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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE

CARLOS FREDERICO SILVA DE OLIVEIRA

ANÁLISE SEMIÓTICA DO QUADRINHO GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE

Rio Branco - Acre


2018

1
CARLOS FREDERICO SILVA DE OLIVEIRA

ANÁLISE SEMIÓTICA DO QUADRINHO GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras: Linguagem e
Identidade, da Universidade Federal do Acre,
como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Letras: Linguagem e Identidade.
Área de Concentração: Linguagem e Cultura.
Linha de Pesquisa: Culturas, narrativas e
Identidades, sob a orientação da Professora
Drª. Maria de Jesus Morais.

Rio Branco - Acre


2018
2
CARLOS FREDERICO SILVA DE OLIVEIRA

ANÁLISE SEMIÓTICA DO QUADRINHO GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e


Identidade,da Universidade Federal do Acre, como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Letras: Linguagem e Identidade. Área de Concentração: Linguagem e Cultura.
Linha de Pesquisa: Culturas, Narrativas e Identidades sob a orientação da Professora Drª.
Maria de Jesus Morais.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________
Profª. Drª. Maria de Jesus Morais (Universidade Federal do Acre)
Presidente

_______________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Bento da Silva (Universidade Federal do Acre)
Membro Interno

_______________________________________________________
Profª. Drª. Maria Evany Nascimento (Universidade do Estado do Amazonas)
Membro Externo

Data da defesa e aprovação: 16 de dezembro de 2017


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À Andressa, Débora, Graça e Barbosa,
por existirem e entenderem a forma como posso existir.

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AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa só foi possível graças ao financiamento do Estado brasileiro e o


incentivo à pesquisa através do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e
Identidade. Gostaria de evidenciar o esforço de meus pais Barbosa e Graça em fornecer
mesmo frente às adversidades do dia-a-dia um ensino crítico através do exemplo próprio e do
incentivo à constante busca por conhecimento.
À minha orientadora Maria de Jesus Morais que sempre esteve aberta às propostas que
fiz e igualmente disposta a apontar as falhas metodológicas durante o desenvolvimento da
pesquisa quando ocorriam. Aos professores que a cada aula permitiram trocar conhecimento à
medida que me apresentavam um mundo novo de saberes, obrigado por me ajudarem a trilhar
um caminho com um olhar mais crítico e humano.
À minha irmã, Débora, que despendeu longos diálogos e angústias que nos permitiram
crescer nesses dois anos. Aos amigos e colegas de mestrado que mesmo sem saber, me
ajudam a crescer todos os dias em áreas diferentes.
Além, é claro, da minha esposa, Andressa, que percebeu em mim coisas que eu mesmo
deixara adormecer e fez questão de despertá-las.

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"Acredito que a magia seja arte, e essa arte, seja ela música, escrever, esculpir ou qualquer
outra forma, literalmente, é magia. Arte é, assim como a magia, a ciência de manipular
símbolos, palavras, imagens para executar mudanças em sua consciência... De fato, proferir
um encanto é simplesmente dizê-lo, manipular palavras, para mudar a consciência das
pessoas, e é essa a razão para que eu acredite que o artista ou o escritor é a coisa mais
próxima, no mundo contemporâneo, de um shaman." [tradução minha] *
Alan Moore

[I believe that magic is art, and that art, whether that be music, writing, sculpture, or any
other form, is literally magic. Art is, like magic, the science of manipulating symbols, words,
or images, to achieve changes in consciousness.... Indeed to cast a spell is simply to spell, to
manipulate words, to change people's consciousness, and this is why I believe that an artist or
writer is the closest thing in the contemporary world to a shaman.] (MOORE, Alan.
Apud2011, p. 6, MILLIDGE, G. Spencer.)

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RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo analisar na obra em quadrinhos "Galvez, Imperador do Acre"
publicada pela Secretaria de Cultura do Pará, com o roteiro de Domingos Demasi, ilustrada
por Miguel Imbiriba e adaptada da obra de Márcio Souza no ano de 2004, os recursos
semióticos presentes tanto na forma de expressão dos quadrinhos quanto no conteúdo
veiculado por ela, o que está sendo dito, e que discurso esses recursos propagam,quando
estabelecem uma função sígnica, no intuito de estabelecer uma comunicação com o leitor. O
elemento codificante foi "memória" como postulado por Paul Ricoeur em A memória, a
história, o esquecimento (2007), que foi usado para estabelecer unidades culturais.
Estabeleceu-seuma análise por meio de um modelo derivado do proposto originalmente por
Roland Barthes em A Camara Clara (2015) e norteado pelas teorias criadas por Umberto Eco
em Tratado Geral da Semiótica (1980).Foi possível desenvolver um olhar que buscou
delimitar a carga sígnica presente no universo de mass media, englobando entre outros
segmentos desse meio, os quadrinhos. O objeto de análise teve trechos narrativos
selecionados e estes então foram submetidos às etapas de studium e punctum, sendo que para
compreender a imagem em sua mitologia, como é proposto pela primeira etapa, é preciso que
se individue sememas para que então se possa decodificar seus significados, e a partir desta
carga sígnica extraída, possa-se então inferir uma abdução semiótica na etapa punctum.
Nestas duas etapas foram destacadas as cargas sígnicas presentes no quadrinho, com a
finalidade de entender que unidades semânticas corroboram com a construção de uma história
ou identidade acreana. Assim como foi procurado entender a forma como a linguagem atua,
relacionando-se ao imaginário desenvolvido por discursos oficiais para reforçar o
entendimento de algo.
Palavras-chave: Semiótica, Quadrinhos, Linguagem, Galvez

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ABSTRACT

This research had the objective of analyzing in the comic book "Galvez, Imperador do Acre"
published by the Secretaria de Cultura do Pará, which had a script of Domingos Demasi and
was illustrated by Miguel Imbiriba, also, it‘s adapted from the work of Márcio Souza in the
year of 2004, the semiotic resources present both in the form of expression of comics and in
the content conveyed by it, what is being said, and what discourse these resources propagate,
when they establish a sign function, in order to establish a communication with the reader.
The coding element was "memory" as postulated by Paul Ricoeur in A memória, a história, o
esquecimento (2007), which was used to establish cultural units. An analysis was established
through a model derived from the one originally proposed by Roland Barthes in A Camara
Clara (2015) and guided by the theories created by Umberto Eco in Tratado Geral da
Semiótica (1980). It was possible to develop a look that sought to delimit the signal load
present in the universe of mass media, encompassing among other segments of this medium,
comics. The object of analysis had selected narrative excerpts and these were then submitted
to the stages of studium and punctum, and to understand the image in its mythology, as
proposed by the first step, it is necessary to identify the sememes so that it can then decode its
meanings, and from this extracted sign load, a semiotic abduction can be inferred at the
punctum stage. In these two stages were emphasized the signic charges present in the comic,
in order to understand what semantic units corroborate with the construction of an Acre
history or identity. Trying to understand how the way language acts relating to the imaginary
developed by official discourses to reinforce the understanding of something.

Keywords: Semiotics, Comics, Language, Galvez

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Modelo Semiótico Derivado ...........................................................................29


Figura 2 - Capa da obra Galvez, Imperador do Acre (2004) ...........................................47
Figura 3 - Capa da obra, retas e diagonais ......................................................................49
Figura 4 - Paleta de cores ...............................................................................................52
Figura 5 - Introdução do personagem Galvez ................................................................58
Figura 6 - Introdução do personagem Galvez ................................................................59
Figura 7 – Paleta de cores da noite ..................................................................................60
Figura 8 - Introdução aos anseios de Galvez ..................................................................64
Figura 9 - Introdução aos anseios de Galvez ...................................................................65
Figura 10 - Introdução aos anseios de Galvez .................................................................66
Figura 11 - Detalhe da figura 08 .....................................................................................67
Figura 12 - Detalhe da figura 10 ......................................................................................69
Figura 13 - Galvez monstro de si mesmo ........................................................................71
Figura 14 - Galvez monstro de si mesmo. .......................................................................72
Figura 15 - Galvez monstro de si mesmo ........................................................................73
Figura 16 - Galvez monstro de si mesmo ........................................................................74
Figura 17 - Glória e queda. ..............................................................................................78
Figura 18 - Glória e queda ...............................................................................................79
Figura 19 - Redenção .......................................................................................................83
Figura 20 - Recorte extraído de: Batman o Cavaleiro das Trevas. .................................88
Figura 21 - Recorte extraído de: Desvendando os Quadrinhos.......................................89
Figura 22 - O chamado da aventura ..............................................................................100
Figura 23 - Recorte das figuras 15 e 16. ........................................................................102
Figura 24 - Introdução à Amazônia ...............................................................................103
Figura 25 - Introdução à Amazônia ...............................................................................104
Figura 26 – Amazônia Exótica. .....................................................................................106
Figura 27 - Galvez aceita ir ao Acre ..............................................................................107
Figura 28 – Entrando num Caixão.................................................................................108
Figura 29 – Micro exército ............................................................................................108
Figura 30 – O Apoio do Coronel Paixão. ......................................................................109
Figura 31 – Tomando as terras do Acre ........................................................................110
Figura 32 – Detalhe da figura 18 ...................................................................................111

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................11

CAPÍTULO I - QUADRINHOS: APRENDENDO A LER FUNÇÕES SÍGNICAS .....18


1.1. Olhares sobre os quadrinhos .................................................................................18
1.2. O Caminho Semiótico ...........................................................................................25
1.3. Modelo Semiótico Derivado .................................................................................29

CAPÍTULO II - STUDIUM E PUNCTUM: ESTÉTICA E LINGUAGEM .................43


2.1. Galvez fundador e lugar de Origem, o Centenário do Acre .................................43
2.2. Julgue o livro pela capa.........................................................................................46
2.3. Entrada triunfal e o chamado da aventura .............................................................57
2.4. Introdução dos anseios de Galvez .........................................................................63
2.5. Galvez é o monstro de si .......................................................................................69
2.6. Glória e Queda ......................................................................................................77
2.7. Redenção ...............................................................................................................82

CAPÍTULO III - ANALISANDO FUNÇÕES SÍGNICAS ...........................................86


3.1. Kitsch ....................................................................................................................86
3.2. Midcult ..................................................................................................................90
3.3. Galvez e o Kitsch ..................................................................................................92
3.4. Fisionomia do Mito ...............................................................................................93
3.5. Unidade Cultural malandro ...................................................................................94
3.6. Monomito em Galvez ...........................................................................................98
3.7. Mitificação em Galvez ........................................................................................112
3.8. Acriano Heterodirigido .......................................................................................113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................122

REFERÊNCIAS ............................................................................................................126

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O contato inicial que tive com a imagem pictórica das ilustrações em geral, e de
todos os tipos de quadrinhos, fora muito precoce, muito provavelmente antes até de minha
alfabetização. A partir desse contato, todo o tempo durante meu amadurecimento, buscava me
dedicar ao aperfeiçoamento de técnicas que me permitissem a reprodução das imagens em
questão, investindo em pesquisa anatômica aliada a repetição de desenhos à exaustão. No
momento em que completei o Ensino Médio (2004), já havia me decidido a cursar Artes
Visuais, para poder continuar a desenvolver atividades que me proporcionassem maior
contato com a imagem. Formei-me em Produção Multimídia para Jogos Digitais 1 e cursei
durante alguns anos Desenho Industrial2, sempre com o intuito de reproduzir as imagens e
narrativas que povoavam meu imaginário.
Em 2016, ao entrar no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e
Identidade, em nível de Mestrado, na Universidade Federal do Acre, as discussões acadêmicas
acerca das leituras propostas, permitiram que meu fascínio pela imagem fosse ampliado,
afastando-me até mesmo da representação em si da imagem pictórica, gráfica, fotográfica, e
permitindo-me observar a imagem gerada a partir dos sentidos pelos quais percebemos o
mundo. Com essa observação em mente, meu olhar distancia-se um pouco de minha antiga
vontade de representar fielmente a estética humana, sobretudo anatômica e pretensiosamente
realista. Todavia, me aproxima da representação do ser humano que está presente em tudo o
que este produz como arte, atravessando diversos campos, que não só o quadrinho.
Apontando isso, e dialogando com alguns conceitos de Paul Ricoeur (2007) e, mais
precisamente, direcionado pelo Tratado Geral da Semiótica de Umberto Eco (1980), e pela
obra A Câmara Clara de Roland Barthes (2015), passei a observar o quadrinho de maneira
muito mais cautelosa. Não só com a finalidade de verificar e destrinchar a narrativa visual
tecida na representação impressa em cada quadro, mas à medida que me aproximo da imagem
buscando delimitar o que está dito ali, interesso-me pelos entornos desenhados na
representação (à que se referem contextualmente e que cargas sígnicas são destacáveis nos
enunciados que ali se perpetuam). Entendendo que o quadrinho é aceito como um meio de
entretenimento e que suas narrativas são, na maioria das vezes, estabelecidas como ficção e
talvez por isso o entendimento dos elementos veiculados por esta linguagem não recebam

1
Universidade Estácio de Sá - Praça XI 2008.
2
Idem.
23
DIÁRIO, 2012.
Idem.
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Editora Dargaud, 2004. Disponível em: <https://goo.gl/ftPmMX> Acessado em: 29/09/2017 11
tanta atenção crítica e, a medida que, dentro do que um quadrinho se propõe, existe o objetivo
de comunicar um dado de maneira a se fazer entender, estamos no campo do diálogo entre
linguagem e leitor.
Contudo, a partir do momento que estes dados comunicados através do quadrinho
fazem parte de um imaginário popular necessário para estabelecer comunicação, o que está
sendo propagado através do uso da linguagem quadrinhos?
Quando se produz uma imagem, o que está dito dentro daquela imagem? O que está
em jogo na construção da função sígnica? De que maneira os recursos estéticos se fazem
presentes, não só para significar, mas no intuito de comunicar um dado? O dado que é
veiculado faz parte de um imaginário? Que relações são fundamentadas através do uso/abuso
deste imaginário e por que reaparecem numa obra fictícia? Será que as marcas semânticas
presentes nas imagens têm menor valor quando propagadas numa obra fictícia, ou será que
reforçam valores vigentes no cotidiano? Finalmente, em prol de que age o conjunto de
recursos estético-semióticos observados na história em quadrinhos e com quais discursos a
mesma encontra-se alinhada? O que está presente na linguagem, mas é relevado devido a
estética empregada?
Algo que só é possível entender se aprofundando nas teorias semióticas que
procuram entender as relações sígnicas que se dão por meio do uso da estética na linguagem.
Então, esta pesquisa propôs-se a analisar o quadrinho Galvez, Imperador do Acre. Já houve
outra publicação com um caráter muito mais historiográfico e preciso — no que diz respeito
ao relato histórico. Foi o quadrinho ―Conquista do Acre‖ ilustrado por Hélio Guimarães
Cardoni, em 1986.
Cardoni realizou um recorte temporal sobre a "Revolução Acreana" desde seu
princípio. Contudo, o imenso valor historiográfico fora trabalhado sobre uma narrativa mais
'dura' como a de livros ilustrados, os recursos presentes nos quadrinhos contemporâneos quase
não se fazem perceber na obra, tornando-a menos dinâmica em termos de função sígnica.
Porém, procurando precisar o aspecto histórico desse recorte temporal baseando-se em
Formação Histórica do Acre de Leandro Tocantins (2001). Então procurou-se uma história
em quadrinhos que fizesse uso de recursos pertinentes dos quadrinhos contemporâneos como
o objeto de pesquisa.
Ao se aprofundar nessas questões, a investigação passa a fornecer maiores
desdobramentos à medida que o que se propõe não é algo novo: investigar os pressupostos
dentro da imagem. Pode-se dizer que a imagem nos fornece em caráter lúdico, um prisma da

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realidade à qual faz menção. Entretanto, o dado fornecido de maneira lúdica inserido na
imagem permite que sua carga sígnica seja assimilada pelo público a que ela se direciona.
Entre a equipe desenvolvedora que criou a obra Galvez, Imperador do Acre,
observou-se alguns destaques, como por exemplo, o quadrinista responsável pelas ilustrações,
Miguel Imbiriba3, como é conhecido no Brasil (seu nome completo é Miguel Lalor Imbiriba
Jr.), paraense residente na Europa há quase 20 anos, formado em Artes Plásticas pela UFPA e
que foi docente na mesma instituição até a metade da década de 1990. Simultaneamente,
atuava como artista gráfico. Na Europa, ocupou uma vaga na escola de artes espanhola
Massana, em Barcelona. Em 2016, aos 45 anos, realizou trabalhos para a editora francesa
Dargaud, onde atua até hoje. A estética empregada por Imbiriba é comparada a de grandes
quadrinistas europeus e é muito bem aceita pelo público europeu (segundo veículos de
comunicação especializados em quadrinhos como o Zine Brasil)(RAMOS,2009). Entre os
trabalhos mais conhecidos de Imbiriba está a série Myrkos4.
Outro destaque observado é Domingos Demasi, amazonense que, além de jornalista,
tradutor, é o roteirista da obra. Segundo Gonçalo JR. E Lopes (2007, p. 10), Demasi foi um
dos principais tradutores dos super-heróis da editora Marvel no Brasil. Começou sua trajetória
em 1967, tendo em seu currículo roteiros aclamados, como ―Sítio do Pica-Pau Amarelo‖, a
paródia ―O Trapalhão no Planalto dos Macacos‖ (1976) e vários trabalhos colaborativos para
a revista ―Mad‖. Essas duas figuras estabelecem, portanto, rigor estético tanto no que se refere
aos desenhos, quanto à narrativa textual.
Dito isso, creio ser possível afirmar que as imagens não são ingênuas ou
desinteressadas, elas também tomam parte e atuam para (res)suscitar os enunciados que
carregam, dentro de um imaginário coletivo. Posto que outros autores já trataram a imagem e
o que nelas vigora, nos aprofundaremos em uma troca de saberes onde se possa observar de
que maneira diferentes autores lidaram com esta problemática.
Em suma, as possibilidades acadêmicas proporcionadas pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras: Linguagem e Identidade (PPGLI) apresentaram perspectivas de alguns
pesquisadores que se aprofundaram no estudo da Imagem, como também pretendo fazer, e
outros se distanciaram do que virei a propor de maneira metodológica. Desses, evidencia-se
Guadalupe Justa Delgadillo Torrez (2011),autora da dissertação As Artes Plásticas na Tri-
Fronteira - Bolpebra: O Percurso de Jorge Rivasplata. Nesse trabalho, a autora atesta que
Rivasplata produzira umas de suas telas tendo por base um dos quadrinhos que narram a

3
DIÁRIO, 2012.
4
Editora Dargaud, 2004. Disponível em: <https://goo.gl/ftPmMX> Acessado em: 29/09/2017
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história acreana. Com pesquisa aprofundada nos entornos onde são produzidas estas telas,
Torrez desvela esses dados objetivos e, supostamente, neutros, e nos lista os acontecimentos
por perspectivas distintas: a Guerra del Acre, no Brasil conhecida como Revolução Acreana
— para citar um dos exercícios empregados por Guadalupe Torrez.
Outra autora a abordar a imagem é Roseli Adriani da Silva, que em 2012, em sua
dissertação: As Tirinhas no Livro Didático: Usos e Abusos, propõe uma análise desse gênero
textual, em específico, voltada para o Ensino Médio e seu uso didático. Traça a análise por um
viés teórico diferente do que abordamos, porém, acrescenta em muito o debate sobre as
imagens, os recursos narrativos não-textuais e o modo como dialogam com o leitor. Silva
também utiliza um apanhado de tirinhas como fonte, de maneira a ilustrar seus
questionamentos e como se dá o uso desse material na formação de um leitor crítico. Sua
pesquisa torna possível a medida que aborda na coleção de livros didáticos de Língua
Portuguesa5utilizados no Ensino Médio da Escola Estadual 15 de Junho, situada no município
de Senador Guiomard-AC, um aprofundamento nos métodos até então empregados no uso das
tirinhas que, como verificado em sua pesquisa, eram utilizadas para adornar. Segundo a
autora, sendo as tiras incorporadas como gênero literário apenas em 1990 para a função
didática no Ensino Fundamental, sequer consideravam-nas uma linguagem digna, inclusive de
citação. Seu texto expõe o quanto ainda se lida de maneira preconceituosa com essa
linguagem na medida em que ela é utilizada como apoio literário e não como literatura em si.
Além desses, houve também Jefferson Henrique Cidreira (2013), que abordou de
forma sucinta a imagem em sua dissertação, intitulada: Rádio Difusora Acreana, Jornal
Varadouro e Outras Mídias: Discurso Oficial e Discurso de Resistência na Amazônia
Acreana (1971-1981), que mesmo abrangendo uma vasta gama de representações, também
tange a área da formação de imagens. Devido a isso, esta pesquisa focou nas análises voltadas
para as ilustrações e a conjuntura, de modo a adensar nas observações aqui propostas para
desenvolver uma compreensão maior das imagens.
Ainda por esses caminhos, notou-se a dissertação Arte e Ofício: Exercícios de
Leitura na Pintura de Hélio Melo, de Márcio Bezerra da Costa (2010), que se propôs a fazer
exercícios de leitura da imagem. Assim como na pesquisa de Costa, quando as experiências
de atuação e embasamento teórico sobre imagem pictural tornaram-se pequenas frente às
questões levantadas em debates no espaço acadêmico, surgiram novos horizontes de sentidos
para o que as imagens representam e como elas são concebidas através dos significados.

5
Português Linguagens, dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães.
14
A abordagem que Márcio Bezerra da Costa faz é em muitas partes tangente ao que
me propus fazer, e, embora estejamos amarrados pelo conceito semiótico "em toda a cultura,
assim como nos discursos pictóricos, há significados construídos por arranjos sociais que
podem ser interpretados, o que faz de nosso esforço uma interpretação possível." (COSTA,
2010, p. 15). Dessa maneira, os discursos destes meios nos tornam capazes de nos comunicar
e entender o que é dito, logo, procura-se ir além através da insistência e da pesquisa.
Diante do exposto nos cabe justificar porque trabalhamos com o quadrinho Galvez,
Imperador do Acre.
Este, procura adaptar uma história de Márcio Souza construindo um recorte fictício,
com retalhos da historicidade, o uso dos recursos comuns ao meio dos quadrinhos foi o que
possibilitou a sua escolha como objeto. Galvez, Imperador do Acre, é lançado como uma
história lúdica 'coincidentemente' no ano de 2004 onde aconteciam comemorações alusivas ao
centenário acriano. Embora possa-se afirmar que o quadrinho é esta peça lúdica com
interseções de realidade, procurou-se entender as cargas sígnicas no quadrinho de forma a
traçar os significados que permeiam não só o campo lúdico da memória, mas a forma como
esses significados invadem os dias atuais através do mass media, ou o conjunto de meios de
comunicação que conta, entre outros, com a indústria de entretenimento e consumo tais como
o rádio, jornal, televisão, cinema, literatura, quadrinhos.
Mas de que forma se estabelece tal vínculo? Através do uso recorrente de recursos
imagéticos inseridos na propaganda e dos conteúdos selecionados e veiculados pelo mass
media. A propaganda numa sociedade de consumo estabelece o que deve ser consumido
através da veiculação de conteúdos e formas de expressão, logo, associa os recursos utilizados
e percebidos dentro da esfera de consumo à construção de outros significados. Na construção
de história em quadrinhos é observável o uso de cores e conteúdos para associar valores
desejáveis/possíveis.
Assim, esta pesquisa não se trata de descrever ou interpretar a obra em si, trata-se de
compreendê-la. O objetivo principal residiu em entender como funciona a linguagem de
histórias em quadrinhos como forma de expressão, e como são implementados seus recursos
estético-narrativos. Os objetivos específicos consistiram em procurar entender as nuanças
desta linguagem de forma a evidenciar aquilo que se enquadra dentro das funções sígnicas
presentes na comunicação, entre eles: procurar entender com o quê dialogam as funções
sígnicas presentes no quadrinho, sejam elas relativas às cores, aos vínculos com um discurso

15
oficial ou ao uso de um imaginário popular que reforça o entendimento de alguns estereótipos,
inclusive, identitários.
O problema de pesquisa está relacionado com o fato de que os quadrinhos pertencem
a uma linguagem que faz uso de recursos lúdicos, e o objeto em questão é categorizado como
ficção, algo tido comumente como de menor valor por ser inventado. Entretanto, como foi
verificado, mesmo que se faça uso da ficção, o quadrinho comunica discursos reais.
A metodologia aplicada foi a da pesquisa descritiva e bibliográfica, procurando
traçar a relação entre as variáveis sígnicas presentes no quadrinho e estudos que objetivam
entender como funcionam as relações semióticas na publicidade. O método de análise para
entender a relação entre as variáveis é o qualitativo.
O aporte teórico é embasado nas pesquisas de Umberto Eco, procurando dialogar
com o método criado por Roland Barthes (2015) com a finalidade de propor etapas para a
construção de uma análise — de forma que não fuja ao entendimento do primeiro autor — e o
elemento codificante trata-se da memória, mas a memória que se aborda é aquela obtida e
validada por diversos pesquisadores no campo da semiótica, e que, acabam por contribuir com
a aproximação de significados durante a pesquisa.
Então, estabeleceu-se uma estrutura na qual o texto foi dividido em três partes
essenciais a fim de cumprir seu propósito. Dessa forma, o primeiro capítulo trata, em parte, de
esclarecer o caminho da pesquisa sob os aspectos percorridos até chegar ao programa de
mestrado e, apresenta de uma maneira mais completa, a discussão teórica sob o método
aplicado em todo o trabalho, mostrando a teoria semiótica proposta por Umberto Eco (1980),
que foi utilizada para balizar a pesquisa durante a análise do quadrinho, procurando sempre
estabelecer um chão comum com o leitor para tornar mais ampla a compreensão do texto.
O segundo capítulo procura, através da individuação de aspectos visuais e
semânticos dentro da história em quadrinhos, mostrar que sentidos estão implicados nas
escolhas de cores e conteúdo na construção narrativa. Buscando evidenciar aquilo que Eco
(1980) aponta como o uso de um signo ou função sígnica: "ALGO QUE ESTÁ NO LUGAR
DE OUTRA COISA" (ECO, 1980, p. 11, grifo do autor). Partindo de pesquisas onde se
evidencia que o uso recorrente de algumas cores delimita pedagogicamente o olhar do leitor,
com finalidade de significar um dado (comunicar), e que este uso recorrente que permite
associar significados à cores e conteúdos se faz presente nas comunicações de massa.
No terceiro capítulo, destacamos, a partir das observações realizadas no primeiro e,
principalmente no segundo, o uso específico de recursos presentes na forma de expressão que

16
não caracterizam arte e sim comunicação. A análise desenvolvida procurou evidenciar os
conteúdos que talvez passassem despercebidos nos recortes realizados durante o segundo
capítulo, como a unidade cultural que prepondera ao longo da história em quadrinhos e sua
relação comum no imaginário do leitor, assim como o recurso narrativo em arcos
(sistema/esquema iterativo), que procura coordenar uma experiência através de etapas
narrativas com o intuito de – mesmo que se apresente um algo novo – o leitor esteja inserido
num campo de expectativa do conhecido, e usufrua da experiência a partir da identificação
desse mesmo padrão em outras histórias. Partindo então daquilo que comunica, procurou-se
traçar paralelos dentro de sistemas de repetição que estão comumentente inseridos no mass
media, e que seguem repetindo-se nas construções de saberes. Ademais, procurou-se destacar
que a peça faz uso e pertence a um conjunto de sistemas de comunicação com apelo estético
(logo, não arte), e que ela passa a veicular também o que se pode categorizar propaganda. Por
fim, trata-se de uma propaganda, que conteúdos ela veicula? Estes conteúdos vão sendo
evidenciados ao longo da análise.

17
CAPÍTULO I - QUADRINHOS: APRENDENDO A LER FUNÇÕES SÍGNICAS

No presente capítulo, propõe-se a discussão entre as diversas perspectivas abordadas


por autores de segmentos distintos que contribuem com olhares sobre uma leitura das imagens
e dos quadrinhos. Partiu-se de pesquisadores dentro do espaço regional e estendeu-se a
discussão para autores pioneiros na pesquisa do universo de quadrinhos no Brasil. Buscou-se
destacar as convergências com as abordagens propostas e as dissidências que existem, já que,
sendo o olhar da análise delimitado a partir das escolhas teóricas, estas permitem inclusões e
exigem exclusões de abordagens. Assim, desenvolveu-se um aprofundamento na teoria
semiótica proposta por Umberto Eco (1980) e a delimitação de alguns dos conceitos que
servem de base para que se possa realizar uma leitura semiótica da obra Galvez, Imperador do
Acre.

