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Rio de Janeiro
2017
Deyvison Rodrigues Lima
Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação
LIMA, Deyvison
398 f.
The problem of the relation between rationality and political action, that is, the possibility of
political order in the face of the finitude and plurality of the social body, is the central theme
of the discussions of this research. This problem calls into question the role of norms and
affections in the organization of concrete political life. The present thesis aims to propose an
understanding of this issue in the work of Carl Schmitt through the reinterpretation of his
arguments with emphasis in the category of the politician. The main demands of this research
are: to elaborate a status quaestionis on the author; to maintain that Schmittian thought is
guided by the argument of finitude from the pre-Weimarian to the post-Weimar period; to
demonstrate that this finite strategy causes a rupture of the dichotomy between transcendence
and immanence, that is, of the notion of political representation; and, moreover, to present the
Schmittian category of the politician from the notion of relation as a reflection on the
constitution of order through antagonisms, therefore, as a monism or imanentism that has a
political ontology. Finally, after elaborating a critical analysis of Schmittian theses, we have
developed the category of the political as an opening: the reading of a rupture between
immanence and transcendence in dealing with the difference between political and political,
that is, conflict and order from the character antagonistic as the ultimate datum of political
action and its consequences for the notion of community.
Conclusão ..............................................................................................................................383
Referências Bibliográficas....................................................................................................387
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INTRODUÇÃO
político, numa palavra, imunização do conflito. Ao esboçar uma relação entre político e
política, Schmitt parece entrever que se, por um lado, há uma ordem institucionalizada; por
outro, há a ameaça constante da stasis, mesmo com a pretensão de neutralização da ordem.
Isto significa que ao lançar a categoria do político, Schmitt considera que o político é aquela
relação ineliminável e ininstitucionalizável que a ordem política pressupõe, pois constitutiva
desta; porém, ao mesmo tempo, percebe-se que ao tentar estabelecer seu próprio fundamento,
revela-se uma ausência, ou melhor, o fundamento como ausência que se retira ou se recolhe
quando da estabilização normativa e provoca a abertura ou vazio de origem como
permanência da contingência. A questão que perseguimos não é a clássica questão entre céu e
terra, mas o entre-tempos, a relação entre político e política que denominamos de abertura. O
político nada mais seria do que uma forma do avesso da política: como um porão de coisas
antiquíssimas, o político revela que a origem da política não é outra senão ela mesma, ou seja,
não há bem ou natureza, justiça ou norma como fundamento, mas afetos que marcam a
diferença e o conflito, uma origem sempre presente do corpo político que se estabelece como
bloqueio dos afetos e hipostasiação da ordem, mas assume o papel dos múltiplos
antagonismos em função da negatividade e perspectivismo na constituição do corpo, mesmo
que haja a tendência ao enrijecimento e estabilização institucional. Portanto, constitui objeto
das investigações não apenas a diferença e o antagonismo que o político revela, mas a
diferença e o antagonismo entre política e político, ou seja, a diferença enquanto diferença
política.
Nesta pesquisa, trata-se de uma análise da teoria política e social que não privilegia a
compreensão da sociedade como um sistema de normas ou de leis nem a política como
cálculo ou representação através do Estado (soberania, autoridade, etc.). Trata-se de
compreender a política como constituição dos afetos e, sobretudo, como eles operam ou
interditam, possibilitam a transformação ou a estabilidade e o lugar da razão e da liberdade da
ação política nesta arquitetônica política dos afetos. Pretendemos demonstrar que Carl
Schmitt assume na ambiguidade de seus conceitos a multiplicidade e finitude na constituição
da política e não sua eliminação ou ordenação/hierarquização jurídica. Esta abordagem
significa escapar do caráter normativo dos discursos éticos, da certeza apodítica da ciência
política e, inclusive, das fronteiras entre ciência, filosofia e literatura. Trata-se de uma
abordagem indisciplinada em sentido estrito, o que não significa que não tenha método ou que
seja realizada a despeito dos modelos exegéticos, descritivos ou normativos vigentes nas
disciplinas filosóficas.
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Assim, elaboramos uma leitura de Schmitt, revista e corrigida, que coloca como
ponto cardeal o problema dos afetos, a diferença enquanto antagonismos, ao invés da filosofia
política standart que põe na origem do poder uma forma e unidade, precisamente, como
imunização dos afetos através da lei: trata-se, por isso, de uma teoria que considera a política
e o político como relações imanentes e qualquer transcendência (instituição) como algo
escavado a partir desta imanência, pois apenas como avesso um do outro. Este movimento das
relações e antagonismos não demanda uma mediação, mas uma simples alternância ou
dialética (negativa), pois cada episódio histórico apenas re-marca e de-limita o dentro e o fora,
o equilíbrio e o externo, em termos mais conhecidos, o amigo e o inimigo, como num jogo de
hegemonias no qual o próprio centro não tem lugar pré-determinado. Ao considerar a teoria
política por este plano, abdicamos de um discurso sobre a justificação da ordem substancial,
uma vez que não é decidida (deduzida) de uma norma anterior ou instaurada como mera
explicitação por uma dialética entre ser e aparência, infinito e finito, mas sim como relação de
antagonismo (polémos) que, no final das contas, refere-se a pensar os modos de aparição ou
co-instituição dos estados ou relações a partir dos quais há ação. A questão não é “por que a
ordem é válida?”, mas sim “quem domina?”, o que implica necessariamente relação, mas
também a fratura das simetrias. A resposta que provoca o curto-circuito no parti pris
filosófico é, segundo Schmitt, dada por um antagonismo imanente à efetividade do mundo
(que denominamos aqui como o das Politische), pois reside nas oposições concretas, no
caráter antagônico da existência como faticidade, ou melhor, como forma de vida, sem
reverter-se num dualismo metafísico ou num positivismo vulgar. Afirma-se nas investigações
a seguir a realidade como um continuum, ou seja, o fato último como relação e, conforme
expomos, como diferença na imanência, isto é, antagonismo ao invés da separação de níveis
entre universal e particular. O político como desconstrução da metafísica (política) aponta
para esta postura monista ou imanentista: qualquer transcendência é da ou na imanência, no
máximo como diferença – ou como propomos no último capítulo, como abertura – uma vez
que se, por um lado, para as teses que se apoiam nas cisões e nos dualismos metafísicos a
ação política é válida apenas quando se refere a um fundamento normativo nos molde da
bipolaridade transcendência-imanência; por outro lado, para a categoria do político, pensar a
transcendência é pensar fora da relação e dos antagonismos, é pensar, afinal, a ausência de
relação e não a relação como ausência de substância como é proposto.
No entanto, Schmitt não se aventura na categoria do político desta forma. Apesar da
anomalia do político proposto no período tardo-weimariano, mais especificamente, no final da
década de 1930, o autor ainda participa do campo semântico da modernidade. Tentamos
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leva em conta uma permanente Verwandlung contra a identidade autofundada do poder; (VII)
já que não é possível uma mediação (fundamentação racional), tampouco seria possível uma
autofundamentação, tal como alguma pressuposição da vontade de um sujeito autônomo, mas
sim uma pós-política ou uma política pós-fundacional, em todo caso, uma política pós-estatal
é esboçada como um movimento pendular entre politica e político. Este pêndulo pode ser
concebido como uma abertura da ordem (e não fechamento) a partir do antagonismo
ineliminável e ininstitucionalizável dessas instâncias originárias.
***
Com base nestas hipóteses, inicialmente, propomos uma leitura da obra de Carl
Schmitt como auxílio para solucionar o problema da relação entre finito e infinito em teoria
política: através do argumento do finitismo, ressaltamos a ruptura schmittiana das políticas da
transcendência e da exceção (normativismo e realismo fraco, respectivamente) e expomos a
categoria do político como diferença (realismo forte – o externo imanente se configura como
algo interior e co-instituição na própria identidade, por isso, relacional e marcada pela
ausência de substância); após isso, porém, deixamos Schmitt, mesmo ao apostar em seus
conceitos, no desenvolvimento da dialética entre político e política não como escolha de um
dos polos (realismos ou normativismo), mas sim como proposta de superação dos polos: com
a política da abertura, o que estava fora é considerado como centro e, a rigor, não é mais
compreendido como dividido ou separado, mas como relação ou instâncias co-extensivas, ou
seja, como um entre. A distinção não é entre uma abordagem realista ou monista que descreve
fatos ou afetos e outra abordagem normativista ou dualista que fundamenta a ordem em
direitos que servem de critério para as ações: nem absoluto realismo, nem absoluto
normativismo, mas como corpo político definido pelo movimento ou diferença que não
privilegia nem a instância da transcendência nem a instância da imanência, nem fato nem
direito, nem mediação nem imediação uma vez que a política da abertura mostra a relação
entre política e político e expõe o déficit político das teorias políticas. Como não há mediação,
mas sempre relação e antagonismo (diferença), não há apaziguamento ou sacrifício dos afetos
na constituição da ordem, pelo contrário, a stasis é mantida no interior de uma condição pós-
política (leia-se: política pós-estatal ou pós-fundacional) que apresenta um estado hegemônico
sempre suscetível à relação contra-hegemônica. O poder político não recebe uma validade por
seus atributos próprios ou substanciais, mas a partir das relações e dos afetos que o
constituem: não há poder que não se refira ao conflito, assim como não há conflito que não
remeta à relação e, por conseguinte, à diferença ininstitucionalizável. Esta diferença, como
veremos, não se refere apenas à distinção amigo-inimigo, meramente ôntica, mas sim à
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distinção entre política e político, isto é, a diferença entre política e político. Assim, contra a
hipótese hobbesiana, por exemplo, segundo a qual, há efetiva despolitização do corpo social
em favor do soberano; Schmitt, após ter elaborado uma defesa do conceito de representação
no final do período weimariano, ataca este conceito ao decretar sub-repticiamente sua
exaustão: se Hobbes, paradigmaticamente, abre a história da modernidade política
(mecanismo de representação) já impulsionado pelo processo de imanentização da
representação – pois representa-se não mais uma ideia, mas o corpo político em uma relação
interna – pode-se afirmar que Schmitt assume uma postura monista e libera o político da
identidade com o Estado e de conceitos modernos, tais como, validade, legitimidade e
justificação.
A leitura realizada nesta pesquisa procura traçar linhas de fugas e desenvolvimentos
a partir do pensamento político de Carl Schmitt ao invés de elaborar uma exegese dos seus
conceitos. A visão de conjunto que, num primeiro momento o leitor talvez espere encontrar,
logo se desfaz: o texto é montado sob o problema já apontado da relação entre imanência e
transcendência ou entre ação e racionalidade. Apesar de expor as viradas do pensamento
schmittiano, propomos uma leitura filosófica e prospectiva, evitando o mero comentário ou
uma abordagem retrospectiva do autor. Algumas tarefas básicas se somam à proposta de tese,
tais como, a reinserção do pensamento schmittiano no século XX e dos seus efeitos, mesmo
que subjacentes, bem como o esclarecimento das propostas e conceitos, interpretações e
movimentos em seu pensamento, além de, evidentemente, apresentar ao leitor um quadro de
interpretações acerca da obra, tendo em vista a inconsistência ou má-consciência de vários
intérpretes. Sobre estes, esperamos que a pesquisa demonstre que eles combatem uma noção
de “exceção”, “soberania” ou “político”, por exemplo, que o próprio Schmitt teria sido o
primeiro a contestar. Atacam por meio de simplificações sem perceber que, na verdade, suas
interpretações desafiam um fantasma ou expressam um fetiche. No entanto, se, por um lado, a
crítica aborda ideias inexistentes do autor; por outro, o autor que apresentamos também
parece um fantasma, ou melhor, de tantas matizes e possibilidades expostas a partir de suas
contradições e ambiguidades utilizadas pelas colorações políticas mais diversas, também
criamos nossa personagem-autor: por exemplo, dissociamos Carl Schmitt da metafísica e da
modernidade política mesmo que, ao final, perceba-se o parentesco íntimo entre eles e,
necessariamente, tenhamos que abandoná-lo e seguir no percurso que ele indicou. Em todo
caso, demonstramos as escolhas semânticas que a filosofia política realiza visto que também
ela é parcial, oculta seus pressupostos e toma posições e conceitos como escolhas, no limite,
infra-racionais.
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Tendo isso em vista, a estrutura deste trabalho reflete tal pretensão: no capítulo 1,
realizamos uma reconstrução do estado da pesquisa acerca da obra de Schmitt e analisamos os
comentadores já considerados standarts. O capítulo consiste numa abordagem das
interpretações acerca de Schmitt como uma reconstituição do status quaestionis. Talvez
apenas especialistas tenham paciência de passar a limpo os lances da recepção de uma obra,
mesmo assim, é importante tal revisão que mais se assemelha a uma pequena história de um
mal-entendido ou a tentativa de desfazê-lo, mesmo ao preço de criar outro mal-entendido. A
seleção dos autores se deu por relevância reconhecida nos meios acadêmicos e cada seção
possui, por tema, os autores que dialogam e constroem a trama schmittiana. Em geral, serve
como padrão para delimitar como a obra foi pensada e realçar a interpretação proposta nesta
tese. Neste capítulo, as interpretações e comentários abordados explicitam, segundo nossa
chave de leitura, uma intensificação do argumento de finitude que desemboca, apesar da
maneira assistemática, na tese sobre o político como relação e antagonismo, numa palavra, na
tese do imanentismo político.
No capítulo 2, propomos uma leitura de Carl Schmitt, elegendo como central o
tratamento finitista da instauração da ordem entre imanência e transcendência: se a questão
metafísica por excelência pode ser descrita como “por que há ser e não nada?”, a questão da
filosofia política seria “por que há ordem e não o caos?”, porém mesmo assumindo a questão
da ordem como um problema central em Schmitt, percebe-se que o surgimento desta ordem
não é pacífico e refere-se à contingência. Esta questão presente desde o texto Der Wert des
Staates und die Bedeutung des Einzelnen (WSBE) até culminar no Der Begriff des Politischen
(BP) é a chave para compreender a relação entre ser e aparecer que ganha contornos bastante
peculiares na filosofia política schmittiana ao ponto de provocar um ceticismo ou um
pragmatismo político e, a partir da porta deixada entreaberta, possibilitar a exploração dos
argumentos apresentados em meados da década de 1920 em direção a uma teoria política pós-
fundacionista. Carl Schmitt considera uma tese sobre o político que não articula mais a ação à
essência do Estado ou da política como mediação, mas que visa a política como tal, isto é,
rompe a articulação com a metafísica e com a teologia política – vinculadas ao argumento da
secularização – ao considerar o político como relação e antagonismo. Esta ruptura da ordem
do pensamento político provocou uma primeira reação nos âmbitos católicos. Daí as
acusações de que Schmitt teria adotado no final da década de 1920 um “imanentismo”,
“monismo”, “irracionalismo”, “existencialismo político”, entre outros. No entanto, também
encontramos problemas insolúveis nesta proposta, especialmente, a unilateralidade da solução
ao paradoxo entre imanência e transcendência através de um realismo forte que apenas inverte
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jurídica passa a ser concreta, porém, ainda refere-se à forma abstrata como locus da
legitimidade. Ora, daí nota-se a estratégia da finitude em ação mesmo com a ressalva
legitimista. Segundo Schmitt, seria necessário buscar em uma forma concreta o nexo entre
particularidade e universalidade que estariam co-implicados naquilo que se pode denominar
de excesso e exceção através da figura da Souveranität (soberania) como se a imanência
necessitasse da referência de algo além, pois apenas captando a forma abstrata de direito seria
legítima. A partir de então, a decisão estatal que ordena a realidade de modo a possibilitar a
Rechtsverwirklichung (realização do direito) joga um papel importante: a instância
determinante da ordem jurídica passa a ser concreta, mesmo que se refira ainda à forma
abstrata como locus da legitimidade. A hipótese da estratégia da finitude é confirmada pela
ação guiada por critérios contextualistas ou particularistas, embora ainda postule a noção do
político como mediação, ou seja, reconheça a estrutura teológico-político como forma jurídica
(representação) que se deve realizar.
Após a elaboração da teoria da Entscheidung (decisão) nos primeiros escritos,
Schmitt desenvolve a teoria da ditadura perseguindo ainda o problema da mediação
(Vermittlung). O que está em jogo para Schmitt durante a década de 1910 é a proposta de uma
mediação que torne possível uma forma concreta e a organização legítima do poder. No
Rahmentheorie schmittiano, não há vinculação necessária entre as esferas do ser e do dever-
ser, sendo a realidade empírica marcada por um desamparo normativo originário, isto é, pelo
domínio da contingência e da não-juridicidade. Entretanto, a justificação da ordem não se dá a
partir da esfera fática – pressuposto – mas apenas da relação ainda buscada entre normas de
direito e normas de realização de direito que, afinal, funciona como fundamento racionalista,
mesmo adotando a decisão como característica do poder. Denominamos esta estrutura teórica
de realismo fraco ou moderado ao apostar em uma validade ou perspectiva externa da ordem,
como se o finito se lançasse continuamente ao infinito, embora não mais como um continuum.
A importância do Die Diktatur é que no texto o pressuposto fático da efetivação do
direito é problematizado e a contingência originária da ordem jurídica é demonstrada, isto é,
transforma a contraposição entre normas de direito (ideal) e normas de realização de direito
(positivas) na oposição entre normas de realização do direito e normas de ação técnica
(sachtechnische Aktionsregel). A ditadura é o conceito jurídico que reconhece uma
Aktionskommission: uma autorização limitada para executar aquilo que for necessário desde
que se alcance determinado fim na realidade empírica (DD, p. XVIII). Dessa argumentação,
decorre o paradoxo da exceção segundo o qual para a realização das normas de direito é
necessária à ação soberana na realidade empírica que suspende tais normas para torná-las
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1
Em sede de teoria da democracia, sobretudo, no período conhecido como konkretes Ordnungsdenken, Schmitt
propõe uma democracia sem mediações (unmittelbare Demokratie), ou seja, uma democracia imediata ou radical
na qual a identidade e igualdade do povo seja estabelecida de maneira substancial e não apenas jurídica ou
formal: "die Unterscheidung von repräsentativer und unmittelbare Demokratie beruht darauf, daß der Begriff der
Repräsentation noch personalistische Elemente beibehält, während die unmittelbare Demokratie eine sachliche
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Identität zu realisieren sucht" p. 28, Der Begriff der modernen Demokratie in seinem Verhältnis zum
Staatsbegriff, pp. 22-28, in PuB. A investigação do problema da imediação torna-se uma preocupação constante
em Schmitt, não apenas na estrutura prático-política – como na formulação de teoria da democracia contra o
liberalismo ou a estatalidade moderna – mas também na estruturação teórico-política – por exemplo, na sua
crítica às posturas racionalistas e normativistas que impedem um pensamento político autêntico.
21
***
Em geral, na prática de comentários, encontra-se nada mais do que os problemas de
interpretação do próprio autor e, portanto, limita-se à percepção da coerência interna do
discurso, da pertinência ou consistência dos argumentos já tão bem analisados por inúmeros
scholars. O que distingue esta pesquisa dos demais comentários acerca da obra do jurista é, na
verdade, o modo de interrogar a obra como uma questão ainda em processo de construção. A
partir de uma leitura filosófica, acentuamos a centralidade da categoria do político como
relação e antagonismo e não simplesmente como conflito entre amigo e inimigo: esta
estratégia se revelou como um potente argumento na desconstrução da metafísica política,
sobretudo, quanto aos conceitos de Estado, ordem e representação. A partir disso, o percurso
desde as primeiras obras até o final da República de Weimar não vem por acaso: partimos da
hipótese de que o itinerário tomado pelo jurista se deve à intensificação do argumento do
finitismo contra a estrutura de mediação racionalista. Esta radicalização altera a noção do
político como mediação para a imediação como constitutiva da ordem. Neste momento,
assumimos a ponta de lança e tomamos a pretensão de “terminar” a virada imanentista ou
finitista em teoria política ao instrumentalizar os conceitos schmittianos em direção a uma
pós-política ou política pós-fundacional compreendida não mais como imanência, mas como
abertura: a abertura do antagonismo político que une e separa como fronteira, mas também
como diferença entre política e político, como um avesso que é, no final das contas, o mesmo
no qual se dá o pensamento da comunidade, qual seja, como antagonismo, mas também como
ausência.
Dessa forma, a perspectiva que se imprime nesta análise não seria a da releitura, mas
sim a da reescrita assumida: não pretendemos banir qualquer indeterminação da obra ou fixar
os limites para a interpretação, embora no segundo capítulo seja elaborado em grande parte do
texto, estritamente, um comentário no sentido tradicional. Na verdade, o trabalho consiste em
uma modulação e exame crítico do discurso, levando em conta a distribuição, classificação e
organização dos problemas, os planos e valores pressupostos. Ainda assim, a atividade
hermenêutica nesta pesquisa se aproxima mais da usurpação do que do mero comentário:
precisamente, a atenção está voltada não apenas para aquilo que Schmitt afirma – os
argumentos do autor, bem como dos principais intérpretes, todavia, são devidamente expostos
–, mas também para aquilo que ele não diz: este é o segredo ou arcano da obra, inventado ou
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não, apresentamos Schmitt para além dele mesmo, ou melhor, re-trabalhamos seus conceitos
numa espécie de versão revisada, corrigida e ampliada. Um exemplo típico deste
procedimento utilizado na pesquisa pode ser dado pelo seguinte: no Begriff des Politischen, o
autor afirma acerca da relação entre amigos e inimigos. Os comentadores repetem
corretamente os critérios do político, inclusive com a denominação que o simplifica
demasiadamente: a “teoria do amigo-inimigo”, alvo de crítica do próprio Schmitt no prefácio
à edição italiana de 1963. Em nossa leitura, deslocamos a ênfase dos polos e lançamos nosso
olhar para a relação e para o antagonismo. Então, ressaltamos a importância dos afetos na
constituição da ordem ao invés da narrativa que se perde na tentativa de explicar-se diante do
adversário que exige regras de comportamento e de fundamentação da ação. Ao produzir
desvios ou linhas de fugas interpretativas deste tipo, com controle e rigor acadêmico,
pensamos a partir do texto schmittiano sem nos fixar demasiadamente nele: nem dentro nem
fora, o que pretendemos é a partir do fim do seu discurso, no vazio e no não-dito,
desdobrando outras fronteiras. Ao invés de reforçar a já caricatural imagem de Carl Schmitt
como um criador de fórmulas brilhantes e interpretações contraditórias ou episódicas,
pretendemos desenvolver as contradições do seu pensamento: de um normativismo para um
realismo que se recusa a enquadrar o político em um esquema normativo; de uma postura
representacionalista e teológico-política para uma rejeição da transcendência e pós-estatal, de
uma exigência de ordem e de forma para uma ausência de fundamento da ação até afirmar o
conflito como pressuposto do Estado. Estas contradições são buscadas na obra, bem como por
quais percursos e argumentos o autor considerou para as alterações do itinerário.
Estas considerações tornam necessária uma explicitação metodológica: a questão do
sentido da obra, ou melhor, o espaço da obra que, em nossa concepção, não tem como
objetivo redescobrir suas origens, mas explorar novos discursos. Neste sentido,
deliberadamente, realizamos uma interpretação heterodoxa com o intuito de levar para a
filosofia política o torvelinho desconstrutivo que já exerceu influência em todos os outros
âmbitos do saber quanto à possibilidade de discussão do objeto da enunciação como algo
positivo. A pretensão da pesquisa não é apenas estabelecer um paradigma de interpretação da
obra de Carl Schmitt, mas, sobretudo, dar vazão ao pensamento do jurista e permitir que seus
argumentos ganhem força na criação. O leitor já advertido do caráter heterodoxo da pesquisa
em curso, também pode perceber mais uma idiossincrasia da escrita que se apresenta: um
exercício de buscar na obra schmittiana instrumentos categoriais para pensar a teoria política.
A rigor, no limite, não nos interessa quem foi ou como viveu, embora alguns dados
biográficos sejam apresentados, mas o que importa é a tradição ou os intérpretes que se
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ocupam da obra como algo a ser consumido ou assimilado: decifrar como Schmitt foi
incorporado e de quais elementos penetraram, talvez sem aviso prévio, na escrita e prática
política do século XX. Para isso, tomamos como paradigmático o procedimento sobre o
trabalho da obra que Claude Lefort nos apresenta.
A pretensão inicial do projeto colocaria dois clássicos da filosofia política moderna
em perfil: Maquiavel e Schmitt. Deste ponto de partida, abordar a discussão em torno da
questão sobre o político que pode ser vista nestes autores e elaborar a tese acerca das políticas
da abertura. No entanto, o tema schmittiano ganhou maior vulto (ou melhor, necessidade),
sobretudo, após a leitura do importante texto de Claude Lefort sobre Maquiavel. Desta leitura
fundamental, assumimos em parte a estrutura do trabalho e a proposta de elaborar uma
interpretação sobre um autor controverso que ainda carece, apesar de variados esforços, maior
volume crítico. Evidentemente, guardadas as devidas proporções com o pensador francês,
propusemos com esta pesquisa ao mesmo tempo consolidar o status e importância de Schmitt
como pensador político, mas também, como efeito colateral, elaborar uma interpretação
standart sobre o autor que sirva de referência aos estudos sobre sua obra. A pretensão seria
abarcar todo o período do seu vasto pensamento, selecionando os momentos mais importantes
e, sem dar margem à vexata quaestio sobre sua biografia, não tematizar assuntos prosaicos. O
que resta, parece-nos, é muito mais uma interpretação criativa do que a pretensão de retirar o
sentido autêntico do pensamento de Schmitt.
A metodologia desta pretensão segue de perto a proposta por Claude Lefort. Segundo
o autor do Le Travail de l’oeuvre Machiavel para compreender um pensamento, é necessário
compreender o campo que ele instaura, isto é, a obra e, por isso, torna-se preciso a
reconstrução das críticas que ela desperta ou como ele afirma “J'apprends à lire une oeuvre
dans le sillage des autres (...) le dialoge s’est noué avec les commentateurs et a modifié la
relation qu’il avait instaurée avec ele, changé ses questions, il em a tué certaines et fait surgir
d’autres, il a déplacé l’objet de son désir de savoir” (LEFORT, 1986, p. 24)2. Daí o capítulo
inicial de contextualização das interpretações que a obra schmittiana despertou no discurso
crítico: esta seria a “presença da obra”, como Lefort considera. O pensamento de Schmitt, da
mesma forma que o de Maquiavel, abre (mais precisamente, encerra ao esboçar algo novo)
um horizonte de reflexão sobre o político. Para compreendê-lo, é necessário reportar-se ao
2
“Le fait à penser est que je décide, que nul ne décide d'écrire sur une oeuvre du passé sans s'être enquis de ce
qui fut écrire sur elle. Le fait est encore que la fréquentation des interprètes ne donne pas seulement l'occasion de
puiser des informations utiles, de faire l'économie de certaines recherches ou s'assurer de l'originalité de ses
propres théses, mais qu'elle introduit à un debat dont l'enjeu, au fur et à mesure qu'il se précise, fait mieux
entrevoir ce que l'oeuvre met en jeu” (LEFORT, 1986, p. 24).
24
trabalho crítico despertado por ele, assumindo ou desdobrando suas teses, mas com a atenção
de que a obra não se encerra sobre si mesma. Adotando este critério lefortiano metodológico
de escrita, demonstramos as diferentes interpretações de Schmitt e como dizem respeito ao
“campo de questão aberto pela obra” como desdobramentos e modos de interrogar o
pensamento schmittiano. Assim, “com a permanência na literatura crítica, um poder é
adquirido, uma sensibilidade rica em novos órgãos desperta, cujo efeito é multiplicar a
presença do trabalho além de todas as expectativas, para divulgar o discurso (...) uma
variedade de movimentos, uma profusão de sinais imprevisíveis” (LEFORT, 1986, p. 25). Da
mesma maneira que Lefort, pretendemos investigar o campo de trabalho da obra que se faz e
refaz continuamente e reverbera a presença da obra schmittiana no pensamento e experiência
política do século XX.
Apesar das alterações de curso, esta pesquisa de doutorado revisita a pesquisa de
dissertação de mestrado, na qual concluímos que o pensamento de Schmitt esboçaria uma
espécie de pragmatismo político caracterizado, sobretudo, pela superação da relação entre
mediação-imediação ao optar pela finitude como lugar do político. Revisamos em parte
alguns resultados daquela tese precoce ao perceber que a opção pela finitude gera problemas
maiores do que a manutenção da dualidade. Reformamos no Capítulo 2 o debate sobre uma
possível – e acreditamos mais acertada – chave de leitura, certamente para compreensão da
obra schmittiana: as estratégias da finitude que não tinham ainda sido cogitadas na pesquisa
anterior. A leitura de Hans Vaihinger, complementando o debate sobre mediação em Kant e
Hegel, mostrou-se fundamental para elaborar esta perspectiva. Esta tese interpretativa também
parte de uma pista dada por Schmitt. No texto, Die Lage der europäischen Rechtswissenschaft
(p. 427), no período do Konkreten Ordnungsdenken, ele afirma que “a filosofia não consiste
para mim em um vocabulário de termos, tratado como um sistema filosófico dado, aplicado a
questões jurídicas, mas no desenvolvimento de conceitos concretos a partir da imanência de
um concreto ordenamento jurídico e social”.
Nas últimas décadas, o volume de interpretações consagradas à obra e vida de Carl
Schmitt cresceu consideravelmente. A seleção de interpretações aqui elencadas não pretende
ser exaustiva nem reconstituir a imensa quantidade de trabalhos sobre as questões que
envolvem o autor. Neste caso, os autores são escolhidos a partir de dois critérios muito
simples: em primeiro lugar, as interpretações já clássicas; em segundo lugar, as interpretações
que abrem espaço para outras interpretações. Pode-se afirmar que as primeiras são mais
“fieis” e as segundas menos “fieis”, porém esta tese, por sinal, se enquadra ela mesma no
segundo tipo de interpretação, aquele que pretende deliberadamente errar e ler nas entrelinhas
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para dizer o que o autor não disse. Assim, como esta tese se encontra no interior da
Renaissence schmittiana das últimas décadas, talvez já na sua última estação, parece-nos que
resta criar algo a partir de um autor que não existe. Todavia, esta já não seria, de partida, uma
tese fora do prumo?
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O que pretendemos neste capítulo pode ser considerado como uma forma híbrida de
resenha crítica e considerações ensaísticas. Ao expor alguns aspectos dos comentadores e
explicitar a tese que os motivaram, procuramos algum parti pris comum aos analistas de
Schmitt: ou bem partilhando, ou bem rejeitando, eles possuem contas a acertar com o autor e,
por mais críticas e exprobatórias que sejam, as análises trazem algumas chaves de leitura que
não têm sido plenamente exploradas e que permitem ler o jurista, sem dúvidas, como
pretendemos, para além dele. O objetivo do capítulo é apresentar o estado da arte acerca da
obra schmittiana, os usos e equívocos, os ditos e os feitos sobre Schmitt, além de, antecipando
um tanto nossa hipótese, esboçar uma compreensão da obra schmittiana através de uma chave
de leitura finitista até a elaboração de uma perspectiva imanentista ou monista em teoria
política: esta é, a contrapelo, o resultado das análises das interpretações paradigmáticas, como
que variações sobre o tema. Daí, a ênfase dada aos momentos, não raro, nos quais os
comentadores apontam para a imanência na obra do jurista. O que para as investigações
realizadas nesta pesquisa surge como o principal argumento schmittiano, é passado
despercebido, rejeitado ou subestimado seja pelo próprio jurista, seja por seus intérpretes.
