mesma maneira de quando
se satisfaz. É‐lhe solicitada uma participação a mulher branca ao se fazer submissa pode
ativa numa aventura que nem seu corpo virgem
nem sua consciência atopetada de tabus, estar desempenhando um papel ativo, a
proibições, preconceitos, exigências [...]”
mulher italiana ou espanhola ao se fazer
(p.117).
fogosa ou ativa pode estar se colocando na
“incidentes verificados na infância ou na
juventude engendrem nela profundas situação de objeto, pois de acordo com os
resistências; estas são por vezes insuperáveis: o parâmetros sociais a mulher submissa é a
mais das vezes a jovem esforça‐se por
desprezá‐las, mas surgem nela então conflitos ideal para casar, as mulheres fogosas
violentos. Uma educação severa, o medo do
pecado, o sentimento de culpabilidade em
sempre constituíram um outro lugar como
relação à mãe criam barreiras poderosas. A
virgindade é tão valorizada em muitos meios
122
as de amantes ou prostitutas lugares esses Capítulo IV – A lésbica
que para elas se tornam estanques.
A autora discute neste capítulo os
Em síntese, é observado que a
estereótipos em torno das homossexuais,
iniciação sexual feminina é discutida nas
neste capítulo Simone discute a autonomia
instâncias orgânicas, psíquicas e sociais.
do desejo dissociada à anatomia genital.
Enquanto que o homem não é imoral e
Segundo a autora, a homossexualidade é a
nem lhe são impostas sanções sociais
prova de que o desejo não se define
quando perde a virgindade logo cedo, a
unicamente pela genitália, da mesma
mulher já é considerada impura quando
forma como a anatomia não justifica as
não mais virgem, e se o pecado for
discriminações sociais sofridas pelo gênero.
descoberto o sofrimento psíquico é
Logo as questões a discutir nesse
enorme. É interessante que até as
capítulo são: já que a orientação do desejo
prostitutas são embutidas discriminações
não é definida na genitália, quais são os
sociais negativas, enquanto ao homem
fatores que o afetam quando se discute a
(mesmo casado) que frequenta os bordéis
homossexualidade feminina?
a nada é afetado, enquanto quem se expõe
Primeiramente a autora
ao risco e exerce o papel da procura é o
desmistifica a “feminilidade” como
homem.
prerrogativa das mulheres heterossexuais,
Incorreríamos num erro se
ou seja, as características masculinas e
acreditássemos que o modelo como o
femininas não são constitutivas do sujeito,
homem vive é o ideal assim como o que a
mas são de caráter fluido. Nas palavras da
mulher vive é o sofrido, o que
autora:
questionamos aqui é o direito que cada um
“DE BOM GRADO imaginamos a lésbica com
tem de exercer sua própria sexualidade, um chapéu de feltro ríspido, de cabelos curtos e
gravata; sua virilidade seria uma anomalia
assim como a mulher tem o direito de traduzindo um desequilíbrio hormonal. Nada
exercer sua sexualidade sem ser mais errôneo do que essa confusão entre a
invertida e a virago. Há muitas homossexuais
discriminada, o homem da mesma forma, entre as odaliscas, as cortesãs, entre as
mulheres mais deliberadamente ‘femininas’;
deveria ter o direito de se manter virgem inversamente, numerosas mulheres
sem ser taxado de “homossexual”. ‘masculinas’ são heterossexuais.” (p.144).
Acreditamos que um não deve ser tomado A autora posteriormente critica
como medida para o outro, mas o respeito algumas teorias que qualificam a
ás suas escolhas devem ser o parâmetro sexualidade, dentre elas a psicanálise,
de todas as medidas. segundo ela, há teorias de que a
sexualidade masculina é acabada, ao passo
123
que a feminina fica no meio caminho e só a feminina, na qual qualquer “desvio” é
homossexual possuiria uma sexualidade carregada de inautenticidade ou desajuste.