1.1 Olhares sobre os quadrinhos

A partir das pesquisas citadas na introdução, pude estabelecer paralelos no que diz
respeito ao modo como a imagem vem sendo abordada pelos pesquisadores elencados
anteriormente, de forma que, esta investigação da imagem, que se aprofunda na leitura dos
entornos que a rodeiam, é algo que esta pesquisa tomou como exemplo, assim como a
insistência na observação. As imagens falam sim a medida que provocam nosso imaginário e
a sociedade e cultura em que elas estão inseridas carregam práticas, costumes e saberes que
contribuem para as significações que emergem de suas leituras.
No Brasil, a área de pesquisa em quadrinhos, da qual trata meu objeto de estudo, já
não é tão desconhecido por pesquisadores; há muito, autores vem desbravando este universo,
como Álvaro de Moya (1977), Sonia Luyten (1984), Antonio Luiz Cagnin (2014), entre
outros que permearam esse apanhado de saberes acumulados. Com efeito, me serviram de
ponto de partida, seja para designar elementos estes que investigamos, ou para que, a partir
dos autores, se possa alargar o modo como se propõe a debater a imagem, e apontar que a
definição semiótica à que se faz menção nas páginas por vir é, de maneira menos estreita,
relacionada como a mesma que Lúcia Santaella (1993) nos propõe em seu livro O que é
semiótica:
As linguagens estão no mundo e nós estamos na linguagem. A Semiótica é a
ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou

18
seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e
qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de
sentido. (SANTAELLA, 1993, p. 9).

Álvaro de Moya (1977) nos traz, talvez, uma das primeiras análises dos quadrinhos
em sua obra Shazam!, onde verte através de um olhar que parte quadro a quadro, tratando de
analisar histórias e, página à página, mergulhar no vasto mundo que desencadeia-se na
imaginação, supondo sempre o quadrinho como arte. Moya (1977, p. 18-19) chega a definir o
quadrinho de título O Espírito do autor Will Eisner como "o ponto máximo do
expressionismo, isto é, o predomínio absoluto da sensação, traduzindo a própria personalidade
de artista correlata a cada personagem‖.
Junto a isso, traz a narrativa dos fatos no qual se insere sua trajetória como
desenhista. Diante do anseio de promover os quadrinhos de forma nacional, entre os entraves
e as conquistas que permeiam esse caminho, chegou inclusive a ser taxado de comunista pelos
mais conservadores quando fundara a Associação Paulista de Desenho com a proposta de
nacionalizar (ou priorizar) os quadrinhos nacionais. Também era acusado de ceder aos
avanços da "decadente cultura imperialista" (MOYA, 1977, p. 20).
Nesse sentido, Álvaro de Moya nos traz o olhar daqueles que, fascinados por essa
nova forma de contar histórias que vinha se popularizando, percebem os quadrinhos como um
instrumento ou um segmento da arte, para ser mais preciso, e que precisava ser ocupado
também pelos brasileiros. Durante a ascensão dos quadrinhos na Europa, Moya (1977, p. 23)
destacou que sua alavancada se deu num curta metragem do diretor Alains Resnais, cineasta
francês que se propõe em Tout la memoire du monde (1956) um olhar sobre a Biblioteca
Nacional Francesa. Dentro do filme ele expõe uma coleção de bandes dessinée6, que acabou
por chamar a atenção do então escritor e estudioso de quadrinhos Francis Lacassin. Da
afinidade entre os dois foi criado o Club de Bandes Dessinées, em Paris. Fica claro durante a
fundação do clube que os demais artistas europeus de meios diversos eram assíduos leitores
de quadrinhos, todavia, os últimos permaneciam nas sombras enquanto influenciavam o modo
como se enxergava o mundo e as artes, sem, no entanto, serem considerados tal qual as artes
que influenciavam. Moya nos permite reconsiderar através de sua pesquisa e suas colocações
sobre os quadrinhos o julgamento prévio de que se fez deles considerando-os uma forma de
expressão irrelevante, e consegue nos trazê-los à luz de sua influência nas obras de arte, para
ele:

6
É assim como são conhecidas as obras em quadrinhos na França.
19
os quadrinhos são a forma de comunicação mais instantânea e internacional
de tôdas as formas modernas de contato entre os homens de nosso século.
Mesmo o momento grandioso da história da humanidade, em que o pé do
homem pisou a Lua e foi televisado direta e imediatamente, para o mundo
todo, já era uma imagem gasta e prevista pelos quadrinhos. (MOYA, 1977,
p. 23).

Suas observações nos sugerem o poder imagético dessa forma literária que, apesar de
considerada menor, remete, sobretudo, a referência imediata ao leitor, entregando, a meu ver,
a narrativa impregnada na imagem impressa de cada ilustração não-textual. Na pesquisa
disposta em Shazam!, o autor traça a trajetória de algumas imagens produzidas pela
humanidade durante toda sua história, desde os primórdios, de onde se pintava em cavernas
como forma de comunicação, até os momentos atuais que permitem o desenvolvimento
narrativo-visual.
O autor realiza uma leitura das épocas e os fatos a que estão associados o surgimento
de novas técnicas e estilos que vem a culminar nos quadrinhos tais quais os que conhecemos.
Assim como nos convida a observar a construção tipográfica de acordo com o seu local de
origem, como quando se refere às letras, que são formadas a partir dos objetos que se
procurava representar (MOYA, 1977, p. 29), o que nos leva a dialogar com uma disposição
semiótica do emprego dos signos. Estes só podem se fazer entender dentro da condição social
que permita seu entendimento, propondo a arte como forma de comunicação, talvez a
primeira forma de comunicação entre os humanos, de modo que cada obra de arte tem intuito
de comunicar algo, provocar,dialogar, sendo assim chega a estabelecer a produção da arte
como "um desejo básico do homem‖ (MOYA, 1977, p. 95).
Para finalizar essa síntese de como Álvaro de Moya observa os quadrinhos, faço o
destaque para a forma a que ele se refere a Will Eisner (MOYA, 1977, p. 70-71), como um
gênio da narrativa dos quadrinhos. O mesmo quem possibilitou maior imersão e permitiu
convergir texto e imagem, deslocando os lugares de fala dentro de uma narrativa
supostamente comum. Sua proposta invertia a perspectiva com a qual o olhar do leitor
acompanhava sua história, permitindo uma nova interpretação a cada nova leitura, quanto a
isso, não há do que discordar, inclusive serviu de parâmetro estético a partir daqui.
Na mesma linha de pensamento e construção histórica do surgimento dessa indústria
dos quadrinhos, temos a obra História em Quadrinhos leitura crítica que surge como um
conjunto de publicações reunidas por Sonia M. Bibe Luyten (1984) através do programa de
assessoria de educadores do Serviço à Pastoral da Comunicação das Edições Paulinas -
SEPAC - EP. Neste, se procura traçar o período histórico que contribui para o surgimento

20
dessa indústria no Brasil, assim como na América do Sul, buscando sempre contextualizar os
fatores políticos e a relação entre as indústrias externas (americana) e a interna, sendo a
última, no caso, muito menor e mais fraca. Nessa perspectiva, a autora nos situa o olhar sobre
a produção de um mercado local e, que também nos permite apontar um horizonte comum no
intuito de se elaborar uma nova forma de se pensar o como, e o para o quê dessa linguagem
ainda tão recente.
Atendo nosso olhar a Cagnin, e a grande contribuição que sua obra Os Quadrinhos:
um estudo abrangente da linguagem sequencial: linguagem e semiótica7(2014) nos traz. É
possível observar que o autor tece análises sobre a sintaxe própria dos quadrinhos,
considerando-os como uma nova forma literária, onde busca também estabelecer uma
sistemática e prática analítica desta linguagem, colocando a imagem no centro de suas
pesquisas. Nas primeiras páginas de sua obra ele nos adverte, "a imagem não é aquilo que
representa, não tem a transparência da palavra nem a opacidade do objeto; o meio do caminho
do real e do imaginário, do documento e da ficção, ela fascina e também amedronta."
(CAGNIN, 2014, p. 14).
Essas palavras servem para nos manter atentos para com o olhar à imagem. Os
quadrinhos são comumente tidos como gênero literário inferior ou forma de entretenimento,
barato, desinteressado, e logo não se dá a devida atenção às imagens que são veiculadas
diretamente para o imaginário de quem as lê. Nesse sentido o autor procura estabelecer alguns
pressupostos através de fontes coletadas e uma abordagem que não se contenta a somente
verter uma análise da imagem em si, mas de associá-la ao contexto em que ela está inserida e
destaca que "a mensagem icônica para ser bem recebida, supõe a existência desse contexto"
(CAGNIN, 2014, p.15).
A pesquisa de Cagnin se divide em quatro partes principais, em sua primeira parte,
ele preocupa-se em desenvolver um raciocínio acerca dos elementos que constituem as
histórias em quadrinhos, analisando separadamente seus elementos principais, tal como a
imagem, porém mergulhando nas possibilidades de leituras que ela apresenta. Os ângulos
escolhidos para a construção de uma cena, sempre levando em consideração a perspectiva e o
plano onde ela ocorre. Sua abordagem cobre os estilos de desenho e os textos de apoio, assim
como as funções dos elementos linguísticos e como são apresentados, em formas de balões,
onomatopéias e et cetera.

7
Editada a primeira vez em 1975.
21
As outras partes de sua pesquisa são desdobramentos a partir das bases
fundamentadas desta primeira parte. O autor procura esclarecer que já vivemos o mundo das
imagens (CAGNIN, 2014, p. 28), suas observações dialogam com pensadores tais como
Umberto Eco (2015) e Francis Lacassin (1971). De modo que apesar de seu olhar e sua
análise estarem voltados para o mundo dos quadrinhos, sua pesquisa sugere o poder das
imagens como fator didático, e como são utilizadas para comunicar sem que seja preciso
dizer. Um de seus exemplos é a arte sacra nos vitrais das igrejas e as pinturas da Capela
Sistina. Apesar de também estabelecer suas observações partindo de pressupostos por demais
estruturalistas, muitas vezes dialogando com Ferdinand Saussure (1857-1913) e Charles
Sanders Pierce (1839-1914), entre outros, acredito que muitas de suas observações são
relevantes ainda hoje, e que nos servem de ponto de partida para que adentremos ainda mais o
mundo das imagens tal como é abordada neste trabalho.
Quando se propõe a classificar os tipos ou gêneros literários dentro dos quadrinhos, o
autor estabelece sete perspectivas sob as quais se pode analisar um quadrinho: literárias,
históricas, psicológicas, sociológicas, didáticas, estéticas e publicitárias. Todavia, essa
classificação, a meu ver, não contempla em totalidade as narrativas que busca definir, minha
observação é em virtude da descrição da última categoria:
Publicitárias: a necessidade de persuadir, de criar "imagens de um produto".
Muitas campanhas publicitárias em quadrinhos são dirigidas às crianças, os
melhores receptores das mensagens visuais, que no fundo, dão a decisão de
compra: ver as historinhas da CICA, as da Toddy; "A história do aço", da
Cia. Siderúrgica Nacional; "O imposto de Renda", da Receita Federal e de
tantas que aparecem a cada dia. (CAGNIN, 2014, p. 31).
A questão que discordo aqui é que toda narrativa ou imagem gerada quer algo, deseja
ou serve a um propósito, logo as demais classificações para mim também caem por terra,
porém o objetivo aqui é trabalhar com as definições e a pesquisa do autor de maneira não
excludente, logo, ampliando este campo de visão como trato de apontar. Observado isso, em
sua obra podemos notar a minúcia com qual é abordada a relação entre a língua, como o
verbal e a complexidade de imagens formadas através da imaginação e os sentidos, e a
riqueza representativa das imagens picturais, que buscam representar o real, em uma linha
estreita, talvez capaz de formar um simulacro do objeto que se quer representar, mas também
capaz de sugerir movimentação (CAGNIN, 2014, p. 42).
Cagnin, ao aprofundar-se nas leituras acercada imagem, nos declara que cada
imagem em si, dada sua movimentação ou apesar de seu aspecto estático, nos contempla
narrativa, assim gerando informações sobre um dado apresentado. Este é o tipo de imagem

22
que me estimula observar, não aquela que é gerada só de maneira material ou como algo
sólido, tangível, mas sim esta imagem que é construída através de uma narrativa que implica o
uso dos sentidos de tal forma que sua associação passa ser deslocada por significações outras,
que não limitam-se aos quadros da tirinha, às margens de livros, ao estilo musical ou às telas
do cinema e do audiovisual como um todo, mas voltemos a'Os Quadrinhos.
Na busca pelo significado ou uma interpretação das imagens, Cagnin (2014) revela
os conflitos que Roland Barthes já havia apontado em 1970, sobre a não autonomia da
imagem. E que, apesar de todo o progresso tecnológico, nos encontramos arraigados às suas
regras de construção ao ponto de que não foi possível ainda "à imagem sobrepor-se à fala e à
escrita" (p. 42). Para Antonio Luiz Cagnin, o desenho tem caráter muito mais intencional que
a fotografia (CAGNIN, 2014, p. 47). O autor defende, ao dialogar (discutir) com Barthes, que
não é possível reproduzir tudo que existe através do desenho, mesmo que se queira
representar em uma tira algo específico, intencionalmente, se dispõe aquilo que se quer
mostrar com nitidez, com detalhes, em primeiro plano, em detrimento daquilo que é menos
valoroso para a história que se quer narrar. Desta maneira, se exclui o que se julga irrelevante,
e ao fundo, em desfoque, sem detalhes ou em borrão, se estabelecem a nível de mero
reconhecimento: os detalhes, não esquecidos, porém, menos importantes.
Para ilustrar tal colocação, o autor busca no conceito de gestalt aplicada à filosofia e
a psicologia, modos de, qualitativamente, exemplificar através dos processos pelos quais
funcionam a fisiologia do olhar humano. Nisso, inclui e compara o olhar a uma câmara
fotográfica: para nos afirmar que "o mundo percebido não é idêntico ao mundo real"
(CAGNIN, 2014, p. 53), ao que podemos somar: o real não pode ser descrito tal qual ele
realmente é, ou, em outras palavras, o ato de descrever o mundo dito "real" é o ato de tecer
uma narrativa daquilo que é percebido de maneira individual.
Para além disso, Cagnin (2014) proporciona um vasto leque de estudos acerca das
perspectivas utilizadas na construção da profundidade. E não só para isso, como também para
a disposição dicotômica que permite distinguir, claramente, quem são os heróis e quem são os
vilões. Algo que reflete em como se caracteriza quem é o mocinho, que luta pela justiça e
pelas "boas causas" e por isso aquele que está legitimado a lutar. Este é, corriqueiramente
descrito, por uma anatomia avantajada trajando de cores claras, enquanto o mal é facilmente
reconhecido por carregar elementos visuais comumente tidos como opostos aos já descritos.
Nesse sentido, estamos lidando aqui com a construção de uma galeria imagética, que
não brota por si, do nada, mas que dialoga com o mundo que nos cerca. Um mundo que busca

23
nos emoldurar segundo alguns aspectos permitidos e previsíveis numa lógica universalizante.
Logo, o texto de Cagnin (2014) vai de encontro sem discordar de tal lógica, "a simplicidade
dos desenhos dos quadrinhos e as representações daquelas coisas mais corriqueiras de nossa
experiência quotidiana são destinadas, certamente, a atingir todas as faixas de um repertório
universal." (CAGNIN, 2014, p. 65).
Contudo, mesmo sem discordar desta lógica, seus pressupostos de que a imagem
deve ser lida de acordo com o contexto em que se insere, de maneira intraicônica8,
intericônica9 e extraicônica10, nos permite correlacionar com uma leitura dos entornos da
imagem. Cagnin (2014), tece análises pontuais e nos permite ver, através da sistemática
apresentada e com a qual lida com o universo diverso dos quadrinhos, um vasto mundo de
interpretações, muito mais importante dos pontos de que discordo por parte de suas análises, é
o conjunto de saberes reunidos e correlacionados em sua obra, de maneira que permitiu outros
pesquisadores a investir seu olhar de pesquisa margeando outros saberes.
Mais recentemente, na mesma linha de Cagnin (2014), há o autor dos livros
Desvendando os Quadrinhos (2005) e Reinventando os Quadrinhos (2006), Scott Mcloud,
que trata dos mesmos assuntos do qual já observamos na pesquisa anteriormente citada. O
grande diferencial de McCloud é que ele procura transmitir os saberes com os quais dialogam
estes pesquisadores através do próprio quadrinho, construindo uma ponte que permite ao
leitor mais curioso uma aproximação entre a teoria e o visual estético, já que a discussão é
deslocada para o ambiente onde tornam-se visíveis os métodos aplicáveis.
Posto todas essas pesquisas aqui citadas, não há como ignorar que buscou-se destacar
mesmo com uma ampla gama de ideologias, perspectivas e abordagens metodológicas
distintas entres os autores discutidos, nos possibilitando um leque de olhares sobre o objeto
em questão.
Acerca dos eixos teóricos escolhidos, pode se notar divergências entre os autores e
minhas escolhas teóricas. Todavia, o arranjo teórico desenvolvido por eles é louvável. Além
disso, as pesquisas, na busca de propor uma análise (seja das peças apresentadas, quadro por
quadro, seja na proposta histórica de como foram feitos os arranjos discursivos), permitiram o
surgimento da indústria de quadrinhos no mundo e no Brasil (embora lute para sobreviver no
Brasil). Do mesmo modo, balizam novos rumos para a indústria local, fortalecendo a
produção dos autores e estabelecendo um olhar crítico para essa nova forma literária.
8
CAGNIN, (2014, p. 62). Relacionado ao contexto interno da imagem.
9
CAGNIN, (2014, p. 62). Relacionado ao contexto de imagens que dialogam entre si, comum nos quadrinhos.
10
CAGNIN, (2014, p. 62). Relacionado ao contexto externo da imagem, mas que sem ele torna-se impossível
compreendê-la.
24
Antonio Luiz Cagnin (2014), afirma que destrinchar os métodos amplamente
relacionados às práticas de quadrinho e à narrativa textual com um olhar semiótico, estabelece
com os signos e os elementos um alinhamento capaz de evocar significados. Assim,
aprofunda a noção e compreensão de um quadrinho, seja através da sistematização, ou da
interrogação que pertinentiza em sua obra.
Os autores já mencionados permitiram que fosse construído um leque de saberes, de
onde proponho um ponto de partida.

1.2 O Caminho Semiótico

A partir de trabalhos de ex-alunos do PPGLI, bem como daqueles que contribuíram


com as pesquisas para quadrinhos e imagem de uma forma mais abrangente, caminhou-se
com essas para então estabelecer um ponto de partida. Ao se definir algumas fontes de
estudos prévios, visando compreender de que forma se dá esse tipo de estudo, que se propõe a
pensar a imagem, convém que se estabeleça previamente os olhares através dos quais
passaremos a dialogar.
A imagem é construída a partir de diversos recursos estéticos, que, através de seu uso
recorrente, torna possível tomar o recurso estético pelo 'valor' da imagem. Por exemplo, seria
como determinar o 'valor' do poema,ou tentar quantificar sua riqueza,tão somente, pelo uso
correto de métricas e a alternância de rimas complexamente elaboradas.
Certamente, métricas e rimas podem categorizar um poema, contudo, métricas e
rimas também podem ser inseridas em uma melodia de propaganda com a finalidade de que
esses recursos abrandem a percepção de que, talvez, o destinatário não tenha utilidade para o
objeto que se quer vender, ou então, para convencê-lo que o objeto de venda seja para ele
necessário.
Assim, como faremos para que se possa definir um método de análise das cargas
sígnicas presentes no quadrinho então escolhido? Para responder essa questão buscou-se
embasamento teórico na leitura que mais contempla essas estruturas sígnicas e como se dão
estas relações através de Umberto Eco (1980), em seu Tratado Geral da Semiótica. Entre
diálogo e a crítica que faz a seus predecessores, o autor propõe soluções para as escolas de
semiótica até então, aproximando-se de um olhar que, apesar de distante, assemelha-se ao de
Roland Barthes (2015) em A Câmara Clara.

25
Umberto Eco (1980) defende que "Uma introdução à semiótica geral deverá
reconhecer, estabelecer, respeitar ou ultrapassar tais limites" (Idem, p. 3), e nos propõe a
ultrapassar estes limites, já que segundo o autor, disciplinas como a lingüística desenvolveram
a noção de código. Procurou-se, dessa forma, observar, assim como ele também propõe, "um
conjunto unificado de categorias" sem procurar traduzir termos de maneira metafórica.
Eco toma semiótica por um campo de interesses vasto e que agrupa modelos
diversos, e não como uma disciplina específica. E como campo de interesses, não deve ser
estabelecido como fechado, mas sim como uma biblioteca de modelos que permitam a leitura
de vários códigos, e que, dada a descoberta de outro código não previsto, também possa ser
inserido nesse campo de interesses para que tal qual um bibliotecário se possa acessar esse
tipo de livro (um método decodificador).
Para Eco (1980, p. 6), um sistema de significação só é verificável se houver um
código, que se constitui de entidades presentes e ausentes, como ele mesmo classifica-os, de
forma que, todo sistema de significação é um construto semiótico autônomo, basta que sua
existência material esteja à percepção de um destinatário para que este seja verificado, a partir
de quais critérios possam ser estabelecidos por ele. Já o sistema de comunicação, não
consegue ser estabelecido sem um sistema de significação como condição necessária. Posto
isso, estabelece assim que o campo de interesses semióticos é a significação, ou correlação de
estruturas sígnicas, do qual a comunicação depende, mas o inverso não acontece.
[...] em realidade não foi dito que a semiótica deva levar em consideração
somente sistemas de elementos já correlacionados a significados, mas
qualquer sistema que permita a articulação de elementos sucessivamente
adaptáveis à expressão de significados. (ECO, 1980, p. 4).
Fazendo a crítica à Saussure e Pierce, Eco (1980) estabelece pontos em comum com
os autores, sempre trabalhando de maneira não excludente, e alertando que os autores
peirceanos interessavam-se somente pela comunicação, e a ponderação de Eco durante a
exposição de suas idéias, permite não excluir outras percepções como signos (alguns autores,
o fazem), mas pelo contrário, o de categorizar como signo, qualquer "ALGO QUE ESTÁ NO
LUGAR DE OUTRA COISA" (ECO, 1980, p. 11 destaque do autor), e procurando
estabelecer uma noção menos ingênua de signo, que é a que iremos procurar utilizar daqui em
frente, funções sígnicas — já que o signo não é uma entidade semiótica fixa, e sim um
ambiente onde elementos independentes e de origens e sistemas distintos são associados por
uma correlação codificante.
As funções sígnicas são "forças sociais" (ECO, 1980, p. 56), que veiculam/denotam
uma "unidade cultural" e que, por sua vez, tem elementos característicos correspondentes ao
26
qual, aquele que fala, se refere, e que foi a ele passado através da cultura onde ele vive ou pela
qual foi educado. Existem, também, "unidades interculturais" que veiculam o mesmo
significado mesmo que mudemos os significantes como cão, dog, perro, chien, etc. As
comunidades que estabelecem unidades culturais (ECO, 1980, p. 62) através de uma dada
atividade social findam por fortalecer essas unidades culturais através de práticas sociais, de
tal modo a torná-las mutuamente equivalentes, chamando-as de "postulados semióticos". Em
suas próprias palavras:
Nunca ―vistas‖, mas sempre "usadas" pelo produtor de signos comum, elas
não são usadas, porém vistas por uma teoria dos signos que outra coisa não é
senão a ciência dessa competência continuamente posta em ato mesmo por
quem dela não está consciente. (ECO, 1980, p. 62).
De modo que um postulado semiótico advém de uma comunidade em dada
circunstância, e se torna tal qual (em termos de autonomia) a própria comunidade de onde
originou-se (poderíamos chamá-lo "tradição"?), a partir daí essa unidade cultural de caráter
equivalente passa a afetar sujeitos dessa mesma comunidade, que talvez não tenham tido
contato com as práticas sociais que originaram tais postulados. Da mesma forma com que
somos afetados pelos discursos daqueles que nos governam, ou se quisermos ser mais
específicos, pela memória através da qual se preocupa em nos educar enquanto sociedade,
uma unidade cultural só existe em relação à outra unidade cultural — da mesma maneira em
que elementos de uma, somam ou subtraem elementos desta outra, e vice-versa, tal como
relacionamos enunciados de uma mesma formação discursiva. A fim de entender como se
estabelecem e que relações passam a existir, onde um enunciado/unidade cultural é deslocado
e adquire o caráter que o destaca/complementa/opõe em relação a outro.
E de que forma seria possível dentro do campo semântico e de uma unidade cultural
reforçar visões de mundo, reforçar estruturas, e por fim governar através do domínio desse
campo? De que forma outra senão pela memória, digo a memória e procurando ser
deliberadamente generalista, por quê? Porque existe uma memória construída de mundo e
através da qual somos educados, como já dito, essa memória/história traz consigo outras
memórias mais específicas, tais como as memórias que utilizamos para perceber o mundo,
inclusive através de cores, ou ideias, quase como o que Eco traz em relação à superelevação
do código: através da memória tomamos uma resposta imediata, pulando etapas desse código,
observando seu sinal e respondemos de acordo. Então, é necessário saber, do que lembram
tais coisas.
Dentro da sociedade existem códigos semióticos que permitem que um dado seja
recebido e conotado como fato histórico (ECO, 1980, p. 55), e, portanto, "a Verdade", nesse
27
sentido podemos inferir dialogando com Paul Ricoeur (RICOEUR, 2007, p. 25) que esse
mesmo código busca através da instrumentalização (idem, p. 83) de uma memória que se
constrói do passado, de maneira a fortalecer o modo como se observa e se aceita hoje a
historiografia, formando o que autor chama de memória coletiva. Acredito que é através dessa
memória coletiva — que nos é transmitida de maneira 'fria' e 'objetiva', e a qual procura-se
desvencilhar o fato de também tratar-se de memórias e seleções de indivíduos e grupos sociais
— de que fala-nos Ricoeur (2007).
A isso, pode-se traçar um paralelo com o que Umberto Eco (ECO, 1980, p. 45)
chama de uma superelevação do código, quando tomamos uma atitude ou realizamos uma
resposta pulando etapas de maneira automática, tomando um código por outro, ou se
quisermos, tomando memórias por outras, por esse motivo, a "memória" como postulada por
Paul Ricoeur será nosso elemento codificante, contudo, voltemos a Eco:
A experiência retalha, pois, o contínuo e torna pertinentes algumas unidades,
entendendo outras como puras variantes, [...], portanto, constitui uma
variante facultativa, no comportamento perceptivo cotidiano, individuar um
matiz como azul-claro em vez de azul-escuro. (ECO, 1980, p. 67).
Afim de não entrarmos em uma espécie de hipercodificacão, deixo claro que,
existem diversas nuances e aplicabilidades mesmo que nos debrucemos, por exemplo, sob
uma cor somente, mas dado o caráter deveras complexo de uma hipercodificação do uso das
cores, terei de me ater e nos trazer para um campo mais comum ao designá-las, sem por
demais distinguir seus nuances cromáticos. Um dado código carrega em si mesmo a visão de
mundo que se quer que impere, direcionando o olhar de futuras gerações. De maneira muito
simplória, pode-se observar a atribuição de cores específicas para caracterizar "meninos" e
"meninas" durante a infância como uma pertinentização de um código que rege unidades
semânticas (ECO, 1980, p. 69).
Dessa forma, o Tratado Geral da Semiótica nos ajuda a pensar um conjunto de
regras combinatórias para as quais torna-se possível constatar um certo código. Posto isso, é
preciso lembrar que um código não é só um conjunto de regras combinatórias, mas também,
correlacionais, e a produção sígnica só é possível dada essas correlações que seguem um
sistema, visto que, o objeto proposto para correlacionar os códigos dados é o mundo do
entretenimento, principalmente o imagético, ou comumente referido como mass media, com
vínculos enraizados no campo da memória, desde muito cedo, ainda na infância e seu campo
lúdico.

28
1.3 Modelo Semiótico Derivado

Para Eco, a comunicação acontece num ambiente que é extremamente afetado por
um quadro global, onde as circunstâncias são extra semióticas (tais como condições materiais,
econômicas, biológicas e físicas), mas nem por isso fogem de qualquer fenômeno de produção
sígnica. Portanto, "a semiose vive como fato num mundo de fatos" (ECO, 1980, p. 137), e a
organização semiótica dos códigos que forma estes códigos/estruturas/sistemas não é capaz de
formular e prever todas as circunstâncias onde surgem fenômenos de produção sígnica.
Dessa forma, é impossível que se possa prever todos os novos modelos que a
humanidade possa vir a estabelecer. Dito isto, cabe a quem organiza os códigos, ou em outras
palavras: à semiótica, nomear e descrever essas novas formas de codificar esses fenômenos.
Para esta pesquisa, nos apropriamos do código desenvolvido por Roland Barthes
(2015), mas, utilizando-o somente como etapas de análise, já que o que vigora, são às teorias
apresentadas por Eco (1980). Assim, procurei desenvolver o esquema sob os quais proponho
uma investigação das cargas sígnicas do quadrinho, que segue na figura 01.