27
3
A resenha foi publicada por Voegelin originalmente como “Die Verfassungslehre von Carl Schmitt. Versuch
einer konstruktiven Analyse ihrer staatstheoretischen Prinzipien” In: Zeitschrift für Öffentliches Recht 11 (1931):
89–109. A edição utilizada neste trabalho foi publicada na coletânea de resenhas do autor em suas obras
completas traduzidas para o inglês: The Collected Works of Eric Voegelin, Volume 13: Selected Book Reviews.
Edição e tradução de Jodi Cockerill e Barry Cooper. University of Missouri Press: 2001, p. 42–66.
28
última distinção entre constituição e direito constitucional” (VOEGELIN, 2001, p. 43), aquela
referindo-se à decisão política fundamental; esta, às leis positivas ou standarts jurídicos. O
comentador acerta quando assume como ponto central a decisão a partir de uma “particular
form of existence”, ou seja, de uma instância imanente como fundamentação das normas, pois
não seria um dever-ser, mas um ser (que se refere à noção de finitude da relação e da
imanência da ordem que, precisamente, ressaltamos em nossa tese) ou uma vontade que
determina a validade da ordem constitucional, mais precisamente, o ato de decisão do qual
emerge a constituição, tal como no excerto:
As leis constitucionais contêm normas padronizadas [Normierungen] de um
conteúdo variado que não tem importância para nós no momento. Para sua validade
como normas [Normen], essas leis exigem uma decisão política (a constituição), que
se repita de uma vontade, e assim por diante. A esfera jurídica, onde as normas
constitucionais também são encontradas, é para Schmitt não fundamentalmente
independente. Não é um sistema de normas encerrado em si mesmo, mas sim a
questão da base de validade e unidade e, além disso, ao ato de uma decisão política,
a uma grandeza decorrente de ser a origem de um "dever" (VOEGELIN, 2001, p.
43).
Já citamos as fórmulas pelas quais Schmitt expressa sua opinião sobre a realidade da
unidade da constituição. A unidade da constituição é derivada de uma vontade
política, uma constituição que dá força [Gewalt] cujo poder [Macht] e autoridade são
capazes de tomar a decisão geral concreta sobre a natureza e a forma de sua própria
existência política. A vontade política encontrada em uma existência política é a
4
Sobre o argumento da “normative Kraft des Faktischen”, cf. JELLINEK, 1929, p. 337 e ss. A ruptura da
simetria entre transcendência e imanência na obra de Schmitt tem início através do diagnóstico do gap entre
estas esferas e, logo em seguida, a aceitação das teses de Hans Vaihinger, sobretudo, a paulatina influência do
argumento da finitude, tal como demonstramos no decorrer desta tese. Mesmo assim, Schmitt não reduz a
constituição da ordem a um fenômeno estritamente fático: essa ambiguidade não fora percebida por Voegelin
que o acusou, sem mais, de imanentista, mesmo com as ressalvas de Schmitt contra o imediatismo, fanatismo ou
determinação da ordem pela força, pois, não obstante sua perspectiva pragmática, haveria uma instância de
transcendência no interior das relações concretas.
29
unidade máxima, uma por trás da qual Schmitt não penetra em sua discussão de
princípios, o que significa que ele interrompe o avanço na construção da realidade
política por meio de seu próprio sistema. Assim, tão grande quanto o passo além da
teoria atual sobre a realidade do estado pode ser, o conceito de vontade de Schmitt,
no entanto, não atinge essencialmente nada mais do que a categoria de propósito de
Jellinek ou "deveria" metodologicamente puro de Kelsen. Isso ocorre porque
Schmitt continua comprometido a crença na necessidade de uma base de unidade
(VOEGELIN, 2001, p. 52).
Em busca de um fundamento da unidade da vontade, Schmitt encontra na análise
histórica de institutos políticos a figura do plebiscito: “Nesses plebiscitos, o povo é o portador
da força que estabelece a constituição e a vontade política do povo determina a forma da
existência política. Mas a ‘vontade’ unificada, a ‘decisão’, se dissolve em uma multiplicidade
rica e estruturada de vontades” (VL, p. 52). A despeito da direta alusão às teses de Rousseau,
o que pretendemos acentuar na leitura voegeliana de Schmitt é que as análises, volta e meia,
apontam para uma origem sempre marcada por multiplicidade e contextos concretos, mais do
que por normas ou fundamento unitário. Neste caso, a oposição à compreensão normativa de
formas do Estado ou do direito se mantém, por exemplo, na exposição dos teóricos mais
representativos do normativismo: Jellinek e Kelsen. A concepção de Estado que podemos
definir, provisoriamente, como políticas da transcendência ou metafísica política, é tratada por
Schmitt, conforme Voegelin, da seguinte maneira:
A realidade social ainda aparece (para Schmitt) sob a categoria pessoal da existência
política, que é então comparada à existência humana individual. Para Jellinek e
Kelsen (...), a chance de construir a realidade do estado foi removida porque estavam
satisfeitas com uma síntese da unidade do estado que transcendia a realidade - o
primeiro fez isso em termos de categoria de propósito, em o sentido de Sigwart; o
último, confiando na aplicação de métodos puros, no sentido neo-kantiano, para
criar o assunto (VOEGELIN, 2001, p. 51).
Do ponto de vista da teoria política, Schmitt sustenta uma concepção de direito
deliberadamente contrária às teses neokantianas e, sobretudo, às teses kelsenianas que partem
de uma racionalidade pura ou de metodologia e situações ideais que seriam compreendidas na
crítica à metafísica, por exemplo, como meras hipostasiações. Para Voegelin, Schmitt elabora
esta crítica ao escolher algo como uma vontade concreta para a tarefa da fundamentação da
ordem, mesmo que se enrede em complicações conceituais entre a multiplicidade do contexto
e a unidade do conceito, entre imanência e transcendência e com a própria noção de vontade.
Voegelin refere-se a isso quando expressa a rejeição de Schmitt em relação à transformação
de normas concretas em estruturas universais: “Ele considera inadmissível tentar transformar
regulamentos concretos na base de um puro sistema de normas puras, porque todos esses
regulamentos são estabelecidos em um determinado local, são efetivos na prática e, por essa
razão, devem ser descritos como positivos. Na opinião dele, a pura teoria do direito faz
30
exatamente essa tentativa” (VOEGELIN, 2001, p. 45). Isso aponta para uma concepção da
política e do Estado mais atenta com o contexto no qual a ação é tomada do que com
princípios ou critérios de justiça, pois:
provoca uma espécie de pragmatic turn na teoria política – algo similar em relação à teoria da
linguagem na passagem das considerações acerca do significado como análise semântica de
sentenças para a análise do significado como prática social. O interesse que possuímos na
resenha de Voegelin é, precisamente, na excelente reconstrução do texto schmittiano que,
além das críticas precisas, reconhece em Schmitt esta postura pragmática. Ao invés de
assumir uma norma fundamental como um transcendental (abstrato), ou melhor, como um
externo (universal) que constitui o interno (particular), o texto de Schmitt em questão é
caracterizado por um pensamento cuja validade não recorre a dispositivos metafísicos, pois
rejeita a garantia de unidade da ordem apenas na instância normativa, ou seja, não considera a
unidade da ordem a partir da unidade do conceito, nem assume a simetria entre imanência e
transcendência como solução fundadora. A proposta de Schmitt, conforme Voegelin, é
atribuir estatuto ontológico de validade ao fático enquanto vontade concreta, como no trecho,
“A solução de Schmitt era atribuir o status ontológico à validade” (VOEGELIN, 2001, p. 47),
mais especificamente, reforçando seu aspecto pragmático (existencial) na base de uma
vontade política. Afinal, o mesmo procedimento que Hegel e, sobretudo, Schopenhauer e
Nietzsche fazem contra o kantismo e suas consequências numa tentativa, mesmo que anti-
metafísica, de recuperar a unidade perdida5.
Este diagnóstico de Voegelin é corroborado em diversos momentos do texto. Por
exemplo, ao elencar alguns trechos nos quais Schmitt levanta o argumento da vontade como
fundamento da ordem ao invés de uma norma, o comentador expõe um argumento que
exemplifica e modifica a noção de decisão em comparação com os textos anteriores ao
enfatizar o elemento da “vontade” ou do “existencial”6, tais como:
Algumas fórmulas: "na verdade, uma constituição é válida porque ela provém de um
poder de constituição e é estabelecida pela sua vontade" (9); "Considerar uma série
de regulamentos individuais como lei constitucional e tratá-la como uma ordem
sistemática e unificada é arbitrária se essa unidade não for derivada de uma vontade
unificada preconizada" (10); "A vontade do povo alemão, portanto, algo existencial,
estabelece ... a unidade política e constitucional" (10); "A unidade da constituição
não está na própria constituição, mas na unidade política cuja forma particular de
existência se determina através do ato de criar a constituição" (22); "A constituição é
válida em virtude da vontade existencial de quem a criou. Cada tipo de norma legal
padronizada, incluindo a norma padronizada do direito constitucional, assume a
existência de tal vontade "(22); "O poder de constituição é vontade política, isto
significa um ser político concreto" (76); "A palavra, vontade, descreve - em
contraste com a dependência de uma correção normativa ou abstrata - o caráter
essencialmente existencial do solo de validade" (76); "A palavra denota, em
contraste com meros padrões, uma grandeza ontológica como a origem do dever. A
5
Sobre a reação ao finitismo provocado pela teoria kantiana, cf. LOPARIC, 2009.
6
Basta considerar que em Politische Theologie a decisão está vinculada à realização da forma política, tornando-
se uma decisão pela ordem e não algo simplesmente imanente. Sobre isso, cf. Cap. 2 Políticas da
Transcendência.
32
vontade está existencialmente à mão, seu poder ou autoridade reside no seu ser
(VOEGELIN, 2001, p. 47).
Em suma, Voegelin arremata a tendência ao pragmatismo de Schmitt, afirmando que:
“A validade e a unidade da lei não devem ser criadas por um ato sintetizador de um sujeito
transcendental da cognição, mas sim pela síntese daqueles que implementam a realidade do
estado” (VOEGELIN, 2001, p. 47), ou seja, ao invés de pressupor um sujeito universal ou
uma estrutura lógica como produtora da ordem ou da síntese como faz Kant ou Kelsen, o
transcendental em Schmitt é considerado do ponto de vista histórico, ou numa palavra,
pragmático ou imanente, pois relativo à forma da existência concreta. Nas palavras do
comentador, mais uma vez: “Schmitt procurou um princípio unificador da constituição, mas a
unidade da constituição, juntamente com o conteúdo adicional da lei, não pode de modo
algum derivar do conteúdo preexistente de uma norma” (VOEGELIN, 2001, p. 48). Assim,
para Voegelin, ao procurar uma unidade para a constituição da ordem política, Schmitt apela
para a validade de alguma instância concreta ao invés de pressupor uma fundamentação a
priori, uma vez que para que a validade da ordem jurídica designa apenas que algo vale,
ressaltando o aspecto da vontade concreta e não seu ser como algo ontológica e
independentemente da vontade, ou melhor, a validade não implica em alguma existência além
da vontade soberana que legitima a ordem, apesar de, claramente, ainda guardar alguma
relação entre imanência e transcendência, ou seja, da representação em Verfassungslehre.
Voegelin afirma algo semelhante acerca da unidade política e do sujeito da decisão política
que determina o tipo e a forma da sua existência. A questão neste ponto é que a decisão se
mostra mais como algo declaratório (de um fato bruto ou concreto já existente) e não como
uma decisão constitutiva, ou seja, reforça a primazia da pluralidade e da contingência na
determinação da ordem, pois, para Schmitt, uma constituição é legítima quando é reconhecida
não apenas como a condição fática, mas também como ordem de direito, quando o poder e a
autoridade do poder que constituiu são reconhecidos por sua decisão. Assim, Voegelin é
bastante atento às implicações do realismo político schmittiano em Verfassungslehre: “o
poder e a autoridade da força que estabelece a constituição é reconhecido quando a unidade
política existe e o sujeito da força que estabelece a constituição pode determinar o tipo e a
forma de sua existência” (VOEGELIN, 2001, p. 50). Além disso, Voegelin reforça a
compreensão pragmatista de Schmitt, desta vez, demonstrando a filiação à noção de validade
sociológica de Weber:
seguem as normas que se destinam a ser normas de conduta pessoal e que outras
pessoas, de fato, se conduzem de acordo com as normas. O julgamento quanto à
validade neste sentido pode ser feito pelo teórico, mas também pelas pessoas que
vivem dentro da própria realidade social; assim pode ser que uma situação
prolongada de insatisfação com as normas e com aqueles que as estabelecem não
alcance o limiar da rebelião porque cada uma das pessoas dissatissei julga por si
mesmo que todas as demais seguirão as normas e que, como na individual,
enfrentaria consequências desagradáveis no caso de rebelião. Os julgamentos do
indivíduo que se segue à norma sobre se realmente seguem as normas, a "validade"
das normas, podem motivar a conduta individual e assim tornar-se constitutivo da
própria validade. Encontramos este conceito de validade "sociológico" nas
definições de Schmitt do estado (VOEGELIN, 2001, p. 48).
Apesar das análises críticas do jurista, Voegelin percebe que Schmitt ainda é
tributário dos tradicionais problemas em teoria política ao utilizar sem justificação prévia
termos da ciência política e da teoria do direito que limitariam suas teses, mesmo que os
temas da existência e da decisão concedam alguma peculiaridade numa literatura dominada
pela consideração estritamente normativa. Assim, ao assumir o complexo de problemas
tradicionais em teoria política que as categorias de unidade, vontade, poder, suporte (Träger)
de decisão implicam, Schmitt os teria reelaborado através de conceitos não triviais para a
teoria do direito, tais como, existência e exceção. Todavia, a categoria da vontade continua
sendo central, mesmo que ora remeta à discussão jurídica, ora remeta à política tal como
propõe Schmitt. Neste ponto, Voegelin detecta “o aspecto duplo do pensamento de Schmitt,
que combina suas próprias inovações com as formas tradicionais e as aplica ao problema
sistemático anterior do dualismo do ‘é’ e do ‘dever’, bem como da compreensão da esfera da
existência política” (VOEGELIN, 2001, p. 54). O que Voegelin analisa, porém, é o tipo e a
forma que a existência política pode assumir, mais especificamente, a forma da existência
política a partir, nos termos do comentador, da “bipolaridade entre representação e
identidade”. Voegelin acredita que esta bipolaridade é a chave para a compreensão da unidade
política em Schmitt, que se refere, em último caso, à questão da mediação ou da imediação da
ação política. Apesar de considerar que os princípios devem ser considerados conjuntamente,
havendo assim uma flutuação entre eles, os dois seriam exemplificados em intensidades
máximas, por um extremo, na monarquia absoluta (princípio da representação) até a rejeição
da mediação ou da representação como em Rousseau ou em democracias radicais (princípio
da identidade). Com efeito, o comentador avalia sobre a impossibilidade de realização pura
dessas formas: a permanência de um resquício de representação, bem como a impossibilidade
de alcançar a identidade ou homogeneidade.
Além disso, há algo ainda mais contraditório que pode ser a chave para compreender
a disputa acerca do termo “positivo” tal como Schmitt se apropria e Voegelin não percebe
com clareza. Quando discute sobre a unidade politica ser superior ou transcendente ao
34
conjunto de pessoas reunidas e não ser um dado bruto, apesar de fático, ou melhor, contextual
ou situacional; Schmitt se distancia de qualquer abordagem da unidade como uma estrutura
racional ou baseada em uma mera empiria ou fato anterior, pois a considera mais como um
resultado institucional das ações das pessoas, como uma transcendência da imanência, como
desenvolvemos nesta tese7. Apesar disso, Voegelin percebe algo similar ao considerar que:
Mas por mais que os cidadãos ativos possam ser agregados, não constituem,
portanto, uma totalidade ou estabelecem a unidade política do povo. Em vez disso,
eles representam uma unidade política que transcende a assembléia daqueles
reunidos espacialmente e transcendendo também o momento temporal da assembléia
(...) E ainda mais claramente do que em exemplos de ação democrática tão sem
mediação, nas democracias modernas elementos representativos (partidos,
parlamento, etc.) são inseridos entre as pessoas como governante e as pessoas como
governadas. E aqui enfrentamos um problema importante nos princípios de que
Schmitt infelizmente não funcionou: um estado não é fundamentalmente um dado,
mas está sempre presente apenas nas ações das pessoas (VOEGELIN, 2001, p. 55)8.
Neste contexto da crítica voegelinana, rebatemos com a compreensão de que esta
transcendência institucional em Schmitt seria uma transcendência da imanência, ou seja, tem
o mesmo caráter de transcendência que uma metáfora tem em relação ao seu referente. Apesar
disso, Voegelin afirma com razão que Schmitt não trata devidamente do tema (sobre a
natureza da instituição do Estado/direito), uma vez que transita inadvertidamente entre as
considerações positivistas (resquícios de um normativismo impregnado nos textos da década
de 1910 sobre a decisão) e relativas ao político como existência ou faticidade (um turn
pragmático, sobretudo, em Begriff des Politischen que passa a localizar nas relações de
conflito a origem do político e, a partir daí, da política). A resposta à Voegelin viria alguns
anos mais tarde com o pensamento institucionalista da década de 1930 e uma retrospectiva
crítica da própria obra.
Nesta medida, a unidade política não é meramente a assembleia dos cidadãos
reunidos, sua infinidade ou multiplicidade agrupada. Voegelin analisa a dificuldade que tem
Schmitt ao considerar a noção de unidade política a partir de uma perspectiva imanentista, isto
é, sem o apelo à forma transcendente. Por exemplo, quando o resenhista sustenta:
7
Sobre o argumento da transcendência da imanência, cf. Cap. 3.
8
Voegelin faz uma importante distinção entre a ação dos indivíduos, mesmo considerando-se como uma
unidade, e a noção de unidade política: esta teria uma transcendência em relação às partes imanentes, mantendo
assim uma distinção entre transcendência e imanência ou forma e experiência. Schmitt assume esta distinção até
meados da década de 1920, porém na Verfassungslehre e, sobretudo, no Der Begriff des Politischen, a noção de
mediação sofre alterações. Por isso, afirmamos que Schmitt propõe uma ruptura desta simetria ao contrário do
que Voegelin sustenta ao afirmar que Schmitt não teria pensado isso, ou seja, a diferença que determina que “um
estado não é fundamentalmente um dado, mas está sempre presente apenas nas ações das pessoas” (VOEGELIN,
2001, p. 55).
35
9
Evidentemente, numa interpretação ortodoxa de Schmitt, igualdade não seria meramente um fato nem uma
norma: enquanto o povo se configura como uma multidão plural e contraditória, a unidade política não seria algo
advinda do povo ou da imanência como mero dado natural ou empírico, mas sim através de um processo de
representação da unidade política, ou seja, a decisão pela ordem articula representação e constituição do povo
sempre através da unidade política.
10
Sobre a relação (e as diferenças) de Schmitt com o pensamento católico, bem como a influência sobre
Voegelin, vale a pena analisar o artigo de GONTIER, 2013: “Carl Schmitt and Eric Voegelin therefore represent
two rival figures in the contemporary (post-Hegelian) theologico-political order, which has abandoned the notion
of the state as a historical and worldly incarnation of the eternal kingdom. This scission of the eschatological and
historical occurs in both Schmitt and Voegelin. However, it leads to divergent ethical conceptions. For Schmitt,
the fundamental political virtue is the virtue of patience; against the figure of the Antichrist, who in Schmitt
represents the impatience of the liberal to establish the hereafter on earth, there stands that of the katechon,
keeping political society at a distance from the eschatological which will always remain unattainable form na
kind. In short, the bliss of the elect is not the concern of politics — which must be refocused on the reality of
man kind in this world. At this point, the profession of Christian Faith works in tandem with the defense of
Realpolitik. For Voegelin, on the other hand, the virtue of man (and of the citizen) remains structured by the eros
for the principle. It is certain that this eros cannot be achieved on the earth; the principle is experienced as
37
existing beyond the world and history, while remaining the ultimate objective of all human will” (GONTIER,
2013, p. 41 ).
11
Recentemente, Giorgio Agamben retoma a tese da contiguidade entre democracia e exceção não apenas no
âmbito conceitual, mas também por uma refinada análise histórica.
38
histórica - são as melhores que foram escritas sobre constituições desde Lorenz von
Stein (VOEGELIN, 2001, p. 63-64).
Neste contexto, ao invés de haver uma confusão entre conceito e realidade, a metodologia
utilizada por Schmitt é bastante consequente do ponto de vista do realismo ou, como
denominamos, de um finitismo político. Apesar disso, a construção do conceito de
constituição de maneira imanente, isto é, não referido a leis escritas nem a princípios formais,
é peculiar na tradição jurídica e, por isso mesmo, as incompreensões quanto à localização da
base ou fundamento do direito:
Ao longo de todo o livro, ele mantém o tom de que o mundo das idéias é ele próprio
política, mas ele faz declarações sobre a realidade do estado como se os conceitos
politicamente imanentes fossem ao mesmo tempo cientificamente transcendentes. O
ponto de vista do pensador politicamente criativo e do observador de fora da política
está constantemente confuso, e dessa confusão surge o tom categórico ao qual
chamamos atenção acima (VOEGELIN, 2001, p. 65).
Esta contradição é apresentada como um ponto falho na argumentação schmittiana. Mais
precisamente, Voegelin (2001, p. 65-66) analisa a confusão de níveis da argumentação
schmittiana como a tentativa do jurista de compreender enquanto unidade a realidade
institucional do direito e da política que não existe enquanto fato bruto, mas apenas como
princípio ou ideias. Na leitura que elaboramos da interpretação de Voegelin, apesar da
confusão bem detectada, desenvolvemos uma interpretação que, ao invés de apresentar uma
falha, apostamos na possibilidade de Schmitt ter percebido a evidente contradição e, não
obstante, percebeu a contradição entre imanência da realidade política e transcendência dos
conceitos político-jurídicos em questão, formulando a seguinte hipótese: a realidade (a partir
de onde se dá a decisão) seria (como se fosse) portadora das ideias, ou melhor, a partir dela
percebe-se que forma e decisão funcionam como base ou fundamento (não um fundamento
último, mas o único fundamento possível) pragmático: uma instância in re e não ante rem. Ao
tentar elaborar uma teoria da constituição, ele se afasta da teoria do Estado e das
41
consequências normativas e percebe que noções políticas são tiradas não apenas da história,
mas do contexto sócio-prático.
Sem entrar na análise de mérito da resenha de Voegelin, pode-se afimar que, mesmo
apontando um equívoco na argumentação schmittiana, o intéprete destaca a tentativa do
jurista de propor uma política pautada na experiência, não apenas histórica, mas como uma
ação que se dá apenas num contexto e, dessa forma, definida em termos contingentes. A
reflexão sobre a ditadura leva a isso, mas também as teses sobre a distinção entre o político e
a política publicadas no mesmo período da Verfassungslehre. O resenhista destaca este
momento da finitude no pensamento de Schmitt e a partir dele elaboramos nosso ponto de
partida como chave de leitura do jurista. O que Schmitt realiza é, de certo modo, passar do
imanente para o universal, dos fatos às normas, mas antes de pensar qual a natureza deste
universal (necessariamente histórico), é preciso levar a sério sua proposta pragmática. Mesmo
que Voegelin discorde do procedimento adotado por Schmitt, por exemplo, quando afirma:
Eles são atualizados por nenhuma perspectiva, mas sim são eles mesmos contidos
como os conteúdos da crença e como motivos políticos dentro da realidade política.
Eles próprios são elementos constituintes da realidade do estado. Na minha opinião,
seria necessário construir de forma correta e sistemática uma teoria constitucional
dessa maneira: primeiro transcendentalmente, como em nossas análises. Aqui, os
problemas da estrutura do estado são explicados para que a posição das idéias
políticas como fonte racional da unidade conceitual seja esclarecida. Em particular,
não deve haver dúvida de que as idéias políticas não são declarações sobre a
realidade, de modo que (como faz Schmitt) pode-se trabalhar de maneira
ininterrupta no mundo constitucional das ideias. Schmitt, acredito, não alcançou a
maior clareza sobre este ponto (VOEGELIN, 2001, p. 65).
No entanto, a leitura que Voegelin elabora se tornou, em parte, basilar para todas as
subsequentes. Por isso, pretendemos retomá-la em sentido diverso e expandir, potencializar
seus argumentos, sobretudo, em relação à acusação de imanentismo, tal como no trecho “seu
forte senso da realidade das idéias políticas levou-o a destruir o tratamento tradicional dos
problemas do estado, um tratamento que se dissolveu na teoria legal e reabrir uma perspectiva
sobre a totalidade da experiência do estado” (VOEGELIN, 2001, p. 65). A questão que
pretendemos analisar é, precisamente, o elemento pragmático do pensamento schmittiano,
uma estrutura conceitual que um intérprete atento como Voegelin percebe plenamente: “aqui
são explicados os problemas da estrutura do estado para que a posição das idéias políticas
como fonte racional da unidade conceitual seja esclarecida. Em particular, não deve haver
dúvida de que as idéias políticas não são declarações sobre a realidade, de modo que (como
faz Schmitt) pode-se então trabalhar pelo mundo constitucional das idéias de forma
ininterrupta” (VOEGELIN, 2011, p. 66). Na leitura de Voegelin, os termos “transcendente” e
“imanente” se referem, respectivamente, à fundamentação do ser e à abordagem de
42
No texto Anmerkungen zu Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen (Notas sobre “O
conceito do político” de Carl Schmitt) de 193212, Leo Strauss assume, por um lado, o ponto
de partida do jurista alemão quanto às críticas ao liberalismo; por outro, elabora comentários
acerca dos motivos, limites e contradições do texto schmittiano13. Segundo Strauss, o texto
schmittiano seria um libelo moral contra a despolitização provocada pelo liberalismo. No
entanto, ao mesmo tempo em que elogia a estratégia não liberal e a crítica à técnica, Strauss
sustenta que Schmitt possui uma argumentação contraditória: ao expor o fracasso da
hegemonia liberal e normativista, a descentralização do poder do Estado, a despolitização e
neutralização em marcha na modernidade, Schmitt aposta nas teses de Hobbes como um
“großen und wahrhaft systematischen politischen Denker” (BP, p. 64) e, por isso, cai em
contradição, pois elabora uma argumentação contra o liberalismo lançando mão do fundador
do liberalismo. Strauss levanta a tese de que a busca pelo político é, na verdade, uma tentativa
12
O texto de Leo Strauss consultado está presente na edição americana do livro de Carl Schmitt (The Concept of
the Political. Chicago: University of Chicago Press, 2007), com tradução de Georg Schwab da 2ª edição do Der
Begriff des Poltischen de 1932. Nesta edição, além do texto principal sobre o político, constam o The Age of
Neutralizations and Depoliticizations de 1929 [Das Zeitalter der Neutralisierung und Entpolitisierungen],
tradução de Matthias Konzen e John McCormick, e os referidos comentários de Strauss, traduzidos por J. Harvey
Lomaz como Notes on Carl Schmitt, The Concept of the Political, publicado originalmente como Anmerkungen
zu Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, in Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (Tübingen),
LXVII, nº 6, 1932, p. 732-749, texto enviado alguns anos antes para o jurista. Todas as citações dos comentários
de Strauss serão a partir desta edição e citados como (STRAUSS, 2007, p.).
13
A 1ª edição do Der Begriff des Poltiische foi publicada no Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik,
LVIII, 1927, nº 1, p.1-33; a 2ª edição aparece em 1932, com alterações importantes e acompanhado pelo Das
Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen (A era das neutralizações e despolitizações) (Munique:
Duncker & Humblot). A 3ª edição, com modificações contextuais (Hamburgo: Hanseatische Verlagsanstalt) e a
de 1963, edição que utilizamos em alemão, publicada pela Duncker & Humblot: Berlim – Text von 1932 mit
einem Vorwort unf drei Corollarien. Na versão de 1932, conforme a leitura de H. Meier (2006) estariam
presentes as considerações das notas de Strauss.
43
14
H. Meier (2006) é responsável por uma leitura coerente sobre a relação entre Strauss e Schmitt. Retoma a
relação oblíqua entre o jurista de renome e o jovem filósofo conservador a partir da análise respeitosa, porém
crítica no texto das Anmerkungen: a indicação de Schmitt para uma bolsa da fundação Rockfeller em Paris, o
elogio de Schmitt e a proposta para a publicação das Anmerkungen no mesmo periódico onde anos antes fora
publicado a 1ª versão do Der Begriff des Politischen, bem como as cartas de um devoto Strauss e sua admiração
e reconhecimento. O argumento principal de Meier se refere às alterações que Schmitt realizara em seus textos a
partir das críticas straussianas, sobretudo, a análise das sugestões e críticas ao texto de 1927 assumidas por
Schmitt na 2ª edição em 1932, por exemplo, no distanciamento do conceito do político dos âmbitos da cultura
para considerá-lo como grau de intensidade, o que marca uma mudança de estratégia do jurista que deixaria de
analisar uma instância social para uma ontologia na qual relação e não substância teria primazia. Além disso, a
compreensão sobre Hobbes que em 1927 era descrito como “de longe, o maior e talvez único pensador político”
para, em 1932, “verdadeiramente, um pensador político moderno e sistemático” (BP, p. 64). Entretanto, a
interação entre ou autores atende a uma história mais longa e intricada: pode-se citar, por exemplo, o livro de
1934 Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens como crítica ao pensamento decisionista de
Thomas Hobbes e guinada em direção ao pensamento da ordem que Strauss atribui à reação/assimilação de sua
leitura por parte de Schmitt e o livro de 1938 Der Leviathan in de Staatslehre des Thomas Hobbes como resposta
não apenas à Walter Benjamin, mas também para Strauss. Na tese Leo strauss’s recovery of the political: the city
and man as a reply to Carl schmitt’s the concept of the political (University of Sydney, 2002), Brett A.R. Dutton
sustenta que o diálogo prossegue ainda por mais algumas décadas com o texto The City and Man servindo como
continuação de resposta às teses de Schmitt. Bruno Simões em A Recusa teimosa (Universidade de São Paulo,
2010), também em tese de doutoramento, traça uma genealogia dos conservadores e detecta alguns resíduos e
influências entre Strauss e Schmitt.
15
Originalmente, cf. “Der Staat als Mechanismus bei Hobbes und Descartes”. In: Archiv für Rechts- und
Sozialphilosophie 39 (1937).
