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A alter-filosofia de Thomas More: Onde a imaginação utópica

encontra a experiência histórica


Alexander Rezende Luz
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Neste texto proponho a hipótese de que o que está no cerne da obra mais conhecida de Thomas
More é a relação entre o conhecimento de maneira geral - e em particular o conhecimento filosófico
- e os problemas dos Estados e de seus cidadãos, que aguardam solução ou pelo menos alguma
forma de alívio. A partir de uma leitura que leva em consideração diversos detalhes do texto que
frequentemente passam despercebidos, sugiro que a maior contribuição desse texto seminal não está
na ideia da eliminação do dinheiro e da propriedade privada - que é o que primeiro salta aos olhos
do leitor, e que, portanto, está em um nível mais superficial - mas algo mais profundo, quase oculto
no texto: sua reflexão metafilosófica, isto é, a discussão sobre o que é, e quais objetivos deve ter, o
empreendimento intelectual humano. Sob essa ótica, o texto de More se apresenta como um espaço
para o contraste de dois paradigmas: o da filosofia tradicional, representada por Rafael, que atribui
erroneamente a perfeição à esfera do pensamento, e a imperfeição ao espaço da sociedade; e de uma
outra filosofia, aqui chamada de alter-filosofia, representada por More-personagem, que tenta
conciliar a imaginação utópica com a experiência histórica, considerando tanto uma como a outra
como elementos imperfeitos que podem ser aprimorados pela interação entre si.

Palavras-chave

Filosofia, alter-filosofia, utopia, Thomas More

Alexander Rezende Luz é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro no Departamento de
Letras e Comunicação Social. É doutor em Letras - Literatura Comparada, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro; mestre em Letras - Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Uberlândia; mestre em Cultura
Européia pelas Universidades de Göttingen na Alemanha e Groningen na Holanda.

MORUS – Utopia e Renascimento, 12, 2017


Thomas More’s alter-philosophy: where utopian imagination
meets historical experience
Alexander Rezende Luz
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Abstract

In his Utopia, Thomas More mentions very briefly the idea of an alternative (to) philosophy. In this
presentation, I will argue that this concept is crucial to the understanding of More‟s humanistic
project of finding a middle-ground between the vast possibilities of imagination and the constraints
of historical experience. This project is based mainly on four major influences on his intellectual
life: Plato, Lucian of Samosata, Cicero and Erasmus. Inspired by them, More‟s alter-philosophy
explores the challenges and opportunities that arise from blurring the lines which separate theory
and practice, language and action, imagination and reality, perfection and imperfection.

Keywords

Philosophy, alter-philosophy, utopia, Thomas More

Alexander Rezende Luz teaches at the Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, at the Departament of
Letters and Social Communication. He is PhD in Letters – Comparative Literature, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro; he has master‟s degree in Letters – Literary Theory, Universidade Federal de Uberlândia;
master‟s degree in European Culture from the universities of Göttingen, Germany and Groningen, Holland.

