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A ESCADARIA JOÃO MANOEL: PROPOSTA DE REVITALIZAÇÃO

DA ÁREA E SEU ENTORNO IMEDIATO

Bibiana Neubarth¹
Mestrado Associado Uniritter/Mackenzie
bibianakfn@gmail.com

Edgar Steffens²
Mestrado Associado Uniritter/Mackenzie
edgar.steffens@gmail.com

Resumo: O artigo busca apresentar estratégias de revitalização da escadaria João Manoel e seu
entorno imediato, situada no centro histórico do município de Porto Alegre. Atualmente a escadaria se
encontra em estado bastante crítico, ociosa e abandonada, tendo seu principal uso, o de levar os
usuários da cidade baixa à cidade alta, subutilizado, em razão da falta de segurança - principalmente
durante a noite - do espaço. O presente artigo irá analisar os aspectos formais e históricos da
escadaria, quais as intenções do seu projeto na época de sua construção, qual era sua relação com a
cidade e seus usuários e como isso acontece nos dias de hoje. A nova proposta de requalificação da
escadaria e seu entorno será embasada em referências teóricas acerca do tema patrimônio
arquitetônico. O objetivo da proposta é devolver esse espaço público, antes essencial e valorizado na
cidade aos usuários, criando espaços dignos de convivência, trazendo vitalidade ao local.
Palavras Chave:​ Escadaria; Revitalização Urbana; Patrimônio; Restauro.

Abstract: This article aims to present strategies for the revitalization of the João Manoel staircase and
its immediate surroundings, located in the historic center of the city of Porto Alegre. Currently, the
staircase is in a very critical, idle and abandoned state, its main use being to take users from the lower
city to the high city, is underused because of the lack of security - especially during the night - of the
space. This article will analyze the formal and historical aspects of the staircase, the intentions of its
design at the time of its construction, what was its relationship with the city and its users and how it
happens nowadays. The new proposal for the requalification of the staircase and its surroundings will
be based on theoretical references about the architectural patrimony theme. The purpose of the
proposal is to return this public space, previously essential and valued in the city to the users, creating
spaces worthy of coexistence, bringing vitality to the place.
Keywords:​ Staircase; Urban Revitalization; Patrimony; Restoration.

1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Mestrado


Associado Uniritter/Mackenzie. Arquiteta e Urbanista formada pela Uniritter, com
especialização em Arquitetura Hospitalar.

2. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Mestrado


Associado Uniritter/Mackenzie. Arquiteto e Urbanista formado pela PUCRS com graduação
sanduíche na Universidade Técnica de Lisboa.
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1. Introdução
Porto Alegre desenvolveu-se às margens do Rio Guaíba, tendo seu centro
histórico ocupado em uma parte de costa onde se conforma uma península. Os
imigrantes portugueses fundadores da cidade seguiram a lógica de estarem
próximos à água potável. A grande diferença de níveis não era um problema para
os portugueses, suas cidades comumente tinham bairros descritos como “bairro
alto” e “cidade baixa” (GASPAR, 1985).
Neste contexto, as ruas se tornavam escadarias quando a declividade
ultrapassava a inclinação máxima a ser percorrida pelas carruagens. A escadaria da
rua João Manoel, projetada pelo arquiteto Christiano de la Paix Gelbert, é uma
conexão entre as ruas Duque de Caxias e Fernando Machado, permeando um
longo e denso quarteirão, concluindo a continuidade da Rua João Manoel e
consolidando o tecido urbano.
A conexão peatonal da ideia original de Christiano de la Paix Gelbert perdeu
seu vigor com o desenvolvimento automotor, a falta de planejamento urbano
delimitando áreas de proteção ao patrimônio histórico, a falência da família Chaves
Barcellos, proprietária dos imóveis do entorno direto à escadaria, e principalmente à
falta de manutenção mínima por parte da prefeitura municipal. Atualmente a
escadaria da rua João Manoel se encontra em estado crítico, com falta de espaços
atrativos para a população.
O artigo propõe um novo arranjo de usos e práticas no entorno imediato,
visando primeiramente a reativação da vitalidade local, e em segundo momento a
restauração da escada e retrofit de imóveis pontuais vizinhos.