44
[e]sse ponto de vista nos faz esquecer que ‘cultura’ sempre pressupõe algo que é
cultivado: a cultura é sempre cultura da natureza [...] ela desenvolve as
45
16
Compreensão de Strauss sobre cultura é melhor desenvolvida em outro texto do autor. Por exemplo, na citação
a seguir, ele afirma que “o objetivo da filosofia é a cultura, a cultura da natureza. O que a natureza oferece ao
homem sem a atividade suplementar do próprio homem é suficiente apenas para uma vida de penúria. De modo
que, para a vida se tornar mais confortável, o esforço humano é requisitado, bem como a ordenação da natureza
desordenada. A cultura não introduz na natureza humana nenhuma ordem alheia à natureza, mas segue as linhas
vistas no interior da natureza. A cultura faz regularmente o que a natureza faz esporádica e casualmente. A
cultura é fundamentalmente método, apenas método” (STRAUSS, 1997, p. 90).
17
Neste aspecto é relevante uma distinção elaborada por Quentin Skinner (1996) sobre a via antigua (a partir dos
teóricos baseados em Agostinho e Tomás de Aquino e a via moderna, sobretudo com Ockham e os humanista do
Renascimento: enquanto a via antiga refere-se à lei natural segundo a qual as sociedades devem se constituir; a
via moderna, ao contrário, prescinde do fundamento natural e afirma as relações políticas na cidade. Segundo
46
SKINNER (1996, p. 421), “Outro grupo de humanistas, a quem os teóricos da Contra Reforma ansiavam ainda
mais por combater, eram os defensores da ragione di stato, em especial Maquiavel (...) identificaram com muita
clareza o ponto central para o qual se podia afirmar que convergiam as teorias políticas de Lutero e Maquiavel:
ambos se empenhavam, ainda que por motivos bem diferentes, em rejeitar a ideia da lei natural enquanto base
moral adequada para a vida política”. Em outro trecho, Skinner afirma que os tomistas desenvolveram uma
teoria da sociedade política em oposição aos hereges, afastaram-se da escolástica (concebida por Ockham) e
“recorreram à tese fundamental da via antiga, segundo a qual o homem tem a capacidade de usar seu raciocínio
para criar os alicerces morais da vida política” (SKINNER, 1996, p. 425). A teoria da lei natural, como rejeição
da via moderna (finitista) dá autoridade às leis a partir da adequação com os teoremas da justiça natural, de
forma que “para que as leis positivas criadas pelos homens assumam o caráter e autoridade de leis genuínas,
devem ser compatíveis, em todo os momentos, com os teoremas da justiça natural propostos pelas leis da
natureza. Assim, esta última fornece uma estrutura moral dentro da qual devem operar todas as leis humanas;
inversamente, o objetivo dessas leis humanas consiste apenas em fazer vigir, no mundo (in foro externo), uma lei
superior que todo homem já conhece em sua consciência (in foro interno)” (SKINNER, 1996, p. 426). A via
antiga se sobrepõe através de Suárez e dos Contratualistas aos teóricos da via moderna. Neste texto sobre o
político, Schmitt estaria próximo aos teóricos da via moderna; Strauss, da via antiga.
47
especificamente política” (STRAUSS, 2007, p. 108). Não obstante, Strauss sustenta que
Schmitt enfraquece seu argumento, pois ainda articulado com as polarizações próprias do
âmbito da cultura e, sobretudo, ao referir-se às aspirações liberais de autonomia, gera a
ambiguidade já referida no conceito do político, mesmo considerando que a possibilidade da
guerra não é apenas “o caso extremo dentro de um âmbito autônomo, mas é o caso extremo
por antonomásia para o ser humano, já que se refere à possibilidade real da eliminação física e
a mantém latente” (STRAUSS, 2007, p. 104) e, por isso, o político “não é um domínio
concreto, relativamente autônomo, entre outros. (...) não é de igual valor nem análogo ao
moral, o estético, o econômico, etc.” (STRAUSS, 2007, p. 104), mas demonstra que o político
é fundamental para as outras esferas, mesmo que dentro da finitude. Dessa forma, até mesmo
Strauss assume que Schmitt critica a autonomia dos diversos domínios concretos do
pensamento e da ação humana, revelando a originariedade do político, isto é, do conflito
diante dos âmbitos culturais. Apesar do restabelecimento da noção de um status naturalis,
este ainda ocorreria no interior da cultura, desfeito o vínculo com uma compreensão anterior
de natureza ou ideal da justiça e da ordem e, por conseguinte, aprofundando-se na fundação
liberal da política moderna. Esta segunda crítica aberta num dos flancos da teoria schmittiana
pode tanto quanto a primeira suscitar réplica, como a seguinte: ao criticar a localização do
político schmittiano no mundo da cultura, isto é, no terreno liberal, mesmo relativizando a
autonomia das “províncias de cultura”, Strauss aposta numa localização não liberal da
política, num retorno à natureza, como algo perdido e autêntico. Em todo caso, desperta a
possibilidade não apenas de uma compreensão do político como status do homem
(STRAUSS, 2007, §11) como também a possibilidade de uma política pós-liberal que em
Schmitt poderia ser pensada sem apelar ao aspecto fundacional (metafísico), pois o político
compreende apenas a finitude das relações humanas como desenvolvida no capítulo 3.
Na luta contra o Estado empreendida pelo liberalismo, Schmitt percebe o retorno do
político como conflito na própria compreensão liberal que se autodeclara antipolítica (ou
apolítica, em todo caso, pacífica, não violenta, contra o conflito, técnica, etc.). Não obstante a
sutileza de afirmar que a despolitização polemicamente expressa, mal disfarçado, seu sentido
político, Schmitt arrola mais um argumento para desconstruir as fileiras liberais: até mesmo o
pacifismo ou o discurso técnico-econômico traz consigo a marca do político, salvaguardando
a persistência do político como contradição e conflito no interior da hegemonia liberal. As
novas associações e formas sociais que reivindicam o fim do Estado teriam nesta
reivindicação um papel político e, dessa forma, apenas confirmariam a existência do conflito,
os movimento de neutralização e despolitização, pois, a partir disso, Schmitt afirma a
48
se, em última instância, o político está ameaçado, então a afirmação do político deve
ir mais além do reconhecimento da sua realidade: deve intervir de maneira ativa em
favor do político ameaçado, deve afirmar o político. Isto nos leva a perguntar
necessariamente: por que Schmitt afirma o político? (STRAUSS, 2007, p. 112).
No entanto, parece que Strauss comete um equívoco ao deduzir uma moral a partir de
uma afirmação de estados de coisas. Além disso, utiliza um salto injustificável no raciocínio
sobre o político: um “deve” que é interpretado como um imperativo categórico político ao
invés de mera descrição própria de um realismo ou finitismo político. Embora o argumento
não seja tão simples de desembaraçar, o autor mesmo prossegue por uma via contraditória. Se,
ao elogiar em Schmitt, parafraseando-o, assume como proposição válida, a tese de que “o
político não tem nenhum sentido normativo, mas sim existencial” (STRAUSS, 2007, p. 112),
não seria contraditório pressupor uma afirmação moral (no sentido de um valor transcendente)
49
18
MCCORMICK, 1994.
51
sacrifício da vida e o conflito não têm mais espaço numa concepção de mundo liberal na qual
os fins sociais não se orientam pela política, mas sim pela tecnologia, ciência, economia e
resolução de conflitos, entre outros dispositivos. Para Strauss, apenas uma crítica externa ao
mundo liberal é capaz de elaborar um diagnóstico da época. No entanto, enquanto Strauss
propõe o retorno aos antigos, criticando a argumentação “liberal” de Schmitt; o jurista elege
precisamente o mundo liberal para realocar esta irracionalidade ou estado de natureza: ele
demonstra que na origem sempre presente do mundo liberal há conflito e irracionalidade.
Mesmo assim, Strauss põe em marcha uma crítica da filosofia da cultura (Kulturphilosophie)
como crítica ao liberalismo: crítica à tolerância e liberdade do indivíduo contra a moral
inscrita na natureza; em última instância, ele critica a modernidade e sua forma política, o
liberalismo, por fixar-se na compreensão das coisas humanas ou da cultura e civilização e
esquecer-se que a verdade está – como antigos observam – na natureza. Assim, arremata a
análise deste argumento contra Schmitt, apontando ainda para Hobbes: a ausência do
questionamento sobre a melhor ordem política e, por isso, a falta de orientação moral à
sociedade que leva, por conseguinte, à dissolução e ao rebaixamento moral provocado pelo
liberalismo. Strauss afirma ainda que
teológico, tal como a tese de Heinrich Meier sustenta19. Daí, a interpretação de Strauss
segundo a qual a afirmação da maldade ou da periculosidade do homem (em última instância
a afirmação do político) seria uma afirmação da moral aparece com uma tentativa de dotar o
conceito do político de um fundamento ou elemento transcendente20. Strauss ainda apresenta
mais uma análise das consequências do conceito do político. Para ele, tomar a Gefählichkeit
como pressuposto do político significa assumir uma configuração de forças sempre em
oposição. Caso não ocorra, o político seria extinto. Este argumento straussiano, mais uma vez,
deseja e projeta mais do que interpreta: a pretensão de uma unidade ou instância ideal no qual
os conflitos fossem solucionados ou, pelo menos, houvesse uma resolução fora da imanência
das relações. Entretanto, a principal crítica presente na leitura de Strauss seria, na verdade, a
de que o autor do Der Begriff des Politischen põe a questão política da dominação estatal sob
uma consideração moral: a periculosidade ou maldade do homem seria o critério do político.
A partir daí, Strauss entra novamente em contradição na leitura, visto que afirma, por um
lado, que Schmitt trata das coisas humanas, mas por outro, interpreta que o jurista almeja o
conhecimento puro e completo por meio do político uma vez que afirma ser a questão
fundamental do Estado ou da política o problema do bem e do mal, lidas como maldade ou
periculosidade humana e ordem estatal e soberana.
Numa sexta crítica presente em suas Notas, Strauss dirige uma crítica conformada à
Schmitt ao descrevê-lo como imanentista, mais precisamente, ao acusá-lo de abandonar a
Veritas transcendente e fixar-se nas já referidas “coisas humanas”. Este argumento é
importante para a confirmação de alguns aspectos da tese que sustentamos acerca do finitismo
em Schmitt e gostaríamos de retomá-lo neste parágrafo, justamente numa análise de caráter
metafísico como a de Strauss. Tanto em Schmitt quanto em Strauss, a consequência mais
nociva do liberalismo é o individualismo, ou melhor, o modo de vida baseado no
esvaziamento e substituição do sentido da existência pela segurança e paz, mera satisfação das
paixões ou necessidades individuais que culminam na despolitização. Para ambos, o político
como relação de conflito e o eventual sacrifício das vidas, garante que o mundo não seja
apenas consumo ou entretenimento, pois dá à vida humana alguma dignidade ou solenidade,
num retorno ou nostalgia, em um autor evidente; porém, em outro, hesitante, em relação às
teses antigas. Apesar de considerar a afirmação do político como uma afirmação moral, como
demonstrado anteriormente, Strauss reconhece a importância da escolha pelo caso sério ou
19
Cf. infra, 1.5
20
Nossa tese vai de encontro a esta leitura: Schmitt teria realizado uma ruptura da simetria entre transcendência e
imanência. Apesar de não assumir as consequências de sua argumentação, apostamos na herança de seu
pensamento.
54
respeita todos aqueles que querem lutar; é tão tolerante como os liberais, só que com
a intenção oposta: enquanto que o liberal respeita e tolera todas as convicções
"honestas" (...) ordem legal e a paz, o que afirma o político como tal respeita e tolera
todas as convicções "sérias", isto é, todas as decisões orientadas para a possibilidade
real da guerra. Assim, a afirmação do político como tal se revela como um
liberalismo de sinal contrário. (STRAUSS, 2007, p. 120)
Para Strauss, Schmitt não apenas se move conceitualmente na perspectiva liberal – neste caso,
assumindo um pluralismo ou diferença como condição do político, o que, em nossa
perspectiva não o qualifica, sem mais, como liberal – mas também assumiria a neutralidade
liberal: através do princípio da inescapabilidade ou da necessidade do político, ele respeita
todos aqueles que querem lutar, mesmo que na luta não assumam uma bandeira ou coloração
específica, isto é, não é negado o atributo de político àquele que assume o conflito. No
entanto, a despeito de Strauss, pode-se compreender a estratégia de Schmitt como um
perspectivismo típico: jogar contra o liberalismo, pois sua pretensa neutralidade, isto é, a
afirmação de neutralidade que expressa a realidade política do liberalismo, sua luta contra o
político, afinal, seria ela mesma política. Schmitt demonstra ainda que o discurso não político
do liberalismo é, no final das contas, político e, dessa forma, nada escaparia desta relação. Ele
seria tolerante assim como o liberal, porém pelo motivo oposto. Schmitt desdenha, por
56
exemplo, do ideal de pacifismo declarado pelo liberalismo e sustenta, nas entrelinhas, uma
tese pluralista ou perspectivista segundo a qual pressupõe a existência concreta do outro, fato
ineliminável da teoria política. Strauss, porém, vê sob outra base este discurso e não esconde
sua fonte platônica na compreensão da relação política, pois “estamos sempre disputando
como outro e com nos mesmos sobre o justo e o bom” (STRAUSS, 2007, p. 188). Para
Strauss, na verdade, nem o conflito, nem o conforto, mas a excelência humana e
conformidade com a natureza: se a seriedade está ligada ao conflito, este só pode se dar em
direção ao ou sobre o justo. Isto é o que, em última instância, justifica o conflito, a separação
e inclusive o sacrifício da vida: retomar a política como reflexão sobre a melhor ordem.
Não obstante, neste ponto, Strauss encontra em Schmitt uma referência, apesar do
imanentismo, finitismo e pluralismo deste: há uma natureza ou periculosidade, algo irracional
relativo àquele medo e violência que é preservado na cultura ou civilização. Strauss encontra
um forte argumento, embora não desenvolvido, ao compreender o político como uma espécie
de fundamentação não racional, ou melhor, afetiva da política. Retorna-se a um irracionalismo
que caracterizaria a base da cultura como estado de natureza, mais precisamente, como “a
natureza humana na sua periculosidade (Gefähllichkeit) e no seu estar em perigo
(Gefährdetheit)” (STRAUSS, 2007, p. 108) e a solução estaria num retorno à natureza que
Schmitt efetivou apenas parcialmente. Neste momento, Strauss concede o elogio de que
Schmitt critica o liberalismo com a tese de que é necessário o retorno do status naturalis,
anterior à cultura e ao desvanecimento liberal, e o conceito do político como aquilo que é
mais sério, fundamental e extremo, mesmo que lamente ainda o fato de que Schmitt não
realoca este conflito fora da cultura, fora do mundo liberal 21. Todavia, este argumento de
Strauss parece uma interpretação contrária ao que Schmitt, mesmo a contragosto,
efetivamente faz: inserir no interior da ordem liberal o conflito. De certa forma, Schmitt
executa um movimento oposto ao de Hobbes: insere a luta como irracional inextirpável,
transforma a guerra civil em parâmetro, ou pelo menos, em origem da sociedade burguesa.
Método similar já tinha realizado na Politischen Theologie: a exceção como origem da ordem.
No entanto, conforme a leitura que fazemos (e Strauss ao negá-la, confirma-a) em Der Begriff
des Politischen não há uma ideia de ordem ou forma política a partir da qual a decisão se
refere. Numa lúcida leitura, Strauss arremata: “o que [Schmitt] busca é excluir todas as
21
Na leitura de Meier, esta crítica de Strauss teria sido levada a sério por Schmitt ao ponto deste modificar nas
edições seguintes do Der Begriff des Politischen a concepção do político como um domínio ou instância (relação
social que ainda permaneceria no âmbito da cultura) para uma análise de fundamento ou estrutura última do
político como intensidade. Esta passagem do critério do político de domínio ou instância para grau de
intensidade teria sido provocada pela recepção das críticas dos comentários de Strauss. Cf. MEIER, 1988.
57
possibilidades desse tipo [de juízo de valores]: o político não pode ser avaliado segundo
valores, nem mediar-se conforme um ideal; aplicado ao político, todos ideais não são mais
que ‘abstrações’, todas as abstrações normativas não são mais que ‘ficções’” (STRAUSS,
2007, p. 108-109). Assim, o político toma a significação de sua relação permanente com a
“possibilidade real de eliminação física dos homens” e, ainda segundo Strauss, para Schmitt
“não existe um fim racional, nem uma norma justa, nem um ideal social tão belo, nem uma
legalidade que possa fazer aparecer como algo justo que os homens se matem
reciprocamente” (STRAUSS, 2007, p. 109). A seriedade da vida social implica o político
como forma de vida oposta ao liberal ou burguês: no final das contas, o que Strauss não
enxerga, é que Schmitt expõe o conflito entre esses afetos diferentes, mas nem como mero
pluralismo e tolerância política, nem como formas políticas ou estruturas normativas.
A interpretação straussiana extrai a conclusão atípica de que Schmitt teria um
liberalismo moral voltado ao conflito como resgate de um status naturalis que permitiria
fundamentar a ordem a partir do bem. Inexplicável resultado exegético. O trecho citado por
Strauss para fundamentar seu desfecho contraditório é “‘a partir das forças de um saber
íntegro’ possa renascer ‘a ordem das coisas humanas’” (STRAUSS, 2007, p. 119) que
interpreta como “a polêmica contra a moral – contra os ideais e as abstrações normativas –
não o impedem de fazer um juízo moral sobre a moral humanitária” (STRAUSS, 2007, p.
119) e na tese de que Schmitt se esforça em ocultar o juízo moral acerca do liberalismo. Na
afirmação do político como um caráter inelutável, a ordem em Schmitt também seria não uma
necessidade (falta-lhe o pressuposto essencialista que Strauss exige), mas uma afirmação
moral da necessidade da ordem. Isto implica numa séria ameaça à tese do político, mas
também uma possibilidade de compreensão não essencialista da sua teoria, mesmo,
fenomenologicamente, sustentando a permanência do Estado e da ordem, ponto fraco em sua
teoria que Strauss percebe. Neste contexto, Strauss finaliza as Anmerkungen com a pretensão
de trazer Schmitt para suas fileiras: o jurista teria como objetivo o “saber íntegro” (e não o
perspectivismo que o conceito do político implicaria), ou seja, “a origem não corrompida e
não a natureza das coisas humanas” (STRAUSS, 2007, p. 122) e, além disso, Strauss remete o
político para além da realidade e conflitos históricos: não vincula o bem e o justo à existência
política concreta, mas sim ao conhecimento puro ou transcendente que ele tem em vista. Entre
os dois conservadores, apesar de concordarem na crítica ao liberalismo, Schmitt aceita a
ausência de transcendência, a impossibilidade do dualismo entre céu e terra e as
consequências de uma época secularizada que transformaram o pensamento político, mesmo
que ainda afirme a necessidade da ordem.
58
política não liberal ao fazer frente às teses políticas no terreno mesmo delas. Em todo caso, a
crítica de Schmitt ao liberalismo teve, segundo Strauss, o mérito de reestabelecer o estado de
natureza como fundamento da cultura e, sobretudo, o político como o estado fundamental do
homem. Se Hobbes privilegiou o medo com o afeto constitutivo da ordem, Schmitt – mesmo
na leitura de Strauss – aparece levantando novamente um afeto, o conflito, como afeto
fundamental na constituição da ordem o que, por si, já daria ensejo outra percepção do
político, não normativista ou racionalista que oblitera e sacrifica os afetos. Na leitura de
Schmitt, mesmo a realizada por Strauss, é o afeto de conflito ou do antagonismo e não uma
norma ou princípio racional que determina a origem do político. A partir disso, seria possível
pensar uma política para além do liberalismo.
A pergunta central que Löwith em seu texto remete à Schmitt, fazendo coro às
questões de Leo Strauss, é a seguinte22: em que se baseia a decisão pelo político? Por que
fundamento ou razão se dá afirmação do político? A suspeita de Löwith em relação ao
pensamento schmittiano se expressa na leitura de que o jurista sofreria de uma indeterminação
do próprio fundamento de sua teoria política. Assim, por carecer de uma substância ou
essência, o decisionismo seria, na verdade, um ocasionalismo. Isso significa que a categoria
central da decisão em Schmitt seria uma decisão sobre uma ocasião considerada como
meramente fática (portanto, irracional) e marcada pela contingência, assim como o
romantismo político fora caracterizado pelo jurista. Em outras palavras, o comentador ressalta
o elemento da ocasião em detrimento do ato da decisão. Por isso, segundo Löwith, a teoria do
jurista não conseguiria determinar nenhum fundamento, pois “a decisão de Schmitt pelo
político (...) nada mais [é] que uma decisão pelo ser-decidido” (LÖWITH, 2006, p. 57).
Seguindo as críticas de Strauss e de Voegelin, a interpretação de Löwith expõe uma postura
moral dissimulada de Schmitt ao criticar a moral e a metafísica dos seus oponentes, sobretudo
do liberalismo. Entretanto, Löwith mostra-se ainda mais impiedoso que Voegelin e menos
respeitoso que Strauss: há uma denúncia de que o jurista não apenas pressupõe aquilo que
critica em suas obras, mas que seu próprio método de pensamento é a mera acusação, ou
22
LÖWITH, Karl. “Der okkasionellle Dezisionismus von Carl Schmitt” (1935), in: Sämtliche Schriften, Band 8,
Stuttgart: Metzler, 1984, p. 32-71. Utilizamos a tradução para o espanhol: El decisionismo ocasional de Carl
Schmitt, in: Heidegger, pensador de un tiempo indigente: sobre la posición de la filosofía en el siglo XX, 1ª ed. -
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006, p. 43-89.
60
melhor, a ocasião da denúncia e não a coerência teórica guiaria seus escritos, caracterizando
seu pensamento como oportunista, um decisionismo volúvel ou, simplesmente, um
ocasionalista político. Ao final, após a exposição e comentário das teses schmittianas, sub-
repticiamente, Löwith vincula Schmitt aos acontecimentos políticos da década de 1930 na
Alemanha. Pretendemos, todavia, utilizar a leitura de Löwith como indício ou álibi para nossa
própria: é correto afirmar que em Schmitt figura uma ausência de fundamento, mas não que
isso lhe causa prejuízo, pelo contrário, provoca uma transformação na teoria política que,
embora não desenvolvida pelo autor, mostra uma possibilidade filosófica interessante para
pensar a pós-política ou, como denominamos, o pós-fundacionismo em teoria política.
Na exposição sobre a interpretação de Strauss, expusemos suas contribuições através
da crítica central ao pensamento de Schmitt de que ele oblitera a pergunta pelo fundamento da
decisão pelo político porque evidenciaria a inversão sistemática dos valores e princípios do
liberalismo, permanecendo o decisionismo schmittiano no horizonte mesmo daquilo que
combate. Desse modo, Strauss, enxerga um julgamento moral da moral da política ou do
liberalismo, ou seja, a afirmação do político não passaria de uma afirmação moral, no caso, da
superioridade da seriedade diante da vida burguesa. No final das contas, na leitura do filósofo,
Schmitt seria um liberal, com uma base moral, porém com o sinal invertido, pois propugna
outra moral, diferente da liberal, sem dúvidas, uma vez que afirma o conflito e, por
conseguinte, o político; porém, partilha a mesma arquitetura do adversário ao justificar sua
escolha por uma preferência moral. A interpretação de Löwith, inicialmente, assume a
estrutura do argumento straussiano: Schmitt apenas teria invertido os valores e princípios do
liberalismo e, por conta da mera inversão, partilha dos seus fundamentos. Dessa forma, ao
acusar o liberalismo de possuir uma estrutura subjetiva, da ausência de decisão e romantismo,
pois a partir do eu solipsista constitui a realidade, ele assume a lógica que combate: Schmitt
teria adotado uma decisão prévia, mais precisamente, uma decisão pela decisão, conforme
Löwith “eine Entscheidung für die Entschiedenheit”, ou seja, uma decisão de ser decidido
apenas como contestação polêmica diante do elemento de indecisão (na esfera pública) do
romantismo. Esta postura seria a base do seu decisionismo sem conteúdo: ao demonstrar sua
incapacidade de determinar o núcleo metafísico do liberalismo, a não ser negativamente,
Schmitt sofreria com a indeterminação do próprio fundamento que ele combate e, dessa
forma, não seria capaz de determinar o seu próprio. Na leitura de Löwith, de modo
semelhante ao adversário, o decisionismo seria um ocasionalismo, no sentido de que a decisão
permanece uma decisão pelo ser-decidido não importa o que seja decidido: o método
polêmico de crítica schmittiano – a mera inversão das posições sob ataque – teria como
61
23
A acusação de uma postura ateológica e niilista por ausência de fundamento corrobora, mais uma vez, nossa
leitura de Schmitt: como já visto, tanto Strauss quanto Voegelin já criticavam o jurista pelo abandono da
metafísica ou, pelo menos, pelas considerações “da ordem das coisas humanas” (Strauss) ou “imanentismo” e
“abandono da Veritas” (Voegelin). A tese de Löwith, apesar das dúvidas sobre o caráter de Schmitt, joga luz
novamente sobre este aspecto: ausência de fundamentação, de substância ou essência. Löwith, porém, afirmar
ser esta uma falha insanável do pensamento schmittiano. No capítulo 3 demonstraremos ser esta a linha de fuga
para a proposta de uma alternativa às políticas da metafísica. Mesmo assumindo a interpretação de Löwith como
mote para nossa pesquisa, é necessário considerar que os argumentos de Löwith acerca de Schmitt não se
sustentam. Lukács também elaborou uma interpretação que vinculava Schmitt ao niilismo, cf. LUKÁCS, 1959,
p. 519-537.
62
mais à frente discorremos24. Em todo caso, para Löwith, a questão é que o argumento da
inversão de indecisão para a mera decisão, qualquer que seja, é a chave para compreender o
jurista, senão vejamos.
Inicialmente, é necessário indicar que o que Schmitt compreende por metafísica é
algo mais próximo de uma visão de mundo de uma época, sua Weltanschuung. Por exemplo,
em Politische Theologie, ele afirma que “a imagem metafísica do mundo, que se faz em uma
época determinada, tem a mesma estrutura daquilo que a ilumina como forma de organização
política. O estabelecimento de uma tal identidade é a sociologia do conceito de soberania. Ela
prova que (...) a metafísica é a expressão mais intensa e clara de uma época” (PT, p. 50-51)25.
Assim, conforme o jurista, para conhecer uma posição ou conceito, bastaria determinar a qual
imagem de mundo se refere. No caso em questão, Schmitt expõe a distinção entre romantismo
e decisionismo que Löwith tenta embaraçar: este surge como modelo da soberania e do
político (enquanto mediação, como veremos); aquele, exemplo da indecisão liberal da
burguesia. No entanto, na leitura do intérprete, o núcleo metafísico do liberalismo não
conseguiria ser definido pelo jurista exceto negativamente, por exemplo, como indecisão. Isso
implica, segundo a chave de leitura que afirma ser a obra de Schmitt uma mera reação
especular às teses que combate, que a indeterminação do fundamento do pensamento que ele
combate reverbera como sua a ausência de fundamento. É por isso que Löwith contesta ao
afirmar que o decisionismo não determina o fundamento metafísico que ele mesmo requer e,
por conseguinte, se configura como um ocasionalismo, ou seja, a decisão pelo político não
seria uma afirmação moral pelo político, como Strauss afinal salientara, mas sim uma decisão
pelo ser-decidido, o que traria sérias consequências para o decisionismo, pois vinculado com
seu oposto, o ocasionalismo. O autor, já no começo de sua resenha, lança a matiz que
assumiria em todo o texto sobre Schmitt: “As contribuições de Schmitt são esencialmente
‘polêmicas’, ou seja, não apenas criticam de modo episódico esta ou aquela posição para
iluminar sua própria opinião, mas também que sua própria ‘validade’ descansa por inteiro
sobre aquilo contra o que se dirige” (LÖWITH, 2006, p. 44). Assim, a argumentação
polêmica é considerada como aquele pensamento que não se interessa pela coerência ou
correção dos argumentos, mas apenas pela ocasião de sua imposição. O ocasionalismo
provocaria, então, o modo da decisão pela decisão, isto é, a decisão independente da sua
24
CF. Cap. 2. Sobre isso, GALLI, 2008 e SÁ, 2006.
25
PT, p. 50-51: “Das metaphysische Bild, das sic hein bestimmtes Zeitalter von der Welt macht, hat dieselbe
Struktur wie das, was ihr als Form ihrer Politischen Organisation ohne weiteres einleuchtet. Die Feststellung
einer solchen Identität ist die Soziologie des Souveränitätsbegriffes die Metaphysik der intensivste und Klarste
Ausdrück einer Epoche ist”.
63
matéria. Em uma leitura com dentes cerrados e poucas concessões, Löwith apresenta, logo no
início, observações como tentativa de confirmar sua tese (interpreta o termo “polêmico” de
maneira trivial ao se negar em reconhecer qualquer sutileza em seu sentido filosófico). Por
exemplo, quando descreve que Schmitt não indica nem em qual Zentralgebiet estaríamos nem
qual é o novo mito próprio do Estado total, já dispara a tese de que a decisão e o político na
teoria de Schmitt carecem de fundamento, antecipando a questão sem análise do mérito: “o
conceito do político não dá nenhuma indicação de um novo mito que possa funcionar como
fundação espiritual da atividade política moderna” (LÖWITH, 2006, p. 46) e descreve esta
postura de “confusamente romântica”, já numa chave de interpretação preconcebida na qual a
análise só traz a confirmação da tese de que Schmitt não teria nenhuma determinação clara do
político, a não ser que ele seria o oposto ao liberalismo e, neste sentido, não poderia não
decidir, ou melhor, estaria decidido a ser decidido. A rigor, poderíamos afirmar que, para
Löwith, qualquer argumento schmittiano estaria submetido a um reductio ad ocasionalismus.
Apesar dos equívocos, enquanto a análise de Strauss faz jus à complexidade do pensamento
schmittiano, a interpretação de Löwith assume, sem críticas, a estrutura do argumento
straussiano e dispara uma cadeia de considerações sobre o liberalismo/romantismo ao inverso
quando afirma a decisão pela decisão como imagem especular da indecisão romântica. Cabe
notar que, ao afirmar que Schmitt não fornece nenhuma orientação que sirva como “fundação
espiritual da atividade política moderna” (LÖWITH, 2006, p. 46), Löwith corrobora nossa
tese: para o jurista, em alguns textos, é possível sustentar que não haja realmente fundamento
último ou substância a partir da qual constituir a ordem, ou seja, sequer a distinção entre
imanência e transcendência, tal como tradicionalmente é compreendida, poderia ser mantida
depois das teses de Schmitt.