MORUS – Utopia e Renascimento, 12, 2017


A alter-filosofia de Thomas More

1. A filosofia tradicional como produtora de utopias

A ideia de que a ato de filosofar se confunde com o ofício do poeta ou ficcionista - que
parece nos ser tão contemporânea, por causa de Richard Rorty - já está presente em A Utopia
publicada em 1516. Nessa obra, o filósofo Rafael Hitlodeu é um contador de histórias, e essa não é
uma característica secundária, é algo que o define enquanto filósofo. Na narrativa, portanto, o
filósofo é um poeta, isto é, alguém que cria através da linguagem.
Vejamos alguns indícios para essa hipótese. Primeiramente, observe-se que, no livro II, o
leitor não acompanha uma viagem à Utopia, mas o relato de uma suposta viagem já concluída. O
único que alega conhecer a ilha chamada Utopia é o viajante Hitlodeu. À época das primeiras
décadas posteriores à descoberta da América, as narrativas de viagem dos navegadores eram
frequentemente vistas como pouco confiáveis. More sinaliza nessa direção quando coloca, com a
sua proverbial ironia, a descrição da sociedade de Utopia em um patamar ainda mais fantasioso do
que os relatos sobre Cila (monstro que vivia em um penhasco homônimo), Celeno (chefe das
harpias) e lestrigões (gigantes antropófagos) (More, 2004, p. 8).
Os feitos de Rafael, se verdadeiros, estariam entre os mais importantes da história mundial.
Aliás, são tão impressionantes que dificilmente Rafael encontraria algum letrado renascentista que
levasse sua narrativa a sério. Com base na sequência de lugares mencionados – Portugal, Brasil, Sri
Lanka, Índia, Portugal – , ele teria sido, nada menos que o primeiro a circunavegar o globo (Parks,
1938). No ponto onde Vespúcio decide retornar, Rafael teria se mostrado ainda mais destemido que
o navegador italiano, seguindo viagem. Como se isso não bastasse, alegará ter encontrado em uma
ilha a sociedade mais organizada e avançada do mundo. Em outras palavras, o filósofo português
não apenas teria sido o primeiro a dar a volta ao mundo, como também seria o grande descobridor
da solução para todos os males da vida em sociedade na Europa. A megalomania dessa história
deve ao menos levantar sérias dúvidas nos ouvintes – More e Giles – e também no leitor, quanto à
credibilidade do narrador. O próprio nome Hitlodeu, Hythlodaeus no texto original, oriundo
provavelmente do grego huthlos, que significa “absurdo”, e daio, que quer dizer “distribuir”, pode
ser traduzido livremente como “aquele que distribui/divulga absurdos” (More, 1965).
Há certos fatos ou características tão exagerados por Hitlodeu que se tornam fantásticos ou
impossíveis. Segundo ele, por exemplo, Utopus ordenou a escavação de 15 milhas –
aproximadamente 24 quilômetros – para transformar a península em ilha, e comenta que essa obra

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colossal foi realizada muito rapidamente. Mais adiante, explica que os cidadãos utopianos vestem
roupas capazes de protegê-los tanto contra o calor do verão quanto do frio do inverno, embora
sejam de um único modelo para todas as estações, etc.
A sequência de fatos ocorridos durante os cinco anos que alega ter permanecido na ilha é
completamente omitida. Também é importante notar que Rafael não conta coisa alguma sobre os
utopianos enquanto indivíduos, referindo-se a eles apenas como parte de uma coletividade
homogênea.
Finalmente, no diálogo, “a história de Utopia surge [no contexto] do esforço de Rafael em
defender o seu modo de vida” (Wegemer, 1995, p.138). More fala ao filósofo sobre a importância
do dever cívico de servir ao Estado, enquanto este tenta convencê-lo da necessidade de abster-se
dessa servidão, e distanciar-se da corte, como ele próprio faz. Hitlodeu cita três exemplos para
sustentar a sua tese, os quais Thomas não considera persuasivos o suficiente. “Somente nesse ponto,
quando Rafael fracassava em convencer More de sua posição, é que ele revela seu „conhecimento
secreto‟ sobre Utopia, um conhecimento que ele assegura ser a base de seu saber sobre a vida
humana e política” (ibid., p. 139).
Por todas as razões expostas acima, a hipótese de que o relato de Hitlodeu é uma
manifestação de sua imaginação, ocupando uma dimensão diegética paralela àquela em que se
passa todo o diálogo, configura-se como bastante plausível. No plano diegético que coabita com
seus interlocutores, More e Giles, a ilha de Utopia não existe enquanto lugar, mas apenas enquanto
discurso. Ela é uma ficção dentro da ficção.
Note-se, principalmente, que o filósofo produz um tipo específico de ficção, ele produz uma
utopia. Como diz Rorty (2016) sem se referir diretamente à obra de More, “a filosofia é o
empreendimento criativo de se sonhar com formas novas e mais humanas de se viver”. Apesar dos
5 séculos que os separam, Rorty e More parecem estar de acordo quanto a esse ponto. A Filosofia é
produtora de utopias.