Figura 1. Modelo Semiótico Derivado


Fonte: Elaboração do autor desta pesquisa

Roland Barthes, na obra supracitada, em seu exercício de abordagem da fotografia,


finda por elaborar um modelo sob os quais emprega seu olhar, a fim de tecer suas análises.
Tal modelo nos parece muito apropriado para que se faça uso também em outras imagens que
não às dos significantes da fotografia, desde que, tendo em vista as etapas de análise
propostas, nos proporcionam um maior entendimento daquilo que observamos.

29
• Studium: trata-se de uma investigação onde procura-se educar o olhar de quem vê,
de maneira agnóstica, onde mesmo um julgamento pré-estabelecido possa ser contraposto
com a finalidade de compreender o que se observa, e que nos permita galgar com propriedade
o vale das imagens sem que as emudeçamos. O que elas querem? É a primeira pergunta que
fazemos — a depender da imagem, — mas não a última. Através de tal questionamento,
busca-se aprofundar no mito da imagem ali representada, e dialogar com o que está dito e o
conteúdo produzido. Para que se faça perceber os elementos presentes dentro da imagem,
como o proposto por Barthes (2015), é preciso delinear um método de habitar a imagem
mergulhando em sua "mitologia", e dialogando com seu plano de fundo e época. Não é outra,
senão, a lembrança, e como veremos, a lembrança nos permite trafegar pelas imagens, através
da memória e da imaginação.
• Punctum: se através do studium, dialogamos com a imagem como que a
habitássemos, mergulhando em sua época e plano de fundo social, o punctum é o detalhe em
uma cena produzida que tem força metonímica (BARTHES, 2015, p. 44), qual nos atinge e
gera narrativa. Estas duas etapas atuam sempre em copresença em seu sistema de código. Se a
primeira é uma leitura daquilo que permeia a imagem, e de certa forma lhe dá sentido – não
de valor, mas que diz o que é, que lhe traça uma carga sígnica – o segundo, o punctum, a
partir do conhecimento adquirido na etapa de studium, nos remete a um julgamento pessoal, a
partir de detalhes que nos pungem, que nos posicionam em tom de valor positivo ou negativo.
Se o "studium está, em definitivo, sempre codificado, o punctum não." (Idem, p.49), porque
estes detalhes por vezes, nos antevêem, já que ele busca referência em dialogar com o
repertório imagético de quem faz a leitura e, nesse sentido, da lembrança do destinatário, ou
seja, o pesquisador em questão. Barthes nos convida a olhar para si, para o próprio repertório
imagético guardado em memória, com isso, somos convidados a observar as imagens de olhos
fechados, de modo a permitir que seus significados incidam em nossa imaginação, o silêncio
causado pelo fechar dos olhos, permitirá que através de nossas próprias lembranças (e o
punctum) possamos observar o que dizem as imagens: "A subjetividade absoluta só é atingida
em um estado de silêncio" (ibidem, p. 49).
Barthes então estipula essas duas etapas, e é aqui onde determinamos um método sob
o qual possamos "habitar" a mitologia da imagem, como propõe Barthes. Não vejo como se
pode habitar a imagem sem que se faça nela uma análise mais profunda individuando suas
unidades mais pertinentes e as decodificando segundo um teórico como ferramenta de análise
e proposta de um olhar.

30
Umberto Eco (1980) tem duas propostas para se realizar uma análise semiótica:
Teoria dos Códigos e Teoria da Produção Sígnica. O autor diferencia assim, sua teoria dos
códigos como um sistema de constatação das regras pelas quais funcionam um ou mais
códigos; de sua teoria da produção sígnica, que destrincha através do processo pelo qual ela
ocorre. Contudo, ele nos alerta que ―quando os requisitos para a execução de um processo são
socialmente reconhecidos e precedem o próprio processo, então eles devem ser registrados
como regra‖ (ECO, 1980, p. 2), como inserimos aqui, por exemplo: studium e punctum.
Assim como o sistema studium e punctum coexistem para que se proponha uma
análise, também coexistem no Tratado Geral da Semiótica as duas teorias propostas. É por
intermédio delas que vamos "pertinentizar" elementos imagéticos para que possamos assim
permear nosso entendimento das imagens selecionadas, como sugere o studium de Barthes.
Tal qual para o studium, também o será para o punctum, a meu ver, mais importante até na
análise, já que, é onde o estranhamento causado pela imagem contribui para a seleção ou a
inferência sobre ela, pois o punctum por vezes acontece não como pré-estabelecido, mas sim,
ao simples contato, antes de sequer entender do que se trata imagem, somos pungidos, algo
nos causa espécie e nos para o olhar, e as imagens ou sequência de imagens selecionadas na
obra serão escolhidas com esse caráter proposto.
O punctum, também por se tratar de um dado posicionamento acerca da imagem, e
como já dito, a partir de um próprio repertório imagético daquele que realiza a leitura, adéqua-
se à abordagem semiótica proposta para o trabalho, já que poderia ser categorizado como uma
abordagem comum, tal qual a da inferência semiótica.
Em sua teoria dos códigos, Umberto Eco (ECO, 1980, p. 118-119) esclarece como se
dá a interpretação, em sentido de decodificação, e não como se refere em hermenêutica,
seguindo uma lógica que faz uso semelhante a 'abdução' semiótica peirciana. Trata-se de
avaliar os dados de maneira a destacar de uma regra geral um caso idiossincrático, e produzir
sobre ele uma inferência, uma produção sígnica. Tal produção sígnica pode ser análoga ao uso
de punctum realizado por Barthes (BARTHES, 2015, p. 44).
Definido o método, que elementos categóricos da imagem serão pertinentizados?
Tomo como exemplo mais próximo de decodificação, os ensaios e propostas de análise
semiótica levantados por Umberto Eco, em Apocalípticos e Integrados (2015), onde Eco faz
uma análise e exercício de um conjunto de formas de expressões a qual categoriza mass
media, ou cultura de massa, entre os quais encontra-se o quadrinho.

31
Quando nos deparamos com uma narrativa visual, e ela nos causa simpatia, esse fato
não se dá por uma simples sensação evocada por aquilo que é visto, mas sim, pelo fato de um
dado elemento estabelecer uma função sígnica, e pelo que ela nos comunica em diversos
níveis, por meio de uma "função hieróglifica" (ECO, 2015, p.131) como Eco se refere, vários
elementos que remetem a padrões visuais previamente formados e conhecidos, colocados
deliberadamente para causar tal simpatia.
Eco deixa claro que procura destrinchar a linguagem dos quadrinhos como alguém
que apresenta a profundidade em que eles dialogam com o leitor. Contudo, ele esclarece que
para alguém já educado por estas imagens e o modo como elas se relacionam, mesmo que não
saiba decodificá-las, como ele o faz, a linguagem é recebida de forma completa.
Já que, ao analisar o surgimento de quadrinhos como um código abstrato e
estruturado sob as mesmas regras, Eco (Idem, p.159) nos aponta a forma como o mass media
funciona, desenvolvendo um condicionamento metodológico de suas funções (na história em
quadrinhos: sua linguagem como forma de contar histórias), e quanto mais estas funções são
difundidas e estabelecidas, ou em outras palavras, quanto mais pessoas estiverem cientes
desse código e o puderem ler, maior seria a possibilidade de que pudessem consumir tal
produto. Produto este, fundamentalmente construído por um código imagético mnemônico, e
sob qual procura-se estabelecer um dado comum.
"A única ajuda mnemônica que o leitor pode receber provém então do emprego de
padrões reconhecíveis." (Ibidem, p. 157). O quadrinho surge como derivação parasitária
(ECO, 2015, p. 153) de outras formas de expressão, não é um recurso novo, e é observável
dentro da semiótica na categoria de réplica. Quando um dado elemento ou conteúdo é
utilizado em uma nova forma de expressão, ou quando um dado continuum material é
manipulado e associado a um conteúdo antes não usado de tal forma, chama-se de Invenção
(ECO, 1980, p. 208) e por vezes institui uma nova forma de expressão.
Apesar de apontar como o quadrinho segue através de uma derivação parasitária do
cinema, em relação aos padrões que aplica à escolha de atores/personagens/características
narrativas, enfim, a uma gama de possibilidades, fica aparente que isto é somente um ponto de
partida mnemônico, e que a expressão quadrinho não estagna em nenhum desses pontos. À
medida que o quadrinho procura assumir traços estilizados, e propriedades coesas (com a
finalidade de aprofundar essa estilização), tornando-o quase um "hieróglifo" de um vasto
código de imagens, ampliam-se as possibilidades da fonte de derivação, tornando-o

32
independente de seus correlatos — onde se originaram os estilemas (fragmentos estilísticos)
—, tais como o cinema, ou as artes plásticas, por exemplo.
Uma das "regras" dos quadrinhos são as chamadas leis de montagem (ECO, 2015, p.
147), que apontam que, por mais que se faça alusão à mecânica cinematográfica, é seguro
dizer que o continuum material dos quadrinhos não se move e que eles montam as cenas de
uma maneira inteiramente diferente. Ao considerarmos somente o caráter visual do cinema,
recortando seu áudio, por exemplo, só restam imagens justapostas a uma velocidade de 24
frames ou quadros por segundo, no mínimo, para que o olho humano possa "enxergar"
movimentação. O quadrinho, por outro lado, faz uso da lacuna (que é chamada pelos
quadrinistas de sarjeta) em um jogo de ausência e presença de imagens. Entre um quadro e
outro, justapostos, nasce o movimento, através da imaginação, a lembrança, ou, se quisermos,
a imagem como continuum virtual (ECO, 2015, p. 147).
Ao realizarmos a leitura de um quadrinho, nossa imaginação, que já fora toda
conduzida e delimitada dentro de uma lógica imagética, nos permite não só passear entre
imagens separadas, mas também compreender a gramática de enquadramento em que está
inserida a imagem. Mesmo que exista ruptura clara de uma ilustração para outra, a leitura dos
quadros continua através da imagem que eles evocam de uma aprendizagem "condicionada"
(RICOEUR, 2007, p. 74) pela memória. Segundo Eco:
Sobre a eficácia comunicativa desse continuum virtual, deteve-se Evelin
Sullerot ao analisar a estrutura de fotonovela. Numa pesquisa de opinião
feita sobre a capacidade de memorização de uma fotonovela, tornou-se
patente que as leitoras submetidas ao teste recordavam várias cenas que de
fato não existiam na página, mas resultavam subentendidas pela justaposição
de suas fotografias. (ECO, p. 147, 2015).
O preenchimento de lacunas através da memória é o que se chama, na animação
recente, de interpolação. Ela é utilizada como um método de animação onde duas imagens
produzidas por softwares de modelagem tridimensional, posicionadas em locais subsequentes
numa linha de tempo constroem movimento, tal qual uma interpolação de imagens conduzidas
pela mente, assim como acontece quando preenche-se as lacunas entre os quadros justapostos
do quadrinho. Assim que assentadas em uma "linha de tempo", digamos que em um dado
minuto, 0' por exemplo, exista uma esfera que encontra-se suspensa do chão, e no minuto 2',
tal esfera encontra-se no chão. Interpolar uma imagem do minuto 0' ao minuto 2' é construir
(nesse caso, não pela imaginação humana) o movimento que se dá entre estes dois pontos
numa linha temporal.

33
A imaginação humana, como nos sugere Eco (2015), opera também de tal forma, à
medida que temos dois pontos a serem ligados por algo factual. No caso dos quadrinhos, as
imagens por qual operam os significados transitam entre mais áreas além do universo dos
quadrinhos, logo, nossa subjetividade é capaz de produzir tal interpolação de significados para
que duas imagens distintas, porém justapostas por um intervalo, possam ser realocadas e
significadas para construir uma outra imagem na memória.
Em sua leitura do quadrinho Steve Canyon, Eco individua também a figura dos
personagens, para que se possa destacar aspectos estéticos que permitam guiar o destinatário,
e nos apresenta então, um conceito que ele chama de estilização psicológica (ECO, 2015, p.
140), qual se refere ao caráter e a índole do personagem em cena, o autor não verte muito
sobre isso, todavia, nos permite aqui ponderar alguns pontos notadamente comuns na
linguagem dos quadrinhos.
Como já tocamos nesse assunto, o desenho deliberadamente faz escolhas e nos traz
uma realidade composta através da representação do desenhista/autor/etc., não há meio para
que tal criação fuja da percepção que se quer mostrar. A estilização psicológica do
personagem é construída e alicerçada sobre um dado comum, que podemos chamar de
repertório de imagens, pelas quais somos educados ao longo dos anos e que passam a nos
guiar. A esse tipo de estilização podemos citar, por exemplo, uma passagem do documentário,
Do papel para a tela: a história e cultura do anime11 onde, ao explicar o desenvolvimento da
indústria de animação japonesa e a intenção com a qual ela fora construída, no sentido de
direcionar seu apelo comercial (ao mercado americano), Charles Solomon (Crítico e
Historiador de animação) atesta que, "se um personagem tem olhos grandes e expressivos, ele
ou ela provavelmente está no lado dos mocinhos, e se, por outro lado, tiverem olhos
pequenos, eles estão do lado ruim, porque não são tão sensíveis", ilustrando assim os intuitos
ao se desenhar um personagem, trazendo-nos um exemplo da forma de utilização das
referências e das características dos personagens em favor ou desfavor da narrativa que se
deseja.
O olhar dos personagens remete à índole que se deseja passar deles, olhos grandes
permitem maior expressividade, logo, são associados com uma gama maior de representações
emotivas, variando do bondoso, destemido e/ou furioso, mas sempre ligados à figura do
herói/mocinho. Já o olhar daqueles que encontram-se localizados sob a alcunha de vilão, são
"frios", de olhos pequenos e capazes de expressar poucas expressões além do ódio.

11
13'35‖ a 13'48".
34
Grosso modo, Eco realiza uma análise da expressão de arte "quadrinho", esmiuçando
sua sintaxe, entre a narrativa sequencial observada até a geração sígnica de um "conteúdo" (a
delimitação de uma ideia). O olhar que Eco propõe individua figuras, narrativas e conteúdo. A
proposta que encaminho ao longo das individuações observadas por Eco, é também a de uma
possível análise sígnica das cores como unidade semântica, isto é, de que modo seus sentidos
contribuem e corroboram uma dada carga sígnica dentro da história.
Sobretudo é preciso reconhecer que qualquer código é passível de ser subvertido pelo
indivíduo que o presencie, é algo que faz parte do processo semiológico e configura papel
importante para o aprimoramento e o entendimento do modo pelo qual os processos de
correlação de estruturas sígnicas se dão. Contudo, para que se torne possível uma análise dos
sememas, no intuito de se delimitar um dado semiótico, procurou-se referir às conclusões e
inferências como cargas sígnicas, pois são realizadas por intermédio de uma série de seleções
de outras pesquisas semióticas de coleta de dados empíricos, e é claro que, se os fatores (que
mudam sempre, assim que coletados) permanecessem tal qual, seria ainda arriscado (quando
não, impossível) estabelecer "o" sentido, "o" significado, ou mesmo "a" verdade. Tendo isso
em mente, é possível então delimitar cargas sígnicas que se fazem preponderantes na obra
Galvez, Imperador do Acre.
Dessa forma, o elemento codificante qual foi estabelecido e através do qual
procurou-se evidenciar a carga sígnica durante a análise semiótica, foi a memória. Mas o que
é memória? Agora exposto alguns dos conceitos com os quais trabalhamos, cabe então
levantar o questionamento, por exemplo, do que são as unidades culturais? O que são essas
forças sociais? O que são os funtivos? — como já dito anteriormente, neste texto. Eco (1980),
estabelece que signos funcionam como funções sígnicas e, portanto, devem ser observados tal
qual. Funtivos são unidades fundadoras, unidades de carga sígnica que permitem, dada as
circunstâncias e o contexto de um destinatário, realizar a correlação entre os funtivos que ele
carrega em si e os estabelecidos em dada obra pelo emissor de maneira cônscia ou não, pelos
quais a correlação nos dá a noção de signo. Funtivos, em outras palavras, fundam
significados. Acontece, como já fora observado, que os significados são transmitidos, entre
outras formas, através de unidades semânticas. Estas unidades carregam sememas muitas
vezes vagos, ou o que podemos chamar de "hipocodificados". Entretanto, qual a forma de se
transmitir uma carga sígnica, um semema, para se estabelecer uma unidade cultural, uma
unidade semântica, se não por intermédio da memória?

35
Aqui procuraremos lidar com "memória", como postulado por Paul Ricoeur em sua
obra A memória, a história, o esquecimento (2007), onde desenvolve uma pesquisa
fenomenológica acerca da dissociação dos processos mnemônicos, ao longo do tempo-espaço,
de forma a diminuir uma categoria de memória atribuindo a ela um caráter fictício, e a
instituir uma outra, mais fria e objetiva, como Verdade.
Assim, Ricoeur (2007, p.25), nos propõe que a imagem formada pelos sentidos na
memória está intrinsecamente ligada à imaginação, de modo que, não se pode evocar uma,
sem também evocar a outra, e trata de esclarecer que a memória está presente na imagem que
se constrói de um passado e é transmitida na educação e na formação de uma imagem que se
tem de um passado, com a finalidade de definir um conceito de tempo como duração, como
"continuação da existência". Mas, se não se pode evocar memória sem a imaginação, seu
apontamento nos norteia para, como o processo de imaginação pode vir a capturar uma
temporalidade, no sentido de transmitir uma realidade anterior?
Para que uma história seja contada e entendida, ela dialoga com aquilo que o leitor já
conhece e entende, mesmo que de maneira rasa, ela debruça-se sobre um campo comum onde
pode construir uma trama narrativa. Contudo, é preciso questionar de que tipo de repertório
imagético se assimilam dadas histórias. E, por repertório imagético, quero dizer, que tipo de
imagens relacionadas aos sentidos nos permitem associar seus significados com valores, e
questionamentos estéticos. Por que ao ver uma representação do ser humano com altura entre
1,80 e 2 metros de altura, forte e dentro dos padrões convencionais de beleza ou aquilo que
Eco (1980, p. 229-232) rotula como idioleto estético, o associamos imediatamente a figura do
herói das histórias em quadrinhos contemporâneas? Onde adquirimos esse tipo de julgamento
que nos permite discernir que este e não aquele, magro, frio e envolto em tons sombrios é o
herói? Onde apreendemos significados antes de aprendermos os significados?
Muito embora a ficção seja ainda comumente tida como imbuída de neutralidade,
Ricoeur (2007, p. 65) nos convida através de sua pesquisa a desmontar tal entendimento que
visa regular a ficção — entendida aqui como um produto do campo da memória — como
neutro, atribuindo à suas características fantásticas, um juízo menor de valor. Os processos
dos quais se vale para a construção da imagem de um passado, ou como já disse
anteriormente, um dado "verídico", são os mesmos. Segundo Ricoeur, "a escrita da história
partilha, dessa forma, das aventuras da composição em imagens da lembrança sob a égide da
função ostensiva da imaginação" (RICOEUR, 2007, p. 70). Portanto, não existe maneira em
que se possa particularizar àquilo de que se tem lembrança daquele que lembra.

36
A imaginação é o instrumento criativo mais poderoso do ser humano, através do qual
se desenvolve toda e qualquer imagem que venha a ser consumida, de modo que, não existe
meio de fabricar qualquer sorte de variedade que escape aos processos produtores de imagem
desse instrumento. Contudo, a imaginação, como Ricoeur nos esclarece, vem a ser dissociada
da memória, sempre buscando legitimar um tipo de narrativa. Assim, procurou-se repartir
uma suposta narrativa oficial, "sóbria", que buscasse "friamente" relatar eventos e
acontecimentos do espaço tempo dos homens, tecendo uma realidade de uma maneira a se
educar a sociedade com uma noção de continuidade na qual todos estão inseridos, e ademais,
produzindo um significado que sugere que os meios pelos quais são produzidas essas
imagens, estabelecidas como verdadeiras, fossem algo oposto de como são tecidas as fábulas
mais fantásticas da ficção, e pela qual também somos norteados.
Fica então evidente, segundo a abordagem de Ricoeur, como cada algo que nos é
transmitido é a tentativa de, a partir da memória, capturar um "real" e transmiti-lo de maneira
imaginada. Estes questionamentos me permitem perguntar, qual o motivo de quando entramos
em contato com algumas obras, sejam de entretenimento, de caráter lúdico, em quadrinhos ou
em jogos de videogame, ou de qualquer maneira inseridas nos liames do mass media, como
tratado por Eco, estas buscam apresentar-se de maneira neutra, desinteressada ou autônoma,
quando na verdade não o são, não podem ser, e talvez por isso a crítica seja necessária.
Existe necessidade de que apontemos também, como Ricoeur nos adverte, que
quando lidamos com significados aprendidos através das imagens e memória, e mais
precisamente da memorização, não estamos rememorando um dado. "Com a rememoração,
enfatiza-se o retorno à consciência despertada de um acontecimento" (RICOEUR, 2007,
p.73), onde o traço pelo qual opera a memória é a recordação dos dados, aos quais se é
submetido por meio de uma imagem prévia que se fez dele, enquanto a memorização se trata
de um processo pelo qual não se permite uma realocação do que é transmitido, no sentido que,
existe um dado fixo (valores fixos) acerca de algo, capaz de ser acessado de modo fácil, em
outras palavras, é um campo da recordação em que o reconhecimento da imagem e os valores
aos quais ela está associada se dão no campo epistemológico, assim, implicando seus
significados em nossas visões de mundo.
A sociedade a qual estamos ligados, de acordo com Paul Ricoeur (2007, p.75),
naturalmente estabelece um vínculo vertical entre aquilo que se determina como suas
conquistas culturais de tal modo que, a transferência do que é estabelecido como relevante é
passada através do reavivamento de algumas memórias selecionadas para as novas gerações,

37
ou como diria Barthes (2015, p. 85), relacionando a similitude de uma cadeia de fotos de um
mesmo sujeito, "todo mundo é sempre apenas a cópia de uma cópia".
E nesse sentido, me faço esta pergunta a toda instante, a que similitude busca-se
evocar quando somos condicionados através de uma educação imagética que supõe um herói,
por exemplo, dadas a paleta de cores e sua indumentária, que tipo de construção é essa? Onde
mora a razão de ser de rápido reconhecimento e julgamento dos dados apresentados, quase
que como uma constatação através da memorização, onde não se precisa buscar um porquê,
pois os significados de dadas realocações imagéticas como essas que acabaram de ser citadas
já foram assimiladas, e acabam tornando-se valores fixos?
Quando nos deparamos com imagens que através dos recursos da memória são
deslocadas de sua historicidade, é necessário atentar ao fato de que as imagens têm um lugar
no espaço tempo, e sua figura, assim como seu significado, pode ser carregado através da
memorização, da memória artificial (RICOEUR, 2007, p. 80). Este deslocamento serve a um
propósito, todavia, cabe aqui então para nós, questionar se estamos diante de um bom uso,
como Ricoeur declara quando nos aponta que, a sociedade repassa aquilo que acredita-se ser
uma conquista, ou se estamos diante de um abuso. Já que, algumas imagens já não nos
permitem uma recordação, mas somente a memória como dado que se fixou e se apreendeu
seu significado, ou como colocaria Eco (1980) — quando substituímos a denotação de um
código automaticamente por sua conotação, estabelecemos uma supra elevação do código.
Não me permito responder talvez, como julgador do modo como algumas imagens são
utilizadas porém, através da pesquisa, permito-me tentar decodificar o que se quer dizer ao
fazer uso/abuso de algumas imagens.
Através destes usos/abusos, procura-se estabelecer uma memória coletiva, memória
essa que, segundo Ricoeur (2007, p. 83), produz uma instrumentalização da memória
universalizante, que entre outras coisas, corrobora a construção da noção que se tem hoje de
historiografia, estabelecendo assim o conceito de memória empregado.
Ao citar Gibson (1966), Eco aponta semelhante problemática da memória: "A
similaridade é PRODUZIDA e deve ser APRENDIDA." (GIBSON, 1966 apud ECO, 1980, p.
176). É através da memória, como aponta Eco (ECO, 1980, p. 179-180), que dados estímulos
são capazes de induzir ou fabricar um dado comum, tal como uma sensação, percepção, ou,
memória, a saber, é claro, que sempre se trata de algo que nos é "culturalmente registrado", de
modo que, para essa pesquisa, a métrica que se procurou estabelecer é, mais uma vez, a
memória.