Neste contexto, a pergunta seria: qual papel o romantismo político desempenha na
obra de Schmitt? Parece-nos que este conceito esclarece a passagem realizada no século
XVIII, qual seja, da hegemonia da moral humanitária do século XVII para a economia e
técnica do século XIX-XX, restando à burguesia a função de sujeito político herdeiro do
espírito romântico. Em todo caso, o que caracteriza o romantismo político, conforme Löwith
aduz, é que “para este (Schmitt/Romantismo) tudo pode transformar-se em centro espiritual
da vida, já que sua própria existência não tem centro” (LÖWITH, 2006, p. 47). Dessa forma,
ainda segundo Löwith, Schmitt teria afirmado ser a ausência de fundamento o fundamento
desta postura. Além disso, seria central para “ao autêntico romântico (importa) apenas seu eu
engenhoso e irônico, porém no fundo inconsistente. ‘O indivíduo isolado, emancipado e
individualizado se torna, no mundo liberal burguês, (...) a instância superior de apelação, o
64
Não obstante, falta à teoria política de Schmitt, juntamente com um âmbito central
determinante, não apenas a metafísica da decisão, que ele reconhece com justiça
como o fundamento portador do socialismo ‘científico’ de Marx, mas também o
fundamento teológico que está presente na decisão religiosa de Kierkegaard em
favor de um governo autoritário. Daqui se pode perguntar: (qual) a fé em que se
mantém a ‘exigente decisão moral’ de Schmitt, quando ele mesmo não tem fé nem
na teologia do século XVI nem na metafísica do século XVII e muitíssimo menos na
moral humanitária do século XVIII, mas apenas na força da decisão? (LÖWITH,
2006, p. 49-50).
Neste contexto, o decisionismo de Schmitt, na leitura de Löwith, é carente de
fundamento e, por isso, a exceção seria o único fundamento possível, na verdade, como a
ocasião para a decisão sobre o que se queira. Löwith enxerga subjetivismo e dogmatismo,
num irracionalismo que dispensa qualquer lastro essencial ou metafísica assumidos, assim:
26
Sobre os conceitos de Soberania e Representação no pensamento político do século XVII, cf. DUSO, 2007 p.
160.
66
interessante que o caso normal’ e não apenas confirma a regra, mas também, afinal, a regra
vive somente da exceção (...) Schmitt, de modo oposto, enfrenta a exceção de modo polêmico
ao universal” (LÖWITH, 2006, p. 50-51). Löwith interpreta o fato de que Schmitt não acede
ao universal como um gosto pela não decisão27, mas não percebe as sutilezas do
desenvolvimento conceitual de Schmitt desde Der Wert des Staates até Der Begriff des
Politischen. Em mais um exemplo do equívoco que se tornou paradigmático e repetido a
despeito da análise de mérito, o autor assevera: “este fundamento niilista de uma decisão
ligada a nada mais se torna completamente claro no conceito do político” (LÖWITH, 2006, p.
57). Não é possível, sequer através de uma interpretação conservadora, afirmar que Schmitt
seria um teórico niilista que destroi as bases do Estado moderno! Além disso, sustentar que no
jurista não exista uma fundamentação transcendente da ordem é um equívoco notório.
Todavia, por uma exegese absurda, Löwith chega ao ponto que gostaríamos: a quebra do
fundamento do Estado via Schmitt, mesmo que no comentador em questão seja concebida de
maneira negativa e pouco convincente28. A passagem central da resenha de Löwith que
demonstra isso é a seguinte: “esta expressão de claridade máxima, todavia, alguém não pode
encontrá-la em Schmitt, já que, segundo sua construção histórica da totalidade moderna do
político, não existe um fundamento metafísico transparente nem um ‘tema de disputa’
genuíno, isto é, carece de um ‘âmbito decisório’” (LÖWITH, p. 52, grifo nosso). A ausência
ou carência de fundamento impressiona o resenhista:
Quando, como faz Schmitt para definir o político através do conceito de decisão
soberana, se abstrai todo âmbito central, então o único que resta consequentemente
como finalidade da decisão é a guerra que perpassa todos os âmbitos e os questiona,
isto é, a disposição ao nada que é a morte entendida como sacrifício da vida por um
Estado, cuja própria ‘pressuposição’ já é o decisivo-político. A decisão de Schmitt
pelo político não é, como uma decisão religiosa, metafísica ou moral, isto é,
espiritual, uma decisão para um âmbito determinado e regulativo, mas sim nada
mais que uma decisão pelo ser decidido (eine Entscheidung für die Entschiedenheit )
— não importa em favor de qual tema —, porque esta é a essência específica do
político (LÖWITH, 2006, p. 57).
Veremos como a interpretação de outros autores, por exemplo, de Derrida,
compreende o político schmittiano articulado com a noção de vida e não de morte (cf. 1.9).
Não obstante, Löwith retorna ao mesmo argumento inúmeras vezes: Schmitt postularia um
decisionismo sem conteúdo próprio, sem um fundamento metafísico, niilismo que leva à
morte e, diante disso, arremata sua interpretação afirmando que Schmitt desatou o laço entre
transcendência e imanência, não possui mais um princípio de ordem, mas apenas um
27
GÓRNISIEWICZ, 2016.
28
O mérito da interpretação de Löwith está na acusação de ausência de fundamento e apelo à imanência do
político na teoria de Schmitt. O que Löwith denuncia se torna na reconstrução que elaboramos o esboço de uma
teoria política pós-fundacionista.
67
sua decisão – que flutua em libertade por não se apoiar em nada mais que em si
mesma – corre o perigo, reconhecido por ele mesmo, não apenas ocasionalmente de
se equivocar quanto ao “ser subjacente” em cada grande movimento político (...)
mas também que, desde o começo, também se encontra exposta de modo
permanente e inevitável a este perigo, já que este é essencial ao ocasionalismo, ainda
em forma não-romanticamente decisionista (LÖWITH, 2006, p. 52-53).
Nesta tentativa de anexar a Schmitt o rótulo de ocasionalista, Löwith sustenta que o
decisionismo schmittiano sem fundamento nem conteúdo, sendo meramente uma decisão por
ser decidido seja lá qualquer coisa que for, como se houvesse uma espécie de síndrome ou
fetiche da decisão, seria da mesma natureza do seu oposto. A rigor, os comentadores, tanto
Strauss quanto Löwith, jogam contra Schmitt a mesma estrutura do argumento que torna
política uma postura antipolítica. Entretanto, é na questão sobre o político que o resenhista
explora ainda um argumento central para reforçar sua tese: a relação entre amigo e inimigo.
Para Löwith, esta seria uma relação aleatória e, por isso, mais uma vez ocasional. O
argumento seria o seguinte: como não se refere a uma substância ou essência, o inimigo
político, em última instância, seria aquele determinado de fato, ou seja, mais uma vez, na
contingência da ocasião, como na passagem, um pouco longa, mas necessária:
expresso se diz que a guerra que não é um combate espiritual nem uma contenda
simbólica, mas sim um combate no sentido de “condição ontológica originária”, que
surge da diversidade de índoles entre o próprio ser e o estranho. Se segue da
inimizade, que o combate é apenas a “realização” e a “consequência” mais extrema
da distinção ontológica existente. Por outra parte, o estado real da inimizade mútua
não é caracterizado como uma realidade dada por natureza, mas sim como uma
possibilidade essencial da existência política, como um poder-ser antes que como
um ser-assim determinado por natureza (...) Inclusive se nega de forma expressa que
a distinção amigo-inimigo signifique que um “povo determinado deveria ser sempre
amigo ou inimigo de outro povo determinado”, ou que a neutralidade não possa ser
politicamente significativa e que o evitar a guerra não possa ser o correto em termos
políticos. Antes, a guerra parece cerecer de sentido se é medida seu sentido com os
propósitos e bens concretos da vida, em lugar de medi-la com seu pressuposto puro:
a afirmação e a manutenção da existência política (LÖWITH, 2006, p. 59-60)
Em outro trecho importante, no qual Löwith expressa suas indagações acerca das teses
schmittianas e articula niilismo, ocasionalismo, distinção entre amigo e inimigo, o argumento
da ausência de fundamento (contingência e ocasionalismo) retorna acrescido do tema
ontológico e da aproximação com Heidegger:
Todavia, se somente no caso conflitivo pode ser decidido se é necessária esta última
consequência de um assassinato físico e de um sacrifício físico, então o inimigo
ontológico – o qual deveria significar muito mais que o fato de que alguém “seja”
meu inimigo de modo contingente – não se determinaria apenas de modo ocasional,
isto é, a partir de que ele questiona e nega a própria existência política de um modo
por completo independente da índole peculiar do ser? Todavia, o inimigo tampouco
nega, de modo algum, a própria “forma de existência” ou “índole” do ser, mas sim
nega nem mais nem menos que a existência pura, o factum brutum do Dasein
público político, antes que qualquer definição mais precisa em termos de diversas
índoles inimigas ou amigas entre si do ser nacional e racial, religioso e moral,
civilizatório e econômico (LÖWITH, 2006, p. 62).
Não pretendemos analisar o mérito da leitura de Löwith, mas recuperar alguns
elementos interpretativos para reforçar nossa tese. No trecho em questão, o resenhista tem
razão tanto ao afirmar que Schmitt não busca um fundamento, quando sustenta que as
categorias de decisão e do político são irredutíveis à racionalidade normativa. É possível
considerar o niilismo, mas o que Löwith realmente elabora é uma condenação do niilismo de
Schmitt como impotência diante do acontecimento, ou melhor, é a acusação de ocasionalismo,
na verdade oportunismo, que Löwith remete contra Schmitt. No entanto, Löwith cai em
contradição: ele afirma que Schmitt possui uma crítica ao normativismo liberal não tendo ela
própria, seguindo a análise de Strauss, senão um sentido normativo. Todavia, esse raciocínio é
paradoxal: ou bem descarta toda e qualquer normatividade (esta é justamente a acusação de
ocasionalismo político que Löwith dirige à Schmitt), ou bem o jurista teria assumido, às
avessas, a normatividade do liberalismo (acusação de liberal e moralista de Strauss) que
Löwith admite como correta. Diante da crítica aporética, afinal, consideramos que a tentativa
de Schmitt pode ser compreendida como uma superação da lógica do fundacionismo que
escapa, precisamente, da “má infinidade (do fundamento) do normativismo” (KERVÉGAN,
69
2006, p. 120). Desse modo, vai bem além ao descontruir a diferença entre imanência e
transcendência, normativo e descritivo, realidade e aparência. O fato de Schmitt não eleger
uma relação ou instância e reconhecer que o único critério que possui é a intensidade da
relação, seja ela qual for, é o suficiente para Löwith afirmar seu rótulo ocasionalista, mas pelo
mesmo argumento podemos afirmar também que Schmitt seria avant la lettre um teórico da
política pós-fundacionista. O resenhista parece fixado em dispensar logo de início qualquer
coisa que não se parecer com fundamento ou metafísica. Assim, não serve qualquer
consideração da imanência que, por conseguinte, seria fruto do sujeito, da vontade e ocasião.
Paradoxalmente, Löwith extrai uma conclusão coerente:
compreensão políticas” (LÖWITH, 2006, p. 74). Sem mais delongas, é esta leitura que
colhemos do texto de Löwith que nos fornece um surpreendente reforço das concepções
desenvolvidas nesta tese.
De maneira mais explícita, Löwith articula Schmitt a Heidegger em torno da questão
da faticidade e da decisão. A passagem é extensa, mas vale a pena reproduzi-la integralmente:
29
O tema da decisão estava em voga na Alemanha dos anos 1920. Tanto no que se refere à urgência política da
ação quanto à rejeição de um racionalismo inerte, pouco propício à decisão e à vontade. A indecisão, às vezes
assimilada ao que Nietzsche denomina vontade de nada, seria o fundamento metafísico da decadência. Aliás,
este seria outro tema dos 1920, sobretudo, através de Oswald Spengler. No caso de Schmitt, o sentido da questão
em Kierkegaard é deslocado e seletivamente interpretado como reforço do seu decisionismo, bem como observa
o tema através das relações próximas com Jünger e Heidegger. No prolongamento desse radicalismo, a partir de
Karl Barth, critica-se a concepção liberal da religião, postulando “uma decisão inexplicável determinada pela fé
na revelação, irredutível a qualquer enraizamento antropológico”, uma espécie de ruptura com a irresolução
própria das teologias liberais” (KERVEGAN, 2006, p. 117). Neste contexto, Löwith considera mais relevante a
aproximação entre a concepção do político e a temática da resolução (Entschlossenheit), desenvolvida por
Heidegger nos parágrafos 60 e 62 de Sein und Zeit e sugere que a crítica schmittiana à metafísica liberal como
uma indecisão fundamental (Unentschiedenheit), a ética da argumentação, da discussão e da publicidade
evidencia a decisão pela decisão que o decisionismo schmittiano exige.
30
Heidegger acusa o pensamento de Schmitt de ser a última versão do liberalismo: “Und damit mitgegeben das
Freund-Feind-Verhältnis. Was ist das für eine Selbständigkeit? Die des Politischen. Carl Schmitt denkt liberal: 1.
weil Politik »auch« eine Sphäre; 2. weil vom Einzelnen her und seiner Haltung. Vgl. dagegen S. 161. Er
übersieht - daß gerade der Widerstreit seine innere Transzendenz hat - zum Staat - seine Grundbedeutung - in der
Bezogenheit auf Staat - sofern dieser als Sein des Volkes - aber der »Staat« kann dergleichen auch nicht »sein«
(schon »Staat« was? Formaler status, Ausstattung, Auftreten. »Mathematischer Staat«. Vorrede zur
Phänomenologie). So ist die »Bewegung« - »politisch« - Träger und Wahrer des Politischen. Das Politische (d.
h.) Sein = Sorge des Volkes (nicht »für« das Volk) und hier nun erscheinende Möglichkeiten. Aber immer vgl. 1
u. Sich-selbst-werden - im Anderssein! (Innenpolitik) - zu sich selbst und gegen Andere! Weshalb hier
notwendig Zusammen(Ein-)schluß als Ausschluß - weil - Sorge -Mitsein umwillen! und Widersein - damit schon
Bestimmung des Anderen als Freund!”, GA, 86, p. 117.
71
31
Por exemplo, a tese de Jean-François Kervégan, cf. KERVÉGAN, 2006, p. 119 e, logo abaixo, 1.7.
32
Cf. ainda Falk (2014). O texto passa se concentrar nas análises de Heidegger e descreve o argumento da
iminência da morte e o manter-se diante do nada, além de Gogarten e esboça uma análise da época sob o tema da
decisão tomada a partir da imanência que seria o pressuposto do pensamento de Schmitt.
72
entre os momentos do autor, por exemplo, entre os textos Politische Theologie e Der Begriff
des Politischen revela uma leitura seletiva. Löwith mesmo faz a retrospectiva do jurista:
33
Nas últimas décadas, o papel de principal acusador de Schmitt cabe, entre vários outros, a Yvez-Charles
Zarka. Cf. ZARKA, 2005.
34
Sobre as alterações entre as edições do Der Begriff des Politischen, por todos, MEHRING, 2009. Ademais,
para os pesquisadores de Schmitt faz-se imprescindível a edição em português do Der Begriff des Politischen
traduzida por Alexandre Sá na qual são cotejados os textos das três edições.
73
35
LUKÁCS, 1959, p. 519-537.
36
O texto que utilizamos foi publicado originalmente como Legitimität gegen Legalität: der Weg der Politischen
Philosophie Carl Schmitts em 1964, seguido por edições em 1992, 1995 e 2002, esta última a que consultamos
(Berlim: Duncker & Humblot, 2002).
74
Schmitt como jurista no interior da tradição, ou melhor, no final da tradição do que pode ser
chamada era da estatalidade ou, como preferimos, das políticas da metafísica. A obra do
jurista alemão é localizada por seu comentador como um problema de direito público e
político, mais especificamente, apesar das contradições que perpassam toda a obra analisada,
o problema da crise do racionalismo político moderno. Assim, com suas considerações acerca
da contradição como estrutura conceitual, Hofmann através de Schmitt revela um problema da
própria modernidade, inclusive sob a característica de uma peculiar epistemologia da
contradição e consegue tratar um importante problema de filosofia política a partir de um
contexto jurídico, extrapolando os limites de ambos. Assim, em paralelo ao problema da
legitimidade, qual seja, a justificação da ordem e da violência, o intérprete estabelece outro
elemento paradigmático na interpretação sobre Schmitt: o argumento de que para acompanhar
a obra schmittiana é necessário jogar com a contradição. A contradição é colocada como
princípio hermenêutico, pois não seria possível compreendê-lo como uma sistematicidade: as
inúmeras contradições internas e mudanças de posições são relacionadas com os distintos
contextos histórico da obra. Um situacionismo ou contextualismo que refletiria ao invés de
uma preocupação com o universal, a atenção aos aspectos concretos, confundindo abordagens
analíticas e histórica (por exemplo, conforme a crítica de Voegelin) ou ainda ratificando – de
maneira mais compreensiva e laudatória – a acusação de pensamento ocasionalista (segundo a
análise de Löwith)37 e, conforme sustentamos nesta tese, uma postura imanentista. Entretanto,
a constatação da contradição e da relevância do contexto histórico não significa que Schmitt
apenas analisava a situação concreta e esta mera faticidade servisse de tema para a discussão,
mas sim a considerava através de uma anti-sistematicidade assumida como ponto de partida.
É a leitura hofmmaniana que inaugura, pelo menos, executa em um estudo detalhado, esta
análise: metodologicamente, compreende o jurista a partir da contradição38 e seu pensamento
ao nível fenomenológico, histórico, contextual. Em suma, suas teses são formas de
argumentos que podem ser localizados em determinada situação espiritual e determinado
momento histórico. Este argumento torna-se um paradigma interpretativo importante. No
texto em comentário, Hofmann segue a obra de Schmitt desde 1910 até pouco depois de 1950
com estes pressupostos acima descritos. Esta obra, um clássico para schmittólogos, de direita
37
É bastante conhecida a interpretação-acusação de Löwith sobre Schmitt “o decisionismo antirromântico e
ateológico de Schmitt não é outro que outro aspecto de seu agir segundo a ocasião e a circunstância”. Sobre isso,
cf. seção 1.3.
38
O que serve de potente argumento para nossa leitura no capítulo 3: não apenas a obra schmittiana prossegue de
maneira contraditória, como a própria contradição (na forma de antagonismo ou conflito e violência) é tida como
básica para compreender as instituições, relações e a própria política.
76
* * *
As considerações de Hofmann podem ser reconduzidas a um problema-chave: a
legitimidade é tomada como categoria hermenêutica através da qual se interpreta toda a obra
schmittiana, notadamente, contra a concepção de legalidade do positivismo jurídico. O
39
Para Schmitt, “qualquer movimento espiritual deve ser considerado por si mesmo de um ponto de vista
metafísico e moral, não como um exemplo de um princípio abstrato, mas como realidade histórica concreta, em
relação a processos históricos” PT, p. 7. A sociologia dos conceitos schmittiana é uma das influências de R.
Koselleck, O. Brunner e Cia. em torno do Geschichtliche Grundsbegriffe. (KOSELLECK; CONZE; BRUNNER,
1994)
77
41
Em inúmeras obras, Habermas trata deste problema e não seria exagero afirmar que em grande parte delas o
alvo que o filósofo tem em vista é Carl Schmitt. Por exemplo, a Inclusão do outro (HABERMAS, 2002) e
Direito e Democracia (HABERMAS, 1997) parecem textos escritos com objetivo polêmico.
42
É sobre este lugar que se dá a disputa entre Benjamin e Schmitt descrita por Agamben como a querela sobre a
localização da decisão fora ou dentro do direito. Cf. AGAMBEN, 2004, p. 81-98.
79
aplicação e racionalismo abstrato ou formal no método, Schmitt se arma contra estas teses e
constroi seu pensamento como um antipositivismo, assim como um antiliberalismo. Nesta
virada, ele recorre à Savigny: da construção jurídica até o momento lógico do direito, da
análise da história até seus elementos constitutivos43. Ao invés de assumir a ciência da direito
como metodologicamente pura, Schmitt aposta na constituição polêmica dos fatos; ao invés
de abstração ou hipostasiação da voluntas legislatoris ou da voluntas legis, a decisão do
soberano como condição da ordem; ao invés da racionalidade ou lógica na aplicação da
norma, dirige seu olhar às condições concretas, não racionais ou de exceção e conflito e deixa
escapar o irracional ou o fundo niilista do político que espera para além do problema da
ordem como ponto cego da teoria jurídica.
Para Hofmann, as críticas ao positivismo habilitam Schmitt a questionar a abstração
do conflito, desviar as discussões políticas do enquadramento dos termos jurídicos e
denunciar as ficções e hipostasiações. Schmitt, inclusive como Hofmann reconhece como um
ato “contra o status quo” (HOFMANN, 2002, p. 87), afirma que a garantia jurídica da ordem
social é realizada como manutenção da hegemonia ou, como Hofmann afirma, “uma ilimitada
capacidade de adaptação política do positivismo jurídico como mera técnica social”
(HOFMANN, 2002, p. 23). Se, para o positivismo jurídico, o problema da legitimidade era
algo que não se referia ao direito, Schmitt, ao contrário, o reconhece como questão central. Da
mesma forma, se para a teoria do Estado de direito (liberal) a política era algo que
pressupunha o Estado, isto é, só poderia ser considerada a partir do Estado e de sua ordem
jurídica; para o jurista, a questão é outra, precisamente, seu oposto: o Estado pressupõe o
político. Esta forma de contraposição se mostra ainda no debate acerca do positivismo quando
ao invés da legitimidade do poder estatal, considera-se apenas a legalidade de seus atos. Esta
legalidade, segundo Hofmann (2002, p. 24), seria o “modo de funcionamento de qualquer
burocracia estatal, a justificação do estado e a validade do direito em si mesma”, isto é,
imanente ao sistema. A imanência da qual Schmitt se refere não é, porém, desta validade da
lei em si nem a da força normativa dos fatos, mas outra: “o problema da legitimidade
(Legitimität), da justificação (Rechtfertigung) do poder público e da validade do direito
(Geltung des Rechts) (...) seria objeto apenas da sociologia compreensiva (verstenhenden
Soziologie)” (HOFMANN, 2002, p. 25). Em sua abordagem antipositivista e antiliberal,
Schmitt põe em marcha seu argumento finitista a fim de desconstruir o positivismo jurídico.
43
Para uma visão geral do problema a partir do ponto de vista da história e da metodologia do direito, por todos,
LARENZ, 1997, Parte 1.
80
44
Espantosa a coincidência com o pós-positivismo. Schmitt poderia ser considerado um precursor desta posição,
apesar de todas as ressalvas. Sobre o pós-positivismo no direito, CANOTILHO, 2003.
45
O autor que de maneira convincente e exaustiva argumenta acerca da categoria da mediação como problema
central no pensamento schmittiano é GALLI, 2010, infra, 1.10.
82
absoluta entre ser e dever-ser, forma e conteúdo, poder e direito (diríamos ainda, entre
imanência e transcendência, descritivo e normativo): o problema que incomoda Schmitt, mas
que efetivamente só encontrará resposta (e ainda assim parcial e ambígua) no final a década
de 1920. Não obstante precária, a solução schmittiana ao problema da relação entre poder e
direito é proposta logo em Der Wert des Staates e até mesmo Hofmann, que sustenta um
argumento difícil neste ponto – normativismo e idealidade normativa – afirma que “o direito
positivo, aquele logicamente autônomo, emerge como representação normativa empírica posta
faticamente não pode ser o produto do automovimento lógico da consciência jurídica, mas
deve seu aparecimento, seu ingresso na realidade a uma decisão autoritária” (HOFMANN,
2002, p. 45) A peculiaridade desta decisão, porém, nos faz qualificá-la de formalismo ou de
decisionismo fraco que sofre revisões até sua formulação mais completa nos textos do início
da República de Weimar, mas que ainda pressupõe uma forma de direito e, por conseguinte, a
noção de política como mediação46. Da mesma forma que ser e dever-ser, normas de direito e
normas de realização de direito, a dualidade entre exceção e direito expressa uma espécie de
antagonismo, tal como, de maneira distinta, também implica em antagonismo a relação entre
amigo e inimigo.
Como já dito, Hofmann acerta ao delimitar o ponto de partida de Schmitt como
aquele mesmo de Kelsen e do positivismo, qual seja, o dualismo entre norma e realidade
concreta, validade e faticidade, e busca a partir daí a questão que implica estas duas bordas,
ou seja, o problema da legitimidade. Desde a busca pelo ponto final do direito, isto é, pela
concretização da norma na decisão judicial, como afirma Hofmann, parafraseando E. Bloch,
Schmitt possui o “pathos da concreção (finita)” (Pathos des (endlichen) Konkretion) de Hegel
(HOFMANN, 2002, p. 48), assim como a mesma questão entre realidade (racional) e
existência (meramente factual)47. Por isso, na descrição da legitimidade racionalista, Hofmann
sustenta que a questão entre norma e realidade é resolvida por Schmitt pelo conceito de
ditadura soberana e, posteriormente, pelo conceito de Ausnahmenzustand, ou seja, como as
condições fáticas anteriores ao direito que possibilitam o ingresso do direito na realidade (vide
HOFMANN, 2002, cap. 2). Neste contexto, Hofmann afirma que “ele (Schmitt) não pensa
que a situação concreta seja sujeita a um princípio de estrutura da realidade social, a
homogeneidade (...) do meio de realização do direito que funda e garante a relativa
estabilidade e mensurabilidade da situação” (HOFMANN, 2002, p. 55). Neste caso, a
46
Sobre isso, GALLI, 2010 e Cap. 2.
47
Para a compreensão da relação entre Estado e contingência em Hegel, KERVÉGAN, 2006 e, por todos,
LEBRUN, 1988.
83
normalidade fática pertence à sua validade imanente, sendo o soberano o responsável pela
ação na realidade para formatação fática. Sem entrar no mérito das análises de Hofmann, a
questão que sublinhamos é a seguinte: o argumento da finitude é explicitado, mais uma vez,
como constitutivo na solução schmittiana da relação entre ser e dever-ser, imanência e
transcendência, norma e fato. Esta solução, a despeito dos problemas que implica, assume
claramente uma postura pela finitude que, mais uma vez, reforça a leitura da tese
interpretativa que propomos nesta pesquisa.
Seja quando Hofmann sustenta o tema da realização do direito (2002, p. 46-49), seja
quando tematiza a questão da ditadura e da teologia política (sobretudo, 2002, p. 49-64) ou
quando afirma que em Schmitt “não se trata da garantia da justiça constitucional do
fundamento do ordenamento jurídico estatal, mas da garantia real da normalidade fática como
fundamento de validade imanente de todo direito” (HOFMANN, 2002, p. 61), o comentador
expõe uma virada imprescindível na leitura da obra: argumenta que Schmitt assume a
distinção weberiana entre ação orientada a valores e ação orientada a fins, substituindo a
perspectiva da teoria do Estado ao fazer mais uma concessão realista à imanência como algo
original ou mais constitutiva: com o reconhecimento de uma “autoridade fundada de maneira
teleológico-racional da organização fática do poder de qual faz parte” (HOFMANN, 2002, p.
68). Logo em seguida, o arremate: “esta validade real fática impressionou Schmitt (...) e o
fascinaria sempre, até mais tarde, em particular na resignação posterior à 1945” (HOFMANN
2002, p. 69), esta teoria da legitimidade teleológica-racional, como Hofmann denomina, se
distinguiria da legitimidade positivista por sua capacidade de contradição e, no final das
contas, Schmitt “confronta a doutrina do Estado com seu fundo niilista e irracional”
(HOFMANN, 2002, p. 70-71) com o argumento da Ausnahmenzustand, uma vez que ele
estabilizada de maneira ideal (...) se põe (...) a tarefa decisiva de se a situação dada
neste significado fático é normal ou não (HOFMANN, 2002, p. 87).
Esta tese demanda, evidentemente, uma vontade como produtora da ordem e da
unidade, como uma mediação que intervém na realidade, mas que não se porta como uma
grandeza racional ou compreendida conceitualmente tal como em Hegel: a contingência da
decisão, mesmo vinculada à ordem, revelada como fundamental para o direito, demonstra o
curto-circuito entre transcendência e imanência e, sobretudo, revela a primazia da finitude.
Sem dúvidas, uma proposta deste tipo causa mais problemas do que a questão que tenta
solucionar e, por isso mesmo, não foi negligenciada pelos autores das décadas seguintes48.
A superação ou ruptura da distinção entre imanência e transcendência ocorre quando
o político (fático) é pensado fora do enquadramento normativo que o dístico ser e dever-ser ou
norma e caso concreto implica. Numa palavra, compreender a distinção entre ser e dever ou
imanência e transcendência como não apenas a distinção entre político (antagonismo) e
política (instituição), mas como relação é compreender a transcendência como o sentido da
imanência e voltar a ela. Neste contexto, Hofmann assume que para Schmitt:
48
Sobre a intrincada relação entre Benjamin e Schmitt, cf. AGAMBEN, 2004 e WEBER, 2008, p. 176-194.
49
Sobre a leitura da obra de Schmitt como um ceticismo político, cf. LESSA, 2003. Sobre a relação com
Maquiavel, numa leitura que o distancia de Schmitt na questão do local e função do conflito, cf. ADVERSE,
2016.
85
Schmitt procura com isso a verdade limite da esfera limite do político (die äußerste
Wahrheit der äußersten Sphäre des Politischen), aquela realidade última
condicionante, mas ela mesma incondicionada, a partir da qual pode ser evidenciado
o caráter fictício de qualquer normatividade (...) ainda aquela realidade última frente
a qual a antítese entre política e direito, entre direito e poder torna-se sem sentido
(...) no sentido existencial, da guerra, questio facti e questio iuris coincidem na
mesma medida que a contraposição entre ser e dever-ser torna-se problemática
(HOFMANN, 2002, p. 99-100).
Em suma, assim como em Heidegger, Hofmann aposta que o problema da relação
entre ética e ontologia ou ser e dever-ser não desempenha mais nenhum papel.
Evidentemente, o apelo ao concreto como origem do sentido do político implica na elevação
do antagonismo ao modo, por excelência, de produção de conceitos: a situação política, as
relações concretas e históricas, de maneira inevitavelmente polêmica, expressam o caráter de
86
* * *
50
Sobre isso, cf. DYZENHAUS, 1997.
51
Cf. VL, p. 89.
88
52
Sobre a ausência de fundamento como característica da tese schmittiana e como reconsideramos esta ausência
de fundamento a partir da influência heideggerina da compreensão do fundamento como ausência e de como esta
concepção está na origem de uma teoria política pós-fundacionista, cf. Cap. 3.
53
Quanto à teologia política, Hofmann é convicto de que esta não desempenha nenhum papel relevante na
quanto à teoria do direito e do Estado, tal como expõe logo na Parte 1 de seu texto. Por exemplo, de maneira
diametralmente oposta ao dito por outra interpretação influente como a de Heinrich Meier, para Hofmann, a
ideia de soberania do Estado moderno, bem como o de representação política, é um modelo abandonado como
paradigma político central. Schmitt teria abandonado a ideia de Estado soberano e adotado como “Lehre von der
göttlichen Entzweinung, des Aufstands der Menschlichkeit des Sohnes gegen den Vater (...) Revolutionäre
‘Politische Christologie’ statt ‘monarchianischer’ ‘Politischer Theologie’ (HOFMANN, 2002, p. XXXVII-
XXXVIII). Segundo Hofmann, o papel do catolicismo na ciência do direito seria apenas metodológico. Apesar
disso, a Teologia Política II possui uma resposta indireta à Hofmann sobre “a diferença da filosofia política, a
teologia política mostra um surplus de justificação normativa”. Sobre a teologia política schmittiana, entre
outros, NICOLETTI, 1990.