tão “rica” quanto a masculina. Assim, “a O que para a autora só se resume em uma
sexualidade feminina tem uma estrutura tentativa feminina de fazer‐se sujeito, ou
original e a ideia de hierarquizar as libidos até mesmo revoltar‐se contra sua
masculina e feminina é absurda”. Portanto condição. Segundo a autora para os
erotismo é “uma história psicológica em psicanalistas:
que os fatores fisiológicos são envolvidos, “A homossexualidade pode ser para a mulher
uma maneira de fugir de sua condição ou uma
mas que depende da atitude global do maneira de assumi‐la. O grande erro dos
sujeito em face da existência.” (p.145). psicanalistas está em, por conformismo
moralizador, encará‐lo somente como uma
atitude inautêntica.” (p.146)
Apesar das sexualidades não serem
comparadas de forma valorativa, discute‐ De acordo com a autora o grande
afirma que, assim como todas as outras para ser mulher é preciso ter um destino
sem o homem. Nas palavras da autora: feita pelas teorias psicanalíticas é: Por que
“O que dá às mulheres encerradas na as mulheres não aceitam sua condição?
homossexualidade um caráter viril não é sua
Por que elas agem com profunda revolta
vida erótica que ao contrário, as confina num
universo feminino: é o conjunto das se não podem torna‐se marinheiras ou
responsabilidades que elas são obrigadas a
assumir pelo fato de dispensarem homens. Sua esportistas? Enquanto que o
situação é inversa à da cortesã que adquire por questionamento de Simone é anterior a
vezes um espírito viril à força de conviver com
os homens.” (p.144). isso, a problematização é: Por que a
mulher o aceita? O que as tornam
Neste capítulo a autora desfere impotentes ou incapazes de mudar sua
várias críticas ás teorias psicanalíticas em condição?
torno a mulher junto com a sua
Através das teorias são dadas as
feminilidade, de modo geral as teorias
respostas mais óbvias e definitivas “é a sua
psicanalíticas são caracterizadas por um vontade de imitar o homem” desta forma
conformismo com relação a condição
o homem, ou melhor, o falo se torna
124
novamente a medida de todas as coisas, o que é natural para o ser humano feminino
fazer de si uma mulher feminina: não basta
moralizador de todos os comportamentos ser uma heterossexual nem mesmo uma
e o motivo de todas as ações. E isso se mãe, para realizar esse ideal; a "verdadeira
mulher" é um produto artificial que a
torna mais fácil ainda quando se localiza no civilização fabrica, como outrora eram
fabricados castrados.” (p.148).
inconsciente, desta forma a mulher não se
torna apta a discernir suas ações, ela só
Parte II – Situação
está seguindo os passos de uma instância a
Capítulo I – A mulher casada
qual não tem controle.
“Definir a lésbica ‘viril’ pela sua vontade de Neste capítulo, a autora traz o
‘imitar o homem’ é votá‐la à inautenticidade.
Já disse a que ponto os psicanalistas criam casamento e o papel que exerce na história
equívocos aceitando as categorias masculina‐ da mulher, principalmente pelo fato deste
feminina tais como a sociedade atual as
define. Com efeito, o homem representa hoje ser tradicionalmente proposto à mulher e,
o positivo e o neutro, isto é, o masculino e
a partir dele, se definem as condições de
o ser humano, ao passo que a mulher é
unicamente o negativo, a fêmea. Cada vez celibatária, frustrada ou revoltada pela
que ela se conduz como ser humano, declara‐
se que ela se identifica com o vida que lhe é imposta. Dito isto, a autora
macho.”(p.148)
se propõe neste capítulo a analisar a
condição do casamento principalmente a
Logo, a condição feminina
partir da ascensão burguesa.
encontra‐se numa encruzilhada, pois a suas
Devido as evoluções econômicas
ações sempre são justificadas pelo seu
da condição feminina, a instituição do
organismo, ou seja, sua biologia,
casamento também sofrera mudanças:
entretanto quando elas escapam a
vem se tornando uma união consentida de
genitália, quando o desejo se orienta de
duas individualidades distintas, cujas
outra forma, como no caso das lésbicas, a
partes possuem obrigações, o adultério é
explicação se orienta para a “inveja do
considerado renúncia de contrato e o
masculino”. Uma inveja que não se justifica
divórcio já pode ser garantido. Nesta nova
já que sua biologia e fragilidade não lhe
perspectiva do casamento, a mulher deixa
permitem fazer o mesmo ou na mesma
de ter uma função meramente
qualidade que o homem, logo o mais
reprodutora, a gravidez perde o caráter de
saudável é a aceitação passiva de sua
servidão natural e se torna algo assumido
realidade. Em síntese:
voluntariamente. Apesar disso, a autora
“se a levar em consideração os valores para os
quais ela transcende, o que conduz expõe que o casamento sempre se
evidentemente a considerar que ela faz a apresentou de maneira distinta para o
escolha inautêntica de uma atitude subjetiva. O
grande mal‐entendido em que assenta esse homem e para a mulher, pois apesar de
sistema de interpretação está em que se admite
ambos os sexos serem necessários um ao
125
outro, não se apresentava uma relação “benefício” para ambos, porém, como
recíproca uma vez que a igualdade entre os exposto anteriormente, não há igualdade
sexos não existia, pois socialmente o ou simetria entre os dois sexos:
homem é tido como um indivíduo amplo “(...) as jovens, o casamento é o único meio de
se integrarem na coletividade e, se ficam
que exerce ações e funções no coletivo. solteiras, tornam‐se socialmente resíduos. Eis
Retomando o que fora explicado por que as mães sempre procuraram tão
encarniçadamente colocá‐las. Na burguesia do
no volume I de O Segundo Sexo, a autora século passado [XIX] mal as consultavam.