2. Breve história da Escadaria João Manoel


Após o desenvolvimento do Plano geral de Melhoramentos e Embelezamento
na gestão do prefeito José Montaury (1897-1924), o centro histórico ainda era alvo
de diversas evoluções em seu tecido urbano, como, por exemplo, a abertura da
avenida Borges de Medeiros e posteriormente o viaduto que conectou novamente a
rua Duque de Caxias sobre a nova avenida.
Já na gestão seguinte, tendo seu responsável o prefeito Alberto Bins, foi
encomendado o projeto para a escadaria, e futuramente sua execução. Em 1928 o
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arquiteto Christiano de la Paix Gelbert apresentou o projeto da conexão peatonal


definitiva, completando assim a última seção da rua João Manoel, conectando a
cidade alta a partir da rua Duque de Caxias à cidade baixa, através da rua Cel.
Fernando Machado.

Figura 1: ​Axonométrica do conjunto de casas de “estruturação” e a escadaria João Manoel.


Fonte: XAVIER, Luiz Merino (2018)

Figura 2: ​Elevação frontal do conjunto de casas de “estruturação” e a escadaria João Manoel.


Fonte: XAVIER, Luiz Merino (2018)

Junto à escada se construiu uma sequência de casas feitas para aluguel,


como ilustram as figuras 1 e 2. Na época de sua construção, as residencias eram
consideradas como um investimento sólido para as famílias com posses. No total
foram nove casas sob autoria do arquiteto Theo Backer e João Knogl e execução de
Theo Wiederspahn. Inicialmente as casas pertenciam a família Chaves Barcellos,
porém, em 1929, foram vendidas para Felisberto Barcelos Ferreira de Azevedo
(ALOISE, 2013).
A família Chaves Barcellos, com o passar dos anos, perdeu todo o poder
econômico que outrora tivera. Seus antigos líderes faleceram e seus espólios
divididos em diversos herdeiros. As heranças foram recheadas de bens de grande
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importância urbanística e arquitetônica, mas, a maioria já se encontrava em estado


avançado de degradação devido à falta de investimentos em suas manutenções.
Os bens arquitetônicos que se encontravam junto à escadaria da rua João
Manoel se encontram, atualmente, em estado crítico, contribuindo para a
subutilização do local como passagem peatonal. Além disso, o desenvolvimento
automotor também foi causa do desuso da escadaria.

Figura 3: ​As três primeiras imagens ilustram a situação atual da escadaria, enquanto a quarta
imagem mostra a rua João Manoel no trecho entre a escadaria e a rua Duque de Caxias.
Fonte: (acervo dos autores)

3.Contexto Teórico
Com o objetivo de estabelecer uma dialética entre a intervenção de
requalificação da escadaria João Manoel e seu entorno imediato, buscamos aplicar
algumas teorias discutidas há anos por estudiosos e profissionais do patrimônio
arquitetônico. Utilizamos como uma das influências teóricas na proposta de
intervenção o arquiteto e historiador italiano Camillo Boito.
Segundo Elias, Boito defende, entre outros pontos, a consolidação das partes
existentes e não a sua reconstrução. Assim como Camillo Boito, o arquiteto italiano
Gustavo Giovannoni também defendia o “Restauro Filológico”. Segundo Kuhl, no
restauro filológico, era dada grande atenção aos aspectos documentais das obras e
às marcas de sua passagem ao longo do tempo, respeitando as várias fases; o
intuito não era, de modo algum, voltar a um suposto estado original. Se houvesse
necessidade de inserir novos elementos, deveriam ser diferenciados da obra em
seu material e características, de modo a não induzir o observador ao engano de
confundir a intervenção com a obra original. Boito acreditava que a prática de
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tentativa para voltar a um suposto estado original, estilo ou estado anterior qualquer,
acarretou a destruição ou deturpação de muitos monumentos históricos.
Outra influência teórica utilizada na proposta de revitalização da escadaria
João Manoel e seu entorno imediato é o historiador austríaco Alois Riegl que,
segundo Kuhl, defendia a ideia de que os monumentos históricos são instrumentos
da memória coletiva e como obras de valor histórico que, mesmo não sendo “obras
de arte”, são sempre obras que possuem uma configuração, uma conformação.
Riegl também afirmava que o culto ao valor da antiguidade age contra a
conservação dos monumentos, ou seja, as propostas do historiador tendiam a se
distanciar da discussão sobre monumentos históricos fundamentada apenas em
considerações histórico-artísticas, como prevalecera até então, passando a
considerar também as formas de recepção, de percepção e de fruição dos
monumentos (Kuhl, 2006).