54
ESPOSITO, 2013, p. 67: “Il problema di fondo posto da Schmitt è, insomma, la presenza inevitable del Due
nella figura dell’Incarnazione, cui il principio trinitario è strettamente connesso nella dogmatica Cristiana”; a
89
partir de outra perspectiva, da relação da política como encarnação, imanência e contingência, SAFATLE, 2015,
Parte 1.
55
Este irracionalismo é tratado por Voegelin na forma de um “imanentismo”; por Löwith, como um
ocasionalismo sem universais; por Habermas, como elogio à violência. Sobre este último, cf. HABERMAS,
1987, p. 101-114.
90
da imanência de uma ordenação social e jurídica efetiva (einer konkreten Rechts- und
Gesselschaftsordnung)” (HOFMANN, 2002, p. 6). A questão é que Hofmann é ambíguo ao
considerar este procedimento de Schmitt como chave de leitura, ou melhor, em considerar a
própria situação concreta do autor como hermenêutica da obra. Este argumento do
contextualismo do pensamento schmittiano que na crítica de Löwith é acentuado como um
ocasionalismo político e aproximado ao romantismo recebe em Hofmann outro tratamento:
como método próprio, levando em conta a sociologia dos conceitos desenvolvida
posteriormente. Apesar disso, parece que nem Schmitt nem Hofmann percebem que este
procedimento de mera escolha entre uma das dimensões não consegue escapar do dualismo,
ao final, a solução requer desfazer-se da própria necessidade de escolha entre algum dos
âmbitos.
* * *
Conforme Hofmann, Schmitt assume influência tanto do neokantismo quanto do
idealismo, visto que o direito natural sem naturalismo seria mais próximo do idealismo
transcendente do que da doutrina católica jusnaturalista. Além disso, Hofmann é um dos
primeiros a apontar a influência do ficcionalismo de Hans Vaihinger nos escritos iniciais de
Schmitt e no uso que ele faz na crítica ao positivismo e do direito público. Schmitt, sob
influência de Vaihinger, estaria decidido “a pensar a realidade abandonada pelo neokantismo
enquanto mera faticidade e a construir a realidade mesma como realidade jurídica”
(HOFMANN, 2002, p. 87). Este seria um argumento esclarecedor na compreensão do
desenvolvimento do pensamento schmittiano do período pré-weimariano para o período
weimariano. Assim, tendo em vista a influência da temática neokantiana, mais precisamente,
a teoria das ficções de Vaihinger, Hofmann fornece um instrumental útil na análise da
faticidade e da exceção, visto que o raciocínio de Schmitt na virada para as condições fáticas
da ordem teria sido estabelecido como problema quando assumira as teses neokantianas,
formulando seu teorema da exceção e da ordem: “se todo direito é direito situado e a validade
de todo direito depende de uma ordem objetiva estabilizada de maneira ideal, se põe para o
jurista a tarefa decisiva de se a situação dada é normal ou não” (HOFMANN, 2002, p. 87).
Neste contexto, as teses de Schmitt em relação à controvérsia weimariana sobre o
método da ciência jurídica, bem como sua posição, que apesar de não ser facilmente
classificada, podem ser determinadas, em geral, como antinormativa. Sem dúvida, não se
compreende por que Hofmann explora tão pouco a relação entre Schmitt e Hegel, na verdade,
uma espectral ausência de Hegel que aparece em poucas páginas e que apenas algumas
91
* * *
Parece-nos, todavia, que Hofmann não equaciona corretamente a abordagem
nitidamente anti-positivista de Schmitt, intensificada paulatinamente na articulação entre
normas de realização do direito e normas de direito e acerca da questão entre ser e dever-ser: a
abordagem mais voltada à vida concreta, atribuindo um papel maior à estrutura da experiência
que, mesmo com a solução racionalista da mediação estatal entre normatividade e faticidade,
56
O. BEAUD, Carl Schmitt ou le juriste engagé, Préface da Théorie de la constitution: “En réalité, Schmitt
radicalize la thèse hégélienne dans un sens autoritaire lorsque son réalisme constitutionnel débouche sur la
revendication d’une souveraineté effective de l’Etat (...)La thèse realiste des hégéliens va encore plus loin em
affirmant la supériorité de l’effectivité par rapport à la validité, de la réalité politique par rapport à la norme (...)
Pour les juristes néo-hégéliens, la constitution comme loi politique est donc considérée comme supérieure à la
constitution comme norme juridique. Il en resulte un double renversement dans la conception même du droit
constitutionel” (p. 84-85).
92
longamente a interpretação de Leo Strauss (e de Löwith) contra Schmitt: elabora uma crítica
apressada e uma leitura limitada e pouco generosa sobre os conceitos de amigo e inimigo,
quanto à ausência de conteúdo do político, a unidade política e a orientação à política externa.
Hofmann afirma que:
57
Sobre a posição de Schmitt no estágio final da metafísica moderna, cf. HEIDEGGER, GA, 86 e CASTRUCCI,
1999 (ambos trazem poucas, mas valiosas páginas sobre a posição do jurista no fim da Metafísica/Jus Publicum
Europaeum); cf. também, OJAKANGAS, 2005.
94
lhe custasse mais do que poderia assumir por conta de sua postura de jurista, chegaria a
formular uma teoria pós-política. Em todo caso, o autor percebeu, afinal, qual a novidade das
teses do jurista: “para Schmitt se trata de apreender a faticidade da nossa existência política
contingente e de trazer as consequências disso. Esta é uma atividade filosófica; significa mais
que uma tentativa de descobrir, com uma perspectiva sociológica, a “infraestrutura social” do
direito” (HOFMANN, 2002, p. 159)58.
A querela continuidade-descontinuidade, porém, ainda hoje está em jogo. Na
argumentação na Parte II, apostamos em progressivas alterações e densidades de realismo,
mesmo que a questão se altere durante a obra. A interpretação proposta nesta tese não leva em
conta como central a questão da legitimidade, mas sim a relação entre transcendência e
imanência, além, é claro, da superação por meio de outro conceito de político. Não demonstra
apenas a transição do problema da validade normativa para o problema da estabilidade
empírica a partir da qual se dá qualquer representação normativa, mas apostamos que Schmitt
busca o limite, realidade ou modo concreto de constituição de objetos políticos, o que
demonstra o caráter fictício da normatividade. Em nossa interpretação, Schmitt busca a
fronteira anterior mesmo à distinção entre ser e dever-ser, direito e poder, que torna, por fim,
estas distinções esvaziadas, abandonando a noção de legitimidade.
No final da década de 1980, Heinrich Meier publicou seus estudos sobre a relação de
recíproca influência entre Carl Schmitt e Leo Strauss, sobretudo, ao destacar como as críticas
do jovem Strauss surtiram efeito no pensamento schmittiano. Segundo Meier, a análise
straussiana sobre o político provocou algumas alterações na argumentação do jurista,
inclusive, ao ponto de modificar a redação do texto na edição de 1932 59, principalmente, a
caracterização do conceito de Politischen. No entanto, o livro mais polêmico e que trata mais
especificamente da interpretação de Meier sobre a obra schmittiana apareceu alguns anos
depois. No Die Lehre Carl Schmitts: Vier Kapitel zur Unterscheidung Politischer Theologie
58
Ainda segundo Hofmann, Schmitt pode ser definido como “um sucessor espiritual dos nominalistas e dos
voluntaristas (...) Hans Welzel pode compreender a obra de Schmitt em perfeito paralelo histórico com a
polêmica que na época, o nomialismo tardo-medieval tinha conduzido contra o platonismo nas vestes tomásicas
do realismo da ideia” (HOFMANN, 2002, p. 163).
59
MEIER, H., Carl Schmitt, Leo Strauss und Der Begriff des Politischen. Zu einem Dialog unter Abwesenden.
Mit Leo Strauss Aufsatz über den Begriff des Politischen und drei unveroffentlichten Briefen an Carl Schmitt
aus den Jahren 1932-1933, Stuttgart, J. B. Metzler, 1988.
96
60
Consultamos a tradução americana de Marcus Brainard, The Lesson of Carl Schmitt. Four Chapters on the
Distinction between Political Theology and Political Philosophy. The University of Chicago Press: Chicago &
Londres, 2011. Heinrich Meier desencadeou inúmeras críticas com suas teses sobre Schmitt tanto em Carl
Schmitt, Leo Strauss und der “Begriff des Politischen” de 1988, quanto em Die Lehre Carl Schmitts de 1994.
97
nomeadamente, esta rejeição em um texto tardio (Politische Theologie II) que, apesar disso,
cita como abertura do argumento: “A loucura da ilusão de Prometeu é tão simples como o dia.
Pode-se ouvir em todas as formulações que Schmitt escolhe para descrever as "cadeias de
pensamento" nas quais o "autismo" da imanência deve se mover, na imanência "que é dirigido
polêmica contra uma transcendência teológica" sem querer admitir isto” (MEIER, 2011, p. 5).
Atento às teses de Meier, o leitor acreditaria estar diante de um pensador crítico da
historicidade, das formas de vida, da existência ou da instituições concretas, inclusive de teses
que afirmam que a ação se dá na “cegueira da imanência” o que seria, para Meier, a rejeição
de Deus, ou melhor, a ruptura da relação entre político e teologia. A relação direta que Meier
descreve não se parece quase em nada com os textos que, efetivamente, Schmitt traz a
concepção, por exemplo, de político como mediação do teológico: nada de fanatismo ou de
política teológica, mas uma tese que demonstra um rasto entre estas esferas, mais
especificamente, a secularização como transferência61.
A crítica à técnica e à despolitização não faz com que Schmitt almeje um reino dos
céus, pelo contrário, ele abandona, mesmo sem assumir o argumento até as últimas
consequências, a forma-Estado, declara a primazia da relação concreta e, ao invés de sustentar
que “toda autoridade temporal ou humana procede diretamente da autoridade espiritual ou
divina”, afirma, ao contrário, o conflito como cenário do político, secular e demasiadamente
imanente62. A mera contraposição à Bakunin não torna Schmitt um defensor da fé nem
convence tomar o liberalismo como um adversário cristão. Além disso, a crítica à economia
não se refere à ausência de Deus, mas antes à ausência de político, isto é, como uma crítica à
transformação do poder em cálculo, numa juridicização extravagante. Se o político não
deixou de ser teológico (na tese de uma secularização inacabada), ao menos deixou de ser sua
mediação e isso foi desencadeado pela secularização, acabada ou não, mesmo em suas formas
estatais na busca da ordem.
61
Sobre o tema, imprescindíveis: LÜBBE, 1965 e CASTELO BRANCO, 2011. Deste, extraio um trecho
revelador: “o conceito de secularização transita numa tensão entre visibilidade e invisibilidade, transcendência e
imanência, pessoalidade e impessoalidade. Por ora, destaco que a secularização, entre outros sentidos
empregados por Schmitt, se refere a um problema de representação que surge com o iluminismo e o
romantismo” (CASTELO BRANCO, 2011, p. 25). De uma perspectiva histórica, sobretudo, SCATOLLA, 2007.
62
Sobre a relação de Schmitt com o pensamento católico, entre outros, vale a pena analisar o artigo de
GONTIER, 2013: “an intellectual anticipating of the political at the level of the innerworldly-historical—more
intelligent than the ‘decency’ of many others whose stubbornness keeps them safe from dangerous adventures—
but [of] insufficient spiritual stature to be able to escape the mischief of the world-immanent seduction—it is
never enough for the ‘periagoge’ in the Platonic sense.” In common with Heidegger, Schmitt has undermined the
meaning of transcendence that Plato understood to be the purpose oft he periagoge. In both writers, the position
of radical transcendence (radical to the extent of no longer providing a horizon of meaning for mankind) is
reversed, thereby becoming the affirmation of an absolute immanence” (GONTIER, 2013, p. 42). Estas
considerações reforçam a tese proposta nesta pesquisa.
99
Entretanto, não há como tratar das teses de Meier sem abordar a peculiar função
política que a teoria do pecado original como fundamento para a manutenção da ordem
desempenha. Por exemplo, ele assevera que: “Sua teologia política explica não só a percepção
de que, se a teologia desaparecer, também a moral; se a moral desaparecer, também o político,
assumindo que a teologia ou a moral poderiam ‘desaparecer’. Schmitt acredita que ele sabe,
além disso, e muito mais certamente que a negação do pecado original destroi toda a ordem
social” (MEIER, 2011, p. 13) e, logo mais, ele afirma:
No entanto, as coisas podem estar de acordo com a ordem pela qual a Fé no pecado
original é considerada indispensável, certamente é assim a teologia política de
Schmitt. A doutrina do pecado original nomeia o fiador que assegura a
inevitabilidade de um radical Ou - ou até o fim dos tempos: colocarei enantiomas
entre a sua semente e a sua semente. A crença na verdade de Gênesis 3:15 é o
fundamento sobre o qual a teologia política de Schmitt é erigida (MEIER, 2011, p.
12-13).
Curiosamente, o tema do inimigo ganha relevância na obra jurídico-política apenas
no final da década de 1920 e seria pensar de maneira demasiadamente gnóstica ou
maniqueísta um pensamento schmittiano compreendido desde o início sob esta marca
religiosa. Não obstante, Meier prossegue: “A doutrina do pecado original diz respeito à
oposição entre o bem e o mal, Deus e Satanás, a obediência e a desobediência. Ao mesmo
tempo, ele confronta o próprio homem com um final Ou-Ou. A decisão, o credo absoluto ou
não credo que requeira, torna-se assim o paradigma da "decisão moral exigente" como tal”
(MEIER, 2011, p. 13). A leitura de Strauss é assimilada do modo mais devoto possível ao
ponto de transformar uma caracterização moral e liberal em uma leitura cristã.
Em um trecho que mais se assemelha a um sermão, Meier retoma inúmeras citações
desconexas de textos do período pré-weimariano com outros textos da década de 1970. Nessa
colcha de retalhos, diz o que quer, ou melhor, força Schmitt rezar:
histórica. Para a teologia política também afirma que somente a obediência a Deus
pode garantir a proteção do senhor deste mundo. Devemos reconhecer no obedo, ut
liber sim do teólogo político o arquétipo da "eterna correlação entre proteção e
obediência", um arquétipo não distorcido por qualquer secularização? (MEIER,
2011, p. 16-17).
Meier consegue enfatizar o apelo à ordem que as teses schmittianas trazem, mas ao vincular o
apelo à ordem como uma obediência à Deus, o comentador extrapola sem dar conta que,
afinal, o jurista não poderia, simplesmente, subscrever afirmações desta espécie: “A teologia
política pressupõe fé na verdade da revelação” (MEIER, 2011, p. 20). Todos os eventos são
submetidos à revelação, a imanência à transcendência e esta revelação, claro, serve para
reforçar a tese da ordem, isto é, como fundamento da obediência. Na relação entre obediência
e teologia política, Meier reforça, de maneira paradoxal, para não dizer incompreensível, uma
embaraçosa historicidade da teologia política:
Para obedecer a revelação ou a si mesmo, a teologia política tem que querer ser
"teoria" por obediência, em apoio à obediência e por obediência. A moral é,
portanto, seu princípio em dois sentidos. Ele é o início da teologia política e
continua sendo seu campo determinante. Esta relação fundamental merece mais
atenção, na medida em que a teologia política in concreto pode defender posições
divergentes sobre a moralidade (...) Se é verdade que a moral não pode continuar a
existir sem a teologia, então certamente não é menos verdade que a teologia política
não pode ser pensado e compreendido sem o primado que concede moral. Para a
teologia política de Schmitt, as diferenças e contradições das posições político-
teológicas devem ser explicadas com base na sua historicidade (MEIER, 2011, p.
20-21).
Numa releitura mais de Strauss do que de Schmitt, Meier assume a identificação
entre teologia política e moralidade. Esta leitura, porém, encontra mais do que as propostas de
Schmitt trazem, mesmo em Politische Theologie, onde as questões não são tratadas no âmbito
da moral. Não obstante a inexistência deste tema, Meier afirma “se permanecemos dentro do
horizonte da teologia política, a posição fundamental de Schmitt sobre a moral parece ser
consistente (MEIER, 2011, p.21). Assim, ele reduz Schmitt a uma luta da decisão moral da
teologia política, por exemplo, quando afirma que “Schmitt ataca a moral humanitária porque
vê nele o ‘veículo’ de uma ‘nova fé’ anti-divina” (MEIER, 2011, p. 23). Assim, contra estes
desafios históricos, Schmitt teria movido sua máquina teológico-política, pois “Ele luta nela
como ‘aquilo que detém’ o caminho para a auto-deificação do homem. Onde quer que a
humanidade seja considerada o ‘valor mais alto’, o perigo é grande que toda relativização do
homem com base em uma transcendência e outra palavra no esquecimento” (MEIER, 2011, p.
23). O teólogo político como defensor da moral:
que é, já que por essa razão só pode ser encontrado com espanto (MEIER, 2011, p.
21-22).
O malabarismo hermenêutico de Meier ganha desenvoltura com essa articulação que, com
algum mérito, ele desenvolve, por exemplo, “Para o teólogo político (...)está ciente da
importância escatológica da batalha por ou contra a inimizade na idade em que ‘nada é mais
moderno do que a batalha contra o político’ (PT, p. 55; RK, p. 19) a defesa do político se
torna um dever moral” (MEIER, 2011, p. 25).
No capítulo 2, Meier avança em sua tese: expõe a relação entre o conceito do político
e a fé cristã. Logo de entrada, enuncia, numa irônica inversão da tese schmittiana, que “O
conceito de Carl Schmitt sobre o político pressupõe o conceito de inimigo” (MEIER, 2011, p.
26). Esta formulação reverbera a leitura de Derrida, na qual o argelino argumenta a relação de
necessidade e não meramente possibilidade entre o político e a guerra63. No entanto, a
argumentação aborda, inicialmente, a definição do político como comportamento determinado
pela real possibilidade da guerra e pela distinção entre amigo e inimigo. Desta pressuposição,
Meier extrai duas consequências: (i) o conceito de inimigo estaria acima de qualquer outra
categoria e, por isso mesmo, (ii) seria uma espécie de verdade indubitável, fundamento que
perpassa toda a obra de Schmitt. No entanto, parece que Meier pressupõe mais do que Schmitt
assume e lança suas pretensões de tudo perceber de maneira teológica, por exemplo,
63
Sobre isso, DERRIDA, 1998 e infra 1.9.
102
Do início ao fim, o que diz respeito a Schmitt não é a independência do político, mas
sim a sua autenticidade. Coloque mais precisamente: desde o início, o que importa
para ele é localizar o que é autoritário no político. O conceito de política está
orientado para o "agrupamento autoritário". Tem a "unidade autoritativa" em vista.
Mesmo num momento em que Schmitt ainda atribui a região política dentro do
64
Esta tese também é sustentada por ZARKA, 2005.
103
O político "surge" onde quer que dois se juntem e unam forças contra um inimigo.
Este é precisamente o significado desse giro conceitual em conseqüência do qual o
político é denotar "o grau mais extremo de intensidade de um vínculo ou uma
separação, de uma associação ou de uma dissociação" O político é livre de sua
referência fixa à comunidade e, por assim dizer, feito fluido. Mas, desse modo, o
passo decisivo é tomado para revelar que o político é o total para uma interpretação
"ontológica-existencial" (MEIER, 2011, p. 34, grifo nosso).
Em outras palavras, o político como algo fluído, sem substância. Como Meier pode
conciliar uma leitura moral-religiosa de Schmitt com esta interpretação do político como algo
“fluído”? Ele mesmo ratifica da seguinte forma: “Como possibilidade, tudo é político, e tudo
sempre é mais ou menos político” (MEIER, 2011, p. 34), assim, Meier confirma a tese de que
“Os povos perderam sua posição de chave presumida (...) Em 1932, ‘religião, aulas e outras
pessoas’ são explicitamente citadas em uma respiração com eles como constituintes possíveis
neste mundo” (MEIER, 2011, p. 33, grifos do autor), ou seja, compreende que o político não
se determina no Estado. Todavia, logo tenta conciliar esta tese do politico como algo fluído e
incalculável com a tese de que “como Schmitt tem em mente e como sua teologia política
exige” (MEIER, 2011, p. 34). Surpreso, o leitor não demora a perceber que objetos diferentes
são tomados por iguais e duas teses distintas colocadas lado-a-lado como coincidentes: uma
ordem da imanência sem transcendência (mesmo que Meier insista na relação entre político
como totalidade e indivíduo na perspectiva existencial!) teria como pressuposto a unidade da
ordem em termos teológico-políticos. O problema evidente da paradoxal ligação entre céu e
terra, realmente, só pode ser resolvido como um ato de fé do intéprete.
Meier prossegue a análise da tese do político não apenas baseado numa concepção de
moral cristã, mas também como “fundada no recurso à concepção de intensidade é o resultado
de uma perspectiva originalmente individualista” (MEIER, 2011, p. 34). Numa leitura
apressada, o intérprete cristão vincula o político ao existencial e deste ao individualismo. Esta
interpretação ainda reverbera as teses de Strauss – o liberalismo com sinal oposto –, mas não
considera uma possibilidade mais interessante: Schmitt não concede maior peso ao inimigo,
nem mesmo afirma o político a partir de um individualismo, pelo contrário: dá ênfase na
relação que instaura o conflito e, sobretudo, trata com uma noção de comunidade, certamente
pouco desenvolvida, mas que o afasta suficientemente de qualquer abordagem individualista.
104
semente e sua semente precede o fratricídio de Caim. Com esse decreto voltamos ao
princípio da fé em que Schmitt erigiu seu edifício político-teológico e que ocupa um
lugar decisivo em Der Begriff des Politischen (MEIER, 2011, p. 57).
Não soa estranho o intérprete finalizar seu argumento com um termo alheio a Schmitt
para designar o politico: a comunidade de fé. Assim, “A batalha de fé que a formação do
conceito de Schmitt toma como padrão é a batalha na qual a fé verdadeira conforma a fé
herética. Nesta batalha, atinge-se o grau mais extremo de intensidade de associação e
dissociação. A inimizade mais intensa prova ser a inimizade autorizada. Aqui a preocupação é
domínio, ordem e paz ‘no sentido eminente’” (MEIER, 2011, p. 63). Contra isso, postulamos
outra interpretação que não aprofunda, mas subtrai e, por isso mesmo, trai o pensamento do
autor. Ao invés de comunidade de fé, uma comunidade do conflito65.
A questão da teologia na obra de Schmitt passa de tema praticamente inexistente –
até meados da década de 1980 – até chave de leitura para compreensão de todo seu
pensamento. O theological turn no debate acerca da obra schmittiana joga luz sobre uma
concepção de ação política baseada na fé cristã da revelação, mais especificamente, como
afirma Meier “a teologia política permanece e cai com fé na revelação, e ainda, a inimizade é
definida com fé na revelação” (MEIER, 2011, p. 66). A raison d’être da teologia política seria
a “obedience of faith” (MEIER, 2011, p. 67) na revelação66. No entanto, como articular
revelação e política, ou melhor, como sustentar que a teoria política de Schmitt seja uma
“truth of revelation” e delimite a distinção entre “obedience and rebellion”? Meier parece
partir de uma noção de secularização bastante peculiar: ao invés de esvaziamento ou
progressiva transferência entre as esferas, o comentador reenvia a política à teologia e, parece-
nos, faz o caminho inverso do pretendido por Schmitt, por exemplo, ao tratar da sociologia
dos conceitos. Numa formulação precisamente oposta à que levantamos nesta tese, Meier
afirma que “Schmitt não se limita a manter aberta a ‘porta de entrada para a transcendência’”
(MEIER, 2011, p. 69). Deste ponto de vista, como Meier articula história e teologia,
imanência e transcendência no pensamento de Schmitt? Além disso, Meier não aborda as obra
do período pré-weimariano, por exemplo, não discute a virada do pensamento formalista para
os argumentos do período do pensamento de exceção e ordem. No texto, aborda apenas
65
Cf. seção 3.4
66
Sobre a posição de Schmitt como defensor da ordem e o paralelismo com Eusébio de Cesaréia: “Though
Schmitt (unpersuasively) denies that this is his intention, the work effectively culminates in a defense of the
‘unfortunate Bishop Eusebius’ of Caesarea against the ‘defamation’ he has suffered in posterity, attacked “ad
personam” through ‘moral-political’ categories, such as ‘ideologist’ and ‘propagand[ist]’ of ‘caesaropapi[sm]’.
As Schmitt repeatedly emphasizes, Eusebius was simply a ‘love[r] of peace and order’ who thought he saw in
the Imperium Romanum some possible salvation from ‘political pluralism’ and ‘disastrous civil war’. This is
thinly veiled allegory. Eusebius is Schmitt; the Council of Nicea, the Weimar Republic” (MEIER, 2011, p. 73).
106
67
Sobre o Katechon, Schmitt retoma uma interpretação clássica de uma passagem da II Epístola aos
Tessalonicenses, segundo a qual o Império (romano) seria o que guarda e retarda a vinda do Anticristo. cf.
LÖWITH, 1983, p. 180 et seq.; CACCIARI, 2013.
107
68
Os trechos que vinculam fé, ordem, política e moralidade se multiplicam a cada página, por exemplo, “What
concerns Schmitt above all in the doctrine of original sin is the defense of the center of the theology of revelation
and the presupposition of every – as he understands it – genuine morality” (MEIER, 2011, p. 81).
108
interpretação de Meier é no ponto onde reitera que Schmitt é um pensador da ordem, mas não
é possível reduzir a teoria jurídica e política schmittiana simplesmente a uma teologia política
por conta da questão da unidade e ordem69. A inexplicável influência que um texto como o
Meier adquiriu tem apenas uma explicação: levantou um mito sobre outro mito.
Argumentativamente, a análise da obra de Schmitt deixa a desejar e discordamos in toto da
chave hermenêutica meieriana que sustenta como papel chave a teologia política [leia-se: o
aspecto cristão da filosofia de Schmitt] o fato de que apenas uma interpretação que siga no
sentido da teologia política pode tornar compreensível o que de outro modo aparece altamente
disparatado, enigmático e obscuro, quando não completamente inconsistente.
69
Excelente contraposição acerca da tese do pressuposto teológico-político como chave de toda obra schmittiana
é trazido por ROBERTS, 2015: “The most plausible support for the political theological thesis derives from
postwar and (mostly) posthumously published material,which was retrospectively projected back upon Schmitt’s
Weimar-period writings as an interpretive lens. Ultimately, as it turns out, this material is no more than
suggestive (section 2). This material also forces us to recall the details of Schmitt’s relationship to the Roman
Catholic Church, from which he had slowly drifted over the course of the Weimar period. Thus, the quasi-
confessional statements found in his postwar notebooks must be interpreted either (a) as part of a widespread,
postwar turn to Christianity, or (b)as his cynical ploy to distance himself from the NSDAP. Retrospectively
projecting this material back onto the Weimar corpus is hermeneutically questionable (section 3). (...) As most of
his readers recognized until relatively recently, the “political” is the core concept in Schmitt’s thought, and this
sui generis category, while irreducible to theology, draws upon all spheres of human life. Theology can, but need
not, have a connection to it” (p. 453).
70
ESPOSITO, Roberto. Categorie dell’impolitico. 2ª ed. [1ª ed. 1988], Bologna: Il Mulino, 1999.
110
tomando o que está além (dalla sua ulteriorità)” (ESPOSITO, 1999, p. 7), mas toma
emprestado mais do que assume quanto à estrutura, por mais que avance para além do que o
jurista alemão admitiria. Entretanto, de maneira desconcertante, a análise de Esposito sobre o
impolítico não chega ao Der Begriff des Politischen, apesar de tê-lo em vista. O autor italiano
reconhece as “consideráveis realizações analíticas” (ESPOSITO, 1999, p. 7) da Politische
Theologie (Teologia Política) de 1922 e do Römischer Katholizismus und politische Form
(Catolicismo Romano e Forma Política) de 1923; porém, neste percurso, ele considera como
semelhantes teses bastante distintas, pois a concepção do político como mediação ou
representação sofre revisão com a proposta do político como relação ou antagonismo no
período tardo-weimariano. Embora demonstre esta alteração como um contra-ataque
schmittiano às concepções imanentistas da década de 1920, Esposito trata apenas da
Verfassungslehre (Teoria da Constituição) de 1928. A questão é: por que Esposito reconhece
o Categorie dell’impolitico como “mise en abyme” do texto Römischer Katholizismus und
politische Form e não aborda o Der Begriff der Politischen? A análise aponta que entre
impolitico e das Politische há uma conexão importante esquecida. Além disso, a pesquisa
joga em cena o conceito de representação: a partir da politische Kehre schmittiana, remete-se
àquilo que Esposito observou como sendo o impolítico, ou seja, o irrepresentável da política.
Esta virada ficou sem observação devida pelos intérpretes, porém é precisamente este
argumento que mostra que o desenvolvimento de Esposito passa necessariamente por Schmitt.
Ao distinguir o impolítico do anti-político ou do apolítico, Esposito sustenta que
enquanto estes participam da política como uma imagem invertida e como tal apenas mais
uma maneira de fazer política ao posicionar-se contra a política, ou seja, uma configuração
política tanto da anti-política quanto da apolítica; o impolítico, ao contrário, provoca uma
paradoxal intensificação da política, uma vez que ele “define toda a realidade em termos
políticos (...) para o impolítico, não existe uma entidade, uma força, uma potência que possa
opor-se à política” (ESPOSITO, 1999, p. XIV) a partir de algum âmbito externo ou interno,
pois não há a possibilidade de um ideal ou valor distintos da realidade política que reconduza
à unidade ou origem. Esposito tem em vista os processos de despolitização e neutralização da
política que possuem a função de excluir o conflito e instaurar ordem: a política moderna
surgiu, então, como antipolítica. Isto significa que o impolítico não se contrapõe à política
nem mesmo pode ser considerado como apolítico ou não-político, pois seria o outro da
representação política, isto é, o não pensado ou esquecido por ela: se a política moderna
surgiu como antipolítica, pois administração do conflito sob a forma da ordem contra o
conflito insustentável da violência anárquica da origem sempre presente; então o impolítico
112
não rejeita o conflito nem nega a política, mas sim “a considera como a única realidade e toda
realidade” (ESPOSITO, 1999, p. XV), ou seja, não existiria fora nem anti- ou ante-, mas
apenas política sem possibilidade de metapolítica e, por conseguinte, o impolítico demonstra
sua abertura como abandono da simetria entre finito e infinito: considera que não há
transcendência ou finalidade externa. Ora, neste momento, percebe-se o incômodo do
impolítico, pois “a política nem sempre tem consciência de sua própria finitude constitutiva.
Está continuamente levada a esquecê-la. O impolítico não faz outra coisa que lembrar-lhe”
(ESPOSITO, 1999, p. XVI). Assim, o impolítico contradiz não apenas a distinção entre
essência e aparência, mas também os discursos de dualidades ou simetrias ao reafirmar um
realismo político uma vez que não há “presença de uma realidade segunda, ou primeira, a
respeito da única que se pode experimentar como tal” (ESPOSITO, 1999, p. XXI) e, dessa
forma, coincide com a própria política: enquanto a antipolítica ou a apolítica nega a política, o
impolítico nega esta negação e, por este modo, “começa a emergir o caráter paradoxalmente
afirmativo da negação impolítica. O que afirma o impolítico? Afirma que não há outra política
que a política (...) não é outra coisa que si mesma” (ESPOSITO, 1999, p. XVI).