2. A imperfeição do ideal imaginável

A utopia do filósofo Rafael parece, à primeira vista, ser bem intencionada. Não se pode
negar que ele demonstra uma certa preocupação com o bem-estar de outros seres humanos. A ilha
de Utopia possui qualidades econômicas, sociais, institucionais, urbanísticas, sanitárias e
hospitalares. Todas essas vantagens do país fundado por Utopus, no entanto, coexistem com várias

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desvantagens. O pensador português, entretanto, nem suspeita disso, pois só enxerga a metade
virtuosa de si e de sua utopia, ignorando as contradições e o mal inerente a seu próprio pensamento.
O esforço acadêmico de compreensão da república de Utopia e do personagem que a descreve,
frequentemente também caiu no equívoco de negligenciar os mesmos elementos.
Não que o filósofo e sua república sejam retratados nessa famosa obra literária como
exclusivamente maus, e muito menos como absolutamente perfeitos, mas como portadores tanto de
qualidades quanto defeitos. Sob esse aspecto, More-autor não faz com Rafael o que este faz com os
outros. Hitlodeu é implacável com seus contemporâneos, não vendo bondade ou sabedoria em parte
alguma, enquanto More-personagem sabe evitar o radicalismo, apontando as falhas do filósofo em
certos aspectos, mas dando-lhe razão em outros.
Uma vez que o conceito de utopia até hoje é associado apenas à perfeição, mas não à sua
outra metade indissociável, a imperfeição, serão listados a seguir as principais fragilidades da
Utopia de Rafael.

2.1 O fundador de Utopia foi um tirano


Graças ao uso da força, Utopus, ironicamente se torna dono deste país onde pretende acabar
com a propriedade privada. Ele é um invasor, não nasceu nem havia ali morado até então. Para que
ninguém seja dono de coisa alguma, e a desigualdade seja vencida, esse líder político precisa
tornar-se dono de tudo. Seu aparente altruísmo nada mais é, pois, do que egoísmo disfarçado, e, a
partir de então, o território passa a carregar seu nome: Utopia.

2.2 O governo de Utopia lucra com a ideia da proibição do lucro


O comércio e o lucro estão proibidos para os cidadãos de Utopia, mas não para as relações
de seu governo com outros países. O produto do trabalho dos utopianos é vendido para outros
países “a preços considerados razoáveis” em troca de mercadorias e de “grande quantidade de ouro
e prata. A longa prática que têm desse comércio permitiu-lhes acumular uma quantidade de metais
preciosos incrivelmente maior do que se poderia imaginar.” (More, 2004, p. 69).

2.3 O governo de Utopia discursa sobre a paz mas ama a guerra


O lucro obtido não é usado para melhorar a qualidade de vida da população mas “sobretudo
para contratar mercenários estrangeiros” (ibidem, p. 70) para combater em guerras.
Considerando que qualquer equipamento militar produzido em Utopia não custa nem um

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centavo ao governo, com um baixo investimento, o Estado tem chances de obter escravos e
indenizações na forma de dinheiro e propriedades “que podem lhes proporcionar generosos
rendimentos para sempre. No momento, possuem propriedades desse tipo em muitos países cujo
rendimento, ao longo dos anos, tem aumentado, pouco a pouco, de diversas maneiras” (ibidem, p.
111). Não é de se estranhar, portanto, que o país, apesar de se declarar pacífico, se envolva até em
guerras de terceiros. A ambição imperialista dos governantes de Utopia não tem limites. Apesar de
já possuirem uma enorme fortuna decorrente de suas transações internacionais, eles ainda investem
em guerras para aumentar ainda mais os seus lucros. Tudo é motivo para que a ilha de Utopia inicie
um confronto bélico. O fato de que as batalhas nunca ocorram na ilha revela que quando se sente
ameaçada, a república de Utopus realiza ataques preventivos, ou seja, apesar de alegar apenas estar
se defendendo, na verdade, o país ataca antes de ter sido realmente atacado.