4.Projeto de Revitalização
Atualmente, apesar da escadaria da rua João Manoel se encontrar em estado
bastante ocioso e abandonado, podemos perceber que existe uma memória afetiva
por parte da população que vive no entorno do espaço. Existem movimentos por
parte da comunidade local em reviver a escadaria e seu entorno, retomando o seu
uso e se apropriando deste cenário urbano.

Figura 4: ​Recorte de manchetes do jornal Zero Hora.


Fonte: (elaborado pelos autores)
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Como proposta de requalificação para a escadaria João Manoel e seu


entorno imediato, criamos um novo programa de uso aos imóveis adjacentes,
exemplificado na figura 5. O caminho peatonal que existe, e está atualmente
bastante abandonado e ocioso, será revitalizado através de um fortalecimento visual
da conexão entre a escadaria e a rua Duque de Caxias. Além disso, foram
estabelecidas diretrizes a serem perseguidas: acessibilidade, vitalidade e inovação.
A primeira ação proposta para o local restringirá o tráfego de veículos no
trecho ainda plano da rua João Manoel, entre a escadaria e a rua Duque de Caxias,
com a instalação de postes hidráulicos, também conhecidos como ​“bollards”
automáticos, permitindo o acesso apenas aos moradores residentes deste trecho.
Segundo Alois Riegl, o culto ao valor da antiguidade age contra a
conservação dos monumentos, ou seja, passa-se a considerar a fruição dos
espaços com caráter histórico. Nesse sentido, a proposta de requalificação da
escadaria e seu entorno imediato também receberá uma intervenção artística sobre
o asfalto, propondo uma revitalização visual do caminho, conectando as duas
pontas da travessia, e, consequentemente, trazendo maior movimento peatonal
para o espaço.

Figura 5: ​Ilustração da proposta de usos.


Fonte: Elaborado pelos autores
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A proposta de requalificação também abrangerá os imóveis vizinhos à


escadaria, trazendo novos usos à eles, gerando novas referências, locais de
encontro e caminhos de fruição. O antigo palacete da família Chaves Barcellos,
marcado em rosa conforme a figura 5, passará por um restauro baseado nas teorias
de Camillo Boito, consolidando as partes preservadas, demonstrando as histórias ali
vividas e, assim, respeitando a passagem do tempo. O palacete terá então um novo
uso, o de sediar a ZISPOA, Zona de Inovação Sustentável de Porto Alegre,
organização não governamental, que se dedica ao fomento da inovação social e
econômica de Porto Alegre. Conforme consta na figura 5, demarcado na cor verde,
o antigo pátio do palacete abrigará um espaço de arte, voltado para a interação
entre os usuários, seguindo a linha da intervenção artística que ocorrerá no trecho
da rua João Manoel entre a escadaria e a rua Duque de Caxias.
Na margem leste da rua, demarcado em azul na figura 5, o grande patamar
herdado do palacete gêmeo que fora demolido anteriormente servirá para abrigar
um café bistrô. Idealizamos a execução como uma pequena edificação em estrutura
leve, metálica, contemporânea e que tenha seu projeto pensado como uma
arquitetura efêmera. O patamar será totalmente revitalizado, inspirado no miradouro
São Pedro de Alcântara em Lisboa, com mesas e jardins.
Abaixo do antigo palacete e seu pátio, está localizado o projeto Morro da
Formiga, demarcado na cor laranja e verde, conforme a figura 5. A proposta do
Morro da Formiga, com curadoria da mesma equipe que vem desenvolvendo o
projeto Vila Flores, reconhecido em instâncias internacionais, como a Bienal de
Veneza, propõe um micro ambiente de renovação para a região. Manteremos,
portanto, as suas propostas de criação de comércio de produtos locais, escola de
fotografia, horta e associação comunitária.
Além disso, existem duas edificações no local, uma casa em estado crítico,
junto ao patamar superior da escadaria, que sofrerá um restauro estrutural,
atendendo as normas atuais de acessibilidade. Já a outra casa, localizada abaixo
da primeira, está em estado bastante deteriorado, restando, atualmente, apenas
suas paredes externas. A proposta para essa casa é a restauração de suas paredes
externas existentes, criando uma nova cobertura metálica, de cunho
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contemporâneo, gerando assim um vão livre, transformando o local em um espaço