Neste contexto, o impolítico serve para afirmar que a política não pode transcender a
si mesma, não há nada exterior ou finalidade transcendente nem uma lei natural universal a
partir da qual se concede autoridade, ou seja, o “impolítico é o fim de todo ‘fim da política’”
(ESPOSITO, 1999, p. XVI), portanto, como uma desconstrução que, ao contrário, não apenas
mostra os limites e separa dentro e fora, mas “une justamente o que separa”, isto é, o
impolítico torna-se limite da política, mas também limite de seu próprio limite: “o impolítico
não é distinto do político (sic da política), mas sim é o político (sic a política) mesmo
observando desde um ângulo de refração que o modera frente ao que ele não é e tampouco
pode ser. A seu impossível” (ESPOSITO, 1999, p. XXI). Apesar de rigoroso na utilização dos
conceitos, Esposito não distingue entre a política e o político. Esta distinção inaugurada por
Schmitt (die Politik e das Politische) e retomada de diversas formas por autores como Paul
Ricoeur, Claude Lefort, Phillipe Lacoue-Labarthe, como demonstrado no capítulo 3 desta
tese, remete à diferença entre uma concepção de política institucional e outra que não é
abarcável por instituições por se referir à transformação e ao conflito. Esta distinção pode ser
compreendida como expressão da filosofia diante da crise do pós-guerra, no caso, como um
sintoma de ausência de fundamento e finitismo que expõe a dimensão da instituição a
situações de rupturas, interrupções ou momentos extraordinários que destituem qualquer
tentativa de fundamentação do poder, por exemplo, em Helmuth Plessner como Kairós, em
Walter Benjamin como Jetztzeit ou em Schmitt como Ausnahmenzustand. Neste último, em
113
Der Begriff des Politischen, a primazia do antagonismo como político demonstra que a luta
irrompe a normalidade. Numa inversão elegante, Schmitt sustenta que a ordem pressupõe o
conflito, porém este conflito mostra-se como negatividade que não é capturável, isto é, como
a possibilidade do conflito, enquanto critério do político, é sempre presente, ele se mantém
como a relação doadora de sentido, numa palavra, a abertura constitutiva da ordem. Ao invés
de substância, dualidade, objeto ou sujeito, considera-se relação e diferença, negatividade e
conflito na constituição do poder, ou seja, a transcendência é sempre da ou na imanência o
que desfaz a necessidade do nexo entre ser e aparecer, substituindo-o pelo par político (ou
impolítico) e política. Entretanto, Esposito não enxergou nas teses de Schmitt uma ocorrência
do impolítico.
Na desconstrução impolítica, há uma negação da teologia política tradicional
(católica) como representação ou conexão entre terra e céu ou poder e bem, mas também
rejeição da teologia política seja compreendida como filosofia da história, seja compreendida
como transferência ou secularização de conteúdos teológicos para conceitos jurídico-políticos.
O impolítico não repete a postura da filosofia política moderna de pressupor uma origem ou
substância seguido por uma cisão ou crise que determina a reflexão nostálgica sobre
fundamento perdido ou instauração de um processo de despolitização e neutralização. Para
Esposito, não há movimento linear, mas sim desde o começo a cisão e o conflito são
compreendidos como origem, embora “não é necessário decidir disto que a política não tem
propriedade nem essência (...) sua propriedade consiste na ausência do próprio, assim como
sua essência consiste em uma falta de essencialidade irremediável” (ESPOSITO, 1999, p.
XXVI). Ele assume o impolítico como de-criação e desfundamento: se não há queda nem
origem, então princípio e precipício são originários, tal como um descentramento, sem
dúvidas, uma desconstrução da lógica moderna, mesmo que partindo dela mesma. Assim,
Esposito aproxima-se de Heidegger ao afirmar que “a origem não se dá senão na forma do
próprio apartar-se” (ESPOSITO, 1999, p. XXVII) e, por conseguinte, não considera um
processo histórico determinado por algo anterior ou por uma finalidade como nas teses da
secularização, mas analisa a política naquilo que não é exposto, como que desocultando seu
parti pris: mostra que não é possível dar a volta por trás e encontrar algo como essência ou
fundamento – argumento que retorna em Communitas (1999) e Immunitas (2002) –, já que
dar a volta por trás é como dar uma volta em torno de uma mesa, encontra-se, após a volta, no
mesmo lugar de antes. A origem seria secundária, ou seja, seria não-origem, pois diferença de
si mesma, articulação in-originária daquilo que se origina. Como não é possível dar a volta
por trás para desvelar um fundamento e ao tentar este movimento a reflexão encontra uma
114
origem não originária, percebe-se que a origem coincide com a não origem. Esposito
considera que nisto consiste o irrepresentável da política e o impolítico seria a enunciação
deste irrepresentável. Este provocaria um curto-circuito na noção de representação: se a
origem é crise-princípio, mostra-se a cada tentativa de delimitação como um retrair-se
contínuo, não como algo que está fora ou além, mas como um limite, margem ou vazio
exterior que a política não determina, mas que é ela mesmo como presença e finitude.
Para os propósitos desta investigação, é suficiente uma leitura seletiva de alguns
episódios do texto espositiano. Inicialmente, o autor lança o debate sobre a teoria da
representação política no catolicismo do início do século XX, sobretudo, com Romano
Guardini e Carl Schmitt. Este tema serve de problema inicial a partir do qual o argumento do
impolítico é desenvolvido. Para Guardini, segundo Esposito, a teologia política postula a
função do Cristo como lugar da decisão que significa compreender no seu sofrimento a
distância e separação expressa na narrativa bíblica como abandono. Assim, esta distância, ou
melhor, esta cisão revela-se como a própria condição da decisão: a oposição ou bipolaridade
do contraste que a natureza de Cristo carrega. Esta condição afirma a possibilidade da decisão
através da oposição entre homem e Deus, natureza e graça, tempo e eternidade. Além disso,
compreende esta relação como alteridade e a decisão como histórica, pressupondo-a como
vinculação entre poder e autoridade, imanência e transcendência. Para que haja autoridade,
porém, é necessário que uma pessoa concreta a represente visível e historicamente, seja como
homem singular seja como instituição, em todo caso, como uma representação na história ou
encarnação. Não basta à autoridade a decisão, pois necessita da referência ao elemento
transcendente: além do sujeito ou da instituição, é necessário uma conexão ou liame entre céu
e terra ou bem e poder. Em suma, aqui reside a teologia política católica como uma política
metafísica da união ou representação entre o terreno e o divino. Ao mesmo tempo, rejeita as
teses protestantes do governo divino imediato e a doutrina da sola scriptura, bem como as
teses dos humanistas e dos defensores da ragioni di stato numa curiosa declaração católica
contra os inimigos comuns, Lutero e Maquiavel. Em Guardini, portanto, dá-se a expressão
desta declaração: além da instância concreta e histórica, a transcendência da ideia em função
da qual se representa e organiza a realidade garante à autoridade política sua validade.
Em Schmitt, por contraste, não há relação teológica substancial: a mediação da Igreja
funciona como um modelo apenas formal uma vez que assume de Roma o paradigma
jurídico-político de organização do poder, qual seja, a exigência de dar forma à vida, de uma
razão ordenadora expressa como complexio oppositorum, isto é, uma estrutura que abarca e
reúne as contradições do social, reduzindo os dualismos modernos ou pluralidades concretas
115
ao estabelecer uma realidade institucional como unidade e ordem formal. A teologia católica
seria portadora de um racionalismo jurídico como uma função sacerdotal universalizada que
se caracteriza pela representação: esta é a forma ou ideia do direito que a Igreja realiza por sua
capacidade de conceder unidade e forma à realidade humana sem reduzir a experiência
material a esquemas abstratos. O sacerdote é concretamente interligado por uma cadeia de
mediações e representa a pessoa de Cristo na relação entre céu e terra. Esta representação
empresta à Igreja a capacidade de criar direito, em outras palavras, auctoritas. A mediação
seria o principal atributo da Igreja: é o que possibilita a jurisdictio da autoridade. Nesta
estrutura, a função do político é, via teorema da secularização como problema teológico-
político – isto é, a Igreja como modelo para o Estado – apenas secundária: realizar a mediação
do teológico, pois o poder só tem autoridade caso represente e sirva de mediação desta forma
estabilizadora. Este é o primeiro aspecto da questão que Esposito considera em Schmitt: o
político como mediação é a tese central da teologia política. A relação se estabelece entre
decisão soberana e ordem de direito, poder e autoridade, uma bipolaridade típica do
catolicismo que se opõe ao pensamento imanentista ou não representativo. Schmitt afirma em
Römischer Katholizismus: “nenhum sistema político pode durar, nem sequer uma geração,
como uma técnica da conservação do poder (Machtbehauptung). A ideia é inerente ao político
(zum Politischen gehört die Idee), dado que não há política sem autoridade, nem há
autoridade sem um ethos da convicção” (RK, p. 28). Esposito retoma a argumentação
schmittiana do complexio oppositorum como crítica à técnica moderna e aos dualismos
incapazes de dar forma política, pois mero domínio da matéria que reproduz as fraturas entre
espírito e natureza, pensamento e ser, sujeito e objeto do racionalismo técnico-científico: a
complexio seria uma estrutura ou ordo geométrico-representativo da Igreja em formato de
cruz, vertical-horizontal, uma extensão horizontal governada por uma decisão vertical que
pressupõe a ideia ou forma jurídica para ordenar e hierarquizar as diferenças concretas. É um
argumento que garante ordem e forma à experiência, mas não dissolve as contradições do
corpo social: surge uma instância de representação como totalidade. Neste momento, ainda
não há realismo político, mas a tentativa de orientar normativamente a ordem através de uma
racionalidade institucional, um modelo eclesiástico pelo qual a existência concreta
(contingente) torna-se racional (organização política). A decisão é orientada pela
representação e buscar instituir a ordem, em suma, a tese teológica-política schmittiana.
Esta estrutura torna-se problemática ao abandonar a possibilidade de dar forma à
experiência a partir de uma instância decisória concreta orientada normativamente. Para isso,
é necessário distinguir a evolução do conceito de representação em sua obra de 1923 até 1928
116
e esclarecer que a ausência da análise do Der Begriff des Politischen por Esposito não é
insignificante: a concepção católica da complexio enquanto diferença horizontal que une
contrários e a transcendência da ideia enquanto diferença vertical que garante autoridade dá
lugar, na modernidade, à concepção democrático-parlamentar que elide a dimensão da
transcendência. Neste caminho, um novo conceito do político surge como crítica às
dualidades da modernidade, mas também ao continuum entre religião e política. Assim,
Esposito realiza uma leitura correta ao afirmar que
Segundo Esposito, ao eliminar o amor Dei, resta a Hobbes o amor sui o que desencadeia a
história da imanência na tradição moderna. Assim, a argumentação espositana deveria, para
ser coerente, sustentar Schmitt como filósofo da imanentização e a categoria do político do
texto Der Begriff des Politischen distinta daquela da Politische Theologie e do Römischer
Katholizismus. Estas leituras confirmam a hipótese assumida nesta pesquisa: a obra de
Schmitt adotaria uma estratégia de finitude, desenvolvendo-se de um normativismo até um
realismo forte (monismo e imanentismo). Esposito reconhece este movimento ao afirmar:
exceção (decisão) que capta o excesso (forma) e evita uma auto-fundamentação como
afirmação de força. Deste ponto, confissão da crise do Estado, Esposito iniciou sua crítica.
Esta compreensão espositiana, todavia, faz jus às teses de Schmitt até 1923. Assim,
se é correto afirmar que Schmitt vincula o político à representação ou mediação, a decisão à
ideia ou forma de direito (ordem) em meados de 1920; logo em seguida, no final da década, já
não é possível compreendê-lo através destas teses, ou seja, o conceito do político não é mais
analisado como mediação, mas como relação concreta e antagonismo anterior à unidade ou
ordem. Neste momento, a questão é a seguinte: por que Esposito não analisa a virada do
conceito do político e a dissolução da representação moderna que o Der Begriff des
Politischen traz? A hipótese proposta é que Schmitt esteja mais próximo do que se poderia
aceitar e faz jus ao rol de autores impolíticos ou, ao menos, utilizou alguns argumentos ou
estratégias impolíticas. Em outro trecho fundamental, Esposito aproxima das Politische e o
impolitico ao considerar este, assim como Schmitt faz com aquele, como uma
* * *
Na teoria do político, Schmitt assume que a cisão entre transcendência e imanência
ou ser e dever-ser é uma impossibilidade: a autoridade não recebe legitimidade a partir de
uma instância ideal. Assim, o político possui sua origem em outro lugar: na contingência,
como relação polêmica estabelecida por meio da exclusão e da diferença. O factum brutum do
político como hostilidade originária entre amigos e inimigos refere-se à distinção do corpo
político e aos afetos, ao contrário das normas e parâmetros universais, inserindo a violência
como constitutiva da ordem. Se com Schmitt, percebe-se a ausência de substância e o conflito
como pressuposto político da política, tal como um transcendental finito; então a relação
inesgotável entre política e política abre espaço para considerações acerca de uma dialética
negativa em política. Esposito não chega a esta compreensão; a rigor, nem mesmo Schmitt,
porém se impolitico para aquele significa que “o único modo de conter o poder é reduzir o
sujeito” (ESPOSITO, 1999, p. 21), segundo a leitura exposta, Schmitt deixa entrever esta tese
avant la Lettre: a relação concreta e não o sujeito constitui a ordem.
Nestes termos, se é possível compreender Schmitt como um impolítico, também é
possível antecipar a crítica espositiana à contribuição schmittiana a este conceito: a ânsia da
decisão e da ação, mesmo relativizada no final da República de Weimar, ainda perpassa seu
pensamento demasiadamente moderno tanto quanto a pretensão de unidade. A crítica
impolítica à teologia política e à representação passa pela afirmação da finitude, pela ausência
de forma ou de bem na imanência e pela escavação da transcendência como abertura da/na
imanência. Para Esposito, seguindo as teses de Simone Weil e Georges Bataille, o bem seria
irrealizável, porém, apesar disso, o homem deveria praticar tal impossibilidade evitando a
ação. Esta ação passiva ou ação sem finalidade transcendente mostra que qualquer relação
entre política e verdade torna-se unilateral ou idolatria e reduzindo-se à experiência interior –
no caso, como rompimento do estatuto metafísico do sujeito de ação – transforma-se em um
misticismo traduzido como nada ou silêncio e não na possessão violenta ou externa de um
objeto ou ação constitutiva de ordem: o impolítico como uma inação e, por conseguinte, como
desconstrução da categoria de sujeito num eloquente deslocamento da política moderna que
abre o pensamento da comunidade desenvolvido por Esposito contra a metafísica do sujeito.
Assim, a questão da imediação e da irrepresentação contra a mediação e a
representação persiste no impolítico de Esposito e revela o ponto fraco do impolítico
123
Jean-François Kervégan realiza uma tarefa ambígua em seu texto Hegel, Carl
Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité71: ao mesmo em que expõe nas entrelinhas
uma filiação não assumida, privilegiando a compreensão de alguns temas schmittianos à luz
de Hegel, ao invés de Hobbes ou de Heidegger, por exemplo; realiza a incômoda tarefa de
comparar Schmitt a um clássico da filosofia moderna e termina, inadvertidamente, por tomar
um autor em função do outro, além de não expressar a complexidade e variações de temas e
conceitos da obra do jurista. Ao realizar uma “lecture ‘em miroir’ de deux corpus”, Kervégan
acredita que a relação seria útil para a compreensão de zonas obscuras dos pensadores, ou
seja, explicar um autor pelo outro: o decisionismo schmittiano serviria para compreender
alguns aspectos da teoria hegeliana; enquanto esta, por sua vez, serviria para esclarecer alguns
71
Esta obra foi consultada no original em francês Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et
positivité. Paris: PUF, 1992; e na tradução para o português, Hegel, Carl Schmitt. O político entre a especulação
e a positividade. Trad. Caroline Huang. Barueri: Manole, 2006. As citações se referem à edição brasileira.
124
desvios e recusas da obra schmittiana. A tese do autor sobre Schmitt pode ser descrita a partir
da hipótese de que “a obra de Schmitt visa ser a realização – no terreno da positividade e em
condições ético-políticas profundamente modificadas – das posições fundamentais da filosofia
hegeliana do direito e do Estado” (KERVÉGAN, 2006, p. 135). De qualquer forma, para
Kervégan, “a referência à filosofia hegeliana desempenha um papel determinante na própria
constituição da problemática de Carl Schmitt” (KERVÉGAN, 2006, p. 133) e o que se vê é
uma tentativa de compreender Schmitt a partir de Hegel. A leitura que realizamos acerca dos
textos de Kervégan sobre o jurista atende à tarefa nem tanto de servir como advogado de
Schmitt quanto demonstrar que os equívocos ou insuficiências da leitura schmittiana de Hegel
podem ser bastante produtivos e, necessariamente, devem interpretados de forma mais
propositiva. De maneira precisa, Kervégan refaz a argumentação schmittiana acerca do
liberalismo, da Rechtsstaatlichkeit, das críticas ao legalismo e ao parlamentarismo, traz ao
debate as ambiguidades do realismo político de Hegel, reabsorvido por Schmitt, por exemplo,
quando trata do direito internacional e elabora um claro paralelismo entre Grundlinnien
Philosophie des Rechts e o Der Begriff des Politischen, bem como a recusa à submissão da
política à moral abstrata, entre outros temas. O autor elabora uma consistente reconstrução
dos argumentos do jurista na Parte 1 do livro, apesar de relatados sob o espectro unilateral do
decisionismo e, ao final, da figura do Estado Total. Na Parte 2, após breves comentários sobre
o realismo político schmittiano, traça a linha argumentativa já mencionada, questionável,
porém bem executada: reler a obra de Schmitt a partir da leitura de Hegel. Ao final, caso seja
aceita a leitura do comentador, chegaríamos à conclusão que Schmitt, em vários aspectos,
apenas atualizou Hegel para o século XX apesar de não assumir as consequências da dialética
especulativa, permanecendo na positividade, ou melhor, como Kervégan afirma, numa
metafísica da decisão.
Na leitura que realizamos, porém, sustentamos que Schmitt pode ser melhor
compreendido, mesmo diante da filiação inesperada, como um pensador que recusa a solução
especulativa da lógica hegeliana, não por conta do decisionismo avesso a qualquer solução
reconciliadora, mas sim por sua aposta no político como negatividade, isto é, como
contradição finita que não se resolve em algum momento posterior. Dessa forma, a leitura de
Kervégan é apresentada em 3 argumentos principais: (a) o percurso do decisionismo ao
Estado total, (b) a interpretação de Schmitt acerca da relação entre Estado e sociedade civil
em Hegel e (c) a recusa à solução especulativa que resolveria as contradições do político,
como a seguir expomos.
125
a guerra se inscreve numa lógica que não é mais aquela da grande política clássica
dos poderes, mas que leva a declarar o inimigo fora da humanidade e a justificar seu
extermínio (Vernichtung). As noções de guerra total e de inimigo total, forjadas em
1935 para caracterizar esse novo modo de ser suprapolítico da guerra, formam com
aquela do Estado total os elementos de uma teoria da auto-superação em curso da
guerra e do Estado e, por conseguinte, do universo clássico da política
(KERVEGAN, 2006, p. 59).
Neste contexto, Kervégan considera ainda o período do institucionalismo, no qual
Schmitt abandona a questão do normativismo e do decisionismo (metafísica da decisão). O
comentador demonstra como o Estado Total é consequência da extensão e da intensificação
do político, mais especificamente, como a “guinada ao Estado Total” se refere à “nova relação
existente entre o Estado e os recursos da técnica moderna: para Schmitt, o Estado Total não é
apenas um Estado que utiliza as técnicas para estabelecer e desenvolver sua influência sobre
cada um; é também, simplesmente, o Estado da ‘era da técnica’” (KERVEGAN, 2006, p. 68).
127
No entanto, não apenas em relação à expressão da técnica, mas também como consequência
da ruptura da separação entre sociedade e Estado, próprias das delimitações do pensamento
liberal, Kervégan considera acertadamente que Schmitt fora “um dos primeiros a perceber o
alcance das transformações que afetam os Estados liberais-democráticos contemporâneos”
(KERVEGAN, 2006, p. 70) e faz um comentário que aproxima Schmitt de uma espécie de
pré-compreensão da biopolítica:
Elas (as transformações que Schmitt analisa) não significam apenas a atribuição de
novas funções ao organismo político, a par de suas obrigações tradicionais: política
exterior, manutenção da ordem e justiça. A importância adquirida pela
administração da vida social é traduzida por uma verdadeira mudança de natureza. A
soberania do Estado (mesmo absolutista) andava junto com o reconhecimento da
existência de questões não políticas. Ao contrário, o Estado social, que nisso é um
Estado “total”, intervém em todas as circunstâncias possíveis e em todos os
domínios da existência humana, não apenas na economia [...] mas também nas
questões culturais e sociais (KERVEGAN, 2006, p. 70).
Ao vincular a tese da distinção entre amigo-inimigo ao Estado total autêntico,
acreditamos que Kervégan perde a oportunidade de desenvolver adequadamente o conceito do
político. Ele contradiz a identidade entre Estado e política logo em seguida quando afirma que
“para Schmitt, o Estado enquanto conceito de uma realidade histórica determinada está em
segundo lugar em relação ao político, que designa a intensidade polêmica da relação inter-
humana até seu fundamento antropológico” (KERVEGAN, 2006, p. 73). A pergunta que se
faz é: não obstante os bons argumentos quanto às apostas schmittianas na proposta do Estado
Total, por que o intérprete não explorou – uma vez que possuía uma compreensão sofisticada
da noção de Politischen – esta saída como a mais indicada ao invés de se perder nas
interpretações que ligam, sem sucesso, as considerações do decisionismo com o conceito do
político? Em outras palavras, por que Kervégan sustentou a relação decisionismo-
institucionalismo-Estado Total e reduziu o conceito do político a simples adendo do
decisionismo?
A reflexão sobre o Estado Total é finalizada por Kervégan com o pressuposto
metafísico da teologia política. Não obstante o tema teológico-político perder força no período
em questão, mais uma vez o intérprete amealha teses distintas sob a mesma rubrica e reduz as
variações sobre o político ao Estado total e, por sua vez, à teologia política como filosofia da
história. Kervégan lança a interpretação da sociologia dos conceitos jurídicos como a
“explicitação de tais correlações entre mentalidades e estruturas políticas. A tarefa de tal
sociologia é, pois, elucidar numa perspectiva histórica, o núcleo metafísico (e teológico) que
as representações do Estado abrigam. A teologia política desenvolve-se assim numa
antropologia cultural” (KERVÉGAN, 2006, p. 88). Kervégan interpreta como uma teoria da
128
história as representações ou imagens que uma época elabora de si que se organizam em torno
de um setor dominante (Zentralgebiet): objeto das representações e princípio de
inteligibilidade de uma época. Em cada época da modernidade, Schmitt descreve uma
imagem de mundo (Weltbild) que seria um campo de objetividade, conceitual e
representações a partir de onde há organização da época, da subjetividade, das formas sociais.
Assim, as esferas teriam se sucedido da teologia, metafísica, moral, economia até, finalmente,
a técnica. Kervégan trata da historicização das formas de subjetividade, tema próximo a
Dilthey e Spengler, dos quais Schmitt, afinal, se mostra devedor, mas também enfatiza a
relação com Heidegger, quando este trata da “era das concepções de mundo” que seria um
prolongamento “filosófico da reflexão político-histórica de Schmitt sobre a ‘era das
neutralizações e despolitizações”; ambas analisam a concepção moderna do mundo como
sistema. É significativo que tanto em Schmitt quanto em Heidegger, a reflexão crítica sobre a
modernidade, que insiste em sua dimensão política ou metafísica, tenha por desfecho o
problema da técnica (KERVÉGAN, 2006, p. 90).
No entanto, não apenas a reflexão sobre a técnica marca a interpretação de Kervégan,
mas também a peculiar filosofia da história schmittiana. O sentido da história moderna seria
compreendido a partir da representação do político e das imagens do mundo, do Zentralgebiet
como um processo de neutralização sucessivo e, por conseguinte, de despolitizações: “A
História é história do deslocamento do lugar do político, ao mesmo tempo, que é das formas
de ser e de agir do Estado. Quando um novo setor dominante advém, o desafio dos conflitos
possíveis se desloca, e as formas mesmo do político se transformam profundamente”
(KERVÉGAN, 2006, p. 92). Kervégan descreve as teses e aponta as falhas e ambiguidades.
Não obstante, apesar de trazer com clareza o tema e não ceder às tentações de associá-lo ao
totalitarismo ou nazismo, o autor acerta ao definir o Estado total, mesmo em suas
ambiguidades, como a tese schmittiana que “oferece a solução para os problemas que são
apresentados pela determinação do político a partir da técnica. Somente tal Estado, ‘que não
conhece mais nada de absolutamente não político’, é passível de investir e de dominar a esfera
da técnica” (KERVÉGAN, 2006, p. 95). Entretanto, parece-nos exagerado afirmar que o
Estado Total “manifesta o enraizamento da teoria jurídica positiva e de um discurso político
que aspira à positividade numa metafísica da história, entendida como teologia política. O
Estado Total para Schmitt é a verdade atual do político, e ele o é porque conduz o político a se
atualizar plenamente, isto é, totalmente” (KERVÉGAN, 2006, p. 95). Para quem acompanha a
argumentação de Kervégan, este desfecho parece pouco natural, demasiado apressado, sem as
sutilezas que o texto até então trazia. Certamente, a ausência da leitura mais matizada sobre o
129
como final da política ou da história. No final das contas, a leitura que elaboramos faz jus à
situação epocal de Schmitt, qual seja, fim do Jus Publicum Europaeum72.
O segundo aspecto da interpretação sobre Schmitt é a chave de leitura hegeliana.
Kervégan descreve a lógica de Hegel em três aspectos, ou melhor, discerne três momentos em
tudo que possui uma realidade: (a) “o momento abstrato ou de entendimento”, (b) “o
momento dialético ou negatividade racional” e (c) “o momento especulativo ou positivamente
racional” (KERVÉGAN, 2006, p. 352). A filosofia revelaria a partir da positividade abstrata
uma negatividade que movimenta/impulsiona esta positividade como negação à direção da
negação da negação, isto é, à positividade racional e especulativa do conceito. Para Hegel,
segundo Kervégan, “caso seja necessário à razão olhar o negativo de frente, de persistir junto
a ele (...) é sempre prejudicial tomá-lo como ponto de partida como faz o entendimento
abstrato” (KERVÉGAN, 2006, p. xxi). Com efeito, ele critica a positividade que permanece
fechada em si mesma. Este fechamento significa, na verdade, a recusa da oposição do
imediato e da mediação, ou antes, a demonstração disso que essa oposição, ela mesma
imediata é subentendida por todo o processo da mediação lógica cujo resultado seria a
vontade de reconciliação. Na leitura de Kervégan, Schmitt teria compreendido esta mediação
ou reconciliação em Hegel como uma concessão inadmissível ao liberalismo e à ética da
discussão. Assim, Kervégan sustenta que:
se, para Hegel, a filosofia é essencialmente filosofia do real, é evidente que ela não é
uma consagração da faticidade: seus textos políticos aqueles mesmo cujo realismo
Schmitt admira tanto o demonstram suficientemente. A reconciliação com a
efetividade (...) não significa que essa torne toda realidade amável, mas que ensina a
detectar aí os traços de um movimento cuja razão, se ela deve ser percebida e
decifrada na História, não pode ser pensada somente a partir dela (KERVÉGAN,
2006, p. 356).
Além disso, a derradeira formulação da filosofia política hegeliana se apresenta
intragável para Schmitt. Ainda conforme Kervégan (2006, p. 170), Hegel teria inserido sua
“teoria política numa doutrina do espírito objetivo, que se desenvolve como filosofia da
história universal” e, por conseguinte, passaria a tratar a racionalidade histórica em ato de
efetuação73. No comentário preciso de Kervégan,
72
CASTRUCCI, 1999.
73
A rejeição de Schmitt desta tese hegeliana vem com um irônico comentário: “a alma do mundo que Hegel vê
em 1806 entrar a cavalo em Iena era um soldado e não um hegeliano; ela representava a aliança da filosofia com
o sabre, mas vista somente pelo lado do sabre” (Parlamentarismus, p. 70).
131
Schmitt ainda teria um realismo fraco, ou seja, uma perspectiva de validade da ordem a partir
de alguma instância externa, no caso, a representação e legitimação do direito. Assim,
corroboramos a afirmação de Kervégan, segundo o qual, Schmitt “exclui a perspectiva
racional de reconciliação” (KERVÉGAN, 2006, p. xxxii). Também estamos de acordo em
sustentar que este “positivismo” não teria nada em comum com aquele em voga no início do
século. Ainda diríamos com Kervégan que Schmitt teria um verdadeiro positivismo – como
emancipação da tutela filosófica – mas não poderíamos afirmar que o jurista instaurasse uma
metafísica da positividade. Na verdade, nem mesmo para o decisionismo esta tese seria
válida: a decisão é decisão pela forma jurídica e, por isso, guarda relação com aquela instância
da racionalidade, apesar de uma relação problemática, pois irredutível. A tese de Kervégan
estaria equivocada, mas, a despeito do autor, podemos reutilizá-la para pensar o conceito do
político como relação e antagonismo que possibilita Schmitt recusar a solução hegeliana e
articular-se com a negatividade. Kervégan esboça uma compreensão neste sentido e, além de
elaborar uma crítica contundente à tradição política racionalista ou normativista, interpreta o
conceito do político como:
Löwith (ausência de fundamento), pois Schmitt prescinde desta base (afinal, Löwith tem
razão em seu diagnóstico, mas parece se apressar ao determinar que esta ausência é uma
falha) e tanto a decisão quanto o político são irredutíveis à racionalidade normativa. Pode-se
enxergar um niilismo, porém ativo. A questão de Löwith contra o niilismo de Schmitt é a
acusação de ocasionalismo, na verdade, oportunismo ou inviabilidade de um fundamento para
a ação política. Da mesma forma, a crítica antinormativa ao liberalismo não fornece uma base
para a ação política; ora, segundo a crítica de Strauss, ela mesma serviria como base
normativa para o jurista. Assim, Schmitt ou bem descarta toda e qualquer normatividade
(acusação de ocasionalismo de Löwith) ou bem assume, às avessas, a normatividade do
liberalismo (acusação de liberal e moralista de Strauss). Nem Strauss, nem Löwith.
Interpretamos a tentativa de Schmitt como superação da lógica do fundacionismo que escapa
da “má infinidade (do fundamento) do normativismo” (KERVÉGAN, 2006, p. 120) conforme
Kervégan sustenta, mas vai bem além ao descontruir a diferença entre imanência e
transcendência, fundamento e superfície, realidade e aparência numa formulação hesitante e
precária, mas interessante como ponto de partida para pensar uma teoria pós-política.