Ofereciam‐nas aos pretendentes eventuais em
apresenta que a mulher sempre esteve "entrevistas" combinadas de antemão.” (p.
ligada à questão da herança e da 167).
126
reprimida, principalmente em sua entre ela e o universo fora da casa,
formação familiar e o casamento enquanto que o universo da esposa se
significava a sua iniciação sexual e seu resume em apenas cuidados domésticos e
primeiro contato com o ato sexual. Tal fato preocupações em atender às necessidades
trazia prejuízos ao emocional e psicológico do marido. A mulher “reina” em seu lar,
da mulher devido ao contato muitas vezes pois somente neste espaço ela se vê e com
brutal e súbito com a sua sexualidade e considerável poder, diferentemente do
com o dever imposto pelo casamento de homem que tem acesso a vários espaços
ter relações sexuais com o seu marido. sociais. Nas palavras da autora: “O fato de
Além disso, a mulher se vê afastada de ter o código suprimido a "obediência"
abruptamente de seu ambiente familiar e dentre seus deveres [do casamento], não
se vê dependente de um homem que mal modifica em nada a situação; esta não
conhece, tornando‐se angustiante a ideia assenta na vontade dos cônjuges e sim na
de se casar. Diante de tais considerações, a própria estrutura da comunidade
autora expõe o caráter paradoxal do conjugai.” (p. 209).
casamento: é instituído por instâncias Para concluir, a autora defende
sociais, econômicas e religiosas, no que o casamento deve ser instituído de
entanto, para que o próprio casamento duas forças autônimas que se esforçam
seja aceito e instituído é exigida a “noite de para se complementarem mutuamente,
núpcias”: perdendo o caráter de abdicação, fuga e
“Mas o princípio do casamento é obsceno remédio no qual fora construído. Para a
porque transforma em direitos e deveres uma
troca que deve basear‐se num impulso autora, esta utopia não é impossível, uma
espontâneo. Ele dá aos corpos, forçando‐os a se vez que tal realidade existe em algumas
apreenderem em sua generalidade, um caráter
instrumental, portanto degradante. O marido relações dentro e fora do casamento, na
congela‐se, muitas vezes, à idéia de que cumpre
um dever, a mulher tem vergonha de se sentir qual ambos são ao mesmo tempo amigos e
entregue a alguém que exerce um direito sobre amantes, sem procurar no outro uma razão
ela.” (p. 191)
exclusiva para viver. Sendo assim, a autora
Sendo assim, a autora expõe que o
expõe que a concepção tradicional do
fato de o casamento não se constituir por
casamento, que esboçada neste capítulo,
uma vontade espontânea de ambas as
ainda sofre modificações, mas ainda se
partes, a infelicidade, a traição, o ciúme
perpetua a opressão diferenciada entre os
exagerado e a excessiva preocupação com
cônjuges. Há mulheres que encontram
a ordem e a limpeza do lar são
autonomia e independência por meio do
experiências que aguardam a mulher. O
trabalho, no entanto este se torna uma
marido é colocado como intermediador
fadiga a mais se relacionado ao casamento
127
devido à maternidade. E é neste posto que Tal risco, principalmente para as
a autora iniciar o próximo capítulo. mulheres pobres, pode parecer muito mais
favorável que se escandalizar socialmente
deve assegurar à mulher autonomia, se de modo mais “terapêutico”. O aborto faz
como esposa a mulher não é indivíduo parte da vida da mulher, não importa sua
completo, ela pode ser realizar apenas condição social. E, pelo fato da
maternidade é exposta como a “vocação mulher, ela tende a se sentir culpada por
natural” da mulher. Sendo assim, segundo realizar o aborto. Para a autora, tal fato é
128
com o marido, as relações construídas com há uma regra de como se vestir, uma vez
a sua família, e as preocupações consigo que a mulher dita com “pudor” não pode
mesma. Devido a estas questões, a mulher expor seu lado sensual e tampouco buscar
pode se alienar ao filho de modo a a atenção dos homens por meio de seus
justificar a sua existência por meio dele, adornos, tal postura é condenada.