de reuniões e eventos.
Por fim, no último terço da escadaria, temos a primeira casa do conjunto de
casas localizado na rua Fernando Machado, sob autoria do arquiteto Theo Backer e
João Knogl e execução de Theo Wiederspahn. A edificação está demarcada em
roxo, conforme a figura 5. A proposta para essa casa consiste em um novo uso
comercial, que irá atrair os usuários. É importante que seja realizado um restauro
cuidadoso dessa edificação, seguindo os preceitos de Boito acerca de restauração.
A questão paisagística da escadaria também foi levada em consideração, e,
como parte da proposta de revitalização da área, propomos que a vegetação
existente, com porte elevado demais para o local, seja suprimida, com o intuito de
trazer mais iluminação para o espaço, substituindo-as por outras, de porte mais
adequado ao programa. Conforme podemos observar em imagens do projeto
original da época de sua construção, é evidente que a vegetação proposta para o
local possuía porte arbustivo, o que traz questionamento sobre a atual situação da
vegetação da escadaria, gerando espaços de extremo sombreamento e umidade ao
local.

Figura 6 e 7: ​Escadaria da rua João Manoel, em 1929, vista da rua Cel. Fernando Machado.
Fonte: A. Bins. Relatório apresentado ao Conselho Municipal em 1929
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5.Considerações Finais
Desenvolvida a partir de referências teóricas acerca do tema patrimônio
histórico, como o arquiteto Camillo Boito e o historiador Alois Riegl, entende-se que
a proposta de melhorias para a escadaria da rua João Manoel e seu entorno
imediato busca gerar uma revitalização do local, mostrando uma grande
potencialidade da escadaria como espaço público, agregando valor não apenas
histórico à região, mas também se mostrando um espaço convidativo para a
população. Alois Riegl defendia a ideia de que a fruição dos monumentos era
essencial, com isso, a escadaria da rua João Manoel passa a ter seu valor histórico
ressignificado a partir do momento em que as pessoas voltam a usufruir desse
espaço, tornando-o essencial para a qualificação de toda sua região. Riegl afirmava
também que os monumentos são instrumentos da memória coletiva, e a proposta
de requalificação da escadaria João Manoel busca justamente a valorização deste
bem histórico e arquitetônico, devolvendo para a população o sentimento de
pertencimento.
Segundo Kuhl (2005), é relevante enfatizar que o estudo do monumento,
conhecê-lo de forma aprofundada, leva ao entendimento, ao respeito e a uma boa
restauração, como dizia Boito. Mas é ainda mais imprescindível recordar que não se
trata apenas de conhecer para bem conservar, mas também, e talvez sobretudo,
como mostram os ensinamentos de Riegl, “conservar para conhecer”.

6.Referências
ALOISE, Júlia Miranda. ​Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
Nova Sede e Revitalização à Duque de Caxias. Porto Alegre. Faculdade de
Arquitetura. UFRGS. 2013.

ANDRADE, Inês El-jaick. ​Construção e desconstrução do conceito de jardim


histórico. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (Online), [s.l.], n.
8, p.138-144, 1 jan. 2008. Universidade de Sao Paulo Sistema Integrado de
Bibliotecas - SIBiUSP. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1984-4506.v0i8p138-144.

BINS, Alberto. ​Relatório apresentado ao Conselho Municipal. Relatório impresso,


Porto Alegre:Officinas Graphicas d'a Federação, 1929.
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CUNHA, Claudia dos Reis e. Alois Riegl e. ​Revista Cpc​, [s.l.], n. 2, p.6-16, 1 out.
2006. Universidade de Sao Paulo Sistema Integrado de Bibliotecas - SIBiUSP.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.1980-4466.v0i2p6-16.

ELIAS, Isis Baldini. ​Aspectos históricos da conservação e restauro de objetos


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EPAHC Instrução de Tombamento da ​Escadaria e Belvedere da Rua Gal. João


Manoel.​ Processo administrativo, Porto Alegre: EPAHC, s.d.

FESTUGATO, Taísa. ​A arquitetura de Christiano de la Paix Gelbert em Porto


Alegre (1925-1953). 2012, 180 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) Programa
de Pesquisa e Pós- Graduação em Arquitetura, Faculdade de Arquitetura,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

GASPAR, Jorge. ​A cidade portuguesa na Idade Média. Aspectos da estrutura


física e desenvolvimento funcional. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal
1985.

KUHL, Beatriz Mugayar. ​História e Ética na Conservação e na Restauração de


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KUHL, Beatriz Mugayar. ​Notas Sobre a Carta de Veneza. A ​ nais do Museu


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WEISS, Marc A.; NASCIMENTO, Luis Felipe. The Rio Grande do Sul leapfrog
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