Kervégan encerra a parte destinada a Schmitt com a razoável tese de que se nem com
Hobbes de Strauss nem com o Heidegger de Löwith é possível realizar uma leitura adequada
de Schmitt, seria Hegel a chave de leitura mais eficaz. Esta seria a cifra que daria acesso ao
pensamento do jurista. A tese de Kervégan, portanto, afirma que Schmitt recorreu a Hegel
para sua empreitada de “inversão da epistemologia liberal”, apesar de Schmitt se situar além
das alternativas que ele mesmo considera inelutáveis (KERVÉGAN, 2006, p. 120). O autor
acredita que Schmitt postula uma metafísica da história através da sua teologia política e o
Estado total seria uma resposta aos críticos, seria “a verdade atual do político, e ele o é porque
conduz o político a se atualizar plenamente, isto é, totalmente” (KERVÉGAN, 2006, p. 95) no
Estado.
A crítica que fazemos de Schmitt assume a chave de interpretação de Kervégan,
porém, ao invés de demonstrar inconsistências, apostamos que as teses do jurista seriam
compreendidas não como uma metafísica da positividade, mas sim, após os esclarecimentos
sobre a diferença entre o decisionismo e o período pré- e tardo-weimariano, como um
pensador da negatividade como finitude que se quer finitude na qual a transcendência é
transcendência da imanência, por isso, ao invés de infinito ou transcendente (no sentido
sagrado ou externo) ou fechamento da ordem a partir da decisão (no sentido de um
positivismo consequente) tomaria o paradigma da relação como abertura, pois ausente a
pacificação do conceito. Na teoria schmittiana, a ordem jurídica e a racionalidade normativa
135
74
“Se Carl Schmitt endurece a oposição entre ordem política e desordem social, se insiste na semelhança
estrutural entre a sociedade civil, no sentido de Hegel, e o estado de natureza hobbesiano, não é unicamente para
impor a sua interpretação ‘política’ do hegelianismo em oposição às leituras ‘liberais’ dominantes. Para ele,
trata-se, acima de tudo, de promover, através de Hegel, a sua própria ética decisionista do Estado e de justificar a
consequência última principal que lhe parece que deve ser extraída daí: diante de uma sociedade que se tornou
total, isto é, tendo imposto a sua medida no espaço do político, um Estado, ele próprio total, é a única chance de
restabelecer a dimensão do universal, de preservar a condição absoluta de toda ética e de todo direito”
(KERVÉGAN, 2006, p. 235). Kervégan pretende com a pesquisa mostrar o erro de Schmitt (endurece a oposição
entre desordem social e ordem política) e a aporia do seu decisionismo (2006, p. 235) e, através disso,
restabelecer a teoria política hegeliana. A questão estaria no ponto em que há “limites da assimilação da
sociedade civil num estado de natureza puro; esta possui, ao menos, a forma de uma racionalidade, apesar de
somente o Estado dotar essa forma de um conteúdo ético” (2006, p. 235).
136
reconciliar – isto é, unificar na forma de uma racionalidade que faça jus ao livre movimento
da diferença – a vitalidade infinita da negatividade dialética e o poder organizador da
totalização sistemática” (KERVÉGAN, 2006, p. 139). Diante do que Löwith denomina de “a
ambiguidade fundamental dos Aufhebungen dialéticos”75 (LÖWITH, 1969, p. 94), Schmitt
tem em vista, assim como os marxistas, os conflitos que ocorrem na sociedade civil – desta
análise, são extraídas as possibilidades revolucionárias do pensamento hegeliano –, bem como
a doutrina do Estado e suas consequências conservadoras, até mesmo reacionárias. Conforme
Kervégan (2006, p. 143), “o marxismo rompeu com aquilo que a subordinação da sociedade
civil ao Estado (...) podia comportar de equívoco (do ponto de vista da lógica decisionista do
‘ou... ou’)”. Neste contexto, corroborando a leitura de Kervégan, os trabalhos de Schmitt
despertam, inesperadamente, um interesse em pensadores marxistas como G. Lukács, W.
Benjamin e K. Korsch76. Com efeito, Schmitt elabora um paralelo entre estratificação social e
a organização da sociedade burguesa e o Estado com a relação de Hobbes entre estado de
natureza e Estado civil, mais precisamente, analisa os parágrafos 243 a 245 da Grundlinien
des Rechtsphilosophie, onde se mostra o esboço de uma teoria da luta de classe. Nas palavras
de Kervégan (2006, p. 2002), a diferenciação e diversificação própria da sociedade civil é o
traço da particularidade natural que conserva em si o resquício do estado de natureza. Isso
coincide com o argumento de Schmitt, bem como com a leitura de Strauss: como uma espécie
de luta pelo reconhecimento, porém no interior do estado civil, assumindo ou levando a sério
o paradoxo de que o direito advém da violência, ou melhor, para extinguir a violência com
violência. Ora, daí as consequências do “direito dos heróis de fundar Estados” como portador
de uma violência legítima. Diante disso, Kervégan faz um precisa analogia com Schmitt ao
afirmar que “esse direito, que não tem nada de jurídico, ilustra, no ponto em que o estado de
natureza oscila em sua negação política, uma dialética da natureza e do espírito em
movimento na direção de sua objetividade ao mesmo tempo jurídica e política”
(KERVÉGAN, 2006, p. 218), ou seja, como um limite entre a anomia da natureza e a ordem
de direito. Kervégan prossegue, associando diretamente o tema à Schmitt:
nesse sentido, ele poderia servir para uma interpretação do tipo decisionista: da
mesma forma que, em tal perspectiva, o estado de exceção é o fato extranormativo
que torna efetiva a ordem normativa, assim como, no mito político das origens ao
qual recorre Hegel, o ato fundador é o ponto de inflexão onde a ordem se instaura
pelo próprio meio que produzia o caos (...) mas percebe-se a falha de tal
intepretação: ao passo que, numa perspectiva decisionista, a exceção (a ‘decisão’) é
75
“Die Spaltung der Hegelschen Schule in Rechts- und Linkshegelianer war sachlich ermöglicht durch die
grundsätzliche Zweideutigkeit von Hegels dialektischen »Aufhebungen«, die ebensogut konservativ wie
revolutionär ausgelegt werden konnten” (LÖWITH, 1969, p. 84).
76
A breve carta de Benjamin à Schmitt consta na Gesammelte Schriften, Frankfurt: Suhrkamp, I/3, p. 887.
137
implica, pois como relação e conflito originário e contínuo mesmo dentro da ordem que
sempre destitui o positivo (seja o abstrato seja o especulativo/racional). Assim, pensar uma
negatividade radical é pensar a ausência de positividade (racional) e se, conforme nossa
leitura, Schmitt pode se livrar – não sem algum esforço – da acusação de “metafísica da
positividade” (abstrata) apontada por Kervégan (ao considerar que sua fase decisionista
clássica finda antes da tardo-weimariana e, portanto, sem a consideração da ordem ou decisão
como fim último); então o político seria a negatividade que se recusa estabilizar como
racional, tendo em vista sua base nas diferenças imanentes. Este é o dispositivo ou paradoxo
filosoficamente interessante em Schmitt que Kervégan deixa escapar: o conceito do político
como relação e antagonismo permaneceria como o negativo ressaltando a ênfase não ao
momento da destituição (como a dialética hegeliana na qual o negativo se encontra
posteriormente destituído pelo racional especulativo) e mais do que meramente permanecer na
escolha/decisionismo (positividade abstrata), Schmitt através do seu revisitado conceito do
político poderia se esquivar de uma “metafísica da positividade” – como aposta Kervégan – e
esboçar algo parecido com uma ontologia da negatividade, ou melhor, o político como um
dispositivo de dialética negativa. Em suma: o que importa em relação ao intérprete francês,
não apenas reinterpretar, mas também rejeitar o rótulo de decisionismo e compreender o
político como aquele momento dialético ou negatividade do conflito e relação sem a oposição
ou momento especulativo ou positivamente racional.
* * *
A principal crítica à interpretação de Kervégan é a ausência da distinção entre o
político como mediação do Politischen Theologie e o político como relação do Der Begriff
des Politischen. Em todo caso, ele acerta ao afirmar que “o político não tem substância, ele
designa apenas o poder conflitual inerente às práticas humanas e, desse modo, não o positivo,
mas sim o negativo, sob a figura da inimizade, se encontraria absolutizado” (KERVÉGAN,
2006, p. 353). Todavia, o autor erra ao afirmar “consequentemente, existe uma real coerência
na escolha teórica desenvolvida pelo decisionismo. Recusando os recursos da negatividade,
isto é, da racionalidade dialética, ele hipostasia o positivo (a decisão) (sic) e assim também o
negativo (o par amigo-inimigo), conferindo-lhe um valor fundador: o complexo
conflito/decisão – o político no sentido schmittiano” (KERVÉGAN, 2006, p. 353). O autor
mais uma vez trata como teses iguais o decisionismo e o conceito do político no final da
década de 1920. Eis a grande falha da leitura de Kervégan conforme nossa própria leitura
demonstra. Além disso, ao considerar Schmitt como um autor da positividade – ordem –,
admite, contraditoriamente, que Schmitt “absolutiza” tanto o âmbito da positividade abstrata
139
vínculo entre político e Estado e sustentaria que “essa exterioridade mútua (...) é apenas a
transposição em exterioridade da ‘relação infinitamente negativa de si’, que é engajada pelo
ser para si positivo da totalidade política” (KERVÉGAN, 2006, p. 157). E prossegue: “É
preciso, por conseguinte, pensar o negativo (o inimigo) como negatividade, isto é, não como
uma realidade dada, mas como momento do processo da totalidade ético-política”
(KERVÉGAN, 2006, p. 158); mais precisamente, é como se o negativo fosse um termo
externo, apesar de recusar aquela “totalidade ético-política”. Para Schmitt, o político e o
direito comportam um caráter conflitual (antagonismo) e Kervégan acertadamente reitera este
aspecto quando afirma que “o político não é outra coisa senão uma relação originária da
eventualidade do conflito” (KERVEGAN, 2006, p. 350). Assim como Hegel trata do “ser para
si como uma relação infinita consigo mesmo mediatizada pela relação com o outro”, Schmitt
também teria na relação de conflito a exposição daquilo que é constitutivo da identidade de
um Estado. A releitura que elaboramos prescinde da hipótese de ordem ou do Estado como
pressuposto e busca recuperar a noção de negatividade e guerra:
a equação estabelecida (por Hegel) pelo artigo sobre o direito natural entre a
atividade militar e a atividade política, faces indissociáveis do modo de ser do
‘estado dos homens livres’, poderia ser compreendida como uma antecipação das
teses de Le concept du politique. Numa perspectiva decisionista, a guerra, ou, mais
precisamente, a hostilidade, é a situação limite que permite pensar a possibilidade da
unidade política, e o jus belli, isto é, ‘a possibilidade real de designar o inimigo, se
for preciso, por uma decisão própria’, é a propriedade distintiva do Estado soberano
(KERVÉGAN, 2006, p. 169)
Apesar da proximidade quanto à noção de guerra e de inimigo, neste ponto,
Kervégan traz uma contribuição importante na relação entre Hegel e Schmitt: o jurista não
concorda com o filósofo, pois “ela (a obra de Hegel da época de Berlim) inscreve os
princípios do jus publicum europaeum na perspectiva puramente especulativa de um
racionalidade histórica” (KERVÉGAN, 2006, p. 165) e, precisamente, esta capitulação diante
do conflito Schmitt parece recusar, de maneiras distintas, seja pela via do decisionismo, seja
pela via do político como relação e antagonismo. Assim, nem a decisão que Kervégan aposta,
nem a solução da totalidade especulativa: para Schmitt, o conceito do político, revisitado no
final da década de 1920, seria o esboço de uma dialética negativa77. Apesar disso, Kervégan
tenta associar Schmitt à Hegel quando ele “confirma a ligação íntima que une a metafísica
decisionista da positividade à dialética especulativa, e isso a respeito do tema principal do
77
“No ser-aí, essa relação negativa do Estado consigo aparece como relação de um outro a um outro, e como se
o negativo fosse um [termo] externo. A existência dessa relação negativa tem, portanto, o aspecto de uma dvir e
de uma confusão com dados contingentes que vêm do exterior. Mas [essa relação] é seu momento próprio mais
elevado, sua infinidade efetiva enquanto idealidade de tudo aquilo que está incluído nele” (apud KERVEGAN,
158 HEGEL, RPh §323, p. 279).
141
A tese que Chantal Mouffe sustenta ao assumir alguns argumentos de Carl Schmitt é
considerar a distinção entre amigo e inimigo como uma relação de agonismo. De forma
bastante peculiar, a autora corrobora uma abordagem anti-essencialista, pragmática, que
concede primazia à contingência e rejeita a possibilidade de fixidez das identidades
(MOUFFE, 1993, p. 7; MOUFFE, 2005, p. 18). Do ponto de vista da sua proposta, a filósofa
elabora uma releitura da distinção entre amigos e inimigos, agora compreendida como
“we/they opposition”, isto é, a transformação de um modelo antagonístico em um modelo
agonístico ou adversarial e, dessa forma, pretende conciliar este modelo com a noção
revisitada de democracia liberal. A correção ou incorreção desta leitura tem como
consequência saber até que ponto Schmitt pode impor desafios para a realização da
democracia liberal, ou seja, até que ponto os argumentos utilizados por ele têm plasticidade
suficiente e podem ser aproveitáveis numa releitura, revista e corrigida, de um dos temas mais
criticados em suas obras. O challenge de Schmitt não seria outro senão: como assumir o
conflito (como agonismo) dentro dos parâmetros da política moderna mais voltada ao
consenso e à racionalização do que às relações de conflito? Mouffe tenta reescrever os
princípio de uma teoria democrática e inserir de fato, além dos procedimentos e racionalidade,
o conflito, ou melhor, o político como conflito. Para isso, critica as concepções de democracia
deliberativa por conta da neutralização e redução da pluralidade, mas também algumas teses
de Schmitt que, apesar de inspirar profundamente as análises mouffeanas, são apropriadas e
desenvolvidas de modo assumidamente anti-schmittiano. A proposta fundamental de Mouffe
é, precisamente, elaborar um modelo agonístico de democracia. Senão, vejamos.
O ponto inicial da apropriação de Mouffe é a adoção de uma ontologia do conflito a
partir de Schmitt. A tarefa da autora parece descabida ao tentar mostrar como um teórico tão
avesso às teses liberais e crítico do parlamentarismo, entre outros institutos da política
78
Utilizamos os seguntes textos: MOUFFE, Chantal. The Return of the Political. London; New York: Verso,
1993; On the Political. London: Routledge, 2005; The Democratic Paradox. London/New York: Verso, 2000.
143
institucional moderna, pode servir como teste ou critério para o aperfeiçoamento das
democracias liberais. Por outro lado, ela discorda do jurista ao compreender a democracia
liberal como modo de governo não necessariamente ligado ao estado de exceção, bem como
não admite que a democracia liberal seja uma contradição em termos. Assim, ao elaborar uma
leitura pertinente sobre o estatuto da democracia e das teorias politicas contemporâneas tanto
em The return of the political quanto em The democratic paradox, Mouffe expõe seus
pressupostos logo nas primeiras linhas: trata de Lefort, sobre democracia e imanência e, claro,
da ausência da autoridade transcendente, e demonstra por que viés ela aborda Schmitt, qual
seja, como um autor da imanência. Diante desta abordagem, seguimos com atenção a leitura
de Mouffe, visto que a proposta de desleitura é próximo ao que realizamos. Entretanto, ela se
aproveita do conceito de antagonismo e consegue, por menos indicado que seja, higienizar
Schmitt. A autora parte de um solo disfarçadamente liberal ou, pelo menos, resvala para uma
defesa normativa da democracia, deixando escapar uma radicalidade – e com ela os perigos –
que a teoria schmittiana apresenta. Por conta e risco, ela assume as teses schmittianas, mas
abranda suas consequências.
Sob uma inspiração assumidamente schmittiana, apesar de não referir-se ao texto
sobre o Parlamentarismo de 1923, entre outros, Mouffe, sem delongas, apresenta sua teses.
Inicialmente, o argumento central é que “é vital para a política democrática entender que a
democracia liberal resulta da articulação de duas lógicas que são incompatíveis em última
instância e que não há nenhuma maneira pela qual elas poderiam ser perfeitamente
reconciliadas” (MOUFFE, 2000, p. 5). Os dois elementos a que se refere são a questão da
identidade ou homogeneidade que a democracia exige e, por conseguinte, a exclusão do
diferente, bem como o elemento da soberania; e a questão do individualismo ou dos
princípios de direito natural subjetivos que deram origem à estrutura normativa do Estado,
numa palavra, a noção de liberdade. Ou ainda,
a tensão entre igualdade e liberdade não pode ser conciliada e que só podem existir
formas hegemônicas contingentes de estabilização de seu conflito, torna-se claro
que, uma vez que a própria idéia de uma alternativa à configuração existente do
poder desaparece, o que desaparece também é o mesmo possibilidade de uma forma
legítima de expressão para os resistentes contra as relações de poder dominantes
(MOUFFE, 2000, p. 5).
Em todo caso, Mouffe elabora uma análise precisa da prática política fin-de-siècle,
sobretudo, contra as teorias normativista com base na discussão racional ou no consenso
como forma de eliminar o conflito: “A situação política apenas descreve, caracterizada pela
celebração dos valores de uma política consensual do centro (...) É por isso que coloco uma
ênfase especial nas conseqüências negativas de considerar o ideal da democracia como a
144
sua tese (uma contradição estrutural da democracia liberal) que este é um regime não
viável, dado que o liberalismo nega a democracia e que a democracia nega o
liberalismo. Embora considere que a crítica de Schmitt fornece informações
importantes e que deve ser levada a sério, minha posição (...) é que essa
irreconciliação final não precisa ser visualizada no modo de uma contradição, mas
como locus de um paradoxo (MOUFFE, 2000, p. 9).
Mesmo concordando, em geral, com a análise schmittiana – a contradição entre a
lógica universalista liberal e a concepção democrática de igualdade e a necessidade da
constituição do demos – ela afirma: “Sugiro que reconhecer esse paradoxo nos permite
entender qual é a verdadeira força da democracia liberal” (MOUFFE, 2000, p. 9), qual seja,
Mouffe propõe articular a lógica da relação democrática (soberania, demos, exclusão-
inclusão) com o discurso dos direitos humanos. Nesta tensão, “visualizando a dinâmica da
política democrático-liberal como o espaço de um paradoxo cujo efeito é impedir o
encerramento total e a disseminação total, cuja possibilidade está inscrita nas gramáticas da
democracia e do liberalismo, abre muitas possibilidades interessantes” (MOUFFE, 2000, p.
10). A proposta de Mouffe tem seus méritos, sobretudo, ao destacar que “daí a necessidade de
abandonar a ilusão de que um consenso racional poderia ser alcançado quando tal tensão seria
eliminada e perceber que a política democrática pluralista consiste em formas pragmáticas,
145
79
Safatle reforça esta compreensão, por exemplo, quando afirma: “Identidades culturais, ou seja, aquelas ligadas
à afirmação da especificidade de forma de vida que se estruturam a partir de etnias, nacionalidades, religiões,
modos de sexualidade, vínculos a sistemas de costumes – sempre se definem sob tensão, se não quisermos adotar
a ilusão tipicamente liberal de um pluralismo sem antagonismo” (SAFATLE, 2015, p. 349). Sobre isso, cf.
também MOUFFE, 2000, p. 39. Quando a autora aborda o político ele assume em termos imanentista e remete à
Schmitt “the political as our ontological condition” (MOUFFE, 2005, p. 16): seja compreendido como referente
ao contexto histórico, seja referente ao antagonismo instaurado na distinção entre amigos e inimigos como
critério (lógico, não histórico) do político. Assim como Agamben, Mouffe desempenha importante papel nas
releituras de Schmitt, pois recoloca o autor nas discussões contemporâneas em teoria política. Neste caso, o
argumento de Schmitt prossegue incólume: o liberalismo esquece de que identidades são constituídas no interior
de relações assimétricas de poder e não por normas e procedimentos ou consenso racional. O apelo às teses
schmittianas é compreendido por sua forte vocação à desconstrução das ilusões liberais e jurídicas.
146
inimigos porque querem organizar isso espaço simbólico comum de uma maneira
diferente (MOUFFE, 2000, p. 13).
Ela reconhece que democracia implica na exclusão de alguns grupos ou agentes na
demarcação do demos, mas tenta amenizar a distinção entre amigo inimigo e parece não
perceber que a lógica do político que ela assume de Schmitt não se deixa facilmente enganar
com essa mudança semântica: o modelo adversarial deixa de funcionar tendo em vista o
abandono da relação entre democracia e exclusão. Mesmo assim, Mouffe segue na
substituição do modelo antagonístico pelo modelo agonístico80: “Vejo a categoria do
"adversário" como a chave para considerar a especificidade da política democrática pluralista
moderna, e é no centro da minha compreensão da democracia como ‘pluralismo agonístico’”
(MOUFFE, 2000, p. 14).
O ponto de partida de Mouffe para a compreensão deste modelo é, evidentemente, a
crítica da democracia parlamentar por Carl Schmitt. Este texto seminal escrito na década de
1920 aponta as contradições da República de Weimar e se assomavam às críticas schmittianas
da época. Nele Schmitt, resumidamente, declara que democracia requer ao mesmo tempo
homogeneidade e eliminação ou erradicação da heterogeneidade. Em todo caso, o jurista
sustenta no texto sobre Parlamentarismo uma versão forte de igualdade: ao invés de uma
igualdade formal e abstrata, ele concebe uma igualdade de gênero, uma igualdade de tipo.
Apesar disso, o conceito de igualdade para Schmitt, conforme Mouffe se aproveita, é político,
ou seja, um conceito que possibilita uma distinção. Ao contrário das abordagens raciais ou
essencialistas, Mouffe trata com precisão este ponto na obra de Schmitt: “Ele nunca postulou
que isso pertencia a um povo só poderia ser considerado em termos raciais. Na contrária, ele
insistiu na multiplicidade de maneiras pelas quais a homogeneidade constitutiva de um demos
poderia se manifestar” (MOUFFE, 2000, p. 40). Assim, para Schmitt, segundo Mouffe, o que
é importante não é “natureza da similaridade em que a homogeneidade se baseia” (MOUFFE,
2000, p. 40). Ora, seu ataque se dá contra “an abstract idea of humanity”, precisamente, ao
contrapor o conceito de humanidade ao conceito de povo81. Como analisa Mouffe, “Schmitt
afirma que existe uma oposição insuperável entre o individualismo liberal, com seu discurso
moral centrado em torno do indivíduo e o ideal democrático, que é essencialmente político, e
que visa a criação de uma identidade baseada na homogeneidade” (MOUFFE, 2000, p. 39)
80
WENMAN (2014, p. 88) levanta uma questão importante para o debate ao afirmar que o conceito do político
de Schmitt não seria um conceito vazio, mas que seria intrinsecamente ligado ao autoritarismo e, sobretudo, à
ordem e segurança. Assim, ele problematiza, por outro argumento, a proposta de releitura problemática da
autora.
81
Sobre o tema, inúmeros artigos de Schmitt na coletânea Frieden oder Pazifismus.
147
Eu acho que Schmitt está errado em apresentar esse conflito como uma contradição
que é obrigada a liderar a democracia liberal para a autodestruição. Podemos aceitar
sua visão perfeitamente bem sem concordar com a conclusão que ele desenha.
Proponho reconhecer o crucial diferente entre as concepções liberal e democrática
da igualdade, considerando a articulação e as consequências de outra forma
(MOUFFE, 2000, p. 44).
Mais especificamente, para Mouffe, ao mesmo tempo em que a lógica democrática
constitui o povo, subverte a tendência universalista e abstrata do liberalismo. Reciprocamente,
a referência aos direitos humanos resiste às formas de exclusão que a constituição do povo
através da democracia implica. Assim, Mouffe retira consequências positivas desta
articulação, pois o “false-dilemma” de Schmitt não percebeu esta articulação entre as duas
lógicas, pois enquadrou apenas em uma visão pessimista: “nenhuma resolução final ou
equilíbrio entre essas duas lógicas conflitantes é sempre possível, e pode haver apenas
negociações temporárias, pragmáticas, instáveis e precárias da tensão entre elas. A política
liberal-democrática consiste, de fato, no constante processo de negociação e renegociação -
através de uma articulação hegemônica diferente - desse paradoxo constitutivo” (MOUFFE,
2000, p. 45). Mouffe realiza exemplarmente o que tentamos nesta tese: a partir de uma análise
de Schmitt, apoiado em seus textos, assumindo seus conceitos, retira uma tese que o jurista
seria incapaz de subscrever. Na verdade, esta é a principal virtude de um texto filosófico,
precisamente, o que a partir dele é desenvolvido, sua herança.
Entretanto, um dos argumentos que Mouffe custa aceitar é o de uma
“impossibilidade de estabelecer um consenso racional sem exclusão” (MOUFFE, 2000, p. 45)
148
ou, em outras palavras, acerca da natureza do consenso que pode ser obtido em uma liberal-
democracia. A questão é tratada pela autora a partir das considerações sobre democracia
deliberativa, onde “o principal desafio que enfrenta a democracia é como reconciliar a
racionalidade com a legitimidade - ou, de forma diferente, a questão crucial que a democracia
precisa abordar é como a expressão do bem comum pode ser compatível com a soberania das
pessoas” (MOUFFE, 2000, p. 46). Mouffe percebe que a tentativa de fundamentação da
legitimidade sobre a racionalidade depende da distinção entre aceitação (agreement) e
consenso racional (rational consensus), ou seja, a necessidade de que o processo de discussão
se realize em condições ideais de discurso: imparcialidade, igualdade, abertura e ausência de
coação, etc. Esta estrutura ideal daria as garantias para a legitimação, no caso em questão, a
produção do consenso. Por conta de seu ponto de partida, Mouffe critica as idealizações
destas condições, aliás, até mesmo os habermasianos mais naïves concordam que tais
condições são ideais e funcionam como horizonte normativo das ações fáticas, ou seja,
funciona como uma ideia regulativa desde o começo. Neste momento, para desconstruir as
teses que denominamos de políticas da metafísica ou, em geral, normativas, mais uma vez a
autora se utiliza da argumentação schmittiana e analisa as ilusões liberais:
transpõe para a esfera pública a diversidade dos interesses privados e reduz o político à
negociação entre interesses. Diante da impossibilidade de um modelo de identidade
democrática no liberalismo, ela aposta na formação de uma unidade. Entretanto, neste
momento Mouffe não percebe um elemento. Quando analisa que para Schmitt “não há lugar
para um pluralismo dentro de uma comunidade política democrática” (MOUFFE, 2000, p.
51), a autora não leva em conta a importância da noção de complexio oppositorum que
garante uma unidade vertical, apesar das contradições horizontais. A unidade política nas
obras pré-weimarianas e weimarianas parecem ser basicamente formais, visto que apenas no
Der Begriff des Politischen e na Verfassungslehre temos expressamente uma abordagem que,
em geral, poderia ser denominada existencial. Ela está correta ao afirmar que “a democracia
exige a existência de demonstrações homogêneas” (MOUFFE, 2000, p. 51), mas não ao
continuar que “isso impede qualquer possibilidade de pluralismo” (MOUFFE, 2000, p. 51),
subestimando a capacidade de pluralidade que uma leitura mais generosa poderia retirar dos
textos schmittianos. Apesar disso, a autora tem razão ao tratar Schmitt com um defensor da
ordem, ou melhor, da unidade política diante do pluralismo liberal, apesar de, talvez, tivesse
melhores resultados se interpretasse os argumentos por uma via menos ortodoxa.
Em síntese, Mouffe reconhece que Schmitt “é justo ressaltar as deficiências do tipo
de pluralismo que nega a especificidade da associação política” (MOUFFE, 2000, p. 53) e,
além disso, numa tentativa de delimitar uma postura realista através de Schmitt, “é necessário
constituir o povo politicamente” (MOUFFE, 2000, p. 53, grifos da autora). O que Mouffe, no
entanto, pretende é demonstrar que no interior da unidade política há pluralismo e, logo em
seguida, que este pluralismo se estabelece não como luta ou conflito que põe em jogo a vida
ou morte, mas, numa higienização das teses de Schmitt, o conflito se torna um jogo. A partir
deste ponto, Wittgenstein passa a ser o modelo. Para ela,
Schmitt nos apresenta um dilema falso: ou há unidade do povo, e isso exige expulsar
todas as divisões e antagonismos fora das demonstrações - o exterior que precisa
para estabelecer sua unidade; ou algumas formas de divisão dentro das
demonstrações são consideradas legítimas, e isso conduzirá inexoravelmente ao tipo
de pluralismo que nega a unidade política e a própria existência do povo (MOUFFE,
2000, p. 54).
No entanto, Mouffe elabora uma análise ainda mais sutil da tese da unidade política
de Schmitt ao apontar que há uma contradição entre a resolução de eliminar qualquer
pluralismo dentro da unidade política e não observar as condições para produção desta
unidade (MOUFFE, 2000, p. 54). No fundo, concordamos com Mouffe neste ponto: Schmitt
150
não aplica ao interior da ordem sua lógica do político82. Na verdade, a crítica deveria ser
desenvolvida de maneira a soltar as amarras do político e desencadear no interior da ordem o
conflito. Logicamente, esta seria a implicação mais natural. Apesar disso, Schmitt fecha esta
possibilidade mesmo a custo da coerência e Mouffe, com atenção para este momento do
conflito, tenta reabrir este modo de concepção, ainda que limitando suas consequências
institucionalmente. Nesta tese, também reabrimos o político, porém, sem vinculá-lo à ordem
ou à realização da democracia liberal tal como Mouffe pretende: este é, talvez, seu equívoco,
move-se em terreno liberal. Ainda assim, é capaz de perceber algumas incoerências em
Schmitt e trabalhar a partir delas. Por exemplo, quando propõe a alteração de homogeneity por
commonality. Mouffe propõe ainda uma leitura não schmittiana a partir de Schmitt: “para a
compatibilidade do pluralismo e da democracia liberal exige, na minha opinião, pôr em
questão qualquer ideia de "pessoas" como já foi dada, com uma identidade substantiva (...)
uma vez que reconhecemos que a unidade do povo é o resultado de uma construção política,
precisamos explorar todas as possibilidades lógicas que uma articulação política implica”
(MOUFFE, 2000, p. 55-56), ou seja, a categoria de povo, como identidade ou identidades
sociais, passa a ser considerada em seu modo de articulação político real, como um resultado
de processos hegemônicos de conflito, estes sim processos de constituição do povo. Apesar
disso, a identidade não pode ser fixada uma vez por todas: a própria noção schmittiana
demandaria, logicamente, esta conclusão de Mouffe. Em todo caso, a comentadora com
propriedade retira esta conclusão:
tal identidade (...) nunca pode ser totalmente constituída, e ela só pode existir através
de múltiplas e concorrentes formas de identificação. A democracia liberal é
precisamente o reconhecimento desta lacuna constitutiva entre as pessoas e suas
várias identificações. Daí a importância de deixar este espaço de contestação para
sempre aberto, em vez de tentar preenchê-lo através do estabelecimento de um
consenso supostamente "racional" (MOUFFE, 2000, p. 56).