assim como pode ser fria e não manifestar Ao sentir‐se admirada pelo modo
seu “instinto materno”. Para a autora, a como está vestida, a mulher busca a
mulher precisa aceitar a condição de valorização de si mesma, busca se realizar,
grávida de modo livre e sinceramente afirma a sua beleza: “Veste‐se para se
desejada, pois: mostrar: mostra‐se para se fazer ser.” (p.
“(...) é preciso que a jovem mulher se encontre 305). Além disso, para se revestir de modo
numa situação psicológica, moral e material
que lhe permita suportar‐lhe o fardo, sem o quê mais atraente, a mulher busca se reunir
as consequências serão desastrosas. É com outras mulheres e expor de modo
criminoso, em particular, aconselhar o filho
como remédio a melancólicas ou neuróticas; elegante sua residência e suas experiências
faz‐se com isso a infelicidade da mulher e da
criança. A mulher equilibrada, sadia, consciente domésticas. Tais reuniões entre mulheres
de suas responsabilidades é a única capaz de se proporcionam a afirmação do universo que
tornar uma "boa mãe".” (p. 290).
lhes é comum, uma vez que o universo dos
Para concluir, a autora afirma que
homens se mostra totalmente oposto.
a mulher transcende o papel doméstico e o
Devido casamento frustrado vivido
materno na civilização moderna, para além
por uma mulher ‐ explicado no capítulo
de uma perspectiva generalizada de “a”
anterior – ela é comumente levada a
esposa, “a” mãe e “a” dona de casa. A
condição do adultério para se sentir
mulher moderna busca ser notada de
firmada e valorizada sexualmente. Quanto
modo singular, e busca esta satisfação por
a isso, a autora declara que:
meio de sua vida social.
“(...) a escolha de um amante é limitada pelas
circunstâncias, mas há nessa relação uma
dimensão de liberdade; casar‐se é uma
Capítulo III – A Vida Social obrigação, ter um amante um luxo; é porque
êle a solicitou que a mulher cede; tem certeza,
A autora expõe que a mulher
senão do amor, ao menos do desejo dêle; não é
buscar se realizar e se afirmar por meio de para obedecer às leis que êle se executa.” (p.
318)
seus adornos, de suas vestimentas. E tais
Além disso, a mulher busca prazer
elementos, segundo a construção social,
de modo diferenciado do homem, ela não
revelam a conduta da mulher que vive na
aceita se deitar com um homem de
sociedade, ou seja, os seus adornos
menores condições que as suas: ela tem o
indicarão se ela é uma mulher solteira,
cuidado de escolher. A mulher pode
casada, uma prostituta etc. Sendo assim,
129
procurar satisfações sexuais, mas não Uma diferença relevante entre a
pretende dar ascendência a um amante de prostituta e a mulher casada se mostra de
baixa condição, por exemplo. Apesar disso, forma que a mulher casada é de certa
o adultério cometido pela mulher é forma respeitada como ser humano, já a
essencialmente mal visto se comparado ao prostituta não tem os mesmos direitos
feito pelo homem na sociedade patriarcal. evidenciando aspectos da escravidão
Para concluir a autora expõe que feminina. A miséria e a falta de trabalho
as amizades, o adultério, os adornos e a são variáveis que colaboram para a escolha
vida mundana são tidos como da profissão de prostituta, de acordo com
divertimentos para a mulher ajudam‐na Parent‐Duchâtelet muitas prostitutas eram
“(...) a suportar seus constrangimentos mas recrutadas entre as domésticas. Pelo fato
não os destroem. São falsas evasões que de as arrumadeiras não terem expectativa
não permitem em absoluto à mulher ser de melhora de vida e serem abusadas no
autenticamente dona de seu destino.” (p. trabalho, muitas vezes lhes cabiam ser
322). amantes de seus patrões e satisfazê‐los
sexualmente.