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A forma estimulante a que se refere Eco, sempre é um dado convencionado que está
associado a seu possível efeito, a chamada "estimulação programada" (ECO, 1980, p. 206) —
um artifício supra-segmental, algo que é dito junto, de maneira paralinguística12. Por exemplo,
soluçar com a finalidade de causar empatia, ou no cinema, utilizar-se de mudança repentina,
entre tons musicais baixos e altos com a finalidade de causar susto ou espanto. Não é que este
artifício cause sempre o efeito programado, mas aplicando-se este código sucessivamente
estamos "de fato experimentando e tentando instituir um" (p. 206).
Assim, podemos presumir que uma obra jamais será monolítica, de forma que, se
torna impossível que se possa aprender um sentido com valor de verdade ou mentira. Por isso,
entre outros fatores, nos colocamos para analisar a carga sígnica presente na obra através de
uma escolha teórica, e de um viés metodológico proposto. Foi necessário selecionar um tipo
de memória que balizou a pesquisa, a fim de esclarecer a carga sígnica presente na obra
Galvez, Imperador do Acre, e assim nos deparamos com um condicionamento que foi
estabelecido:
Os campos semânticos dão forma às unidades de uma dada cultura e
constituem, em suma, uma determinada organização (ou visão) do mundo;
portanto, estão submetidos aos fenômenos de aculturação, de revisão crítica
do conhecimento, de crises de valor e assim por diante. (ECO, 1980, p. 66).
Aqui, em específico, refiro-me às unidades semânticas que foram abordadas, a fim de
perceber como sua carga sígnica pode inferir na percepção do destinatário, mas é claro, esse
tipo de correlação não pode ser feito por mim da maneira empírica, — que vai a campo
coletar a reação de cada leitor, acerca de um dado conjunto de cores e disposição imagética
sincronizada, capaz de significar — mas empírica no sentido de, organizar e segmentar um
dado semiótico para uma unidade semântica através de pesquisas que envolvem a aplicação
das cores e a identificação com os estímulos provocados por seu agrupamento ou de seu
isolamento, trataremos de individuar o processo de cores através das memórias coletadas em
pesquisas semióticas com esse foco.
O fato de que o estudo dos sistemas o conteúdo tenha de haver-se com
conjuntos esfumados requer muitas precauções. Antes de tudo, as unidades
de um sistema semântico são analisadas em sua equivocidade, ou seja, com
sememas abertos a mais 'leitura'. Portanto, a organização de um sistema
semântico perde aquela estrutura cristalina e geométrica que muitas teorias
otimistas lhe atribuíam. (ECO, 1980, p. 72).
É possível dialogar através da memória, utilizando as teorias propostas por Umberto
Eco (1980, p. 127), já que é necessário, por meio da escolha particular abdutiva, ou seja,

12
Alguns autores como Bakhtin referem-se à tais elementos paralinguísticos como oralidade, ver: BAKHTIN,
M. M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
39
inferir significado, o que implica no modo pelo qual identificamos o código, que
proporcionará uma das conotações mais justas.
Entre outras palavras, deve-se escolher uma forma de extra codificação que permita
interpretar circunstâncias ainda não codificadas, em nosso caso, essa seleção se deu através da
memória de outros pesquisadores, buscando relacionar o cruzamento dos códigos com as
circunstâncias onde eles se encontram através da memória. Do que é sugerido ou associado o
uso de tais códigos?
Em todo caso, a memória utilizada foi a do homem heterodirigido, e para fazer a
análise de uma carga sígnica, tivemos que levar em consideração a métrica sob a qual o
homem heterodirigido é construído. O que é o homem heterodirigido? Para Eco (ECO, 2015,
p. 261-263), o homem heterodirigido é um indivíduo presente em uma alta sociedade
tecnológica que está inserida em uma economia de consumo, onde as estruturas sociais e
econômicas, por meio das propagandas televisivas, estão a todo momento sugerindo o que as
coisas são, o que se deve ser, ver, dizer e usar. ―Numa sociedade desse tipo a própria opção
ideológica é ‗imposta‘ através de um cauteloso controle das possibilidades emotivas do leitor,
e não promovida através de um estímulo à reflexão e à avaliação racional‖ (Idem). Em suas
palavras ele o define como:
Um homem heterodirigido é um homem que vive numa comunidade de alto
nível tecnológico e particular estrutura social e econômica (nesse caso
baseada numa economia de consumo), e a quem constantemente se sugere
(através da publicidade, das transmissões de TV, das campanhas de
persuasão que agem sobre todos os aspectos da vida cotidiana) o que deve
desejar e como obtê-lo segundo certos canais pré-fabricados que o isentam
de projetar perigosamente e responsavelmente. (ECO, 2015, p. 261).
Em suma, o homem heterodirigido é o que habita nossa sociedade, estimulado por
um desejo de consumo provocado por uma exposição, a todo momento, de um jogo de
presença e ausência daquilo que se dignifica em meios de comunicação como itens de
consumo, carregados de valoração e simbólicos de um dado status-quo, onde, através da
aquisição do objeto de desejo, o indivíduo também pudesse fazer parte do conjunto que
carrega este status. E nesse sentido, talvez as cores, sejam o aspecto mais problemático a se
individuar.
Acerca dos outros aspectos que foram pertinentizados, eles também tiveram como
elemento codificante a memória como já postulado. Partindo assim dos pressupostos
metodológicos e elemento codificante delimitados, procurei nortear minha pesquisa a fim de
entender com que sentidos estamos lidando ao entrar em contato com esta obra, e que, além
do conteúdo que ela carrega através de sua narrativa, que cargas sígnicas são estabelecidas
40
para fins narrativos. Já que, é através dessa imagem "fictícia", ou romantizada, que se tem de
um passado representado na história em quadrinhos Galvez, Imperador do Acre, que nosso
olhar é distanciado automaticamente, por tratar-se de outra coisa que não o "real", ou
continuum material, afinal, é apenas uma representação, uma expressão através da
manipulação desse continuum, um conto fictício. Ignoramos que tal uso da imagem do
passado encontra-se em outro campo e se faz presente entre nós, dialogando com o presente,
de modo que, ao trazer uma representação atual, estamos selecionando imagens de valor, e
associando estas imagens com o que pode ser dito, ou melhor, o que deve ser dito.
Contar uma história não é de forma alguma um ato desinteressado, é permitir que
alguns tipos de imagens de valor sejam veiculados, e a razão de algumas destas imagens
dialogarem imediatamente conosco talvez seja porque já nos encontremos inseridos em um
ambiente propício, onde, alguns significados foram tão devidamente colocados que passem
despercebidos, como nesta obra de ficção, que já ocupa um lugar menor de valor em relação a
um dado "verídico" a "história real", mas que Paul Ricoeur (2007), através de sua pesquisa
fenomenológica, traz um outro olhar sobre essa cisão de categorias por um juízo de valor.
Histórias "fictícias" ou "reais" são narrativas que buscam capturar uma imagem, através da
memória e da imaginação, portanto, não são distintas, à medida que não se pode evocar uma
sem a outra.
Sendo assim, dentro das imagens que são intencionalmente evocadas, pudemos então
fazer uso de algumas observações que Ricoeur (2007, p. 40) nos traz, tais como: se há memória
em relação a essas narrativas postas é porque tais memórias ou, o modo que elas se
relacionam com nosso imaginário, são tidas como corretas, como que existisse uma pretensão
de "ser fiel ao passado". Mas fiel a que passado? Ao que remete a construção de continuidade
da existência as quais somos submetidos quando nos deparamos com as narrativas de
heroísmo alegórico de Galvez no quadrinho? Procurou-se dialogar especificando imagens que
se referem às narrativas de acontecimentos, que são tratadas como tão relevantes quanto os
acontecimentos a que se referem, porém, "o acontecimento é aquilo que simplesmente ocorre.
Ele tem lugar. Passa e se passa. Advém, sobrevém." (RICOEUR, 2007, p. 42.)
A memória como unidade cultural é reavivada no mass media, e por isso, a forma
como ela foi tratada na pesquisa é como uma unidade codificante. Como essa unidade
comunica? Que veículos a propagam, e onde? Qual é o motivo de reavivar tal memória, já que
estas não se dão no campo da rememoração? Como em um acontecimento cotidiano passível
de se lembrar, dada a maneira recorrente com o qual ele acontece, mas que sim, se dão por

41
intermédio daquilo que nos é transmitido, não só através de uma história oficial, mas também
na indústria de entretenimento. Os quadrinhos são somente um recorte dessa fábrica de
imagens e sentidos que vem em camadas, aparentemente inacessíveis em um contato das
pessoas, sempre adornados de estéticas fantásticas e inquestionáveis, entretanto, acabam por
mergulhar fundo na subjetividade e na forma como procuramos observar o mundo.
Nos quadrinhos, relações entre passado e presente são reavivadas na utilização de
representações que procuram congelar o tempo vivido, em específico, o que uma obra como
Galvez, Imperador do Acre que assume um caráter lúdico, e representa a história de uma
forma despretensiosa — se fossemos considerar a História — buscando mais parodiar a
realidade do que lhe atribuir verossimilhança. O fato de uma obra em quadrinhos ser tida
como despretensiosa, por tratar-se de ficção, não a torna desinteressada, muito pelo contrário,
esta obra foi produzida no contexto do centenário do Acre, com um intuito inclusive de re-
afirmar um certo discurso identitário.
Ao entrar em contato com o mundo de discussões que são propostas e os muitos
questionamentos que são levantados no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e
Identidade, meu olhar já não permanece o mesmo e todos esses encaminhamentos que foram
seguidos tiveram por base essa localização nova na qual me insiro, e que muito se distancia de
meu primeiro contato com o objeto cujo me propus interrogar.
Assim, esta pesquisa não buscou descrever ou interpretar a obra em si, mas sim
compreendê-la, realizar apontamentos que estão além do que está dito, e que jazem quase que
perene entre as correlações que permitem a obra e as que são construídas por ela. Também se
procurou estabelecer, através das relações da obra, os seus sememas, as unidades semânticas
às quais estão vinculadas, e os meios onde ela está inserida, de que forma isso é utilizado e
nos atinge, em prol de que projetos ela fala, e para com quais discursos a mesma encontra-se
alinhada.

42
CAPÍTULO II - STUDIUM E PUNCTUM: ESTÉTICA E LINGUAGEM

A partir das observações anteriormente realizadas, foi feita a análise do quadrinho


quanto à sua imagem e seu conteúdo, procurando destacar os significados de acordo com o já
proposto, de forma que as individuações de marcas sintáticas ou semânticas do quadrinho
foram brevemente esclarecidas ao começo de cada exposição.
Também traçamos uma breve explanação da relevância do quadrinho, sob a
perspectiva lúdica que ele exerce no leitor, sempre a partir de outras pesquisas do mundo das
comunicações visuais, preocupando-nos em destacar como comumente são utilizados os
sememas para fins comunicativos.

2.1 Galvez fundador e lugar de Origem, o Centenário do Acre

A comemoração do centenário do Acre (1899/1903 - 1999/2003), ou da anexação de


seu território geográfico ao Brasil, inicialmente acontece como data comemorativa no ano de
1999. A revista do 1º Centenário do Estado Independente do Acre, em 1999, traz um discurso
assinado pelo então governador Jorge Viana, no qual podemos destacar algumas palavras de
ordem e impregnadas de uma visão de mundo:
E um povo só pode afirmar um ideal coletivo se tiver consciência de sua
identidade, se souber valorizar sua cultura e afirmar seu modo próprio de
viver, seus costumes, suas tradições.
Por isso, o mesmo projeto que nos faz buscar o futuro, nos faz também
voltar ao passado. [...] Esses ideais estavam com os fundadores, os que
estabeleceram as bases do Estado acreano. Entre eles, Galvez. (ACRE, 1999,
p. 8).
É para nós, no mínimo interessante, a relevância que se faz por um gestor público a
menção ao nome de Galvez, como dado de origem em relação aos ideais que se procura
―resgatar‖. Galvez, então repórter em Belém do Pará, em 1899, enviou várias denúncias sobre
um acordo entre os Estados Unidos da América e Bolívia (ACRE, 1999, p. 9), e através de
sua influência como repórter e a repercussão dos fatos viajou para o Acre sob o patrocínio do
governo do Amazonas. A partir de encontros com os seringalistas formou uma Junta
Revolucionária e proclamou a formação do Estado Independente do Acre, e não por engano,
foi escolhida a data de 14 de julho de 1899 para a proclamação13, já que era o aniversário da

13
Conforme consta nos trabalhos de CARNEIRO (2014, 2016) e de MORAIS (2016).
43
Queda da Bastilha e o início da Revolução Francesa14. Uma análise mais aprofundada acerca
da imagem de Galvez perante o discurso identitário será vertida no próximo capítulo.
Isso nos faz pensar se, é esse o objetivo de construção de um lugar de origem?Ao
tratar a formação do Estado Independente do Acre como um paralelo da Revolução Francesa,
constrói-se o início de um arco narrativo que apresenta um panteão de heróis e vilões, com a
intenção de construir ao menos uma fagulha do mesmo efeito, capaz de trazer um povo, como
diz Jorge Viana na supracitação, a firmar um ideal coletivo.
De fato, a organização de memórias historiográficas para fins políticos têm a sua
força, e coloca Galvez como líder em par com os do movimento Jacobino francês:
A intenção dos fundadores do Estado Independente do Acre era estabelecer
um governo republicano, democrático e libertário. Este governo tinha como
base os ideais populares de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que haviam
guiado o importante movimento revolucionário Francês. (ACRE, 1999, p.
12).
A questão acima levantada pelo historiador Marcus Vinicius Neves15 — enfatuado de
ufanismo e regionalismo —, nesse e em outros trechos, procura estabelecer o destinatário
como herdeiro direto de um legado maior que 'nós', 'nos' satisfaz em 'reconhecermo-nos' parte
de um algo maior que 'nossa' existência, tratando por eleger uma imagem com as quais não se
pode discordar, já que tão 'puras' e 'libertárias'. O Acre era revolucionário e lutou para
pertencer ao Brasil, para ser anexado, já que segundo este documento veiculando um discurso
oficial, "o Acre era o Brasil que o Brasil não queria." (ACRE, 1999, p. 12).Ainda de acordo
com a Revista do 1º Centenário:
As atividades desenvolvidas por Galvez à frente do governo da República do
Acre guiavam-se pelo acordo tácito que havia sido estabelecido pela
proclamação que criou o novo país. O objetivo verdadeiro e declarado era
libertar a região do domínio boliviano e, logo a seguir, se anexar ao Brasil
mais um dos estados da federação brasileira. Era o ideal republicano e
patriótico que estava sendo ofertado àqueles homens que se viram
repentinamente sem direito à cidadania brasileira. Essa era a cola que unia a
maioria dos habitantes do Acre. (ACRE, 1999, p.16).
A publicação em questão é claramente panfletária, fazendo usos e abusos do discurso
oficial. Buscando sintetizar a Questão Acriana, Galvez surge no discurso oficial como um
princípio de solução aos conflitos da região. Este último, com patrocínio do governo do
Amazonas (ACRE, 1999, p. 9), viaja ao Acre, e encontra-se com os seringalistas da Junta

14
Em 14 de julho de1899, Galvez proclamou o Estado Independente do Acre. Em 28 de dezembro de 1899 foi
deposto. Em 20 de janeiro de 1900 retornou ao cargo de Presidente do Estado Independente do Acre (MORAIS,
2016, p. 75).
15
Então ‗historiador oficial‘ do Governo Jorge Viana (MORAIS, 2016).
44
Revolucionária. E, em 14 de julho de 1899 "foi criado o Estado Independente do Acre", com
capital em Cidade do Acre, hoje Porto Acre, (ACRE, 1999, p. 9). Ao que se segue:
Luis Galvez foi escolhido, por aclamação, como presidente do novo país e
logo começou a organizar internamente o Acre e a expedir inúmeras
correspondências a diversos países da Europa e da América, a fim de obter o
reconhecimento internacional. (ACRE, 1999, p. 9)
A revista observa ainda, que, Galvez elaborara uma legislação organizando aspectos
como saúde, educação e as forças armadas. ―Porém, uma parte dessas leis, bastante avançadas
para a época, prejudicava os interesses de alguns seringalistas...‖ (ACRE, 1999, p.9). E, é por
isso que a República de Galvez fracassa, ―dado os desentendimentos com os governos dos
Estados do Pará e Amazonas, pela falta de apoio do governo brasileiro aos ―seringueiros
revolucionários‖ e pela oposição da Bolívia‖ (MORAIS, 2016, p. 74).
Em La Estrella Solitaria, Alfonso Domingo (2003) procura desenvolver um Galvez
'histórico' usado inclusive como referência para a novelista Glória Perez 16 na construção de
sua minissérie Amazônia - de Galvez a Chico Mendes, lançada em 2007, no Brasil.
Importante destacar que esta representação de Galvez, destoa em muito da unidade cultural
satírica feita por Márcio Souza em sua obra original.
Segundo Maíra Bastos dos Santos (2009), Alfonso Domingo realizara uma pesquisa
documental acerca do Galvez histórico em jornais e documentos espalhados pelo Brasil,
Bolívia e Alemanha. Além disso, partiu das obras de Leandro Tocantins, encontrando-se com
o mesmo, com a finalidade de "recompor os passos de Galvez no país [Brasil]". (SANTOS,
2009, p. 31). A intenção de sua obra é a de trazer o real, como destaca Santos:
segundo Alfonso Domingo: ―A ficção desta novela é aparentar que toda a
narração é real.‖ Comparando os registros históricos e os apontamentos de
Leandro Tocantins, é possível perceber que a obra La Estrella Solitaria vai
ao encontro dos eventos registrados pelo discurso historiográfico; todavia,
Alfonso Domingo acrescenta eventos desconhecidos dos historiadores
brasileiros, pois não se sabia ao certo sobre a vida de Galvez antes de vir
para o Brasil. (SANTOS, 2009, p. 38).
La Estrella Solitaria é um romance com acurácia histórica, fruto de uma pesquisa de
cinco anos, e que exalta a imagem de Galvez como no discurso oficial que o trata como herói.
E mesmo que a obra não tenha sequer sido traduzida para o português, ela acaba por exercer
influência sobre autores brasileiros, o que dirá uma obra lúdica como o quadrinho Galvez,
Imperador do Acre. A construção heróica de Galvez tange tanto o discurso oficial
historiográfico quanto se faz perceber no discurso lúdico presente no quadrinho.

16
Segundo entrevista ao blog do jornalista Altino Machado. Disponível em: <https://goo.gl/JnLgEK
> Acessado em: 14/09/2017.
45
2.2 Julgue o livro pela capa

Agora, já descritos sobre quais termos iremos encampar tal empresa semiótica, as
seleções dos trechos narrativos serão direcionadas a partir do punctum deste que vos escreve.
E, por qual outra seleção começar se não pela da imagem que caracteriza a capa desta obra
que, ademais, carregará traços que pretendem ser desenvolvidos por toda ela? A capa de
Galvez, Imperador do Acre, segue na figura 02.

46
Figura 2. Capa da obra Galvez, Imperador do Acre (2004)

47
Studium

À primeira vista, a obra encontra-se posicionada sob um eixo simétrico, onde é


balizada também por um único ponto de fuga no horizonte, as linhas diagonais às quais nosso
olhar aparentemente não tem acesso, delimitam-se de forma a construir um tangenciamento
daquele que observa dada imagem, e, de fato, é um tipo de construção imagética muito
comum não só no campo das histórias em quadrinhos, como em capa de livros, obras de arte e
até ícones gráficos.A correlação de tais retas que se tocam e produzem um epicentro visual,
funciona tal qual um índice gestual ou da mesma forma que uma seta-de-trânsito, dada às
circunstâncias (estar em pleno trânsito), atuando junto a um contexto (estar em um
cruzamento), possibilita que o motorista interprete se é possível ou não seguir tal seta, e é por
este motivo que tal princípio é corriqueiramente utilizado. Para Umberto Eco (1980), "o
arranjo em sistema torna COMPREENSÍVEL um estado de fatos e o faz COMPARÁVEL a
outros estados de fatos, preparando destarte as condições para uma possível CORRELAÇÃO
sígnica ou código." (ECO, 1980, p.33). Se pudéssemos ver objetivamente as diagonais
presentes e traçadas na figura 03, assim seria:

48
Figura 3. Capa da obra, retas e diagonais

49
As retas diagonais, ao se atravessarem, assim como o eixo simétrico da imagem,
proporcionando um local de encontro das retas, funciona tal como o epicentro de um abalo
sísmico, por onde o olhar do destinatário deve percorrer, e assim como o epicentro encontra-
se como o ponto de maior impacto da onda sísmica, a relevância imagética das figuras
dispostas na imagem também se dá da mesma forma.
A figura à qual atinge é tão somente a personagem título da obra, Galvez, se
partíssemos do olhar proposto por Umberto Eco (ECO, 2015, p.129), e, portanto, procurando
estabelecer um paralelo entre o título da obra que me proponho a analisar (qual está logo
acima, também posicionado simetricamente) e a personagem, "Galvez, Imperador do Acre",
me deparo com a imagem pomposa descrita por este enunciado que, primeiramente, anuncia
quem devemos conhecer, o senhor, personagem que permitirá um fio narrativo condutor da
obra, e ele, não outro, é o "Imperador do Acre", seu título o acompanha em seguida, como se
espera de títulos de nobreza.Somos, dessa forma, apresentados a quem devemos conhecer (por
nome e seu feito), o engrandecendo e, logo, nos diminuindo pela pompa de seu título.Assim,
estão delimitadas as amarras que restringem a narrativa a ser contada e à qual a cada virar de
páginas ou um entre olhar de quadro em quadro sejamos lembrados de quem é que se fala.
Tal colocação passa a determinar algumas expectativas, como um índice semiótico.
Índices são unidades culturais (ECO, 1980, p. 104-105), localizadas em posição de contraste
(em sentido de oposição, não de realce), seja semântico, lexical ou imagético, e claro,
funcionam como eixos que balizam o entendimento acerca de um signo ou função sígnica,
dessa forma, o eixo que virá balizar a história delimita a visão de narrativa e proporciona
curiosidade.
Não bastasse essa apresentação, Galvez encontra-se sentado, de branco, ao fundo de
uma lousa negra, o que lhe confere ainda mais destaque. O quadrinista, aplicando um dos
princípios de qual já falamos, estilização psicológica, nos fornece as imagens de modo a
construir uma rápida percepção de quem são esses personagens e do que tratam um pouco de
suas histórias nessa primeira aparição, a começar pela personagem título. Galvez fuma um
charuto, ostenta roupas brancas alinhadas e uma flor amarela em um dos bolsos. Seu chapéu,
que lembra um de uso comum em dias ensolarados, faz uma pequena curva ao alto que
permite que possamos ver uma de suas sobrancelhas levantadas, enquanto tem seus olhos
semicerrados, como um gesto de ponderação acerca de algo. Em sua mão direita carrega, com
a delicadeza de um nobre, uma taça que põe-se a segurar pela ponta dos dedos, por cima das
pernas cruzadas, preenchida de um líquido amarelo e borbulhante. Em contrapartida, sua mão

50
oposta, segura de punhos cerrados pelo cano, uma arma de fogo, possivelmente uma
espingarda.
Paremos nesse ponto para observar tal contraste sobre estes objetos, o contraste aqui,
permite que salientemos os dois objetos e o modo como vende-se as terras das quais Galvez
deve ser Imperador. De um lado, prazer, o qual podemos facilmente fazer alusão ao senso
comum, da liberdade associada aos trópicos, ou a uma pessoa de uma estirpe refinada, que
procura beber licores requintados enquanto fuma um charuto, pode-se defini-lo, quase que
imediatamente, como um bon-vivant. Do outro, nota-se um punho cerrado que exprime assim,
os meios de se proteger a vida de um bon-vivant, de armas em punho e atitude firme. Não são
opositores, mas contrastes.
Dois objetos que ressaltam uma dicotomia e como é tratada a região amazônica
desde os primórdios de seu saqueamento e colonização. Segundo Hardman (2009), isso é um
paradigma que sofre constantemente repetição nas representações que se fazem ainda hoje
dessa região, colocando-nos entre o exotismo da fabricação de um El dorado — um paraíso a
ser explorado —, e uma selva devoradora, engolidora de homens, um "paraíso diabólico",
como definiu Euclides da Cunha (CUNHA, 1999, p. 12). Todo esse garbo sobre dois chinelos
de dedo em seus pés.
Quanto ao quadro que compõe o cenário de fundo ao trono de Galvez, mesmo que se
leve em conta as personagens, não nos falha aqui a escolha da estilização, pode-se montar um
cenário completo desta "Amazônia" exótica, e por que não, erótica: a seus pés, uma mulher
nua com revolver à mão enquanto sorri, a onça e dois sujeitos sorridentes mais atrás. A
metade da figura acima de sua cabeça, por se tratar do grupo de teatro que Galvez acompanha,
e outros elementos internos da história, torna-se ainda mais emblemática que sua figura
distinta a tudo isso. São como caricaturas, elas dizem à que vem e o que devemos esperar,
entre negro bem alinhado, porém inexpressivo, e a figura indígena a formar a caricatura de
uma infinidade de etnias, encontramos pelo menos quatro tipos de sujeitos diversos dentre os
representantes de branquitude. Uma atriz trajada como egípcia e dois sujeitos bem alinhados:
um de trajes pretos, de um semblante rosado e alegre e outro de chapéu com uma expressão
mais dura e contida. Atrás temos uma guerrilheira e um desbravador colonizador, quase aos
moldes de Jonathan Hyde, o explorador de Jumanji, filme de 1996 (inclusive, pode-se aqui
estabelecer uma conexão de temperos coma figura emblemática). Mesmo com representações
tão distintas (entre os brancos), causa-me espécie achar que as figuras de estereótipos
pudessem estabelecer um tom de leitura e uma inserção lúdica no quadrinho, a capa nos diz

51
quais elementos estamos prestes a fruir a partir de quando viramos a página: prazeres do
álcool, do sexo, do tabaco, do luxo, e, também nos alerta dos perigos que estarão presentes,
como a violência, armas de fogo, a selva predatória, e é claro, os selvagens, construindo e
reafirmando a dicotomia estabelecida e supracitada.
Se é através desse rápido jogo ―sugerido‖ ao destinatário para realizar sua leitura e
que, uma breve pesquisa mnemônica é capaz de observar, o que dizer das cores escolhidas?
As cores em toda construção estabelecem em si uma carga sígnica, ditam o tom de uma cena,
de uma construção, e estimulam o leitor a partir de um repertório imagético comum. A todo
momento é preciso reafirmar uma unidade semântica e também cultural que nos é "sugerida"
sem ser imposta por elementos do mass media em geral, então, tratemos aqui de individuar as
cores, para que possamos delimitar um possível significado e alinhamento das cargas sígnicas
da imagem. Existem muitos meios de se individuar a paleta de cores utilizadas na construção
de uma obra, e todos eles carregam níveis de parcialidade, que dentro do possível, procurarei
evitar. A questão é, como se deu a individuação de uma paleta de cores? Essa individuação se
deu através de um aplicativo online, disponível aqui: <https://bighugelabs.com/colors.php> e
qual é muito comum o uso por designers para a reprodução de um padrão de cores agradável.
O padrão de cores individuado pelo programa segue abaixo, na figura 04:

Figura 4. Paleta de cores

Já que, as cores funcionam como unidades culturais e semânticas hipocodificadas,


serão utilizados como desambiguadores alguns estudos que procuram compreender a relação e

52
correlação entre essas unidades culturais, e como são capazes de significar a partir da
combinação de usos recorrentes, possibilitando moldar o entendimento a partir de uma relação
mnemônica pedagógica, principalmente utilizando-se de peças publicitárias e meios inerentes
ao mass media.
Um desses estudos encontra-se em a Psicodinâmica das Cores em Comunicação
(FARINA et al.,2006), onde os autores procuram delinear os aspectos de entendimento das
cores sob um viés que abrange sua decodificação física e a percepção biológica de nuances
cromáticos — que é claro, não é do que este trabalho se trata — até seu entendimento
mnemônico, e os predicados que à elas são comumente mais atribuídos.
Em todo caso, seu estudo explica, inclusive, uma ambiguidade dessas unidades, e
onde as percepções dessas unidades sofrem uma cisão de entendimento que separa Ocidente e
Oriente. Por vezes, mesmas cores possuem carga sígnicas opositoras, vamos priorizar, é claro,
as considerações que abarcam os sentidos mais adequados dada não só nossa posição
geográfica física, como a correlação cultural imposta sobre nós. À medida que, nossa
propaganda propaga ideais ocidentais, a indústria de comunicação na qual se baseia, quase
que hegemonicamente, também o faz, e a indústria do cinema nacional sobrevive a suspiros
frente a enxurrada de filmes, não só norte-americanos, mas padronizados por um ideal
hollywoodiano.
Existe, na paleta individuada, pelo menos quatro cores que estabelecem um nuance
cromático de como a cor branca é utilizada, estando comumente associada à limpeza,
castidade, como também ao vazio interior à solidão (FARINA et al., 2006, p. 97); enquanto o
amarelo está associado a poder, impulsividade, ação e dinamismo (idem, p. 101); os tons de
cinza simbolizam a soma de estímulos opositores, ou também, estabelecer tom de
neutralidade (Ibidem, p. 98); preto, para o Ocidente, está atrelado a uma vasta lista de agruras
que estão associadas à morte, depressão, temor, mas também, dado o contexto onde se insere,
significa requinte e sofisticação (Ibidem, p. 98); o verde está associado à ecologia,
exuberância e até a efervescência de paixões, sugere, entre outras coisas, umidade, frescor,
esperança (Ibidem, p. 101); e, por fim, um sólido tom de marrom que se "associa a cor da pele
morena das cabrochas. Na Antiguidade a cor morena era feminina, por ser a cor da terra e,
portanto, da fecundidade" (Ibidem, p.104).
Atendo-se ao que uma análise de studium pode proporcionar, procuramos individuar
pontos que nos permitam refazer uma leitura em caráter de abdução semiótica, utilizando do
mesmo princípio de punctum que nos permitiu individuar os elementos da imagem da capa.