2.4 O governo de Utopia usa o dinheiro para corromper


A legislação de Utopia tenta impedir que seu povo seja corrompido pelo dinheiro, mas seus
líderes não vêem nada de errado em corromper estrangeiros “comprando” sua colaboração. “Eles
sabem que podem, se a quantia for suficiente, comprar até mesmo os soldados inimigos, fazendo
com que lutem entre si abertamente ou por meio da traição” (ibidem, p. 70). A república de Utopia
incentiva que cidadãos de nações vizinhas matem seus próprios irmãos, se necessário, em troca de
dinheiro (ibidem, p.107). E apesar desses homens muitas vezes assegurarem a vitória de Utopia nos
campos de batalha, e estarem se arriscando para que os utopianos possam poupar a vida de seus
cidadãos, estes últimos não têm a menor consideração para com os primeiros. “Os utopienses não se
incomodam com o fato de um grande número desses mercenários serem mortos. Consideram que
estariam prestando um serviço à humanidade se a livrassem dessa raça repugnante e viciosa.”
(More, 2004, p.107).

2.5 O discurso oficial de Utopia é de tratamento equânime para todos mas há no país uma
elite com diversos privilégios
Os cidadãos comuns moram em casas idênticas e contíguas que formam “duas fileiras
contínuas, em cada rua, com as fachadas postas face a face” (More, 2004, p. 52), mas os sifograntes
– que são uma espécie de classe política – tem o privilégio de morar em edifícios especiais
“construidos a igual distância uns dos outros, com um nome particular” (ibidem., p. 64). Esses
mesmos sifograntes têm como principal função “zelar para que ninguém fique na ociosidade”

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A alter-filosofia de Thomas More

(ibidem, p. 57), mas “por lei, estão isentos do trabalho” (ibidem, p. 59); obrigam todos a trabalhar,
mas se dão o direito de escolher fazê-lo ou não.
Sobre a agricultura em Utopia, Rafael primeiro afirma ser esta uma arte “da qual ninguém
tem o direito de isentar-se” e que “é um dever imposto a todos” (More, 2011, p. 77). Poucos
parágrafos depois, diz haver até quinhentos homens e mulheres em cada cidade “que, tendo idade e
força para trabalhar, são dispensados de o fazer” (More, 2004, p. 59).
Por fim, vale mencionar que, a elite de Utopia restringiu o direito dos cidadãos utopianos
comuns de se deslocarem dentro de seu próprio país (ibidem, p. 68), mas há cidadãos utopianos
enviados ao exterior pelo governo para administrar seus territórios afastados, e que passam a viver
ali “magnificamente, como grandes senhores” (More, 2004, p. 112).
Temos aqui claramente dois códigos de ética: um para os cidadãos comuns, e outro para
Hitlodeu e seus alter-egos encarregados de governar Utopia.

3. Da (im)perfeição do estado e dos indivíduos

De acordo com a alter-filosofia de More, tão ou mais importante do que administrar e


melhorar os Estados seria a necessidade de que o estudante de Filosofia buscasse administrar-se e
melhorar-se. Justamente por isso, Rafael é um exemplo a não ser seguido.
Rafael evita os deveres cívicos e também seus deveres familiares. Ele encara seus familiares
e amigos como um fardo do qual se livrou ao doar-lhes tudo o que tinha. Com esse gesto, crê ter
cumprido o seu dever familiar e fraterno, e, consequentemente, não se preocupará com aquelas
pessoas, e nem eles poderão esperar ou exigir-lhe mais nada. More, entretanto, considera
fundamental dar atenção diariamente a todos os que moram com ele. Diz More também no
prefácio: “(...) quando retorno para casa, devo conversar com minha esposa, rir com meus filhos e
tratar com os empregados, tarefas (...) que devem ser realizadas a não ser que queiras ser um
estranho em tua casa”.
Seja na esfera pública, seja na doméstica, More é altruísta enquanto Rafael é egoísta. O
jurista inglês diz que, por generosidade, valeria a pena dedicar-se aos negócios públicos “mesmo ao
preço do sacrifício de vosso bem estar pessoal” (More, 2004, p.10). Já Hitlodeu demonstra que, na
prática, seu bem-estar pessoal está acima de qualquer interesse coletivo ou de terceiros. “Por
enquanto, vivo como gosto. Duvido que a maioria daqueles que vestem as belas roupagens da corte
possam dizer o mesmo” (More, 2004, p. 10).