Capítulo IV‐ Prostitutas e Hetairas Outra estatística é de que a
O casamento teria a prostituição maioria das prostitutas na cidade vieram
como correlativo imediato, de acordo com do campo, defloradas jovens consentido
forma que o marido obriga a esposa à veem como prostitutas e têm dificuldade
castidade, mas não se satisfaz com o de descreverem‐se. Muitas mulheres
prostituta é onde o homem liberta sua meio de aumentar sua renda, há também
turpitude e ao mesmo tempo a renega, e as mulheres que entraram na prostituição
ela sempre será tratada como pária. através da violência de cafetões, onde ela
Economicamente a prostituta se assemelha se vê escravizada e sem possuir autonomia
e a mulher casada tem um contrato com sua condição pois se sentem integradas
130
preocupantes do que sua condição moral e ainda jovem a fecundidade e seu encanto
psicológica, pois são expostas a inúmeras erótico, tais coisas que justificavam
doenças, muitas também engravidam e por socialmente sua existência e sua felicidade.
vezes abortam em condições desumanas, a Com o passar do tempo, a mulher que se
probabilidade de adquirir um vício tóxico sacrificou será mais desnorteada, de forma
também se mostra grande, entre outras que olhará para trás e verá seu quinhão de
problemáticas situacionais as quais elas se tempo esgotado para fazer aquilo que
expõem. desejava de sua vida, ela se apavora com
A prostituta que faz comércio de as estreitas limitações que a vida lhe
sua generalidade tem concorrentes, mas infligiu. Pelo fato de ser mulher, suportou
há bastante trabalho para todas, e mesmo seu destino passivamente,parecendo que
através das suas disputas elas se sentem lhe roubaram suas possibilidades, que
solidárias. A hetaira que procura distinguir‐ escorregou da juventude para a
se é a priori hostil a quem almeja, como maturidade sem ter tomado consciência
ela, um lugar privilegiado. disso.
Por fim, a atitude da hetaira tem As dificuldades da menopausa
analogias com a do aventureiro, pois ela se prolongam‐se em certos casos até a morte,
encontra muitas vezes a meio caminho na mulher que não se conforma em
entre a seriedade e a aventura envelhecer. Despojada de seus atrativos
propriamente dita, visa os valores pelo hábito e o tempo, a esposa tem bem
convencionais, se atribui tanta importância poucas possibilidades de reacender a
a sua glória que, não é somente por poder chama conjugal. A partir do momento em
econômico: procura nisso a apoteose do que a mulher consente em envelhecer sua
seu narcisismo. situação muda, ela torna‐se um ser
diferente, assexuado mas acabado: uma
Capítulo V ‐ Da maturidade à velhice mulher de idade, podendo considerar
A história da mulher, pelo fato de então que a crise da menopausa terminou
se encontrar ainda encerrada em suas por aí.
funções de fêmea, depende muito mais Dessa forma, a mulher que possui
que a do homem de seu destino fisiológico. descendentes começa a investir nos filhos
Todo período da vida feminina é calmo e como uma forma de sobreviver neles. Já
monótono, mas as passagens de um em certos casos, quando a mulher não tem
estágio para o outro são de uma perigosa descendentes e não se interessa pela sua
brutalidade. A mulher é bruscamente posteridade ela tenta algumas vezes criar
despojada de sua feminilidade, perde homólogos. Propõe aos jovens sua ternura
131
maternal, não é somente por hipocrisia respeito, ela não tem domínio, nem sequer
que declara amar seu jovem protegido em pensamento, sobre essa realidade que
como um filho, os sentimentos maternos a cerca. Não somente ela ignora o que seja
inversamente são amorosos. A mãe uma verdadeira ação, capaz de mudar a
envelhecida e a avó reprimem seus desejos face do mundo, mas ainda perde‐se no
dominadores, dissimulam seus rancores e meio desse mundo como no coração de
contentam‐se com o que os filhos uma imensa e confusa nebulosa. Sabe
consentem em lhes dar, mas então não servir‐se mal da lógica masculina.