53
Punctum

Estabelecidos os elementos individuados e algumas cargas sígnicas presentes, torna-


se mais simples apontar o que causa punctum na imagem. A capa delineia seu personagem
protagonista em uma situação de poder, associando a figura ao centro em um campo
semântico compartilhado entre ideias como: inocência, divindade, ordem e afirmação. O
branco, apesar de ser um continuum material acromático, e por isso, não ser considerado
fisicamente uma cor, está para o Ocidente como um dado significante que simboliza a vida e o
bem. A vida e o bem, aqui quase que como uma balança, carregam em sua mão um contraste
de ideias: prazer etílico e uma espingarda. Não se pode esquecer os indícios expressivos
associados às cores, a liberdade da cor branca junto da flor ao bolso, permite também a leitura
de tons de poder sobre essa pequena divindade nessa composição digna de um vitral sacro.
Ademais, o personagem goza de uma composição que o favorece em uma das mais antigas
oposições de contraste, vida e morte, branco e preto. Se o branco é tudo aquilo que já
destacamos, em seu estudo A Cor como Informação, Luciano Guimarães atesta que:
A morte, desde os primórdios, vinculada ao desconhecido e às trevas, é
origem da simbologia ocidental do preto. O preto, além de ser a cor da morte
e das trevas, é a cor do desconhecido e do que provoca medo. As
representações demoníacas são muito mais tenebrosas quando envolvidas
pela escuridão. O demônio preto, o vampiro, o lobisomem, etc. São figuras
mais aterrorizantes que um curupira verde". (GUIMARÃES, 2000, p. 91).
Essa oposição entre branco e preto, que polariza a noção de contraste, acentua-se, já
que, se atribui ou busca-se sugerir valores positivos e negativos, tornando o contraste comum
(que seria um realce às cores justapostas, ou entrepostas) numa oposição dos valores a eles
atribuídos. Quanto ao vazio do branco, Eva Heller tem a acrescentar:
O que está vazio é leve. À leveza está associada a clareza. O branco, a mais
clara das cores, é ao mesmo tempo a mais leve. Na vestimenta, essa ligação é
conhecida também. As roupas de verão são claras, as de invernos, escuras.
As roupas claras refletem muita luz, por isso são frescas. (HELLER, 2013, p.
315).
Além disso, a cor das camisas que os operários utilizavam nos Estados Unidos e
Inglaterra, no começo do século XX (HELLER, 2013, p.318), vieram a ser estabelecidas
como conotação de determinadas classes sociais. A camisa azul era característica de
trabalhadores operários, cujos trabalhos estavam associados ao uso da força física, e em
contraponto, o branco, como na expressão popular ―colarinho branco‖ estavam para os
trabalhadores que se comprometem com serviços "não-braçais", administrativos e
burocráticos. Ele se tornou um símbolo de status que estava associado ao fato de não ser fácil
54
camisas brancas permanecerem assim, já que, não existiam máquinas de lavar. Porém, mais
que isso, os crimes de colarinho branco associados à essa noção de status, são quase tidos
como crimes "limpos". Inclusive, candidus, segundo a autora, é como se designa um tom de
branco radiante em latim, e ainda hoje, concorrentes a cargos no serviço público são
chamados de tal forma, de limpos, em branco, candidatos.
Assim, a associação afetiva construída por uma personagem em vestes brancas, no
centro de panteão de outros, e logo entornada por um denso preto, reforça nossas suspeitas
acerca de que emprega um sentido dicotômico à primeira vista. Os detalhes em amarelo
podem ser tidos por traços semânticos de poder: o amarelo de sua flor, de sua poltrona. Se já
não bastassem para assentar os valores de símbolo que a personagem carrega, ainda tem ao
seu lado uma onça pintada, quase tida por um gato doméstico de tamanho mais avantajado.
O amarelo, segundo FARINA et al. (2006), é também muito utilizado em situações
antiéticas, valorizando o contraste semântico de forma opositória, como o tido por preto e
branco. Todo esse exotismo paira sobre alguns tons de verde, que como também já vimos não
representa só a ecologia ou a natureza. Pode-se destacar a cor verde em associação a sememas
de tranquilidade, esperança e ao contexto onde a história se desenrola, emitindo também a
carga exótica da qual já falamos, entre o paraíso e o inferno verde.
A esse ponto, passo a ponderar algo que ainda não tinha estabelecido em mente, que
é tomar Galvez como personagem herói, mito contemporâneo, dada sua substancial
aproximação através da imagética e a escolha da manipulação do continuum quadrinho. Eco
(ECO, 2015, p. 239), aborda o processo de ―mitificação‖ pelo qual símbolos sacros foram
dessignificados durante a Reforma Protestante e a Contra Reforma, ou ―desmitificados‖,
perdendo seus valores sacros e inquestionáveis, fragmentando um repertório imagético já
institucionalizado como o da igreja.
Contudo, tal dissociação destes significados não apaga uma vasta construção
imagética e acaba por contribuir para sua difusão, já que, torna a transmissão de um mesmo
valor simbólico, agora alienado de um conteúdo puramente teológico, mais direto e
deslocável:
A crise desse estreito liame entre imagens e verdades históricas e
sobrenaturais significadas, e a seguir o ―consumo‖ da carga sacra de uma
estátua ou de uma figura pintada, a mundanização de elementos
iconográficos, que aos poucos se foram tornando puros pretextos para
exercitações formais (ou para a transmissão de outros significados, embora
permanecendo aparentemente ligados ao sistema de signos de uma religião
revelada), identifica-se com a crise de uma sistemática e de toda uma
cultura; […] já não é mais possível aceitar uma relação fixa entre um
repertório de imagens e um repertório de significados filosóficos, teológicos
55
e históricos que perderam suas características de estabilidade (ECO, 2015,
p.241).
Assim, a fragmentação dessas correlações sígnicas permite um realocamento de
imagens outras, utilizando um mesmo sistema de deificação. Contudo, o sistema que procura
relacionar símbolos e a cultura de massa em nosso tempo-espaço tem ideologia e desejos
próprios. Eco (2015, p. 242), alerta para os desígnios universalizantes presentes na cultura
ocidental contemporânea, e aponta os produtores míticos de nossa época ―que criam e
difundem imagens míticas destinadas a radicar-se em seguida na sensibilidade das massas, são
os escritórios-estúdios das grandes indústrias, os advertising men de Madison Avenue‖ (idem,
p. 243). Ou, em outras palavras, nossa sensibilidade visual é educada pelos grandes estúdios
de cinema e propaganda através da indústria do entretenimento.
Qual o mito então do homem heterodirigido? Umberto Eco (2015), traça um paralelo
das correlações que permitem a mitificação do herói contemporâneo, e o mito que ele
delimita, não é outro, se não o superman (idem, p. 246-248). E, como ele se localiza em
nossos tempos? Através da dicotomia à qual representa sua primeira metade (sob a alcunha de
Clark Kent) que está ligada a todos os homens médios de nossos tempos, impotentes diante do
maquinário industrial que toma seu lugar ao mesmo tempo em que diminui, à reles números,
todas as pessoas de uma sociedade. Kent é desajeitado, míope e submisso, e eclode
diretamente na segunda metade deste mito, qual se faz representado agora na figura de
superman, a subversão de tudo aquilo que Kent não é: o mais poderoso entre os terráqueos,
mais inteligente, contudo, ainda serviçal dos valores humanos— serviçal porque poderia sê-lo
muito mais que os seres a quem serve.
Em adendo a esta análise, poderíamos aderir o comentário de Tarantino pela ótica de
Bill (David Carradine, em KILL Bill vol. 2), superman não só é fetiche, um desejo do homem
médio de o sê-lo, ele também é a identidade principal de Kal-El, seu alterego, é na verdade, o
de Clark Kent, que seria o modo como um ser todo poderoso enxerga o homem comum.
Quando Kal-El acorda, ele é o superman, contudo, para que não seja percebido como um
destoante em nossa sociedade industrial, ele se nivela àquilo que vê como dado comum, e,
como se disfarça, denuncia sua visão sobre os terráqueos, mesmo que não os salve dos reais
problemas do dia a dia, ele satiriza o homem médio com seu disfarce de homem, Clark, e o
inspira através do desejo de sê-lo quando superman.
Contudo, é evidente que existem diferenças entre "os heróis da mitologia clássica,
nórdica, ou as figuras das religiões reveladas‖ (ECO, 2015, p. 248) e o mito que se constrói
com o superman. Estes mitos clássicos, ou imagens sacralizadas por religiões reveladas,
56
detêm diversos elementos em comum: sua estrutura mítica, o que Eco (idem, p.248) nomeia
como fisionomia divina, que para ele trata-se de como essas imagens podem ser tomadas
como índice semiótico (carregar valor de contraste, positivo ou negativo). Por exemplo, a
imagem de um santo, ou herói grego, mesmo quando vista como recorte imagético em um
afresco, um vitral ou em escultura, permite vislumbrar um todo que ele simboliza, sua história
e sua narrativa já fora declarada e agora não mais se é capaz de negá-la.
Já o mundo dos quadrinhos nasce no que Eco define como "civilização do romance"
(ibidem, p. 250). Se as civilizações anteriores recontavam seus mitos já ocorridos — mas sem
a pretensão de fixidez, de modo a recontar o mesmo mito com adição de algum adorno ou
alegoria que lhe engrandecesse o todo —, a chamada "civilização do romance" tinha por
tradição empregar o ineditismo narrado como fator principal ao qual nem o leitor nem o
autor/narrador têm conhecimento daquilo que irá ocorrer, "diremos que o valor visado por
esse tipo de narrativa é definível em termos de riqueza de "informação", informação
mensurável quantitativamente." (ECO, 2015, p. 250).
Portanto, a personagem dos quadrinhos em termos de "mitificação" se resigna a uma
lei, a uma fixidez e uma expectativa de ser universal, como se trouxesse o personagem
mitológico (dos quadrinhos, nesse caso, o herói/protagonista) como índice semiótico, que
deve carregar valor métrico, de julgamento estético, buscando desenvolver seus
comportamentos e escolhas com o intuito pedagógico que serve à uma universalidade que
deve combalir a todos. Porém, com a rigidez a qual é submetido e que acatam os quadrinistas
ao utilizar destes recursos, não tornam possível tais índices possuírem um caráter "hieróglifo"
como os mitos clássicos, Eco (ECO, 2015, p. 250) chega a definir esse arquétipo de
personagem de "personalidade estética":
A personagem mitológica da estória em quadrinhos encontra-se, pois, nesta
singular situação: ela tem que ser um arquétipo, a soma de determinadas
aspirações coletivas, e, portanto, deve, necessariamente, imobilizar-se numa
fixidez emblemática que a torne facilmente reconhecível. (Idem, p. 251).
Faremos assim, a observação sobre uma possível construção mítica, que trataremos
de discutir em um capítulo a frente, mas que também nos serve de norteamento para a
verificação das cargas sígnicas nas páginas destacadas daqui para frente.

2.3 Entrada triunfal e o chamado da aventura

A seleção trata por individuar aqui, a apresentação do personagem título já que este
será o índice semiótico (o herói) e será introduzido ao destinatário, ver figura 05 e 06:
57
Figura 05. Introdução do personagem Galvez 17

17
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 11.
58
Figura 06. Introdução do personagem Galvez18

18
Idem, p. 12.
59
Studium

À primeira vista (figura 05), somos convidados a contemplar um cenário grandioso


da Belém do Pará, em julho de 1898. A personagem ao centro do primeiro quadro, ainda não
se trata de nosso herói, mas sim do epicentro da cena, como anteriormente dito, é dela nossa
atenção. E, é de seu posicionamento que se procura observar a construção desta cena, em que
três sujeitos encobertos pela noite e pelos trapos, encontram-se precisamente posicionados ao
fundo, eles traçam junto ao texto — que nos situa em um ambiente de calmaria — a relação
do olhar a partir do centro à margem, e em seguida ao centro novamente. O "herói" encontra-
se prestes a desfrutar da companhia de uma dama, quando somos introduzidos ao nó da trama.
A construção óbvia que o quadrinho nos presenteia aqui é a do 'não herói' Galvez,
que não pode sequer salvar-se, salta então pela janela, a fim de ter menores perdas frente a um
furioso possível pretendente da dama qual ele acompanhava. Contudo, sua tentativa de salvar
a si mesmo, acaba por salvar também o indivíduo em apuros na noite, na figura 07 (isoladas
as tiras onde Galvez não é o foco). As ameaças se dispersam e os sobreviventes de apuros
distintos formam um elo camarada.

Figura 07. Paleta de cores da noite19

19
Idem, p.11.
60
O repertório de tonalidades de cores aqui (figura 07), remete à situação em que se
encontra o indivíduo Dom Luiz Trucco20, estando as tonalidades escuras variantes entre preto,
cinza e azul a mercê de uma construção balizada entre medo, decadência, temor, opressão e
intriga (FARINA et al., 2006, p. 98).É o tipo de situação utilizada, segundo Luciano
Guimarães, na construção do medo, o temor (GUIMARÃES, 2000, p. 92).Esse tipo de
construção permite que esse temor, caso vencido ou respeitado, dê origem a uma noção de
autoridade. E para que esta serve,entre muitas coisas,senão governar? E aqui, por mais que se
adicione tons cromáticos, a fim de gerar nuances do preto e, quem sabe, potencializar
significados outros que não tons tão sombrios, Eva Heller (2013) nos aponta que, "o preto
transforma todos os significados positivos de todas as cores cromáticas em seu oposto
negativo" (Idem, p. 238), dada sua relevância como unidade semântica sempre ter sido
alimentada em tons de valores positivo-negativo, correlatos à dia e noite, por exemplo.
Em contraponto aos tons cromáticos sombrios 'nosso' herói se veste de branco, que
na situação construída pela cena é um claro contraste em valores opositórios, como citamos
em parte. Em relação à capa, podemos acrescentar que aqui, o branco de Galvez é o início, a
simbologia que se posiciona mais próxima a de sua entrada triunfal, é sem dúvida, a relativa à
noção do cristianismo bíblico, ou como diria Eco (2015, p. 248), das religiões reveladas. E, à
essa simbologia, Heller adiciona que:
Branco é a cor dos deuses: Zeus apareceu para Europa como um touro
branco, para Leda ele apareceu como um cisne branco. O Espírito Santo se
mostra como uma pomba branca. Cristo é o cordeiro branco. O unicórnio
branco é o animal símbolo da Virgem Maria. E os anjos na maioria das vezes
são pintados vestindo branco e com asas brancas. Os demônios, ao contrário,
têm asas pretas – em sua maioria são asas de morcego. (HELLER, 2013, p.
277).
O apontamento de Heller nos permite falar um pouco da Figura 06. O conteúdo
narrativo prepara o destinatário ao convite que será feito ao 'nosso' herói, segundo a
imposição do discurso oficial. Galvez e aquele a quem salvara constroem um elo e passam a
noite a fortalecê-lo, entre bebidas e os prazeres boêmios numa casa noturna e, onde
finalmente, é apresentada a ele a problemática em forma de convite, um chamado a ser
atendido, no qual Luiz Trucco, cônsul da Bolívia, diz que é preciso que na Bolívia também se
desfrute das coisas que ali se desfrutavam.

20
Personagem histórico, foi Cônsul Geral da Bolívia do Pará (LIMA, 1973, p. 28-29) que exerceu ainda em
1902, 1903 e 1904 segundo o Almanak Laemmert do RJ (1902, ed. 59; 1903, ed. 60 e 1904, ed. 61) disponível
em: <http://memoria.bn.br> e <https://goo.gl/vtGTg9>.
61
Punctum

Aqui, podemos inferir maior poder ao arranjo de cores e a construção da cena de


Galvez enquanto salva Luiz Trucco. Galvez está entre o leque de heróis que recusam o
heroísmo, porém, não têm escolha a não ser cumprir o papel de herói. Mas de que forma seria
isso? Como protagonista/herói da história em momento algum ele tinha o objetivo de salvar
alguém, a não ser a si próprio logo, ele não procurava salvar Trucco, mas a si mesmo, e se
encontrava em uma situação de inércia em relação ao chamado de ajuda.
A 'donzela' de Galvez — a quem ele deveria socorrer para o desenvolvimento da
história — não é aquela que ele toma em seus braços apaixonadamente, esta não faz parte do
desenvolvimento do caráter do personagem num aspecto heroico ou mesmo fugitivo. A
‗donzela‘ está inserida como um dado comum à vida de Galvez, já que, este último, tem a
personalidade de um vigarista e sedutor homem boêmio, em outras palavras, ter uma mulher
de outro homem nos braços não passa de um dia rotineiro para 'nosso' — ainda não —
herói/protagonista.
Enquanto isso, o perigo ronda aquele que reside em posição de socorro, e que seria
nossa 'verdadeira donzela' — Luiz Trucco. Sob a perspectiva de Trucco, e quando menos se
esperava, alguém que não procurava ajudar, cai literalmente do céu, trajando vestes brancas,
dispersando o perigo e salvando a 'donzela' do terror eminente que enfrentava. Toda a
construção de perigo da cena, não era outra senão a de estabelecer um ambiente seguro que
permitisse a um personagem amedrontado e, portanto, fragilizado, reconhecer a luz de um
salvador caído dos céus como seu líder, para então lhe conferir poder de autoridade.
Galvez seria o homem certo na hora errada ou o homem errado na hora certa? A
conferência de autoridade proporcionada pelo evento que finda por salvar Luiz Trucco terá
outras repercussões além deste encontro momentâneo. A questão aqui é que Trucco vê nesse
‗herói‘ — com quem estabelece um elo de confiança e amizade — uma oportunidade de levar
os prazeres boêmios que eram desfrutados no Brasil, para seu lugar de origem, a Bolívia.
Nesse sentido, Galvez em muito aproxima-se dos heróis contemporâneos aos quais
somos constantemente submetidos, todos estão seguindo rotineiramente suas vidas até que
conflitos externos os trazem para uma situação de não escolha, ou, de uma só escolha
possível, a de reagir, de tomar uma atitude em relação ao conflito.

62
2.4 Introdução dos anseios de Galvez

A seleção mostrada nas figuras 08, 09 e 10 nos permite contemplar os conflitos de


Galvez que nos aproximam dele enquanto mitologia dos quadrinhos, já que, poderemos
individuar aquilo que nos permite formar conexões com os heróis, seus anseios e conflitos:

63
Figura 08. Introdução aos anseios de Galvez21

21
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 15.
64
Figura 09. Introdução aos anseios de Galvez22

22
Idem, p. 16.
65
Figura 10. Introdução aos anseios de Galvez23

23
Idem, p. 17.
66
Studium

Dada a repetição semântica do uso de cores na construção da personagem, trataremos


de individuar aqui, o conteúdo da narrativa e seus aspectos delineadores. Como estabelecido
anteriormente, a personagem dos quadrinhos em termos de "mitificação" se resigna a uma
expectativa de ser universal. Mas como uma personagem pode identificar-se ou estabelecer
algum tipo de relação universal senão através da insegurança? Algo que assola toda
humanidade que anseia por respostas, quando não coletivas, individuais?

A personagem trava conflito psicológico íntimo (figura 11) e se questiona sobre o


seu passado e a perspectiva de futuro que tinha:

Figura 11. Detalhe da figura 08

Galvez já não é tão ambicioso quanto o fora quando mais jovem, perdera também
suas relações com os lugares com os quais tinha se identificado, os bônus que sua ambição
poderia proporcionar não se comparam aos ônus de batalhar por ela. No entanto, um futuro se
delineia à sua frente, no qual ele deve escolher deixar de ser um nômade em fuga e abraçar as
propostas e convites que surgem em seu caminho, como o de uma de suas amantes, Cira, que
lhe aborda a tomar novos rumos em relação a respeito de seu novíssimo amigo, Luiz Trucco,
cônsul da Bolívia.

67
Na figura 08, ele pondera se Cira seria o melhor caminho para alcançar seus anseios,
logo ele, um homem "sem critérios" e cansado de batalhar. Cira o leva ao Comitê de Defesa
do Acre, formado — para surpresa de Galvez — pelos três "bandidos" que tentaram assaltar
Luiz Trucco, mas é claro, a mando do governo Federal a fim de averiguar a troca de interesses
entre Bolívia e EUA, logo, tornando-se uma causa "nobre".

Punctum

A queixa que o herói se faz, acerca daquilo que já não tem, é também o apontamento
daquilo que ele irá buscar, que ele almeja mais do que tudo, as metas que ele traçou e onde ele
mesmo falhou consigo. Esse conflito narrativo não só é pertinente à medida que instiga e
sugere novos percalços para o herói, como é também a lógica pela qual operamos nossas
conquistas diárias, traçamos metas e objetivos e, quando não as alcançamos, nos vemos
obrigados (por nós mesmos) a esforçamo-nos mais no dia seguinte, e no outro também, e
assim por diante.
Na figura 11, Galvez desce uma longa escada, na qual se pode ver, através da
perspectiva, que ele encontra-se no topo, também pode ser visto o quanto falta para descê-la.
Ele ainda não se encontra plenamente estabelecido financeiramente, mesmo beirando os
quarenta anos, com isso, pode-se realizar uma metáfora utilizando o punctum: assim como nos
quadros que o mostram sobre a escadaria, quanto mais há de se descer para que se possa
atingir o sucesso que almeja? Para que seja possível, enfim, deixar a vida nômade, e então
criar novas raízes? Seu plano primeiro era o de sossegar-se em Belém e rejeitar os convites de
Cira, figura 12:

68
Figura 12. Detalhe da figura 10

Entretanto, o seu costume rotineiro não permite, e num pular de quadros já se


encontra entregue nos braços de Cira, disposto a realizar o que ela lhe pede, inclusive, a
contragosto, se preciso for, para cumprir tais desígnios. As falhas que ele se auto atribui o
empurram ainda que relutantemente tanto à cobiça dos lucros da seringa, quanto aos braços de
Cira. Então, para "enriquecer e viver em paz" (figura 11), Galvez fará até mesmo o
"imponderável" (figura 12): descerá uma escadaria imaginária tal como descera fisicamente
na primeira seleção, porém, agora como metáfora a fim de atingir suas metas.

2.5 Galvez é o monstro de si

Na seleção de páginas a seguir partiremos por pertinentizar algo que talvez passasse
em branco acerca de uma construção através das cores. Procurou-se individuar sememas de
conteúdo/possíveis significados, claro, sem excluir os elementos acerca das cores que já
vieram por corroborar muitos de seus significados até aqui.
Os quadrinhos fazem uso pedagógico das tiras e através de suas leis formativas,
buscam comunicar uma ordem cronológica dos fatos através da sequencialidade. Dessa forma,
constroem uma cadência quase rítmica ao destinatário, e esta, ao ser propositalmente
quebrada, configura um estímulo programado (ECO,1980, p. 206).

69
Nesse caso, a quebra da sequencialidade presente na continuidade de pequenas tiras
pelo uso de página dupla serve ao propósito de adensar a grandiosidade e riqueza das cenas
desenhadas nas figuras 13, 14, 15 e 16.

70
Figura 13. Galvez monstro de si mesmo24

24
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 25.
71
Figura 14. Galvez monstro de si mesmo25

25
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 26
72
Figura 15. Galvez monstro de si mesmo26

26
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 27.
73
Figura 16. Galvez monstro de si mesmo27

27
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 28.
74
Studium

O que é um monstro? ―O monstro é velho conhecido da tradição de povos de todos


os lugares e tempos. Ele aparece com frequência nas tradições orais, na literatura, nas artes
plásticas e dramáticas, nas religiões e nos rituais‖ (LOPES et al., 2005, p. 211).
Marcos Lopes (2005) desenvolve um texto em Semiótica: Objetos e Práticas onde
estipula as características narrativas e figurativas de um monstro.A pergunta que norteia seu
texto permite colocar em evidência que nem todos os monstros vivem no outro: ―O que é um
monstro? Conhecemos muitos deles, todos diferentes entre si, mas o que os reúne, o que os
caracteriza?‖ (LOPES et al., 2005, p. 213).
Seu texto, entre muitas outras coisas, colabora com uma noção de réplica. A réplica,
segundo Umberto Eco, não é um duplo: "Duplicar não é representar nem imitar (no sentido de
'fazer uma imagem de'), mas reproduzir, através de procedimentos iguais, iguais condições."
(ECO, 1980, p. 160). Eco (1980, p.162-162), distingue os duplos — que são exatos iguais,
quase que indistinguíveis (a não ser é claro por intermédio de aparatos capazes de perceber
um microcosmo além do perceptível para os seres-humanos; ex.: cadeiras, facas, etc.) — das
réplicas, que são ocorrências que embora concordem com aquilo que replicam, diferem.
Eco (1980) separa as réplicas em dois tipos: ratio facilis e ratio difficilis. A primeira
se dá porque é possível perceber seu padrão (de réplica) dentro de um sistema de expressão,
algo similar na forma como é expressa — como um sistema iterativo (ECO, 2015, p. 265),
que repete um mesmo padrão proferindo informações diferentes, ex.: anseio, conflito e
solução, podem representar um padrão e, mesmo assim carregar informações distintas para
cada etapa; já a segunda, surge quando o que é replicado não está no campo da expressão, mas
no conteúdo de algo (um dado sentido), seja porque a forma de expressão não foi pré-formada
ou porque ela é idêntica ao conteúdo que expressa.
Acerca dos tipos de réplica, existem réplicas homomatéricas e heteromatéricas.
Enquanto réplicas homomatéricas (ECO, 1980, p. 191) replicam utilizando-se a mesma
matéria daquilo que se originam (às vezes parcialmente), muitas vezes ocorrendo por meio de
ratio facilis. Já as réplicas heteromatéricas reproduzem um conteúdo através de uma forma de
expressão que — seja porque ela é nova ou porque se faz um uso estilístico na manipulação
dos elementos estéticos —, ainda não fora utilizada de tal forma.
Dadas estas circunstâncias teóricas, o que seria uma réplica heteromatérica no
quadrinho? Uma vez mais, há de se destacar que partimos do conteúdo para a análise da

75
réplica, e não da forma de expressão (continuum material). O que faz o monstro? Qual a
natureza de seus atos? O monstro gera conflitos, ele é a manifestação do terror e implica um
leque de obstáculos qual nenhum sujeito comum à espécie humana seria capaz de sobrepujar.
A construção de um monstro é tal qual nos confere Luciano Guimarães (2000), acerca da cor
preta, se o monstro além de todos os conflitos que sugere, adere aos predicados da cor preta,
ele é muito mais aterrador (GUIMARÃES, 2000, p. 91).
O monstro é, entre outras coisas, o exagero, o espetáculo e aquilo que não pode ser
derrotado. Seu papel é figurar em desproporções que o destaquem em valores negativos e que
conotem perigo, até expressões que buscam adjetivar o substantivo ―monstro‖ carregam tais
sememas como o da crueldade, periculosidade, injustiça, até a ingratidão. O papel do monstro
não confere a ele autoridade, pelo contrário, o papel do monstro está em sucumbir nas mãos
de alguém, e a esta pessoa viremos autorizar como herói. O herói, até então ser comum de
uma comunidade, somente pelo intermédio do monstro pode alçar maiores voos e se destacar
perante seus iguais.
Assim podemos traçar, segundo Marcos Lopes (2005), certa simetria entre o herói e
o monstro, eles, até então, são equivalentes. O monstro por diversas vezes não é um bruto, é
sapiente e apresenta obstáculos muito maiores que os de força física. Suas simetrias os tornam
equivalentes, contudo, em valores opositórios. Por vezes pode-se destacar ―os laços
semânticos frequentemente existentes entre o nome do herói e o de ‗seu‘ monstro‖ (LOPES et
al., 2005, p. 214). A simetria se finda quando uma destas figuras vence o outro.

Punctum

Mas de que forma poderíamos reconhecer o herói? Frequentemente ele sequer tem
algum valor destacável que permita-nos conferir-lhe autoridade.O herói recebe status de
autoridade dado a construção de terror do monstro, quanto mais desproporcional for o
monstro, quanto mais poder ele detiver, quão mais impossível seja extirpá-lo, maior será a
autoridade conferida para aquele desafiante que fora capaz de vencê-lo.
É destruindo o monstro então que surge o herói. A questão é que,o monstro
apresentado aqui não é ―material‖, ele nos aparece como réplica heteromatérica,ou seja, não
na mesma forma em que usualmente ele se faz presente, através de ratio difficilis. Ele é um
constructo de conteúdo, uma ideia, um conjunto de situações que vão se emparelhando e
afunilando o caminho de 'nosso' herói.

76
Por essa razão, procurou-se aqui, individuar o conteúdo das figuras mostradas
anteriormente. Se a construção do monstro material permite o surgimento de um herói, as
práticas e situações provocadas por ele, ao serem conquistadas, também permitem tal
surgimento. E aqui, o questionamento é feito à origem dos obstáculos, quem provoca tais
agruras? Quem?A não ser ele mesmo?
Galvez combate a si próprio, suas aventuras e escolhas permitem um grande
desenrolar de eventos fantásticos que lhe combatem à medida que a história avança. Cada vez
mais encurralado pelas consequências de suas decisões, duvidamos da capacidade do herói de
escapar dos eventos que lhe perseguem, não porque aqui supomos uma ideia do destinatário
que presencia, mas porque evidenciamos em página dupla a grandiosidade material dos
estragos que sugerem situações de risco em que outro membro desta comunidade talvez não
escapasse.

2.6 Glória e Queda

As páginas do quadrinho em questão: 58 e 68, foram selecionadas com o critério de


representar de alguma forma estes dois momentos que acontecem brevemente, e que
produzem um contraste de nossa personagem título (figura 17 e 18):

77
Figura 17. Glória e Queda 28

28
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 58.
78
Figura 18. Glória e Queda 29

29
Idem, p. 68
79
Studium

'Glória'

Segundo Eva Heller, a cor prata suscita alguns significados sobre sua origem, dos
quais pode-se destacar este:
Argus, o gigante do antigo mundo dos deuses, recebeu seu nome da prata,
provindo do latim argentum – que, por sua vez, veio do grego, argyros. O
gigante Argus é o vigia que tudo vê, ele tem milhares de olhos, que não
dormem todos ao mesmo tempo. É possível ver seus olhos despertos,
tremeluzentes, à noite, nas estrelas do céu. (HELLER, 2013, p. 458).
A prata (HELLER, 2013, p. 459) também é o metal precioso mais usado no mundo,
mesmo que tenha seu valor monetário inferior ao do ouro, ela destaca-se,uma vez que, se faz
mais abundante que este. Existe contraste comum ao se tratar não só das duas cores, prata e
ouro, mas seus significados em geral.
Se o ouro é poder, luxo, festividades e pompa, logo, a prata também é. Contudo, é
tratada como um adereço do outro, e seus valores como um adicional. Além de caracterizar-se
como acessório, está atrelada a valores de cobiça e avareza (idem, p. 461) mais até do que o
ouro ao qual o contraste de valores e unidades semânticas permite ser somente adorno.
O ouro está para o Sol e a representação masculina de unidades culturais e
semânticas, como a prata está para Lua (HELLER, 2013, p. 463) e a representação feminina e
seus respectivos valores. Este apontamento é destacável para que percebamos como os valores
negativos "cobiça" e "avareza" são enquadrados em uma perspectiva facilmente associada à
representação feminina. Enquanto, por outro lado, o ouro é nobre, metal precioso, e possui
sememas que figuram entre diversos adjetivos glorificantes.
Inclusive, a expressão "vale o que pesa" está associada à produção de moedas de
prata, já que, por ser um metal maleável demais para ser manipulado, era comum (HELLER,
2013, p. 462) as moedas serem produzidas em misturas com outras ligas metálicas, tais como
o cobre, níquel e zinco, o que era passível de uma adulteração do valor da prata, por isso ao
afirmar o valor do montante, dizia-se "vale o que pesa".
Se ao ouro, atribui-se um valor ideal à medida que ele demonstra seu próprio valor, a
prata, quando acessório, não sobrepõe seus predicados aos demais elementos (HELLER,
2013, p. 467), pelo contrário, ela os realça.