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Há uma enorme discrepância entre os pesos e medidas que o protagonista aplica aos outros e
os que aplica a si mesmo. O autor enfatiza essa hipocrisia de Rafael de diversas maneiras. o filósofo
critica reiteradas vezes os cidadãos europeus de serem ociosos e preguiçosos (ver More, 2004, pp.
14, 16, 17, 19, 20, 57, 58, 59), ao mesmo tempo em que rejeita enfaticamente qualquer
oportunidade de trabalho.
Outro exemplo: Rafael declara o bem comum como sua preocupação prioritária, enquanto
despreza a vida pública e nada faz que não beneficie seu interesse pessoal. É essa dissociação entre
o que pensa e como se comporta que torna seu discurso cômico. Incapaz de compreender
profundamente o significado do que ele mesmo diz, Hitlodeu, inconscientemente, diagnostica nos
outros, o mal que carrega consigo: “Em outros lugares, falar-vos-ão do interesse geral, mas não
cuidam senão de seus interesses particulares” (More, 2004, p. 127).
O protagonista português glorifica a classe a qual pertence, consequentemente, realizando
um autoelogio. Sua visão autocomplacente, endeusa o Eu, e demoniza o Outro, estabelecendo a si
próprio, e sua profissão de filósofo, como superior a todas as demais. Para ele, os filósofos são os
únicos mentalmente sãos.
Cabe ao leitor atento identificar o humor decorrente do fato de que Rafael é capaz de ver o
argueiro no olho do próximo mas não vê a trave em seu próprio olho. E não apenas isso, More cria
essa dramatização de um indivíduo cego de orgulho criticando aos outros, para que o leitor cogite
sobre sua própria ignorância sobre si mesmo. Ao contrário do que o filósofo pensa, ninguém pode
afirmar-se completamente imune dos equívocos decorrentes do orgulho e do egoísmo. Isso quer
dizer que após o riso inicial, o leitor deve sentir empatia por Rafael pois, como disse Terêncio, nada
que é humano nos é estranho. A narrativa ilustra assim, a proposta de More e Erasmo de que a
crítica não pode estar separada da autocrítica.
Hitlodeu idealiza não apenas a república ideal, mas também um Eu ideal, tomando ambos
como sendo reais. Não cogita que os erros que identifica nos outros possam ser também os seus, e
nem que sua postura negligente em relação aos negócios públicos contribua para a continuidade das
injustiças. Sua utopia filosófica de conhecer a tudo exclui um elemento fundamental: o Eu.

4. Alter-filosofia e alter-utopia

No diálogo do Livro I, Thomas More, em sua crítica a Rafael, diz que ambos possuem
noções diferentes de filosofia. Rafael é inflexível e pessimista, dizendo não haver na corte, lugar

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A alter-filosofia de Thomas More