encontram mais socorro neles, continuam De maneira geral, embora
disponíveis diante do deserto do futuro, reconhecendo, em conjunto, a supremacia
presas da solidão, da saudade e do tédio. dos homens, aceitando‐lhes a autoridade,
Pode acontecer também que adorando‐lhes os ídolos, ela vai contestar‐
certas mulheres se empenhem de corpo e lhes o reinado palmo a palmo, daí o
alma numa empresa e tornem‐se famoso espírito de contradição que
realmente ativas, então não procuram amiúde lhe censuraram, não possuindo um
mais ocupar‐se tão somente, visam certos domínio autônomo, não pode opor
fins, produtoras autônomas, evadem‐se da verdades, valores positivos aos que os
categoria parasitária que aqui homens afirmam, pode, entretanto negá‐
consideramos, porém essa conversão é los. Sua negação é mais ou menos
rara. sistemática segundo a maneira por que
Divertida ou amarga, a sabedoria nela se dosam respeito e rancor. Mas o
da mulher velha permanece ainda fato é que ela conhece todas as falhas do
inteiramente negativa: é contestação, sistema masculino e se apresenta em
acusação, recusa, é estéril. Em seus denunciá‐las.
pensamentos, como em seus atos, a mais
alta forma de liberdade que a mulher Parte III: Justificações
parasita pode conhecer é o desafio estóico Capítulo I ‐ A narcisista
ou a ironia cética. Em nenhuma idade de Pretendeu‐se por vezes que o
sua vida ela consegue ser ao mesmo tempo narcisismo era atitude fundamental de
eficiente e independente. toda mulher, e na realidade, o narcisismo é
um processo de alienação bem definido: o
Capítulo VI ‐ Situação e caráter da mulher eu é posto como um fim absoluto e o
A própria mulher reconhece que o sujeito nele foge de si. Muitas outras
universo em seu conjunto é masculino, o atitudes se encontram na mulher e a
quinhão da mulher é a obediência e o verdade é que as circunstâncias convidam
132
a mulher, mais do que o homem a voltar‐se mulher têm do amor. É somente no amor
para si mesma e a dedicar‐se a seu amor. que a mulher pode harmoniosamente
Se assim pode propor‐se a seus próprios conciliar seu erotismo com seu narcisismo,
desejos, é porque desde a infância se fazer‐se objeto carnal, presa, contradiz o
apresentou a si mesma como um objeto. culto que ela rende a si mesma: parece‐lhe
Rica de seus tesouros que os amplexos lhe gastam e lhe
desconhecidos, marcada por uma estrela emporcalham o corpo ou que lhe
fasta ou nefasta, a mulher toma a seus degradam a alma.
próprios olhos a necessidade dos heróis de A mulher que se submete com
tragédia que um destino governa. Toda sua prazer a caprichos masculinos igualmente
vida se transfigura num drama sagrado. A admira na tirania que se exerce sobre si a
generosidade da narcisista é‐lhe evidência de uma liberdade soberana.
aproveitável: mais do que nos espelhos é Cumpre atentar para o fato de que, se, por
nos olhos admirativos de outrem que ela uma razão qualquer, o prestígio do amante
divisa seu duplo aureolado de glória. arruína‐se, pancadas e exigências se
Muitas mulheres, imbuídas de sentimento tornarão odiosas: só valem como
de sua superioridade, não são entretanto manifestação da divindade do bem‐amado.
capazes de manifestá‐la aos olhos do Neste caso é alegria embriagante sentir‐se
mundo, sua ambição será então utilizar, a presa de uma liberdade estranha: é para
como instrumento, um homem a quem um existente a mais surpreendente
convencerão dos méritos delas, não visam aventura achar‐se criado pela vontade
a valores singulares através de livres diversa e imperiosa do outro, a obediência
projetos, querem anexar valores feitos ao cega é a única possibilidade de mudança
seu eu, voltar‐se‐ão portanto para os que radical que um ser humano pode conhecer.
detêm influência e glória. No dia em que for possível à
mulher amar em sua força, não em sua
Capítulo II ‐ A amorosa fraqueza, não para fugir de si mesma mas
A palavra “amor” não tem o para se encontrar, não para se demitir mas
mesmo sentido para um e outro sexo, para se afirmar, nesse dia o amor tornar‐
Byron disse que o amor é apenas uma se‐á para ela, como para o homem, fonte
ocupação na vida do homem, ao passo que de vida e não perigo mortal. Enquanto isso
é a própria vida da mulher. Em verdade, não acontece, ele resume sob sua forma
não é de uma lei da natureza que se trata, mais patética a maldição que pesa sobre a
é a diferença de suas situações que se mulher mutilada, incapaz de se bastar a si
reflete na concepção que o homem e a mesma. As numerosas mártires do amor
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testemunharam contra a injustiça de um de realiza‐la autenticamente: projetá‐la
destino que lhes propõe, como derradeira mediante uma ação positiva na sociedade
salvação, um inferno estéril. humana.