80
'Queda'

Esta seleção (figura 18) faz o recorte no quadrinho onde procura-se desenvolver o
momento de deposição de Galvez,onde seus maiores apoiadores são capturados,
respectivamente na imagem, o 'Ministro da Cultura' e o 'Ministro de Relações Exteriores', e
por último, o próprio.
Se durante a análise de studium no recorte 'Glória' se pôde estabelecer os valores e
conteúdos que permeiam no momento de 'triunfo' de Galvez, neste recorte evidencia-se o
declínio dos mesmos valores e conteúdos, uma vez que, as cargas sígnicas imagéticas são
conduzidas pela narrativa e transformam os valores semânticos suscitados por ela
anteriormente.
Se no recorte anterior Galvez tornara-se a alcunha proposta pelo título da obra e seus
valores derivados, os mesmos sucumbem assim como a personagem.

Punctum

'Glória'

Os olhos do gigante Argus brilham como a luz das estrelas, e seus olhos confundem-
se com as estrelas da noite, sendo impossível desassociar de onde somos vigiados.
Certamente, pode-se erguer tal metáfora pela escolha precisa de representar os louros do
poder, no qual o próprio Galvez proclama-se Imperador. Ele também realiza um marco pelo
qual a coroa, aqui como símbolo de poder e vigia (tal qual Argus), lhe confere, além de poder
para traçar diretrizes, os olhos, através dos quais vigiará seu império.
O contraste entre ouro e prata também desperta um viés positivo ao que concerne a
perspectiva da prata, já que ela realça os valores daquilo que se torna associada. Ela por vezes
é utilizada para sugerir ciência ou exatidão: "O [tom] prata caracteriza essas propriedades
melhor do que o ouro, pois o ouro é por demais presunçoso e estridente — o prata
corresponde bem à circunspecção intelectual.Os alquimistas também viam uma inter-relação
entre a prata e a inteligência." (HELLER, 2013, p. 465). E, talvez seja assim que Galvez tenha
se imaginado no seu momento de autocoroação, cercado de índices de valor, tais como as
tonalidades douradas do cenário e dos detalhes de sua vestimenta e seus louros prateados. Não
procura-se aqui precisar o que seria 'moderno' mas, a cor prata sugere tecnologia e

81
"atualidade", um momento sempre à frente no futuro inalcançável, é como se no ato de sua
auto coroação Galvez afirmasse: "Sou o agora, mais jovem, mais atual".

'Queda'

A relação entre esses dois recortes estabelecidos (Glória e Queda)é a construção de


um contraste, com a finalidade de posicioná-los em tons opositores.A copresença de dois
elementos descontínuos a partir dos conteúdos evidenciados aqui como 'Glória' e 'Queda' gera
o punctum.
A causa para tal estranhamento é o que Barthes (2015, p. 26) chamaria de elementos
heterogêneos. Tal como um ruído nem tão baixo para que não se ouça, e nem tão alto para que
se abafe o 'som' principal. E a própria presença deles gera este estranhamento, mesmo que não
se cause interesse, caracterizando um contraste, neste caso, literal e semântico.
Além de ser encontrado ébrio e vomitar em seus algozes, Galvez profere uma frase
que permite uma aproximação deste contraste entre os dois momentos, é a seguinte: "O século
20 se anuncia..."
Então Galvez torna-se imperador no século XIX e em uníssono com as badaladas da
igreja que anunciavam a chegada de um novo século, ou de um 'momento mais atual' é que
recebe a notícia através dos soldados que o encontram que também fora deposto, como num
ciclo onde o 'novo' o substituísse.

2.7 Redenção

Galvez não fora herói30 e apesar de ter sido deposto vive ainda por mais 45 anos de
vida que é como este quadrinho é finalizado e, ironicamente, é a assim que se inicia a obra
literária em que se baseia. Não será utilizado, como não fora até agora, a obra literária para
analisar o quadrinho. Entretanto, por serem as obras tão distintas (mesmo que façam uso de
um mesmo conteúdo), a comparação é necessária para que possa-se entender à que sentidos a
obra nos leva ao ser finalizada em uma narrativa nostálgica (figura 19):

30
Refere-se a obra em quadrinho.
82
Figura 19. Redenção 31

31
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 69.
83
Studium

Nesta sequência Galvez já idoso procura estabelecer uma correlação dos fatos que
lhe sucederam na Amazônia. A rememoração aqui é desenhada com a justaposição das
memórias de percalços e conquistas do espanhol.
Acerca da memória é preciso dizer, como diz Ricoeur (2007), a "recordação" ou
"rememoração" consiste numa busca ativa do passado e que atua como um agente da
impressão com que se trata este passado, tendo princípio sempre no sujeito que recorda.
Galvez traça sua rememoração associando o desfecho em que se encontra a todos os
aspectos em sua trajetória que causaram tal desfecho. E, como subentende-se no texto anterior
e aqui se confirma, o mesmo declara que fora "derrotado pelo século 20".
Suas vestes seguem as tonalidades que o acompanharam por toda a narrativa a de
nuances de branco. O branco alvo não só se encontra presente nas roupas, como também nos
cabelos que entregam as marcas do tempo e conotam sememas da cor cinza. "Grisalho
equivale a experiência, respeitabilidade e sabedoria." (HELLER, 2013, p. 511). Entretanto o
cinza também assume outros sememas que associados conotam um caráter de pouco
elaborado, ou elaborado de modo grosseiro ou nas palavras de Eva Heller: "da realidade sem
enfeites"(HELLER, 2013, p. 515).

Punctum

Galvez trata sua memória de maneira idealizada. Seu recorte mnemônico fabrica um
conjunto de situações quais ele considera "os momentos mais intensos de sua vida". Em
seguida declara: "... e depois comecei a exercitar a minha morte...".
A situação em que se encontra ao escrever suas memórias é a de velhice sem o vigor
e a saúde dos dias que reaviva em memória. Ele estabelece sobre si as projeções que são feitas
quando observamos à das construções dos mitos heterodirigidos.
As circunstâncias em que Galvez se apresenta o permitem desejar aquilo que sua
memória projeta. Os desejos que ele não mais pode alcançar a não ser pelo recurso de
memória são o que ele afirma o terem tornado "uma lenda". Galvez trata estas memórias
como se fossem os únicos momentos em que ele realmente vivera.

84
Sua glória jaz no passado assim como aquilo que ele considera 'viver' tornando o
escritor das memórias uma sombra do passado, já que sobreviveu "uma existência cansativa"
somente para findar escrevendo estas memórias.
É como se dissesse ao destinatário que aquele Galvez na memória é que existiu e
deve ser lembrado. Enquanto este que vos escreve não merece tal honraria.

85
CAPÍTULO III - ANALISANDO FUNÇÕES SÍGNICAS

A indústria da cultura de massa fabrica as estórias em quadrinhos em escala


internacional e as difunde a todos os níveis: face a ela (como face à canção
de consumo, ao romance policial e ao programa de TV), morre a arte
popular, a que vem de baixo, morrem as tradições autóctones, não nascem
mais lendas contadas ao pé do fogo, e os cantadores não mais exibem os seus
folhetos narrativos durante as festas, no eirado ou na praça. (ECO, 2015, p.
281-282).
Ao longo deste capítulo procurou-se entender os recursos da estética como funções
sígnicas. A partir das individuações e análises propostas no capítulo anterior, objetivou-se
entender os recursos estéticos empregados no quadrinho de forma a não permitir uma fruição
da obra, mas sim a produção de um sentido. E, com a construção de um sentido procurou-se
identificar as possibilidades e leituras que se fazem evidentes dentro das construções de
indivíduos educados através dessas histórias. Procurando abordar também se a mitificação ou
os fatores que permitem a existência de tal caráter mitificante estão inseridos no quadrinho e
se fazem observáveis dentro dele.

3.1 Kitsch

O Kitsch caracteriza-se por ser a composição de diversos fatores estilísticos aplicados


em um conteúdo qualquer. Em todos os segmentos de formas de expressão existem elementos
que permitem ao usuário ou destinatário daquela forma de expressão significá-la além de suas
medidas pré-fabricadas. Não é o caso do Kitsch. Para Eco:
A vanguarda, ao fazer arte, põe em evidência os processos que levam à obra,
e os elege para objeto do seu discurso, o Kitsch põe em evidência as reações
que a obra deve provocar, e elege para finalidade da sua operação a reação
emotiva do fruído. (ECO, 2015, p. 77).
Segundo Abraham Moles (2012), que desenvolve sua pesquisa acerca destes fatores
estilísticos, este ―estilo‖ torna-se presente em formas de expressão diversas. Moles (2012)
procura traçar a origem do termo, que encontra-se na língua alemã, e que deriva da palavra
verkitschen, que quer dizer ―trapacear, receptar, vender alguma coisa em lugar do que havia
sido combinado" (MOLES, 2012, p.10). É claro que, esse sentido enseja um tom pejorativo
que não pode caracterizar este recurso como um todo:
O Kitsch está ligado a arte de maneira indissociável, assim como o falso
liga-se ao autêntico. Segundo Broch, ―Há uma gota de Kitsch em toda arte‖,
uma vez que toda arte inclui um mínimo de convencionalismo, e de
aceitação do agradar o cliente, de que nenhum grande Mestre está isento‖.
(MOLES, 2012, p. 10).
86
Moles destaca o avanço do Kitsch durante a ascensão da burguesia que "impõe suas
normas à produção artística" (MOLES, 2012, p.11). De maneira que, esta associação do kitsch
carrega um valor em si, que seria a ambição de ser universalizante.
Logo, o Kitsch se faz presente na arte e não é que isto torne todas as artes em Kitsch,
pois "o Kitsch é o modo e não a Moda no progresso das formas" (MOLES, 2012, p. 28).
Quando se pretende produzir um estímulo semiótico, nota-se frequentemente a
presença do Kitsch (ECO, 2015, p.71) que é uma estilística que ocupa-se em confeccionar um
dado,não mais através de uma sugestão — não se pode correr esse risco —, mas sim com a
finalidade de provocar um sentimento.
Portanto, procura-se então fabricar uma sensação, um entendimento sem margens de
erro ou fruição pelo destinatário. Em vista disso, utiliza-se o que chamamos unidade cultural,
no intuito de construir o que Eco (ECO, 2015, p. 72) chama de um ―universo liricizante‖, e
para atingir isto, se faz uso de expressões já caracterizadas socialmente e de fama poética ou
que carreguem conotações afetivas: as chamadas palavras acessórios. E, este tipo de recurso é
algo que também encontra-se presente na coloração de imagens.
Uma imagem em preto e branco é capaz de configurar sugestões que serão
remontadas a partir do olhar do destinatário, com a finitude de seu repertório imagético. Já a
imagem colorida lhe traçará rumos de leitura baseados nas unidades culturais ligadas as cores
selecionadas.
Se levantarmos assim a problemática da arte, seria possível questionar se o uso dessa
estilística a descaracteriza como arte. Eco concorda com as observações destacadas por Moles
(2012), e propõe que exista uma dialética entre os efeitos que o kitsch proporciona à arte e
vice-versa, e que se partirmos de uma assunção histórica do sentido da arte, como poderíamos
excluir tal elemento que permite gozar os efeitos da arte?
Talvez não se possa excluí-lo, mas defini-lo. Numa sociedade em que uma economia
de consumo impera, é preciso estabelecer uma distinção entre o Kitsch e a arte, porque o que
está em jogo aqui é a evasão (do cotidiano) proporcionada por diversos esquemas iterativos
que se alimentam perfeitamente do Kitsch que adéqua-se muito bem numa sociedade de
consumo e está sujeito as regras econômicas. Dessa forma, quem ganha com estímulos
emotivos programados, e, confeccionados para um dado propósito, o que se estimula? É um
dado moral, político, econômico? Ou, uma construção pedagógica civil? Aqui, o kitsch é
similar a ―estética‖ — é ferramenta, é o adereço, é o tempero que entrega a substância.

87
É necessário que se perceba o uso deste estilo que é inerente ao campo da estética. E
em relação à estética, procura-se aqui abordá-la como trata-se a ética. A ética de um indivíduo
é balizada de acordo com as unidades culturais (conteúdos) pelas quais esse indivíduo foi
educado. Toma-se então como ética o modo de proceder de indivíduos/comunidades/grupos
sociais. Logo, a leitura de estética que procura-se delimitar é o modo de se desenvolver um
conteúdo por meio de uma forma de expressão. O Kitsch é um destes modos. E, segundo
Abraham Moles (MOLES, 2012, p. 32), "o Kitsch dilui a originalidade em medida suficiente
para que seja aceita por todos".
Por este estilo tratar-se de um conjunto de estímulos que buscam confeccionar um
dado sentido e não seguir estritamente uma regra, procurou-se exemplos dentro do próprio
universo dos quadrinhos como linguagem para que se possa observá-lo mais objetivamente.
Como no quadrinho Batman: o Cavaleiro das Trevas (1986) de autoria do Frank Miller,
figura 20:

Figura 20. Recorte extraído de Batman: o Cavaleiro das Trevas32

Este pequeno recorte é de uma página da obra icônica que introduz o super-herói
Batman, sob a visão de Frank Miller. O Kitsch em toda a narrativa que dá início a história se
faz presente através do narrador-protagonista. O desenrolar da sequência de ação, onde não é
proferida palavra alguma, permite ao destinatário perceber o silêncio (a não ser pelos ruídos
do automóvel) e a seriedade do personagem em enquadramento. Entretanto, o narrador-
protagonista trata de descrever passo-a-passo os acontecimentos com detalhes alheios ao que
é mostrado na sequência, e que permitem tangenciar quem é este narrador. E, à medida que
sabemos de quem se trata essa narrativa, pode-se inferir o nível de perigo na situação do
protagonista que, embora torne-se explícito, administra a situação com toda a cautela e frieza,
sendo capaz de solucioná-la.
32
Retirado da obra de MILLER, 1986, p. 3. Editora: DC Comics.
88
Este recurso então permite ao destinatário ter compreensão de elementos diversos ao
longo da cena, permitindo que se confeccione um dado capaz de minimizar qualquer
ambiguidade presente.
Em contrapartida, existe um número diverso de produtos em formato de quadrinhos
que fogem à regra do Kitsch ou, se quisermos, que fazem um uso poético da mensagem.
Segundo Eco, a arte ou a função poética da mensagem (1980, p. 223-224) é também uma
violação do código — uma violação aceita, por seu caráter poético —, e quando o destinatário
é capaz de decodificar o código/mensagem surge um estímulo de prazer proporcionado pela
desambiguação da mensagem. Quando essa fronteira é encontrada e entendida desencadeia
gozo interpretativo, ou nas palavras de Eco:
Uma violação da norma que jogue tanto com a expressão como com o
conteúdo obriga a considerar a regra de sua correlação/ desse modo o texto
[forma de expressão] se torna auto-reflexivo porque atrai a atenção
sobretudo pela sua organização semiótica. (1980, p. 224).
O que procura-se observar então, é que existem outras soluções para a construção do
quadrinho como função poética ou 'arte', e que não são aplicadas na adaptação em quadrinhos.
Scott McCloud (2005) exemplifica que é possível construir uma narrativa através de um jogo
com as lacunas presentes na forma de expressão quadrinhos (figura 21):

Figura 21: Recorte extraído de Desvendando os Quadrinhos33


As lacunas dos quadrinhos são para serem preenchidas pelas unidades culturais do
destinatário, do leitor. É um dado que deve ser entregue (sem ser determinado) para que essa
aproximação entre obra e destinatário e que permita fruição ou construção de cargas sígnicas
além das impostas socialmente ou por convenção semiótica.

33
Retirado da obra de MCCLOUD, 2005, p.68.
89
Nesta discussão sobre o Kitsch, ou a confecção de sensações, é possível estabelecer
um paralelo com Roland Barthes (2015), quando ele questiona a presença de dinâmica de
punctum na pornografia:
A pornografia representa, costumeiramente, o sexo, faz dele um objeto
imóvel (um fetiche), incensado como um deus que não sai do seu nicho; para
mim, não há punctum algum na imagem pornográfica; quando muito ela me
diverte (e ainda: o tédio surge rapidamente). A foto erótica, ao contrário (o
que é sua própria condição), não faz do sexo seu objeto central; ela pode
muito bem não mostrá-lo; ela leva o espectador para fora de seu
enquadramento, e é nisso que essa foto me anima e eu a animo. (BARTHES,
2015, p.53).
A sensação/objeto confeccionada (o) é produzida (o) simplesmente para consumo. O
consumo então passa a distribuir o que é consumível. Essa relação entre Kitsch e Arte, parece
análoga a que é suscitada por Barthes entre pornografia e erotismo. Também torna-se
observável na construção cinematográfica que se faz de gêneros como horror e terror.
Enquanto, o horror procura administrar visualmente o que é visto de maneira a causar repulsa,
o terror administra aquilo que não é visto. Como função, o terror age com as unidades
culturais do destinatário que passa a produzir, ou fruir, um conjunto de entendimento sobre o
que não lhe é entregue visualmente a partir daquilo que ele possui de conteúdos.

3.2 Midcult

Por outro lado, o Kitsch não procura ser o que não é. Trata-se de uma estilística que
empenha-se em confeccionar estímulos. Contudo, quando é vendido como "arte" exprimindo
valores de Verdade, Beleza, ele é definido como midcult ao que Eco, citando Walter Killy
acerca desse uso do Kitsch, define como:
... típica atitude de origem pequeno-burguesa, meio de fácil afirmação
cultural para um público que julga estar fruindo de uma representação
original do mundo, quando, na realidade, goza unicamente uma imitação
secundária da força primária das imagens. (KILLY apud ECO, 2015, p. 73)
A supra elevação do Kitsch pela Arte termina por vigorá-lo como termo pejorativo.
Acerca dos conceitos de mass media ou cultura de massa opta-se em acordo com o proposto
por Umberto Eco (2015, p. 33-67) que, entre outras formulações, poderíamos ser breves em
distingui-los como uma produção a nível industrial de caráter culturalmente homogeneizante,
inclusive, estabelecendo o uso do Kitsch com a finalidade de desenvolver um caráter
pedagógico-político sobre uma sociedade.

90
Uma sociedade de consumo que não mais sugere estímulos ou uma fruição a partir
das unidades culturais de seus destinatários, e que sim confecciona, de antemão, sensações
para o consumo com finalidade de evasão lúdica, acaba por tornar-se um produto
mercadológico de grupos econômicos para fins lucrativos, estando assim, também submetida
à "todas as leis econômicas que regulam a fabricação, a saída e o consumo dos outros
produtos industriais"(ECO, 2015, p. 49).
Talvez o maior mérito do Kitsch seja, justamente, ele não ter uma forma explícita e
definida, então, através de derivações parasitárias e um jogo com a forma de expressão onde
ele está inserido, ele procura se estabelecer deslocando traços semióticos e de unidades
culturais que já tornaram-se convenções semióticas. Eco (1980, p. 12), esclarece que ocorre
uma convenção semiótica quando uma relação entre ―um evento percebido‖ e ―a sua causa ou
o seu efeito percebido‖ são associadas, culturalmente reconhecidas e sistematicamente
codificadas.
Entretanto, essas derivações não acontecem sem critérios. Elas ocorrem a partir da
extração e apropriação de idioletos estéticos,que nada mais são do que normas condutoras e
liames que, mesmo em contradição ou violando regras, estabelecem-se como normas acerca
de uma certa forma de expressão,como que se apontasse os nós das tramas de uma tecitura,
para assim torná-la identificável como pertencente à um dado segmento distinto dos demais.
Um exemplo disto é o modo como se identifica as pinturas de determinados movimentos de
arte tais como o barroco, renascentismo, cubismo, etc. Se destacarmos seus pontos estéticos
individuais e supusermos que, pontos estéticos similares podem ser agrupados ou deslocados
numa dada forma de expressão, criamos assim, conjuntos, da mesma forma como são criadas
'fórmulas' ou 'gêneros', enfim, uma nova escola de forma de expressão.
Quando o Kitsch é exposto na obra, objetiva-se que não se trate literatura de
consumo (midcult) como arte, e isto não retira os méritos construídos por meios estéticos, mas
se questiona seu valor como arte. A arte que atua como irmã gêmea do Kitsch pode também
fazer uso de seus recursos.
Quando o Kitsch fabrica uma realidade da qual um grupo social é incapaz de acessar,
dado os recortes de classe, ele permite a construção de sensações sobre o outro que até então
encontrava-se alienado de tal existência, exercendo um fator pedagógico civil para a
construção de uma sociedade mais igualitária. Isto caracterizaria um bom uso acerca deste
estilo que pode ser tomado, inclusive, por propaganda.

91
Entretanto, a arte através desses usos da forma de expressão — mesmo que se
aproprie de recursos pertencentes ao Kitsch — solapa compreensões de mundo estruturadas:
se existe hierarquia, esta a desestabiliza; se existe ordem, esta causa a desordem; se existe
limite, esta encontra-se fora destes limites. E, se o uso de Kitsch, que é uma função estética
tão admirável não consegue empreender tais usos, ele se torna comumente propaganda, onde
o objetivo maior é autorizar dados que podem ser ditos/vistos e torná-los objetos/conteúdos a
serem consumidos. E quando ao uso de propaganda é atribuído o juízo de valor de Arte, é o
que chama-se Midcult.

3.3 Galvez e o Kitsch

No quadrinho se faz uso de um tipo muito particular de idioleto estético: o


estereótipo. E isso não se trata de enganos, mas de um direcionamento do imaginário comum,
onde convenções já pré-estabelecidas configuram um dado de acesso imediato.
Num quadrinho comum como literatura de consumo, não se pode lidar com a fruição
de dados. É preciso entregá-los ao destinatário para que este possa identificá-las e então
consumi-las. Alguns personagens que sequer tem narrativa são meros objetos de consumo
frente ao protagonista.
Como mencionado durante o exercício de leitura e a individuação dos nuances de
cor, a personagem protagonista é preenchida por cores que já ocupam significações bem
'sólidas' no Ocidente. Seu posicionamento imagético, assim como a relação sempre em
contraste aos demais personagens, evidencia a complexidade com que é construído Galvez. Se
os outros personagens são estereótipos de um imaginário popular, Galvez é complexo seja
visualmente ou através do conteúdo que se delineia para definir seu caráter.
O contraste semântico entre os recursos para compô-lo: escolha de cores, traço
heroico, indumentária; e o conteúdo da narrativa: covardia, ambição, luxúria, boemia, são
todos atributos que sobressaem-se em relação aos demais personagens que são
desenvolvidos,de modo a ficar evidente a grandeza de seus atos, quando falha ou triunfa.
No capítulo II, nas figuras 13, 14, 15 e 16, procura-se apontar Galvez como seu
próprio algoz: "monstro de si". E, de fato, é um dos poucos momentos em que a narrativa
grandiosa que estabelece suas falhas a partir de suas próprias escolhas o preenche com o tom
cromático preto. É um dos poucos momentos em todo o quadrinho que o vemos vestido com
esta cor, Eva Heller traça uma significação da cor preta e ilustra um pouco de seu conteúdo:

92
Num sentido figurado, ―preto‖ significa mau e ruim. Aquele que ―denigre‖ a
imagem de alguém, está falando mal dele. O crime de chantagem, em inglês,
se chama blackmail. Uma bête noire, em francês, significa um animal preto,
o ―bichopapão‖. As asas pretas dos morcegos são características do diabo, de
acordo com uma antiga simbologia. Existem também, entre as pessoas, as
―ovelhas negras‖. Caracterizar alguma coisa como ―negra‖ é o que de pior
pode ser dito sobre ela. (HELLER, 2013, p. 241).
Ademais da simbologia das cores ou estes usos que podem ser categorizados como
estilização psicológica (ECO, 2015, p. 140), é utilizado como recurso narrativo para
desenvolver o personagem Galvez um caminho muito recorrente no Ocidente, algo que pode
ser categorizado como fisionomia do personagem, que vem de outra época, mas que de
alguma forma pode-se aqui entrever,e é utilizado aqui como sistema iterativo (ECO, 2015, p.
265), ou como um conjunto de etapas a serem cumpridas.

3.4 Fisionomia do Mito

Existem várias circunstâncias para que se desenvolva em mass media, em específico


nos quadrinhos, aquilo que Eco (2015) caracteriza como fisionomia divina, ou o que podemos
definir como um caráter mitificante de um personagem ou história.
Antes, é preciso estabelecer que os mitos antigos nos quais se pode observar a
fisionomia são tidos como acontecimentos consumados. Observando o enredo trágico
segundo Aristóteles, Eco (2015, p. 251) aponta como estas tramas costumam ser
desenvolvidas: a personagem envolve-se em tragédias, peripécias e se finda em catástrofes.
Ademais, Eco (2015, p. 253) afirma que estes mitos sobrevivem e são inconsumíveis
para as civilizações clássicas, porque o 'fato' a que o mito se refere está estabelecido, como já
dito, como certo e findado. O que encontra-se presente é justamente a memória sob a qual se
estabelece a parábola mítica, e que permite que os destinatários se conectem com o mito
através de seus propósitos ou finalidades.
Já nos romances, dos quais os quadrinhos fazem parte, procura-se desenvolver outro
tipo de correlação, uma que busque priorizar a informação 'nova' e o desenvolvimento destas
peripécias como finalidade em si. Tornando assim o romance um espaço de consumo de
informação que deriva características como contraste, oposição, crises e soluções, buscando
realizar essas etapas em nós narrativos, que solucionam-se brevemente afim de não suscitar
um esforço mnemônico a longo prazo. Assim sendo, constrói-se uma outra correlação à essa
parábola. A ligação que se tinha com o herói mítico através de propósitos e/ou finalidades se
perde.Entretanto, não perde a correlação mítica que se fazia presente nas histórias antigas.
93
Contudo, essa relação se transforma, e nossa ligação com o herói mítico de nossos
tempos é essa do romance contemporâneo: que procura nos ligar a estes ‗heróis‘ de forma a se
construir um desenvolvimento narrativo que permita ao destinatário estabelecer uma parábola
entre as suas próprias situações cotidianas e as que vive este 'herói', inserindo-o numa mesma
experiência do destinatário, e, buscando valorizar uma dicotomia que a torna efetiva, que é o
desenvolvimento de duas unidades culturais comuns aos destinatários.
Reproduz-se então, uma unidade cultural à qual ele possa se relacionar, que seja um
denominador comum entre a comunidade para qual destina-se o quadrinho, e que ao mesmo
tempo se faça presente na confecção deste 'herói'.
Se esta primeira serve como um denominador comum entre todos os destinatários de
um grupo, procurando comunicar um dado à que todos possam se relacionar; a outra unidade
cultural estipula uma construção de desejo, onde a primeira busca comunicar com a situação a
que todos esses destinatários são submetidos e a segunda busca determinar uma situação que
todos esses destinatários gostariam de passar.
No caso do superman, fica bem clara a divisão: Clark Kent, sujeito endividado e
subjugado por uma sociedade de produção industrializada na qual nenhum homem comum é
capaz de sobrepujar; e, seu alterego superman, que pode sobrepujar tudo isso.
No quadrinho Galvez, está presente um jogo entre essas unidades culturais e um
sistema iterativo.