para a filosofia (More, 2004, p. 38). Em vista disso, o domínio da filosofia seria a theoria, um
espaço completamente distinto do domínio da praxis política, o que significa, por sua vez, que a
vita activa seria irreconciliável com a vita contemplativa, pois quem é sábio jamais terá espaço para
agir no mundo, e quem age não é capaz de conhecer a verdade. Para Hitlodeu, a ação do filósofo só
pode resumir-se, então, à criação e divulgação de suas ideias, e mesmo isso precisa ser feito longe
das cortes.
More-personagem discorda e diz haver “uma outra filosofia, mais adequada para a ação
política; que, como numa peça teatral, toma um fato e o adapta ao drama que se tem nas mãos e o
representa com elegância e conveniência” (More, 2004, p. 38). No original em latim “Sed est alia
philosophia ciuilior” que eu traduziria como “mas para outra filosofia mais política/civil”.
Há, portanto, dois paradigmas metafilosóficos sendo contrastados no livro, que nada mais
são do que duas interpretações da obra platônica: uma fundamentada na escolástica e outra no
humanismo cristão. A primeira prioriza a reflexão como um fim em si mesmo, enquanto a segunda
a subordina à ação. O humanista cristão, assim como o humanista cívico, pensa para melhor agir.
Apesar disso, a ação do (alter)filósofo não deve ocorrer com o intuito de concretizar sua
utopia exatamente como ele a imagina. A alter-filosofia de More, Erasmo e cia., produz um outro
de tipo de utopia que poderíamos chamar de alter-utopia, na qual as noções de perfeição e de ideal,
são fundamentais enquanto referências norteadoras das decisões humanas, mas que só permanecem
válidas se os indivíduos não caírem na tentação de acreditar já tê-las alcançado por completo, pois
“(…) não há saber humano que não seja contaminado pela escuridão do erro” (Erasmo, 1988, p.
32).
Rafael não tolera essa concessão. Partindo do pressuposto que suas ideias já são perfeitas,
conclui que tentar executá-las em meio à imperfeição do mundo sem que elas fossem contaminadas
seria impraticável. Dessa forma, Hitlodeu culpa a imperfeição alheia por seu comportamento
apolítico, e assim, se contenta com a contemplação do que nunca poderá vir-a-ser. Sua noção da
vida filosófica como sendo aquela na qual o sujeito se distancia da vida social para dedicar-se
exclusivamente à contemplação de ideias, implica em uma concepção de conhecimento como um
fim em si mesmo. O que Rafael contempla, todavia, não é conhecimento, mas autoengano. Ele tem
boas intenções, mas estas são distorcidas pelos defeitos que ignora em si.
A Alter-filosofia proposta por More é adequada à ação política por adaptar as ideias “ao
drama que se tem nas mãos” (More, 2004, p. 38) construindo um diálogo entre o imaginado, que é
inevitavelmente imperfeito, e o mundo exterior, tornando possível o aprimoramento de ambos. Isso

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é muito importante, repito: na alter-filosofia moreana o imaginado é inevitavelmente imperfeito


pelo simples fato de que somos humanos e estarmos, naturalmente simplificando em nossas mentes
uma realidade infinitamente complexa.
Assim, as limitações da experiência histórica surpreendentemente, não são um problema
para a implementação de nossos planos perfeitos, mas ao contrário, aquilo de que necessitamos para
sairmos da ingênua vaidade de supor termos alcançado a perfeição no pensamento. Além disso, é a
limitação do poder individual que evita o surgimento de tiranias. More espera que, ao invés de
invejar o grande poder dos reis, e sonhar ser como eles, os letrados ajam para assegurar que tanto
governantes quanto governados possam cobrar e serem cobrados acerca de suas atitudes, de forma
que ninguém esteja acima das leis, nem mesmo o rei.
Para os humanistas cívicos e cristãos, os Estados não serão bons enquanto não receberem a
ajuda dos cidadãos, assim como os cidadãos não serão verdadeiramente bons enquanto não
ajudarem os Estados aos quais pertençam. De modo paradoxal, para More, o ser humano tem que,
por um lado, submeter-se às limitações de sua condição, e, por outro, tentar superá-las.
O lugar “ideal” segundo a perspectiva dos humanistas cristãos, não é, desse modo, um lugar
livre de qualquer imperfeição, e, portanto, inexistente, mas aquele que, justamente por ser
imperfeito, oferece oportunidades de aperfeiçoamento. Talvez por isso, podemos ler em A Utopia
que antes de Utopus dominar o território, separá-lo do continente, e transformá-lo à sua imagem e
semelhança, o local, apesar de seus problemas, era chamado de Abraxa, nome do mais alto dos 365
céus descritos pelo grego Basilides.

Referências bibliográficas

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RORTY, Richard. Philosophy As Poetry. Charlottesville : University of Virginia Press, 2016.
WEGEMER, G. “The Utopia of Thomas More: A Contemporary Battleground”. Modern Age. vo.
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