Capítulo III ‐ A mística Parte IV ‐ O caminho da libertação
Capítulo I ‐ A mulher independente
O amor foi apontado à mulher Foi através do trabalho que a
como sua suprema vocação e, quando o mulher cobriu em grande parte a distancia
dedica a um homem, nele ela procura que a separava do homem, só o trabalho
Deus: se as circunstâncias lhe proíbem o pode assegurar‐lhe uma liberdade
amor humano, se é desiludida ou exigente, concreta. Desde que ela deixa de ser um
é em Deus mesmo que ela escolherá parasita, o sistema baseado em sua
adorar a divindade. A mulher está dependência desmorona, entre o universo
acostumada a viver de joelhos, espera e ela não há mais necessidade de um
normalmente que a sua salvação desça do mediador masculino.
céu onde reinam os homens, eles também Para a mulher casada o salário
estão envoltos em nuvens, é para além dos geralmente representa apenas um
véus de sua presença carnal que sua complemento, para a mulher que já é
majestade se revela. ajudada é o auxilio masculino que se
A mulher busca primeiramente no apresenta como o inessencial, mas nem
amor divino o que a amorosa exige no uma e nem outra adquirem com seu
amor do homem: a apoteose de seu esforço uma dependência total. Porém,
narcisismo, esse olhar soberano, atenta e existe hoje um número assaz grande de
amorosamente fixado nela, é uma privilegiadas que encontram em sua
milagrosa fortuna. É sob a figura do esposo profissão uma autonomia econômica e
que Deus aparece de preferência à mulher, social. São elas que pomos em questão
por vezes ele se mostra em sua glória, quando indagamos das possibilidades da
deslumbrante de brancura e de beleza, mulher e de seu futuro. A mulher que se
dominador, veste‐a com um vestido de liberta economicamente do homem nem
núpcias coroando‐a, tomando‐a pela mão e por isso alcança uma situação moral, social
prometendo‐a uma apoteose celeste. e psicológica idêntica a do homem.
No entanto, a mulher não tem em Assim, é a mulher independente
todo caso domínio sobre o mundo, não se dividida hoje entre seus interesses
evade de sua subjetividade, sua liberdade profissionais e as preocupações de sua
permanece mistificada, só há uma maneira vocação sexual, tem dificuldade em
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encontrar seu equilíbrio, se o assegura é à outro, a reciprocidade de suas relações não
custa de concessões, de sacrifícios, de suprimirá os milagres que engendra a
acrobacias que exigem dela uma perpétua divisão dos seres humanos em duas
tensão. Então muito mais do que nos categorias separadas: o desejo, a posse, o
dados fisiológicos é que cabe procurar a amor, o sonho, a aventura e as palavras
razão do nervosismo, da fragilidade que que nos comovem: dar, conquistar, unir‐se
muitas vezes observam nela. conservarão seus sentidos. Ao contrário, é
quando for abolida a escravidão de uma
CONCLUSÃO metade da humanidade e todo o sistema
Dessa forma, é possível concluir de hipocrisia que implica, que a seção da
que a despeito de lendas, nenhum destino humanidade revelará sua significação
fisiológico impõe ao macho e à fêmea, autêntica e que o casal humano encontrará
como tais, uma eterna hostilidade. A sua forma verdadeira.
humanidade é coisa diferente de uma
espécie: é um devir histórico, define‐se Nota sobre as autoras:
pela maneira pela qual assume a Celete Chaves Barra: graduanda em psicologia pela
Universidade Federal do Pará e pesquisadora do
facticidade natural. A escravização das
Núcleo de Teoria e Pesquisa do Comportamento no
mulheres pelos homens e a desvalorização projeto APRENDE (Atendimento e Pesquisa sobre
da feminilidade foi uma etapa necessária Aprendizagem e Desenvolvimento). E‐mail:
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