3.5. Unidade Cultural malandro

Seria muito óbvio estabelecer duas unidades culturais em Galvez, se observássemos


somente aquilo que ele transparece ser ao começo de sua jornada (jornalista) e aquilo que o
título da obra anuncia (Imperador do Acre) numa construção de expectativa clara. A
princípio, procurou-se individuar essas duas unidades culturais para verter uma análise.
Entretanto, à medida que nos aproximamos do objeto, é possível perceber a utilização de uma
única unidade cultural, porém, mais complexa, a unidade cultural: malandro.
Quando se trata de obras de consumo não se pode permitir que existam margens para
outras leituras, é preciso confeccionar um dado, um saber acerca de algo. E, é claro, utilizar
um conteúdo já presente no imaginário dos destinatários permite um êxito muito maior na
confecção deste dado, como aponta Roberto Damatta (1997) em sua obra Carnavais,
malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, onde observa que:

94
De fato, o malandro povoa tanto a cultura popular quanto as páginas de
nossa ficção, tendo sido mesmo tomado como ponto inicial de nossa
literatura no trabalho feito por Antonio Candido (1970), quando este estudou
o que considera o primeiro romance tipicamente nacional, Memórias de um
sargento de milícias, que, por isso mesmo, seria um "romance malandro".
(Idem, p. 272).
O Galvez de Márcio Souza, e o que figura na leitura do quadrinho, não se trata de um
‗herói‘ como a estética do quadrinho procura estabelecer, mas pode ser categorizado num
arquétipo construído durante os séculos XIX e XX do anti-herói malandro, cujo surgimento
acaba por se estender como símbolo maior contemplando também aos heróis sem caráter, ao
que Maria de Nazaré Cavalcante, acrescenta:
O surgimento e alastramento da figura do malandro ocorrem na produção
cultural do país em razão da ideia de malandro ser tida como um caráter
inerente à constituição peculiar do povo brasileiro, tomado, inclusive, como
elemento de referência que o diferenciava do estrangeiro. (CAVALCANTE,
2005, p. 58).
Dada à construção histórico-social desse arquétipo 'herói malandro', e ela fazer parte
da construção da história cultural do país, ele configura a chamada estilização psicológica
(ECO, 2015, p.140) e enquadra-se exatamente num estereótipo comum a muitos brasileiros
com a finalidade de comunicar de imediato o que tange a superfície do personagem.
E aqui, este conceito exerce múltiplas funções já que, ao mesmo tempo em que
comunica com uma unidade cultural pertinente ao repertório imagético dos brasileiros, ele
também denota um estado situacional que, segundo a pesquisa de Cavalcante (2005, p. 65), o
posiciona de maneira 'deslocada' num lugar de ponderação moral que o situa entre pequenas
contravenções socialmente aprovadas, e atitudes associadas à desonestidade e a violência. Ao
descrever algumas características de tal arquétipo social, Cavalcante aponta que:
... esse malandro cria "possibilidade de proceder socialmente, um modo
tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas" usando de formas
ambíguas para realizá-lo. Outra atitude do malandro que não o deixa passar
desapercebido na sociedade brasileira, é o seu estado boêmio. Este tipo, o
mais saudavelmente aceito, é descrito como o sujeito boa vida que procura o
máximo de prazer e bem-estar, realizando o mínimo de trabalho e de
esforço. (CAVALCANTE, 2005, p.65-66).
Se não fosse sobre o arquétipo do malandro, poderia ser muito bem a descrição do
Galvez mostrado no quadrinho. A unidade cultural malandro é uma unidade deslocada.
Segundo Roberto DaMatta (1997), o malandro desliza por um gradiente moral estabelecendo-
se nos limites dessa fronteira:
O campo do malandro vai, numa gradação, da malandragem socialmente
aprovada e vista entre nós como esperteza e vivacidade, ao ponto mais
pesado do gesto francamente desonesto. É quando o malandro corre o risco

95
de deixar de viver do jeito e do expediente para viver dos golpes, virando
então um autêntico marginal ou bandido. (Idem, p. 269).
Para DaMatta (1997), o malandro vive entre estes interstícios, sempre na fronteira e
nunca atravessando, podendo tornar-se um bandido caso o faça. Procurando investigar a
gênese desse arquétipo o autor realiza uma análise observando o mito de Pedro Malasartes
onde o define como:
..."um herói sem nenhum caráter", ou melhor, de um personagem cuja marca
é saber converter todas as desvantagens em vantagens, sinal de todo bom
malandro e de toda e qualquer boa malandragem. Pedro Malasartes nos diz
como transformar a morte e o cadáver em algo vivo e positivo, ganhando
dinheiro e tirando partido de sua própria perda e dor. (DAMATTA, 1997, p.
274).
Entretanto, mesmo que se trace paralelos entre o arquétipo malandro como
categorizado por DaMatta no mito de Malasartes e o malandro mostrado na figura de Galvez,
fica claro que, o uso do arquétipo como recurso nestas narrativas produz singularidades.
No mito de Pedro Malasartes, DaMatta (1997) aponta como este malandro que
também vive nos interstícios equaliza a balança das diferenças sociais numa crescente "em
que são abandonados e ridicularizados todos os símbolos de poder e hierarquia da nossa
sociedade" (Idem, p. 274). E que, mesmo ao derrotar seus inimigos (geralmente homens
ricos/patrões) Malasartes recusa posições de prestígio e poder.
Enquanto Galvez, que também existe nos interstícios, mesmo que detenha várias
similaridades para com o mito anterior (como "converter todas as desvantagens em
vantagens"), não procura compensar uma desigualdade sócia, mas sim saciar suas próprias
ambições e atingir suas próprias metas. Assim, concorda-se com DaMatta (1997, p. 333)
acerca de que Pedro Malasartes trata-se de um protótipo dos malandros heróis, e que Galvez é
um arquétipo derivado destes princípios.
É possível então, categorizar Galvez como detentor deste caráter mitificante, uma
vez que, a utilização da unidade cultural 'malandro' encontra-se associada a construção de
uma identidade brasileira já que, como recurso estético, ela pode ser aplicada inclusive a um
não brasileiro no intuito de fabricar uma proximidade com um público.
O fato do malandro (conteúdo) caracterizar-se por seu deslocamento permite a
dinâmica comumente destacada entre duas unidades culturais distintas em uma só. Ela acaba
por dialogar com o um público amplamente submetido ao conteúdo desta unidade cultural, e
que, durante a construção da narrativa no quadrinho e a exposição, assim como o
desenvolvimento da trama, permitem uma aproximação do destinatário com essa personagem,
que mesmo entre tantas falhas acaba por obter aquilo que almejava.
96
É preciso lembrar, como afirma a pesquisadora Maria de Nazaré Cavalcante (2005,
p. 72), que Galvez, Imperador do Acre (2003) trata-se de um romance satírico e que este
arquétipo não se faz presente somente na obra publicada como livro, mas também nos
quadrinhos.
Fica evidente o conteúdo ambíguo nas circunstâncias da narrativa em ambos: livro e
quadrinho. Contudo, a sátira por se tratar de um conteúdo autorreflexivo resvala numa
categoria que Slavoj Zizek34 posiciona no campo da crença ao que ele discute: "[...] a crença
funciona como uma categoria social mesmo que ninguém acredite nela, creio que isto seja
crucial para entender como as coisas funcionam hoje." A provocação que ele suscita é a de
que a forma autorreflexiva da mensagem satírica, assim como a forma autorreflexiva presente
na mensagem poética ainda carregam as cargas sígnicas às quais elas fazem referência.
Grosso modo, quer dizer que para solucionar a ambiguidade de uma função sígnica é
preciso estar ciente dos funtivos da equação. Quando se constrói uma piada é necessário que
os destinatários estejam a par das unidades culturais que permitem ler os funtivos da piada (e
concordem com as cargas sígnicas), do contrário, a piada pode até mesmo comunicar, mas
não fará rir, pois os funtivos podem ser 'lidos' com as cargas sígnicas presentes nas unidades
culturais do destinatário, podendo divergir das do emitente.
Uma sátira só pode ser lida como uma sátira se os destinatários puderem perceber
que se trata de uma, assim, se um conteúdo auto reflexivo não for desenvolvido com recursos
estéticos que permitam ao destinatário ler a ambiguidade, ele se torna vazio, ou mais
precisamente, acaba por endossar o que era alvo de critica.
Como a análise semiótica na presente pesquisa busca compreender as cargas sígnicas
presentes nas unidades culturais dentro do quadrinho e não nos destinatários, pode-se
averiguar através do uso contínuo de recursos narrativos na construção da narrativa que o
quadrinho significa em si uma história particular a do livro, buscando construir uma visão de
herói de seu protagonista, que como nos diz Cavalcante, mesmo levando em conta que se trata
de uma sátira, "Luis Galvez pode bem servir como um referencial ficcional na construção de
tantos outros aventureiros ou malandros que buscam, no jeitinho brasileiro, maneiras de
alcançar dividendos pessoais." (CAVALCANTE, 2005, p. 87).
Embora o uso desta unidade cultural seja de extrema relevância por ocupar um
espaço no imaginário popular e, constantemente ser reavivada na reprodução de personagens
associadas ao 'jeitinho brasileiro', o caráter mitificante da obra não se alicerça só pelo uso do

34
Disponível em: <https://charlierose.com/videos/14434 > Acessado em 30/08/2017
97
arquétipo malandro, mas também faz uso de um sistema iterativo muito recorrente em obras
de massa media, como cinema e televisão.

3.6 Monomito em Galvez

O termo monomito está aqui tal qual utilizado por Joseph Campebll (1997) em O
herói de mil faces, onde, através de sua pesquisa, buscando comparar mitos distintos em
comunidades diversas, procura compreender as semelhanças que se tornam constantes em
histórias supostamente diferentes.
Esse tipo de narrativa é abordada por Eco (2015, p. 264) que sugere que esta
constância seja regida pelo que se chama de esquema iterativo, através do qual procura-se
proporcionar o gozo de uma nova leitura de consumo por intermédio da absorção de novas
informações. Contudo, costuma ser aplicado através do uso constante de um cadenciamento
de situações já pré esquematizadas — é inclusive fórmula de romances policiais, e é
observável na pesquisa de Campbell (1997).
O desenrolar de uma história deve apresentar conflitos quais devem ser concluídos,
de maneira a fechar este esquema: ―Definiu-se o prazer da iteração como um dos fundamentos
da evasão, do jogo. E ninguém pode negar a função salutar dos mecanismos lúdicos e
evasivos‖ (ECO, 2015, p. 265).
Assim somos, educados por esquemas repetitivos e que nos conferem prazer, de
forma que, substituem-se os mecanismos ―lúdicos" ou que possam gerar um dado complexo
demais a ser codificado, pela evasão proporcionada pelo gozo da repetição esquemática de
situações, a diferir somente a informação nova apresentada e "na maioria dos casos, reflete a
implícita pedagogia de um sistema e funciona como reforçadora dos mitos e valores vigentes"
(Idem, p. 282).
Se as obras dessa civilização do romance, como nos fala Eco (2015), são criadas
numa sociedade de consumo e tem por princípio um propósito universalizante, (buscando
formar um conjunto de idioletos estéticos e um padrão de consumo, ou, um padrão do que se
deva consumir), seria impossível uma obra erguida sobre formas de expressão consolidadas,
padrões esquemáticos, e uma ideologia "não-imposta" ter função crítica e liberatória? A esta
dúvida, Eco desenvolve uma resposta:
Como sempre, é questão de genialidade individual, de saber elaborar um
discurso de tal forma incisivo, límpido, eficaz, que consiga dominar todas as
condições dentro das quais o discurso, por força das circunstâncias, se move.
(2015, p. 283-284)
98
A resposta que ele desenvolve traça possibilidades de construção de obras de arte
fazendo uso crítico do Kitsch dentro de formas de expressão diversas. É evidente que cabe à
singularidade de cada indivíduo tornar a obra maior que a estética em que está inserida,
porém, via de regra, as obras de quadrinho não são mais do que o mass media permite:
A melhor prova de que a estória em quadrinhos é produto industrial de puro
consumo é que, embora uma personagem seja inventada por um autor genial,
dentro em pouco esse autor é substituído por uma equipe, sua genialidade se
torna fungível, e sua invenção, produto de oficina. (ECO, 2015, p. 285)
Quando um autor genial se torna produto de oficina e passa a ser replicado, é o que
pode chamar de idioleto estético ou fórmula, a qual o quadrinho Galvez, Imperador do Acre
não se torna exceção.
A obra de arte quando consolidada acaba por tornar-se um idioleto estético (ECO,
1980, p. 229-232) por tratar-se de fórmula que alcançou seu êxito, ela passa a ser copiada em
todos os seus estilemas, alguns farão por bem em copiar a fórmula como um todo, com
finalidade de obter mesmo êxito. Porém, quando o idioleto se consolida e forma uma escola,
ele postula um caso a ser estudado e esmiuçado que desmembra a si próprio, como que a
fórmula sofresse variações a depender do autor que a aplica.
Para Eco (2015, p. 90), ao copiar somente estilemas de uma dada obra de arte, não
nos desvinculamos de seus estímulos programados (ECO, 1980, p. 206), na verdade, somos
levados a evocar, de maneira mnemônica, sua origem deslocando e aprovando (ou
desaprovando) o sentido que ela carrega num contexto original para uma situação atual.
Utilizando o monomito como recurso narrativo, é possível notar um padrão semiótico
de derivações. Em termos de esquema iterativo, o monomito de Campbell (1997), fornece três
grandes arcos que se fazem comuns entre os mitos e que podem ser fragmentados em doze
etapas: a Partida, 'mundo comum', 'chamado à aventura', 'recusa do chamado' e 'encontro com
o mentor'; a Iniciação, 'cruzamento do limiar', 'testes/aliados e inimigos', 'aproximação da
caverna profunda', 'provação' e 'recompensa'; e o Retorno, 'estrada de volta', 'ressurreição/
retorno com auxílio externo' e 'retorno com o elixir/senhor de dois mundos'.
É importante salientar que este esquema funciona tal qual um idioleto estético, ou
seja, serve como uma regra que, a partir das circunstâncias ou unidades culturais, sofre
derivações para significar à comunidade (destinatários) que se quer atingir.
No primeiro arco a ―Partida‖, pode-se estabelecer algumas conexões em relação à
narrativa presente em Galvez. Para Campbell (1997), a jornada do herói começa com o
chamado da aventura que nem sempre é explícito:

99
Eis um exemplo de um dos modos pelos quais a aventura pode começar. Um
erro — aparentemente um mero acaso — revela um mundo insuspeito, e o
indivíduo entra numa relação com forças que não são plenamente
compreendidas. [...] O erro pode equivaler ao ato inicial de um destino.
(Idem, p.31).
Nesse primeiro estágio da jornada mitológica — que denominamos aqui o chamado
da aventura (figura 22) — significa que o 'destino' convocou o herói e transferiu-lhe do
centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida. Essa fatídica região
dos tesouros e dos perigos pode ser representada sob várias formas:
como uma terra distante, uma floresta, um reino subterrâneo, a parte inferior
das ondas, a parte superior do céu, uma ilha secreta, o topo de uma elevada
montanha ou um profundo estado onírico. Mas sempre é um lugar habitado
por seres estranhamente fluidos e polimorfos, tormentos inimagináveis,
façanhas sobrehumanas e delícias impossíveis. (CAMPBELL, 1997, p. 35).
Um erro ou circunstâncias do acaso e, se pesarmos a introdução de Galvez em
relação à essa observação, pode-se concluir que Galvez fazia nada mais que seguir com sua
rotina boêmia e, por motivos do acaso, para salvar a si próprio toma uma medida drástica:
salta a janela. Como já abordado nas individuações de sememas, a construção imagética do
ambiente sombrio e da queda de Galvez apresentam uma nova personagem: Luiz Trucco.

Figura 22. O chamado da aventura35

Esta personagem nascida da 'quebra da rotina' pode alarmar crises ou indicar


soluções, é o que o autor chama de figura do "arauto" (CAMPBELL, 1997, p. 31), e entre as
funções desta figura pode-se destacar esta:
A mensagem do arauto pode ser viver, como ocorre no exemplo em questão,
ou, num momento posterior da biografia, morrer. Ele pode anunciar o
chamado para algum grande empreendimento histórico, assim como pode
marcar a alvorada da iluminação religiosa. (CAMPBELL, 1997, p. 31).

35
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 11.
100
Luiz Trucco desempenha este papel. O que nos leva à outra etapa deste esquema
iterativo: a recusa do chamado (CAMPBELL, 1997, p. 35). Para Campbell (1997), esta
recusa é também metafórica, e, pode ocorrer como uma negação do herói em relação aquilo
que lhe é de interesse próprio. Contudo, se o herói segue com a negação do chamado:
A recusa à convocação converte a aventura em sua contraparte negativa.
Aprisionado pelo tédio, pelo trabalho duro ou pela "cultura", o sujeito perde
o poder da ação afirmativa dotada de significado e se transforma numa
vítima a ser salva. Seu mundo florescente torna-se um deserto cheio de
pedras e sua vida dá uma impressão de falta de sentido [...]. Tudo o que ele
pode fazer é criar novos problemas para si próprio e aguardar a gradual
aproximação de sua desintegração. (CAMPBELL, 1997, p. 35).
Quando o 'herói' recusa o chamado definitivamente, ele torna-se o homem comum e
que deve ser salvo. Entretanto, não é este o caso em Galvez. Dada à construção e o uso do
arquétipo malandro na obra, são moldadas circunstâncias ideais que não permitem uma recusa
deste 'herói':
Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da jornada
do herói se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã
ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as
forças titânicas com que ele está prestes a deparar-se. (CAMPBELL, 1997,
p. 39).
Em Galvez, a relação com este 'porto seguro', enquadra-se na figura de 'Cira', que
acaba por exercer a mesma função à narrativa:
Nos contos de fadas, pode se tratar de algum ser que habite a floresta, algum
mágico, eremita, pastor ou ferreiro, que aparece para fornecer os amuletos
e o conselho de que o herói precisará. As mitologias mais elevadas
desenvolvem o papel na grande figura do guia, do mestre, do barqueiro, do
condutor de almas para o além. (CAMPBELL, 1997, p. 40-41 grifo de
nosso).
Na personagem de Cira (figura 23), temos: o guia, o barqueiro, o auxílio que permite
ao ‗herói‘ atendera o chamado — ela é quem salva Galvez, auxiliando este a embarcar de
maneira clandestina num barco de freiras:

101
Figura 23: Recorte das figuras 15 e 1636
Atender ao chamado da aventura é, entre outras palavras, a fronteira entre o primeiro
arco e o próximo.
Através do ‗auxílio mágico‘ do mensageiro, o ‗herói‘ embarca ao seu destino: A
passagem pelo primeiro limiar. Onde o 'herói' enfim parte para além do mundo 'conhecido',
Campbell (1997) sintetiza essa etapa: "Além desses limites, estão as trevas, o desconhecido e
o perigo, da mesma forma como, além do olhar paternal, há perigo para a criança e, além da
proteção da sociedade, perigo para o membro da tribo‖. (Idem, p. 44-45).
É possível notar novamente que o limiar está para a trajetória de Galvez como os
limites do mundo civilizado, o mundo conhecido até então (figura 24 e 25). A partir daí
observa-se uma construção de atmosfera exótica e perigosa, coisa tão comum às narrativas
sobre a Amazônia e seus habitantes.

36
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 27 e 28.
102
Figura 24. Introdução à Amazônia37

37
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 30.
103
Figura 25. Introdução à Amazônia38

38
Idem, p. 31.
104
Ademais, essa narrativa suscita projeções de conteúdos libidinosos sobre as
personagens deste universo no qual Galvez encaixa-se perfeitamente, dado seu caráter
boêmio. Contudo, as personagens que sucumbem à suas investidas por se tratarem de recursos
meramente estéticos, e não terem desenvolvidas suas narrativas, acabam por ficar
encarceradas na figura de um mundo fantástico desconhecido e erotizado.
Avançando por dentro do monomito, Campbell (1997) demonstra alguns pontos que
podem ser observados dentro do quadrinho e que reproduzem a drástica mudança
circunstancial agora que o 'herói' tem atravessado os limites do 'conhecido'. São etapas irmãs e
que podem ser condensadas: o ventre da baleia e o caminho das provas.
O ventre da baleia (CAMPBELL,1997, p. 50) designa um conjunto de fatores que
aparentem a 'morte' do herói e seu 'renascimento'. Assim,quando Galvez deixa a 'civilização'
ele 'morre' para ela, enquanto atravessa e sofre as consequências do desconhecido, ele renasce.
E, o caminho das provas:
Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada
por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma
sucessão de provas. Essa é a fase favorita do mito-aventura. Ela produziu
uma literatura mundial plena de testes e provações miraculosos.
(CAMPBELL, 1997, p. 56).
Assim que é expulso da embarcação que Cira havia lhe assegurado (por 'desvirtuar'
uma freira), Galvez encontra-se num mundo 'fantástico' de uma selva amazônica, tal qual a de
um Inferno Verde, onde indígenas canibais capturam os missionários cristãos e os matam para
um banquete (figura 26).

105
Figura 26. Amazônia exótica39

39
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 33.
106
O caminho das provas se materializa aqui, nas façanhas de Galvez ao resgatar a freira
Joana — a quem 'desvirtuara' — à medida que evitava um combate direto. O herói nesta etapa
passa a traçar estratégias e reunir aliados, é o que Galvez faz.
Quando estabelecidas as estratégias e definidos aliados e inimigos, o esquema
iterativo de Campbell (1997) designa uma aproximação de uma caverna profunda, qual
procura ilustrar com o mito alegórico da descida de Psique ao mundo inferior: "Foi-lhe
ordenado, por fim, que trouxesse, do abismo do mundo inferior, uma caixa cheia de beleza
sobrenatural" (CAMPBELL, 1997, p. 57), que se trata também de uma metáfora sobre o
combate do herói contra o oposto de si mesmo. Uma jornada de autoconhecimento.
Galvez não passa por esta etapa de maneira literal, mas seus objetivos e seu caráter
boêmio entram em choque à medida que os aliados por ele conquistados passam a cobrar que
ele se posicione frente à questão do Acre, ao que ele só se decide e aceita quando junto à
proposta é colocado o valor de 50 mil libras (figura 27) ao aventureiro que se interessasse em
'libertar' o Acre.

Figura 27. Galvez aceita ir ao Acre40

40
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 44.
107
Em seguida, começam os esforços que podem ser categorizados como a próxima
etapa: Provação. É a partir daqui que Galvez realiza uma série de façanhas, tais como: entrar
no Acre num caixão (figura 28), organizar um micro exército (figura 29), conquistar o apoio
do coronel Paixão (figura 30) e tomar as terras do Acre (figura 31).

Figura 28. Entrando num Caixão41

Figura 29. Micro exército42

41
Idem, p. 48.
42
Idem, p. 45.
108
Figura 30. O Apoio do Coronel Paixão43

43
Idem, p. 54.
109
Figura 31.Tomando as terras do Acre44

Sem dúvida, a tomada do Acre pelo grupo de Galvez, pode ser categorizada como a
etapa Recompensa assim que Galvez é coroado Imperador do Acre (figura 11, p. 80).
Contudo, a narrativa entra em suas últimas etapas e elas são estreitadas pelo número de
páginas, mas ainda sim estão presentes no quadrinho: retorno, resgate com auxílio externo e
senhor de dois mundos (que podem ser aglutinadas).
Assim que atingido o propósito de sua empreitada o 'herói' deve fazer a estrada de
retorno:
Terminada a busca do herói, por meio da penetração da fonte, ou por
intermédio da graça de alguma personificação masculina ou feminina,
humana ou animal, o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu
transmutador da vida. (CAMPBELL, 1997, p. 114).
Entretanto, dada a construção de personagem de Galvez, fundamentado sobre o
arquétipo do malandro, é improvável que o fizesse mesmo que a personagem se mostre ciente
dos problemas que se instauravam em seu império (boemia ininterrupta, mortes estúpidas
movimentadas por paixões).
Dessa forma, como dito anteriormente pelo próprio Campbell (1997), as etapas se
cumprem mesmo que a contragosto do protagonista. "O herói pode ser resgatado de sua

44
Idem, p. 56.
110
aventura sobrenatural por meio da assistência externa. Isto é, o mundo tem de ir ao seu
encontro e recuperá-lo." (CAMPBELL, 1997, p. 120). Galvez não é exatamente resgatado, ele
é deposto pelo tenente Burlamaqui (figura 32) cumprindo então esta etapa.

Figura 32. Detalhe da figura 1845

E, finalmente a etapa senhor de dois mundos (figura 19). Segundo Campbell


(1997):
os mitos não costumam apresentar numa única imagem todo o mistério do
livre trânsito. Quando o apresentam, o momento é um precioso símbolo,
cheio de importância, a ser tratado como um tesouro e contemplado.
(CAMPBELL, 1997, p. 130).
Galvez torna-se o que Campbell definiria como um ser capaz "de ir e vir pela linha
que divide os mundos" (Idem, p. 130). Galvez não morre e é capaz de acessar os momentos de
sua 'glória' através da memória. É notável a presença de todas as etapas que caracterizam o
monomito de Campbell (1997) dentro da história em quadrinhos. Talvez, isso aconteça por
causa da própria indústria de quadrinhos, que popularizou recontando e reconstruindo mitos,
flexionando-os de acordo com as unidades culturais cabíveis dentro do público a qual se
destinam.

45
Retirado do quadrinho, Galvez, Imperador do Acre, p. 68.
111
Um ponto importante a salientar é que o monomitos e estabelece como réplica ratio
facili (ECO, 1980, p.162), ou seja, ele é percebido por Campbell (1997) como um esquema
iterativo recorrente, sempre replicando situações e etapas similares e, embora suas situações
nunca ocorram (ou não deveriam ocorrer) exatamente iguais, elas se repetem em termos de
funcionalidade, produzindo dentro de um padrão de sequencialidade outro tipo de réplica —
ratio difficili (idem, p. 162) — que trata-se de reproduzir um mesmo conteúdo ou ideia,
reformulando a forma de expressão através de derivações ou aplicabilidade com novas
informações.

3.7 Mitificação em Galvez

Embora, o conteúdo (do livro) em que se baseia este quadrinho possa ser
categorizado como sátira, como nos traz Cavalcante46 (2005, p. 72), não é possível observar
no quadrinho tantos nuances satíricos.
A construção imagética do protagonista estabelece as mesmas relações presentes na
produção de mitos contemporâneos, tais como os super-heróis estadunidenses. Segundo
Mircea Eliade: "Comportamentos míticos poderiam ser reconhecidos na obsessão do 'sucesso',
tão característica da sociedade moderna, e que traduz o desejo obscuro de transcender os
limites da condição humana;" (ELIADE, 1972, p. 130).
Enquanto o modelo arquetípico (malandro) permanece presente como sátira no livro,
o mesmo não pode ser dito do tratamento a esta unidade cultural no quadrinho. Um dos
princípios da mitificação, segundo Eco (2015), é a relação estabelecida através da unidade
cultural utilizada presente na obra e a comunicação direta para com os destinatários.
Deve existir uma unidade cultural que dialogue com o cotidiano vivido pelo
destinatário, de maneira que, não reste dúvida que a história se trata da de um personagem que
partilha das mesmas incapacidades do destinatário. Entretanto, nos quadrinhos de super-heróis
surge no alterego a ruptura desta unidade cultural, que não se trata mais de confeccionar uma
relação com o cotidiano do destinatário, mas com a experiência negada ao mesmo.
O uso desses fatores é observável na construção de diversos heróis: Clark Kent, um
homem fruto da grande depressão e subjugado pela industrialização em massa, e seu alterego,
Super Homem; Steve Rogers, um soldado patriota durante a Segunda Guerra Mundial que se
submete a um experimento que culmina no surgimento de seu alterego, Capitão América; e

46
Na obra: Dom Luiz Galvez na comarca da Amazônia: a transculturação em Galvez, Imperador do Acre.
112
Peter Park, um jovem estudante e órfão que sofre bullying e acaba por se tornar o Homem
Aranha.
O uso ideal da ruptura dessa unidade cultural na confecção de um herói mítico
consiste em fabricar o "sucesso" que Eliade (1972) fala em sua análise dos mass media. Todos
eles estabelecem essas dualidades entre aquilo que é de interesse e que não se pode obter, com
a ruptura dessa regra através do alterego. Todos apresentam alterego, a não ser Galvez.
A unidade cultural em Galvez, Imperador do Acre não gera ruptura. E nem precisa.
O caráter singular desta unidade cultural é a de deslocar-se, como aborda DaMatta (1997).Ao
mesmo tempo em que estabelece uma conexão com o destinatário, já 'educado' sobre o que é
o 'jeitinho brasileiro', o que é o 'malandro', procura-se desenvolver através de um esquema
iterativo presente em diversos mitos e folclores, e também reproduzidos à exaustão no cinema
de consumo, uma ideia de sucesso.
O malandro, mesmo contra todos os fatores, é capaz de triunfar e realizar feitos que o
homem comum não conseguiria, estabelecendo então a função sígnica de um caráter
mitificante. Quando o personagem Galvez não morre, ele não se torna aquilo que Eco (2015)
se refere como os heróis dos mitos clássicos, no entanto, por estabelecer todas as etapas dos
mitos contemporâneos, acaba por figurar no paradoxo dos mitos que não podem consumir-se,
atingir o próprio fim.

3.8 Acriano Heterodirigido

Com a história em quadrinhos Galvez, Imperador do Acre lançada em 2004, sabe-se


que no ano anterior comemorava-se o centenário do Acre (1899/1903 - 1999/2003) ou da
anexação de seu território ao Brasil, e a construção mítica desse personagem é importante
porque não trata-se somente da sátira e a crítica social que Márcio Souza realiza em seu
romance (livro), mas como essa figura pode ser instrumentalizada a partir de sua construção.
Na obra de Márcio Souza (2001) não está presente um endosso heroico nas
trapalhadas de Galvez, o autor procura retratar um colonizador às avessas numa crítica
àqueles que são os 'heróis' de nossas histórias, os desbravadores, os colonizadores.
Entretanto, se por um lado o quadrinho destoa pelo seu uso de recursos estéticos na
construção da personagem, por outro, desenvolve várias etapas que caracterizam
(confeccionam) a ideia de um 'herói. Se o quadrinho trata de confeccionar um dado para
simples consumo, este não pode ser arte, e se não trata de arte, logo trata-se de propaganda.

113
Esta propaganda certamente passaria despercebida se não abordasse justamente
alguns sememas presentes na historiografia oficial.
O uso ou abuso de uma unidade cultural e semântica tal qual a memória, torna-se o
controle de uma força social capaz de combater ou endossar o imaginário do homem
heterodirigido.
Existem pesquisas recentes em relação à construção de uma identidade acriana.
Acerca daquilo que Maria de Jesus Morais (2016) chama Acreanidade, talvez não se possa
falar de uma identidade acriana, mas sim ao que tange uma heterodirigência acriana. A que
está exposto o homem médio acriano? E, o que o quadrinho Galvez, Imperador do Acre
endossa como propaganda e que sugere uma métrica acriana de ser?
Eduardo Carneiro (2014), defende que:
O Acre foi inventado como brasileiro e o abuso da história se mostrou uma
necessidade para dissimular qualquer hipótese de imperialismo brasileiro e
para salvaguardar os acreanos dos possíveis processos criminais. (p. 89).

De modo geral, os livros de história e de literatura passaram a tratar a


"Revolução Acriana" como uma espécie de narrativa da comunhão
instauradora da identidade do ser acriano. [...] A ideia de um passado
fundador glorioso realizado por uma geração de heróis está ligada ao
interesse da elite gomífera em dissimular o jogo de interesses que envolviam
a "Questão do Acre". (Idem, p. 92).

Aproveitaram a simbologia do Centenário da Revolução Acreana para


colocar em prática o que consideramos como o maior uso político da história
do Acre já realizada. O povo assimilaria o "novo" como um retorno às
tradições fundadoras do ser acriano, pois a imagem do PT e de seus
principais líderes foram associadas aos dos heróis acreanos e ao do
sentimento de acrianidade. (Ibidem, p. 160).
Eduardo Carneiro (2014), observa que o uso de vocábulos hipocodificados ("povo",
"patriotismo") no discurso oficial é para atrair a opinião pública a favor de um propósito,
mesmo que trate-se do propósito de uma casta ínfima de sujeitos, já que representavam na
assinatura somente 0,4% dos habitantes da região banhada pelo rio Acre (CARNEIRO, 2014,
p. 87).
Em sua pesquisa Carneiro (2014) evidencia o modo pelo qual delineia-se um
surgimento de 'heróis' e um mesmo discurso, mesmo que se faça necessário 'esquecer' as
dissidências semânticas ou ocorrências anteriores a estes heróis do discurso oficial. Assim,
podem ser alinhados um conjunto de índices semióticos acrianos — 'heróis' — e pode ser
apontado um índice atual que mais se assemelha a estes.

114
Maria de Jesus Morais (MORAIS, 2016, p. 40), ao tratar as relações simbólicas entre
territórios ou espaços, e sujeitos e grupos sociais, permite observar a construção do discurso
da Acreanidade tal qual a de uma função sígnica. Portanto, como uma função sígnica, pode-se
observar que seus traços semióticos têm caráter simbólico e que o índice semiótico valorativo
é o seu início. A escolha da data comemorativa partindo do 'ínicio' das muitas revoltas dentro
de um arco como a "Revolução Acreana" traça um lugar de origem, aponta um 'retorno'
comunitário para um ideal de moral.
O maior índice semiótico dentro desses traços valorativos, não é outro se não a
construção de um herói (e de vários sucessores). Um herói permite, como índice semiótico, a
construção de um paralelo, ou, a construção de um herói outro, que caminha o mesmo trajeto.
Quando se ergue uma memória como a de Galvez e se estabelece como o ponto fundamental,
é como se se erguesse um espelho e apontasse a ele como uma projeção não sua, — que o
ergue — mas de um parâmetro regulador para toda uma comunidade. Quando trata-se, de
fato, de um reflexo do que se quer mostrar.
Segundo Morais (2016), citando Pollack (1989) "A identidade recorre à memória
com a finalidade de se definir, e ao mesmo tempo, a memória fornece as referências históricas
e geográficas para a reafirmação identitária" (MORAIS, 2016, p. 42).
Como o controle da memória se dá através de seleções feitas no presente, são
priorizadas seleções convenientes para a narrativa que se quer construir. Morais (2016, p.
45),aponta três elementos ―constitutivos da identidade‖ e que podemos tomar-lhes como
elementos fundantes de significado, ou funtivos: ―acontecimentos‖, ―pessoas e personagens‖ e
os ―lugares‖. A se saber, esses três funtivos a partir do momento em que estabelecem uma
função sígnica, poderiam se enquadrar na construção do homem heterodirigido. Um funtivo
―acontecimento‖, sendo exposto por uma instituição tão poderosa quanto o aparato estatal,
capaz de enviesar a leitura de tal funtivo sob uma única unidade cultural (a do Estado) é
assim, capaz de construir uma única leitura sobre estes acontecimentos. Passando a inserir os
ouvintes no acontecimento e gerar, não mais uma sugestão do que passara, mas sim uma
certeza.
Quanto a ―pessoas e personagens‖, a autora afirma que a ―lógica é idêntica‖
(MORAIS, 2016, p. 46). A construção de indivíduos que existiram ou de personagens
‗fictícios‘, não só é um informe do passado, mas sim uma construção semântica de índices
valorativos, como o que se deve ser, e a quem se deve seguir. E, à medida que são construídas

115
essas narrativas, são exaltados alguns personagens, inclusive, no campo lúdico, onde trabalha
a memória.
Os ―lugares‖ trata-se de um funtivo que pode ser fragmentado em diversos outros,
contudo, usou-se a definição de ―lugares de memória‖ (MORAIS, 2016, p. 47), onde existe
uma conversão de unidades culturais, como material, simbólico e funcional. Ademais, os
lugares de memória trabalham como Eco (2015, p. 253) percebe os mitos antigos que são
como fatos consumados e finitos, tratam-se de histórias que não suscitam questionamentos
sobre a veracidade, já que persistem vívidas na lembrança. Morais (2016), declara que:
O passado, seletivamente escolhido, pode se materializar na paisagem,
como, por exemplo, os sítios históricos. Deve ser preservado em
―instituições da memória‖, ou estar vivo na memória coletiva se for
constantemente referenciado. (MORAIS, 2016, p. 47).
E, com efeito, este passado visa sedimentar as bases de uma "acreanidade", fazendo
seleções que permitam traçar um caminho até os líderes atuais, mas não só, traçando paralelos
com a memória coletiva de um povo como destaca Morais (2016, p. 53-54) ao transcrever o
texto (na íntegra) do vídeo "Centenário da Revolução Acreana", que destaco a seguinte parte:
―O descaso do poder central impõe a radicalização da luta. Luiz de
Galvez declara ‗já que nossa pátria não nos quer, criamos outra‘. Em
14/07/1899, surge o Estado Independente do Acre com arcabouço
institucional claramente inspirado nos ideais da Revolução Francesa
de 1789‖. (Apud MORAIS, 2016, p. 54).
Morais procura apontar que "três eventos refletem momentos significativos da
construção da identidade acreana" (idem, p. 54): a Revolução Acreana (1899-1903), o
Movimento Autonomista (1957-1962) e o Movimento Social de Índios e Seringueiros das
décadas de 1970 e 1980. Através de sua pesquisa, a autora solapa as bases que constroem
esses mitos. Entretanto, eles não param de ser propagados.
Se o homem heterodirigido não questiona aquilo que lhe é imposto como identidade,
não é porque ele aceite, mas sim, é que não lhe são fornecidos os recursos didáticos, espaços
ou ferramentas teóricas críticas que lhe permitam contestar. Deve-se lembrar que o indivíduo
é capaz de subverter qualquer código como regra, mas quantas regras de um código não
podem ser subvertidas pois nem se pode contestá-las? Já encontram-se normatizadas.
Enquanto se produzem e reproduzem unidades semânticas, memórias, em favor de uma
construção identitária, procurou-se ater-se àquilo que é fortemente sugerido ao acriano
heterodirigido.

116
Segundo Morais (2016, p. 284), foram comemorados 6 centenários, dentro do
Centenário do Acre (1899/1903 – 1999/2003), contudo, o que causa estranhamento é o
começo da comemorações desses arcos,relativo ao início dos conflitos e não dos términos:
O Governo da Floresta iniciou as comemorações relacionadas ao centenário
da Revolução Acreana em 1999, com os 100 anos da primeira insurreição
comandada por José de Carvalho e os 100 anos da República de Galvez.
(MORAIS, 2016, p. 285).
Traçando um início oportuno e simbólico, como observou Gilberto Lobo (2015), em
sua fala "A Imprensa no Discurso de Criação do Acre", no IX Simpósio de Linguagens e
Identidades, início oportuno e simbólico não só por se tratar do início das comemorações do
centenário, mas também pela virada de século que tornou maiores as divulgações dos
interlocutores que tornaram possível este evento, ao que acrescenta Morais (2016, P. 287):
No discurso de Jorge Viana em solenidade comemorativa do Tratado de
Petrópolis, no Congresso Nacional, ele ressaltou que era com grande emoção
que se celebrava os 100 de uma história que ―nos legou tudo que temos e
somos‖: uma terra, uma cultura, uma identidade, um jeito de ser e de
enfrentar os desafios da vida.

Depois de Luiz Galvez e Plácido de Castro, com a incorporação do Acre ao


Brasil, os autonomistas lutaram para transformar o Acre em Estado, e livrá-
lo da condição de Território Federal administrado ―pelos de fora‖. Nas
décadas de 1970 e 1980, Wilson Pinheiro e Chico Mendes são lembrados
como os líderes que mobilizaram seringueiros e índios em defesa dos
territórios por estes ocupados (PÁGINA 20, 16/11/2003b apud MORAIS,
2016, p. 287).
De fato, traça-se assim, uma parábola ao início dos conflitos, sedimentando Galvez
com um 'herói',e, por maior que seja a coesão da unidade cultural malandro e a construção
satírica na obra original, não se faz perceber no quadrinho o mesmo uso dos recursos estéticos
que evidenciem tal posicionamento.
A construção de um acriano heterodirigido tem tudo para sedimentar-se através do
uso dessas funções sígnicas, principalmente no que diz respeito a uma métrica acriana de ser,
à acreanidade.
Se resgatarmos um recorte da revista do 1º Centenário sobre o que diz respeito à
acreanidade, se reproduz um texto de Elson Martins47 (ACRE, 1999, p. 48) sobre um suposto
conhecimento daquilo que os acrianos entendem por acrenidade e que aparece pela "intuição,
nas artes e, sobretudo, nas poesias."

47
Elson Martins foi um dos fundadores do Jornal Varadouro 'a voz das selvas'.Disponível em:
<https://goo.gl/dgfPKE/ >Acessado em 06/09/2017
117
O texto faz escolha clara sobre aquilo que deve ser lembrado, os símbolos regionais e
destacamos um trecho que, de acordo com o autor, para se construir uma:
sociedade lúdica, fraterna e feliz neste imenso planeta verde. Eu,
pessoalmente, sou favorável a que o Governo Jorge Viana trabalhe com
muito carinho as crendices e o saber local aprofundando nossa identidade.
(ACRE, 1999, p. 49).
Talvez, só esta passagem não seja suficiente para entendermos o quanto um índice
semiótico tal qual um 'herói', ou um funtivo com bases lúdicas, ou lugares da memória, pode
atingir uma comunidade a qual ele se encontra vinculado.
Se por um lado a fantasia pese menos que fatos 'verídicos', por outro, ela tem um
poder muito mais arrebatador, e, para não deixar dúvidas sobre a escolha das 'artes e da
poesia' através de uma intuição acriana, Elson Martins destaca e cita uma frase do cineasta
John Ford: "Quando a história interferir com a lenda — imprima a lenda" (ACRE, 1999, p.
49).
Com o caráter mitificante desse tipo de mass midia que é o quadrinho, pode-se
afirmar que ele preenche vários aspectos daquilo que constrói um mito contemporâneo.
Agora uma anedota que nos traz Eco, sobre o papel dos autores na construção de
obras lúdicas:
Interrogado sobre a razão que o levava a observar, ao esculpir um portal da
catedral, certas proporções canônicas, um mestre medieval teria aduzido
várias razões estéticas e técnicas, mas nunca teria sabido dizer que,
respeitando essa norma e difundindo um gosto proporcional, ele se aliava a
uma temática da Ordem que regia a estrutura Summae e dos códigos
jurídicos, a hierarquia do Império e da Igreja, e que tudo isso se estabelecia
como uma reafirmação contínua, às vezes teorizada, muitas outras
inconsciente, de uma convicção radical, isto é,da idéia de que o mundo fosse
criatura divina, de que Deus tivesse agido segundo certa ordem, e de que
essa ordem deveria ser reproduzida e confirmada em todas as obras do
homem. Assim, sem saber, o artesão que esculpia em caneluras
simétricas a barba de um profeta, dava, inconscientemente, o seu
assentimento ao "mito" da criação. (ECO, 2015, p. 263 grifo nosso).
A reprodução de regras semióticas e de um imaginário popular, na construção de
estereótipos e índices semióticos, é tão somente para a eficácia comunicativa do quadrinho e,
se a estética da obra é impecável, o valor e o seu uso devem ser sempre observados, algo que
o homem heterodirigido nem sempre consegue realizar.
Em a História da Beleza, Eco (2015) nos traça um conjunto de seleções de artes
visuais imortalizadas pela historiografia oficial, nos alertando que quando nos referimos à
Beleza como o justo, ou algo Bom, nem sempre fora assim. Essa correlação fora construída ao
longo da história.

118
Sabe-se que hoje ela está associada ao consumo, à possibilidade de usufruir daquilo
que achamos Belo, ou seja, um estímulo provocador de desejo (ECO et al., 2015, p. 8.).
Mesmo que se reconheça algo como bom/belo, estabelece-se uma relação de desejo de se
poder usufruir daquilo que possui tal carga sígnica, e mesmo que esta carga sígnica esteja
vinculada a um princípio ideal, ou nesse caso, marcas de dor e de uma morte heroica, ou a
dádiva de se doar às enfermidades do outro abdicando de si próprio, passamos a reconhecer
tal ato como bom/belo, todavia, provocador também de um revés, um ônus tão pesado quanto
o sacrifício, algo que o torne quase impossível, ou desejável, — seja por egoísmo ou temor
das consequências — de se alcançar. "Muitas vezes, para indicar ações virtuosas que
preferimos admirar a realizar, falamos de uma "bela ação‖" (Idem, p. 8).
Se refletirmos sobre a atribuição de belo algum bem que não suscita o nosso desejo,
é possível compreender que quando falamos de Beleza estamos lidando com uma carga
sígnica que podemos fruir, ou quando fruímos de alguma coisa por aquilo que é,
independentemente da questão de possuí-la ou não. (ECO et al., 2015, p. 8-10).
De diversas formas, isto é o que sofre o homem heterodirigido (ECO, 2015, p. 261),
não se permite a este indivíduo a possibilidade de escolha que fuja daquilo constantemente
sugerido ao limite do cansaço e que convergem em noções que embrenham idioletos estéticos
(ECO, 1980, p. 229-232) fabricados para se desejar e, assim, construir um ideal de Beleza, a
partir de uma carga sígnica presente em quadrinhos, cinema, entretenimento de uma forma
geral, ou se quisermos usar um termo mais definitivo, propaganda.
Fabrica-se um desejo contínuo, através de uma estética implementada, e se apresenta
em forma de idioleto, isto nos é sugerido como Beleza ao mesmo tempo que não nos permite
encontrar tal beleza, mas sim, nos entrega confeccionada e com a finalidade de saciar o desejo
por consumo. Uma anedota sugerida por Eco (2015) é que, aquele que anseia sedento por
água, não consegue notar beleza alguma na fonte de onde ela brota, e sua atitude não é outra a
não ser a de consumi-la até saciar-se.
O 'herói' da história está para a água, assim como a fonte está para a forma de
expressão (quadrinho). Somos saciados por uma narrativa que não nos gera conflitos.
Abraham Moles (2012) nos sugeriu que "o Kitsch é a arte [estética] da felicidade"(p. 33).
Entretanto, na ânsia por suprir expectativas, toma-se a estética da forma de expressão pela
arte, e atribui-se o valor de Beleza (justo?) aos recursos estéticos utilizados, Eco (2015),
observa que:
Se determinadas teorias estéticas modernas reconheceram apenas Beleza da
arte, subestimando a Beleza da natureza, em outro períodos históricos
119
aconteceu o inverso: a Beleza era uma qualidade que podiam ter as coisa da
natureza (como um belo luar, um belo fruto, uma bela cor), enquanto a arte
tinha apenas a incumbência de fazer bem as coisa que fazia, de modo que
servissem ao escopo a que eram destinadas — a tal ponto que se considerava
arte tanto aquela do pintor e do escultor, quanto aquela do construtor de
barcos, do marceneiro ou do barbeiro. Somente muito mais tarde, para
distinguir pintura, escultura e arquitetura daquilo que hoje chamaríamos de
artesanato, é que se elaborou a noção de Belas Artes.
Todavia, veremos que a relação entre Beleza e Arte colocou-se muitas vezes
de modo ambíguo, pois, mesmo privilegiando a Beleza da natureza, admitia-
se que a arte poderia representá-la de modo belo, inclusive quando esta
natureza representada fosse em si perigosa ou repugnante. (p. 10).
Os recursos estéticos são tomados por um valor de Beleza através de uma forma
poética, mesmo que se represente o repugnante, o uso correto dos recursos estéticos permite à
forma de expressão retratá-lo de maneira ‗bela‘. Não se pode saber o que é Belo, mas o herói,
mesmo que falho, é representado dentro do escopo de Beleza, sua falha ‗é compreensível‘, sua
fraqueza ‗é irrelevante frente suas conquistas‘,o seu caráter, se for questionável, ‗serve a um
propósito maior‘.
Se quisermos pensar como, por exemplo, o ideal estético na Grécia antiga, Eco
(2015, p. 37) aponta que não existia um ideal estético, ou uma teoria da Beleza autônoma até
pelo menos à idade de Péricles:
Não é por acaso que a Beleza se encontra quase sempre associada a outras
qualidades. Por exemplo, à pergunta sobre o critério de avaliação da Beleza,
o oráculo de Delfos responde: "O mais justo é o mais belo". (ECO, 2015, p.
37).
A Beleza, portanto, tratava-se de uma categoria não autônoma e que era atribuída a
um conteúdo pela funcionalidade que exercia. O "Classicismo projeta sobre o passado uma
visão de mundo moderna (sic)" (ECO, 2015, p. 29), o que se estipula Belo, durante o
Classicismo, não se pode dizer se o era em realidade no espaço/tempo em que fora construído,
mas sim, que se trata de uma seleção. Uma construção ambiciosa que procurava retratar a
realidade do mundo tal qual:
A estética da proporção assumiu formas sempre mais complexas e podemos
reencontrá-las também na pintura. Todos os tratados das artes figurativas,
dos bizantinos, dos monges de Monte Athos, ao Tratado de Cennini (século
XV), revelam a ambição das artes plásticas de alcançar o mesmo nível
matemático da música. [...] Os estudos matemáticos atingem a máxima
precisão na teoria e na prática renascentista da perspectiva. (ECO, 2015, p.
87 Grifo nosso).
Assim, passa-se a tomar o recurso estético, empregado através de regras de
semelhança matemática, como um julgamento de valor não mais estético, mas Belo. Então,
erguem-se em cada forma de expressão, um idioleto estético capaz de expressar um valor e a
120
transmiti-lo segundo métricas 'realistas' ou de proporções estéticas estilizadas (a se tratar dos
quadrinhos), o idioleto é certo de ser veiculado em par com um conteúdo.
Da mesma forma é o modo como tomamos uma obra de consumo por Bela, ou por
Arte, se ela categoricamente suprir as expectativas do destinatário, lhe confeccionando,
através da estética (presente no conteúdo e na forma), logo ela se torna Bela, e tornando-se
Bela, torna-se aceitável ao ponto de construir o desejo de fruí-la, assim, torna-se incontestável
a funcionalidade do conteúdo que ela veicula.

121
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os quadrinhos permitem um fator de escapismo complexo reproduzindo


pedagogicamente diversos recursos estéticos que já permeiam outras formas de expressão no
mass media. Dado o caráter formativo dos quadrinhos e sua derivação parasitária, procura-se,
aliado aos fatores inerentes a uma sociedade de consumo, produzir algo facilmente
assimilável e rapidamente consumível.
É notável na obra (em quadrinhos) a utilização de pelo menos dois recursos
poderosos na narrativa e que coadunam as funções mitificantes que Umberto Eco (2015) nos
alerta. Sem dúvida o conteúdo textual complexo que fora construído por Márcio Souza (na
obra livro) é proveniente de uma importante sátira e faz uso da unidade cultural do malandro
para a construção de um anti-herói 'tipicamente' brasileiro, no entanto, quando fora aplicado o
mesmo conteúdo na adaptação em quadrinhos, aliado aos recursos narrativos do esquema
iterativo mais frequentemente utilizado em obras de mass media e comumente conhecido
como 'a jornada do herói', permitem a construção mais largamente reconhecida como a de um
herói mítico contemporâneo.
O repertório imagético construído no quadrinho trata Galvez, ainda falho, mas como
um herói mesmo que o conteúdo textual de origem lhe negue tal fardo. Procurou-se ir além da
superfície da forma de expressão, onde há intento de se fabricar, através de regras de
congruência e semelhança o que seria belo e, portanto, atraente, atingindo também a
profundidade de conteúdos discursivos como a construção de normas heterodirigidas.
O acriano heterodirigido é abarcado por um conjunto de funtivos, dentro de uma
função sígnica, Acreanidade, que delineiam um único propósito unificador do que se pode ser
e a quem se deve seguir. As ‗direções‘ propostas por um conjunto de instituições não
procuram designar um único padrão comportamental, mas sim diversos, com a finalidade de
modelar uma norma que regule as massas e que, mesmo que o indivíduo subverta uma dessas
‗sugestões‘, possa ser capacitado ou estar inserido dentro de diversos segmentos discursivos
que não permitam a ele fugir à relação estabelecida pela função sígnica.
O herói não representa tão somente o Belo, mas como um índice semiótico, ele se
torna régua social para a comunidade onde ele está inserido, o norte de uma bússola. E, as
várias camadas em que são desenvolvidas uma personagem herói, como o jogo de unidades
culturais para reproduzir um dado que o destinatário já possui, ou a cadência narrativa que se
faz presente em diversos mitos e, principalmente, em obras de consumo, com a finalidade de

122
construir uma narrativa 'épica', tornam um escapismo outrora saudável, na reafirmação de
elementos discursivos presentes nos arcos traçados pela função sígnica Acreanidade.
A princípio, considerou-se estender a pesquisa alguns aspectos dos autores
envolvidos, entretanto, ao aprofundarmo-nos na teoria proposta por Eco(1980), e em seguida,
passar a observá-la em outras obras de sua autoria, fora percebido que seu método semiótico
busca individuar os aspectos da forma de expressão que estão inseridos dentro da semiótica.
Então, procurou-se abordar, não a particularidade como esses indivíduos desenvolvem a
forma de expressão em quadrinhos, mas sim aquelas funções sígnicas,ou conteúdos, que
encontram-se num imaginário popular e que, de alguma forma, transmitem informação com o
intuito de comunicar um dado preciso. Algo que é inerente às formas de comunicação e alheio
à arte.
Como proposto, procurou-se investigar os vínculos da imagem que denotam de
aspectos menos óbvios de sua construção. As cores, por exemplo, utilizadas para comunicar,
tem cargas sígnicas próprias dada a derivação de seu uso cotidiano pela publicidade, e o uso
constante e repetitivo acaba por veicular sentidos muitos limitados se associada à imagem
como vimos no quadrinho. As pesquisas utilizadas com a finalidade de proporcionar maior
profundidade ao que dizem as cores pertencem às áreas de design que investigam a
propaganda, e, aos poucos, fica evidente que o quadrinho também se trata de uma peça de
publicidade.
Entretanto, o uso correto da sintaxe da forma de expressão dos quadrinhos
transformam uma propaganda, neste caso de um herói fundador, em uma narrativa
emocionante, onde pequenos conflitos vão sendo eliminados assim que surgem.Esses
conflitos, posicionados estrategicamente ao longo de uma narrativa, constroem uma crescente
que coordena o olhar do leitor. De modo que, quando se utiliza essa construção narrativa
previamente observada em diversos mitos, torna a escolha da propaganda também um tanto
óbvia, e ela acaba por fabricar uma ideia de herói, falho, mas herói.
O fato da utilização do Kistch nos quadrinhos e na construção de heróis não é
demérito, e não torna inferiores os aspectos estéticos da obra, o Kistch como nos disse Moles
(2012), é a 'arte' da felicidade, de maneira que, ele permite um gozo por lidar com aquilo que
conhecemos e que conseguimos perceber/entender. Porém, a construção mítica presente no
conteúdo, e na condução da forma de expressão, seja nas cores ou na narrativa corrobora um
herói que fora baseado numa figura histórica e cuja memória ainda é disputada dentro das
narrativas oficiais no Acre, o que finda por construir um ruído nessa construção.

123
Um dos objetivos da pesquisa era entender como as regras semióticas são aplicadas
nas histórias em quadrinhos, e como, através desses recursos, uma forma de expressão passa a
comunicar um dado real, mesmo que seja transmitido com uma roupagem fictícia, já que, para
entender o uso e as cargas sígnicas, é preciso que se entendam os valores presentes em seu
uso cotidiano, mesmo que por vezes não se faça o questionamento desse uso.
Quando a imagem dentro dos quadrinhos é construída, ela é feita a partir de um
imaginário comum, utiliza-se este imaginário como uma fórmula já estabelecida e entendida
dentro de uma comunidade, senão, não poderia comunicar imediatamente. Como numa
função sígnica, a história em quadrinhos faz uso de estereótipos e/ou de lugares comuns na
memória, como um personagem histórico, ou um fato histórico, e passa a flexibilizar tudo
aquilo que se sabe sobre ele. Assim, com a função de comunicar imediatamente, os
estereótipos endossam um aspecto deste imaginário, um lugar comum acerca do lugar sobre o
qual se tece a história.
E, como vimos, a história ao ser fictícia não se torna menos importante. Através dos
mecanismos narrativos desta forma de expressão, é possível se identificar com o protagonista,
entender seus defeitos e sofrer seus problemas. À medida que se estabelece essa aproximação,
entre o conteúdo da obra e o público a qual ela se dirige, passa-se a conferir ao protagonista
uma espécie de autoridade como a de um herói, a quem se deve mimetizar as atitudes.
Ao se utilizar funções sígnicas que permitem ver um herói, é possível ver um herói.
E aqui, a definição do herói não é a da idade clássica, mas sim, a que Eco (2015) propõe,uma
definição inserida dentro de uma sociedade de consumo, o herói é quem consegue alcançar o
sucesso almejado, o item desejado ou o sonho de vida.
No quadrinho Galvez, Imperador do Acre, são realizados o uso de recursos estéticos,
tanto na forma quanto no conteúdo: narrativa visual, movimentação, cenas fantásticas,
estereótipos e um ritmo narrativo com uma cadência já conhecida pelo leitor, por estar
difundida popularmente.
Como fora evidenciado, o uso de unidades culturais e recursos estéticos são para a
comunicação imediata e rápida assimilação de dados.O uso da unidade cultural/arquétipo que
dialoga com o povo brasileiro (malandro), assim como um esquema iterativo que projete uma
narrativa de vitória, acabam por tornar a figura presente na historiografia oficial mais próxima
do homem heterodirigido, alguém com quem ele pode traçar um paralelo. Todavia, se a obra
de origem exerce um conteúdo auto-reflexivo (sátira), este não consegue se fazer evidente

124
nesta outra forma de expressão, e a torna um endosso aos discursos de poder do Estado,
contribuindo para a consolidação de um acriano heterodirigido.

125
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FILMOGRAFIA

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History of Anime, 2003). Direção de Andy e Larry Wachowski / Andy Jones / Mahiro Maeda
/ Shinichiro Watanabe / Yoshiaki Kawajuri / Takeshi Koike / Koji Morimoto / Peter Chung.
Produção de Michael Arias / Hiroaki Takeuchi / Eiko Tanaka. Burbank: Warner Bros.
Pictures, 2003. 2 DVD (102 min).

KILL Bill: volume 2 (Kill Bill: Vol. 2). Direção de Quentin Tarantino. Los Angeles:
Miramax, 2004. 1 DVD (134 min).

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