A autora aceita a noção de um “conflictual field”, bem como de “competing forces”,
inclusive também aceita que não haja uma articulação hegemônica sem determinação de
fronteiras, mas o conflito e a fronteira (nas democracias liberais) são internas e o “them” não é
um “permanent outsider” (MOUFFE, 2000, p. 56). Nesta proposta de um pluralismo de forças
no interior da ordem, “tentar definir o bem comum e visar a fixação da identidade da
comunidade, a articulação política das demonstrações não pode ter lugar” (MOUFFE, 2000,
p. 56). Na tentativa de viabilizar a relação entre democracia e liberalismo, Mouffe torna um
paradoxo político numa armadilha para si mesma: a exclusão-inclusão volta a ser colonizada
82
Sobre a distinção entre Maquiavel (conflito como aquilo que mantém a ordem) e Schmitt (conflito como
aquilo que funda a ordem e depois se exaure na ordem), ADVERSE, 2016.
151
pela economia, direito ou moral e, diante de uma análise mais sociológica, parece que salva a
teoria para perder a realidade, mais uma vez. Talvez a proposta mais interessante seja o
ultrapassamento destes modelos (pós-política) mesmo que a única pista que podemos extrair
de Schmitt não nos concede alento, pois resta apenas a contradição como negatividade
ininstitucionalizável.
Ainda resta a Mouffe demonstrar a natureza do conflito entre amigo-inimigos, visto
que da maneira como é tratado por Schmitt é incompatível com a noção liberal. Aliás, esta
noção é construída precisamente como seu antípoda, tão seu inverso que termina por ser
exatamente aquilo que combate, na leitura de alguns intérpretes tais como Strauss e
Heidegger. Neste contexto, a tarefa final da autora é pensar um modelo agonístico de
democracia: no interior de uma sociedade democrática, inimigos existenciais que em Schmitt
se detinham numa luta de vida e morte se tornam adversários que compartilham valores e
princípios. A disputa ou concorrência agora reside no âmbito da interpretação e hegemonia.
Para isso, a autora realiza uma reconstrução do processo através do qual a teoria da
democracia no modelo agregativo fora articulada com o liberalismo. Desta fusão, o caráter
normativo da democracia fora deixado de lado por seus aspectos procedimentais ou
descritivos. Após críticas, já na década de 1970, por exemplo, com Rawls, recupera-se o
elemento normativo ou moral da teoria democrática e busca-se articular valores liberais com
democracia. Assim, a promoção de uma racionalidade normativa para a democracia através de
“procedimentos adequados de deliberação, para alcançar formas de agrément que satisfaçam
racionalidade (entendida como defesa do direito liberal) e legitimidade democrática
(representada pela soberania popular). O seu movimento consiste em reformular o princípio
democrático da soberania popular de forma a eliminar os perigos que poderia representar para
os valores liberais” (MOUFFE, 2000, p. 83). Nas análises sobre Rawls e Habermas, Mouffe
declara que existe um pontos de convergência entre as versões de democracia deliberativa,
qual seja, “sua insistência comum sobre a possibilidade de fundamentar autoridade e
legitimidade em algumas formas de raciocínio público e sua crença compartilhada em uma
forma de racionalidade que não é meramente instrumental, mas tem uma dimensão
normativa” (MOUFFE, 2000, p. 85). Nesta altura, a autora chega ao ponto preciso da questão
sobre democracia (e política em geral): ao contestar as leituras de Rawls e Habermas e
declará-las insuficientes, assim como a crítica de Schmitt, assevera que o que está em jogo é
mais do que normas, razão ou procedimento, mas sim afetos. Em suas palavras, ao fazer
referência à Oakeshott,
152
violência, mas sim “como constituir forma de poder mais compatível com os valores
democráticos” (MOUFFE, 2000, p. 100). Mouffe arremata sua argumentação aproximando-se
do realismo político, sobretudo ao sustentar que como não há fundamento ou critério racional,
mas que a ordem depende dos jogos entre as forças, também não há relação entre céu e terra
ou sacralização do poder: qualquer configuração de poder é meramente um arranjo de forças,
portanto, hegemônico e como tal sua legitimidade advém da faticidade, ou melhor, das ações.
Todavia, uma vez que não há representação da totalidade ou fundação ou razão absoluta,
também dos fatos ou das ações pode deixar ser ou ser seu oposto. Em todo caso,
Mouffe mal-esconde, chegar ao necessário ponto do conflito de vida e de morte. Aqui, mais
uma vez, o liberalismo, mesmo residual retorna (quando Mouffe neste trecho usa o termo
tolerância, deixa escapar sua intenção mais íntima e não confessável), o qual em parte assume,
“discordamos sobre o significado e a implementação desses princípios, e esse desacordo não é
um tom que possa ser resolvido através de deliberações e discussões racionais. Na verdade,
dado o pluralismo indenizável do valor, não existe uma resolução racional do conflito, daí a
sua dimensão antagônica” (MOUFFE, 2000, p. 102). Mouffe é bem consciente de como as
relações de poder tomam configurações temporárias em torno de um confronto contínuo, mas
não leva às últimas consequências o conflito, visto que não chega ao ponto extremo. No final
das contas, ela assume sem querer um pressuposto liberal que Schmitt criticava, a ausência de
periculosidade. Entretanto, afinal, quem precisa assumir que a politica coloca em risco a vida?
Numa manobra conceitual, a autora substitui o antagonismo por outro categoria, o
agonismo: “O antagonismo é a luta entre os inimigos, enquanto o agonismo é uma luta entre
adversários” (MOUFFE, 2000, p. 102). Enquanto este considera a luta de vida e de morte que,
segundo Schmitt, atribui seriedade à política e a determina como relação de perigo
(Gefärhlichkeit), o agonismo representa o consenso plural constituído sobre o conflito entre
objetivos diferentes, mas sob o pressuposto de uma gramática política em comum, ou seja,
permanece subjacente ao consenso plural uma crença compartilhada na eficácia do sistema,
isto seria denominado de “pluralismo conflitual”. Neste contexto, Mouffe é clara ao
direcionar os afetos e paixões da relação política aos objetivos (normativos) da democracia:
“as paixões podem ser mobilizadas em torno de objetivos democráticos e antagonismo
transformado em agonismo” (MOUFFE, 2000, p. 104). Ou ainda neste trecho: “A principal
tarefa da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do público, para tornar
possível um consenso racional, mas para mobilizar essas paixões em direção a projetos
democráticos” (MOUFFE, 2000, p. 103). Não obstante, esta tentativa de amenização do
pensamento schmittiano articula um curioso caso de liberalismo de esquerda: “Uma
democracia que funcione bem exige um confronto vibrante de posições políticas
democráticas” (MOUFFE, 2000, p. 104), mais à frente, ela conclui: “A hegemonia
incontestada do neoliberalismo representava uma ameaça para as instituições democráticas”
(MOUFFE, 2000, p. 6) como se fosse necessário algo além do neoliberalismo para ameaçar a
democracia. Parece que o tema da morte física do inimigo não é suportado pelas
considerações mouffeanas. Como Babrak IBRAHIMY (2014, p. 311) afirma:
O modelo de Mouffe (...) não pode acomodar o plano teórico que encontra no
trabalho de Schmitt, já que a tensão original entre ontologia e contingência está
155
Das leituras arroladas neste capítulo, sem dúvidas, a elaborada por Derrida possui a
argumentação mais refinada e filosófica acerca da obra schmittiana. A análise derridiana
levanta a tese de que a intensidade da relação entre amigo/inimigo é problemática devido à
dissolução que provoca na separação entre guerra e política. Ora, com clareza, Derrida expõe
que ao utilizar o critério da intensidade para distinguir o que é político do que não é político,
Schmitt insere neste critério, sub-repticiamente, o telos do político: a guerra se torna a
essência do político e não o pressuposto. De maneira elegante, Derrida aponta o problema da
tese schmittiana: se a intensidade – isto é, aquilo que concede politicidade à oposição – é
alcançada na medida em que chega ao ponto decisivo da guerra, então a guerra deixa de ser
mero acidente ou consequência do político e passa a ser considerada como seu próprio
destino. Essa circularidade é percebida expressamente: “Schmitt não define tanto o político
mediante a negação oposicional, quanto define esta última mediante o político. E essa
inversão depende de uma lei teleológica da potência ou da intensidade” (DERRIDA, 1998, p.
160). A pequena concessão que Schmitt faz quando afirma que em caso de paz absoluta não
haveria inimizade e, por conseguinte, não haveria agrupamento amigo/inimigo, é apanhada
por Derrida que, a partir disso, arremata sua tese principal sobre Schmitt, segundo a qual,
haveria uma identidade entre político, inimigo e guerra. Assim, ele avança em suas análises
afirmando “que o ser-político do político surja em sua possibilidade com a figura do inimigo,
este é o axioma schmittiano em sua forma mais elementar” (DERRIDA, 1998, p. 103). Nas
palavras de Derrida, para Schmitt, “o político como tal, nem mais nem menos, não existiria
84
Edição original publicada como Politiques de l’amitié. Paris: Editions Galilée, 1994. O texto de referência
utilizado nesta seção é o Políticas de la amistad, Madrid: Trotta, 1998.
157
sem a figura do inimigo e sem a possibilidade determinada de uma verdadeira guerra. Caso se
perca o inimigo terá se perdido simplesmente o político mesmo” (DERRIDA, 1998. p. 103).
O contexto então é que, para Derrida, o conceito do político de Schmitt se centra na
figura do inimigo e esta não pode ser diferenciada, como pretende o jurista, da guerra: a
eventualidade da luta é sua possibilidade real. Ora, a interpretação do autor revela que “não
existe mais que um conceito e noção de possibilidade real como possibilidade presente”
(DERRIDA, 1998, p. 142), tal como um espectro que habita em todos os conceitos
schmittianos. Na verdade, Derrida analisa com afinco a distinção entre possibilidade (real ou
efetiva), eventualidade e efetividade da guerra em Schmitt e assevera: “os três critérios
(realidade, possibilidade, presença) se encontram aqui no coração da mesma eventualidade”
(DERRIDA, 1998, p. 154). Isso pode ser explicado da seguinte forma: no momento em que a
guerra é possível, ela está presente visto que não se apresenta a ela mesma senão,
paradoxalmente, como uma referência à possibilidade própria da guerra. Conforme Derrida
(1998, p. 105-106): “que esta tenha lugar ou não, que esta esteja decidida ou não, que tenha
sido declarada ou não, essa é uma alternativa empírica em relação a uma necessidade de
essência: a guerra tem lugar, tem começado já antes de começar desde o momento em que se
considera eventual (...) e é eventual desde o momento em que é possível”. Ora, Schmitt só
poderia delimitar estes critérios elementares para o político se pré-determinasse algo no qual
esta articulação teria fim, ou melhor, “a possibilidade real (do conflito)” seria uma “presença
real ou possível” (DERRIDA, 1998, p. 154), ou seja, aquilo que Derrida identifica como o
télos mesmo da articulação. Após uma série de perguntas acerca da relação entre esses
elementos – “Como se manifesta, como se apresenta a configuração amigo/inimigo? Como se
apresenta ou se realiza sua ‘possibilidade real’, seja como possível, seja como real? Como
pode marcar essa realidade tão logo a presença, tão logo a possibilidade mesma?”
(DERRIDA, 1998, p. 154) – ele mesmo responde, levando adiante sua tese85:
85
A chave de interpretação de Derrida faz recordar a exegese de Heinrich Meier (sobretudo quando este afirma
que “o conceito do político pressupõe o conceito de inimigo” MEIER, 2011, p. 26). Evidentemente, as análises
de Derrida são mais consistentes e não cita uma vez sequer o dogma teológico como fundamento das teses
schmittianas. Apesar de Derrida citar o texto de Meier durante sua argumentação, o argelino não apela em
nenhum momento para aspectos pessoais ou esotéricos da figura de Schmitt tal como Meier.
158
Quando Schmitt pergunta se a distinção entre amigo e inimigo “está ou não presente
como possibilidade ou como efetividade real”, o argelino analisa com atenção se esta
presença (da discriminação entre amigo e inimigo) é realmente presente ou realmente
possível, ou melhor, pergunta-se acerca do referente mesmo da questão: “se refere à presença
(vorhanden ist oder nicht) ou às modalidades dessa presença (possibilidade real ou efetiva,
possibilidade ou efetividade reais)” (DERRIDA, 1998, p. 155, grifos do autor). Assim, numa
leitura minuciosa, Derrida tenta associar guerra e político ao identificar o “realmente
presente” e o “realmente possível”, ou melhor, ao perceber que enquanto presença
(Vorhandenheit) a estrutura do político (amigo/inimigo) é inegável (realidade/presença), mas
que, no segundo caso (possibilidade real ou efetiva), também estaria presente a discriminação
entre amigo/inimigo. Diante disso, ele sustenta a espectralidade do inimigo numa leitura que
se torna seminal em sua pesquisa: “é a presença mesma a que parece espectral, virtualidade de
aparição que desaparece. Tão logo a mesma presença (...) simboliza aquilo ao qual tem que
apelar (...) para resistir ao retorno do espectral, em uma palavra, para exorcizar, conjurar,
reprimir ao aparecido” (DERRIDA, 1998, p. 155). Segundo Derrida, reforçando sua tese, o
jurista considera que “a guerra tem sentido e nenhuma política, nenhum laço social como laço
político tem sentido sem ela, sem sua possibilidade real” (DERRIDA, 1998, p. 155), ou seja, a
presença do político se dá como “possibilidade real” da guerra. Entretanto, qual é a diferença
entre possibilidade (como critério) e a eventualidade (como possibilidade efetiva) da guerra?
Derrida arrisca uma resposta:
ódio que, apesar disso, não é nem justa nem injusta, mas se dá como uma pureza de cálculo. O
mais importante neste ponto é a confirmação de nossa hipótese por Derrida: haveria um
“deslocamento semântico” no qual o amigo poder vir a ser o inimigo, ou seja, não existe uma
raça ou naturalidade na definição de inimizade, pois esta se refere em torno das categorias de
público e privado. Derrida analisa, todavia, que a separação entre público e privado se desfaz
na contemporaneidade e, por conseguinte, também algumas teses de Schmitt. Mesmo assim,
para não perder o inimigo e cair na despolitização, fanatismo e imediatismo da ação, Schmitt
teria que defender o Jus Publicum Europaeum e, sobretudo, a forma-Estado. Esta defesa
desesperada do Estado, porém, lhe rende inúmeras incoerências, tal como Derrida lhe arrosta:
“o Estado pressupõe o político, certamente, e em consequência se distingue logicamente
deste; porém a análise do político, stricto sensu, e de seu núcleo irredutível, isto é, a
configuração amigo/inimigo, tem que privilegiar (...) a forma estatal desta configuração: dito
de outro modo o amigo ou o inimigo como cidadão” (DERRIDA, 1998, p. 141). Não apenas
o conceito de guerra civil ou entre Estados, mas o conceito de guerra mesmo se torna como
simétrico (por que não, sinônimo) com o conceito de inimigo. De maneira sempre precisa e
elegante, Derrida pergunta “Como pode Schmitt privilegiar o Estado (inclusive, se não reduz
o político a este), regular o conceito de inimigo a partir da possibilidade da guerra entre
Estados e, não obstante, ver como simétricas a guerra exterior e a guerra civil, como se o
inimigo fosse algumas vezes o estrangeiro, outras vezes o concidadão?” (DERRIDA, 1998, p.
142). Neste ponto, como Schmitt, por Derrida, teria tentado excluir o ódio como afeto político
– e, por consequência, todos os afetos da política – por um conceito puro ou meramente
formal da estrutura do político se “o contrário de amizade em política (...) não é a inimizade,
mas a hostilidade”? Segundo Derrida, isso teria como consequência que “o sentimento não
teria nada a ver com isso, nem a paixão, nem o afeto em geral” (DERRIDA, 1998, p. 107) o
que geraria um absurdo, qual seja, uma ação desapaixonada, sem afetos, despsicologizada ou
simplesmente, um positivismo anacrônico. Sem analisar os méritos da interpretação
derridiana, acreditamos que nos servem por, pelo menos, dois motivos: 1. estabelece um
vínculo, nem que seja pela negação, entre política, inimigo e afetos; e 2. considera a noção de
pureza (que não reconhecemos desta forma em Schmitt, apesar de tê-la em vista como
argumento crítica contra o positivismo jurídico), mas em todo caso não uma pureza da norma
ou formal, mas sim um pureza conceitual que se refere à existência concreta, em suma, como
161
Derrida interpreta, “uma pureza impura”. Em todo caso, o intérprete direciona a teoria política
aos afetos, tema que exploramos no capítulo 3 86.
Apesar desse diagnóstico inesperado e convincente, Derrida marca a dubiedade do
discurso schmittiano que não obstante procurar uma estrutura formal do político também é
capaz de “reivindicar incansavelmente a pertinência concreta, existencial e situada, das
palavras da língua política. Entre elas, em primeiro lugar, da palavra política” (DERRIDA,
1998, p. 135). Mais adiante, Derrida reforça uma interpretação que apostamos em nossa:
“Estes vocábulos não devem e não podem resultar (...) em correlatos de entidades ideais ou
abstratas. Porém esta necessidade da determinação concreta dependeria do sentido polêmico
que determina sempre estes termos” (DERRIDA, 1998, p. 135). Schmitt, então, teria uma
postura ambígua entre a procurada pureza conceitual e a convicção do estatuto polêmico dos
conceitos políticos. Assim, aconselha a distinção entre aquilo que é político e aquilo que não é
político, ou seja, o caráter constitutivamente polêmico e perspectivo dos valores. Por esse
motivo, não poderia exigir a pureza que Derrida nota: no quadro conceitual schmittiano,
pureza e polêmica forçosamente deveriam gerar uma contradição argumentativa. Segundo
Derrida, que talvez não aceitaria o antagonismo como método, “Schmitt faz esforços (...) para
subtrair a qualquer outra pureza (...) a impureza do político, a impureza própria e pura do
conceito ou do sentido político (...) o sentido polêmico desta pureza do político seja, em sua
impureza mesma, todavia puro” (DERRIDA, 1998, p. 135-136), mas está certo ao interpretar
esse desejo de pureza em Schmitt, mesmo que seja uma pureza impura por trazer consigo
todas as coisas que alcança.
Sobre a metodologia de Schmitt, mais especificamente, sobre o recurso ambíguo de
polemicidade e neutralidade, Derrida afirma que “a lógica deste discurso põe em ação uma
estratégia ao mesmo tempo original (desconsideração do conceito tradicional de
possibilidade) e clássica (recurso à condição de possibilidade em uma análise do tipo
transcendental-ontológico)” (DERRRIDA, 1998, p. 147). O que permitiria Schmitt afirmar
que todos os conceitos da esfera do espírito até mesmo conceito de espirito são
compreendidos através da existência política concreta, é o fato de que, conforme Derrida,
“não podem ser neutros, nem neutralizáveis. Estes conceitos não se reduzem à unidade, são
pluralistas” (DERRIDA, 1998, p. 147). É desta forma que Derrida analisa o conceito de
86
“The state may well function as the center, but if it does, this is an effect of the play of forces rather than an a
priori privilege—and of course, its centrality does not prevent it from being a site for the play of forces, too.
Schmitt does not dare make this move; he fails to accept the absence of an ultimate ground of the political and
hence misses the structurality of political structure. He ends up recognizing and fearing the contingency of
objectivity ensuing from the double bind, which ultimately renders him a reactionary modernist or a conservative
revolutionary of political thought” (ARDITI, 2008, p. 26)
162
concreto em Schmitt que se torna, no final das contas, abstrato ou espectral (gespentisch):
“esta concreção do concreto, determinação em última instância à qual Schmitt apela sem
cessar, veremos que está sempre excedida, desbordada, digamos que assediada pela abstração
de seu espectro” (DERRIDA, 1998, p. 137)87. De acordo com o autor, o abstrato é algo fora
do alcance, inacessível e inconcebível como conceito. Por meio deste argumento, Derrida
chega mais uma vez à confirmação da tese de que o pensamento de Schmitt seria perpassado
inteiramente pela noção do inimigo ou da guerra, pois “é essa possibilidade real que o torna
Schmitt obsessivo, ou o habita, qual seja, a lei mesma da espectralidade. A oscilação e a
associação, a disjunção-conjuntiva que alia a efetividade real e a possibilidade” (DERRIDA,
1998, p. 151). Ao constatar que a distinção política não poderia ser compreendida sem a
referência à “possibilidade real”, Schmitt nada mais faz que articular o seguinte raciocínio
exposto por Derrida:
aliado ao tema da neutralização e das despolitizações, Derrida tenta demonstrar que o jurista
não considera todas as consequências do conceito do político e se o tivesse feito teria notado
uma contradição: a despolitização e neutralização provoca uma hiperpolitização que Schmitt
não teria analisado, ou melhor, só analisaria décadas mais tarde no texto sobre o Partisan.
Segundo Derrida, que reconhece o tratamento dado por Schmitt ao tema, o jurista teria
analisado a hiperbolização do político, porém pelo desencadeamento da hostilidade pura lhe
aparece aquilo que diagnostica através de todos os fenômenos de despolitização, através de
tudo o que destroi os limites clássicos do político.
Mesmo que alguns autores como Carlo Galli e Roberto Esposito sustentem que o
conceito do político schmittiano serve como um conceito não ideológico da política, por esta
aspiração à impureza pura ou pura impureza, Derrida prefere detectar aquilo que permite
Schmitt passar de um valor a outro, de uma instância ou relação a outra, numa lógica viral ou
contrabando entre as inúmeras áreas da ação humana sem pertencer, na verdade, a nenhuma
delas: “parece que o que faz isso possível é a permanente presença (...) da guerra como
possibilidade real” (DERRIDA, 1998, p. 156). Esta presença real da guerra que Derrida acusa
de não assumida (ou percebida) por Schmitt, assumimos na forma de uma ontologia do
antagonismo: a presença do político como possibilidade real, ou melhor, como necessidade
vital. Em todo caso, apesar das críticas que Derrida acertadamente remete a Schmitt, o
comentador reconhece o conflito/político (resumidos à guerra pelo intérprete) como esta
estrutura ontológica e seu sentido originário ou ontológico (seinsmassigkeit Ursprünglichkeit)
a partir do qual deve se reconhecer as palavras “luta” e “inimigo”. Assim, Derrida reforça sua
tese “não poderia haver hostilidade sem a possibilidade real deste dar-a-morte, nem
tampouco, correlativamente, amizade fora desta pulsão mortífera” (DERRIDA, 1998, p. 145).
Derrida já se pronunciara ao afirmar que Schmitt tenta expulsar os afetos do político e da
guerra, sobretudo, o do ódio e da exterminação do estrangeiro ou do outro, mas também
percebe que o conceito do político e da guerra em Schmitt não atende por uma lógica
mortífera, pelo contrário, apesar de ter a morte como horizonte, o político não seria um mero
dar-a-morte, mas “esta pulsão mortífera do amigo/inimigo procede da vida e não da morte, da
oposição a si da vida enquanto que se afirma ela mesma, e não de algum tipo de atração da
morte pela morte ou para a morte” (DERRIDA, 1998, p. 146). Talvez em seu quadro
interpretativo, Derrida constata uma “hostilidade sem afeto”, “uma agressividade puramente
desapaixonada”, “uma hostilidade pura” e não percebe que Schmitt estava muito atento às
críticas de Strauss e não gostaria de vincular seu conceito do político a alguma destas
instâncias da cultura ou liberais. Daí, no entanto, juntamente com a leitura que faz do conceito
164
de inimigo em Platão, não seria possível desconsiderar o elemento dos afetos da teoria política
de Schmitt. Entretanto, prosseguindo a questão de como para Derrida o político não é morte,
mas vida, ele afirma:
isso pode parecer paradoxal, porém a possibilidade real de dar morte, irredutível
condição do político, e inclusive estrutura ontológica da existência humana, não
significa para Schmitt nem ontologia da morte ou do morrer, nem levar em conta
seriamente um nada, nem outro código, posição de um princípio ou de uma pulsão
de morte. O dar morte procede de uma negatividade oposicional, porém esta
pertence à vida (...) à vida enquanto se opõe a si mesma afirmando-se (DERRIDA,
1998, p. 145).
Derrida possui uma das leituras mais analíticas e impiedosas do conceito do político
schmittiano, mas também tem o mérito de perceber suas contribuições originais. Por exemplo,
quando o comentador expõe que “negatividade, de-negação e política, ocupação espectral e
dialética. Se existe um politicismo de Schmitt, este consiste em que não basta definir o
político mediante a negatividade do polêmico ou da oposição (a negatividade oposicional em
geral) (...) O político é tão mais político enquanto é antagonista, certamente, porém a oposição
é tão mais oposicional, a oposição suprema como essência e telos da oposição, da negação e
da contradição, enquanto é política” (DERRIDA, 1998, p. 160). Em outro trecho, Derrida
sintetiza qual o efeito de Schmitt no mundo filosófico: “resulta que Schmitt nos pede (...) que
continue tratando do político mesmo, que se pensa a guerra, e em consequência o dar a morte,
e finalmente o que se chama a hostilidade absoluta como a coisa da filosofia” (DERRIDA,
1998, p. 168). Este seria mais um ponto fraco, porém, por ter feito do inimigo e não do amigo
o conceito definidor do político. Mesmo que para Schmitt, conforme reconhece o próprio
Derrida, “partir do inimigo não é o contrário de partir do amigo” (DERRIDA, 1998, p. 176),
pois o que interessa mesmo é que haja a possibilidade da guerra e, sobretudo, que se tenha em
vista que “nesta dialética do reconhecimento para identificar a meu inimigo tenho que
reconhecê-lo, porém de tal maneira que me reconheça também” (DERRIDA, 1998, p. 186),
ou seja, o inimigo na figura do irmão ou ainda, numa provocação calculada, por que não da
irmã?
Poderíamos opor à leitura de Derrida uma série de observações, tais como, o conceito
do político de Schmitt não seria guiado pela guerra ou pelo conflito como o autor insiste88, ele
mesmo não explora a noção de relação entre os combatentes no laço político instaurado pelo
antagonismo, aliás, conceito não desenvolvido por Derrida, da mesma forma da questão dos
88
Contrapõe-se à leitura clássica de Hofmann que afirma que “o político não reside na guerra em si mesma, mas
em um comportamento determinado pela possibilidade real do caso crítico e na clara consciência da situação
particular de tal (...) na tarefa de distinguir corretamente amigo e inimigo Schmitt nega possuir uma definição
militarista ou imperialista, mas sem dúvidas (é) antipacifista” (HOFMANN, 2002, p. 57).
165
afetos e do político (quando Schmitt se refere ao conflito entre amigos e inimigos, ele teria em
vista a questão do antagonismo como determinante e não a luta em si) não distingue a
alteração entre os dois conceitos de político nos textos Politische Theologie e Der Begriff des
Politischen, em nenhum momento faz referência ao Der Nomos der Erde, entre outros
argumentos e contra-argumentos que, no final das contas, não teriam eficácia, não seriam
produtivos. De nossa parte, partimos de outra chave de leitura do político – inventada ou
colhida livremente nos textos schmittianos – qual seja, o político como relação ou afetos, a
partir do qual podemos elaborar uma leitura que Derrida se nega a fazer: o afeto que
determina a ação e o antagonismo como este espectro que atravessa a realidade.
Todavia, logo no início das análises sobre o jurista, Derrida expõe duas considerações
que revelam o caráter da obra: inicialmente, a pergunta sobre “em que se converteu, por
exemplo, a estrutura real do político, das forças e da dominação em política, das relações de
força e debilidades, do laço social, dos sinais e do discurso que o constituem? (...) Para que se
deve falar de maneira (...) tão paradoxal ou aporética, tão impossível?” (DERRIDA, 1998, p.
100) e, logo em seguida, afirma que “consiste justamente em questionar radicalmente os
esquemas tradicionais da causalidade ou da significação, recordando-nos a irredutibilidade
daquilo que se mantém mais além desse discurso mesmo: o outro, o acontecimento, a
singularidade, a força/debilidade, a diferença de força, o mundo, etc.” (DERRIDA, 1998, p.
100). A questão inicial para ele é: por que ler Schmitt? Por que parte considerável da esquerda
se debruça sobre os textos de Schmitt? Logo Schmitt, um autor conservador, católico, jurista
que mesmo relacionado com graves compromissos, consegue:
89
Em outro trecho, Derrida é mais explícito sobre a localização do pensamento de Schmitt: “Para ser
consequente com ele mesmo esta homenagem a uma paternidade hegeliana deve extender-se à posteridade
marxista de Hegel. E esta consequência tem algo a ver com as simpatias notórias que este jurista hiper-
tradicionalista da direita católica tem inspirado em certos círculos do pensamento políitco de esquerda. Estes
166
‘amigos’ de esquerda não correspondem a uma formação fortuita ou psicológica nascida de alguma confusão
interpretativa. O que temos aí é um imenso sintoma histórico-político cuja lei está, todavia, por se pensar”
(DERRIDA, 1998, p. 162).
167
considerada como apolítica ou não-política, pois seria, mais precisamente, o outro da política,
aquilo que não é representado, isto é, o não pensado ou esquecido por ela: se a política
moderna surge como antipolítica – melhor seria, antipolítico –, pois como um conflito
administrável sob a forma da ordem contra o conflito insustentável da violência anárquica da
origem sempre presente, o político não rejeita o conflito nem nega a política, mas sim
considera que não há outra política que a política mesma, isto é, não há uma realidade ou
substrato político fora das relações, mas sim aponta a realidade imanente como a única
realidade. Assim, não existe fora nem anti- ou ante-, mas apenas política sem possibilidade da
transcendência e, por conseguinte, o político demonstra sua abertura constitutiva na ruptura da
simetria entre imanência e transcendência ou entre finito e infinito, uma vez que não há ponto
de vista externo ou universal como se pudesse ser conduzido a um fim distinto e diferente de
si, tal como uma transcendência ou finalidade externa: é neste momento que faz sentido o
incômodo ou a anomalia do político, pois enquanto a política não traz no seu discurso a
finitude constitutiva, ou deliberadamente esquece, a categoria do político reafirma a condição
de ausência de fundamento externo, tomando o externo como diferença do antagonismo.
Assim, a categoria do político contradiz não apenas a distinção entre essência e aparência,
mas também os discursos de dualidades ou simetrias ao reinventar o realismo político uma
vez que não há presença de uma substância, natureza ou essência e, dessa forma,
paradoxalmente, coincide com a própria política, sendo apenas seu avesso: enquanto a política
nega o conflito, o político nega esta negação ao demonstrar seu rasto.
Embora não assuma diretamente, a pretensão schmittiana na categoria do político é
sustentar uma leitura da política como algo que trata dos assuntos terrenos e não se articula
com aspirações celestiais ou metafísicas, ou seja, rejeitam-se as distinções entre políticas da
transcendência e metapolíticas ou de qualquer relação entre céu e terra, assumindo o poder
sem pecado. Na tradição do pensamento político, distingue-se uma via política antiga – desde
a concepção agostiniana (patrística) segundo a qual as sociedades seculares emergem como
decorrência do pecado até a ênfase tomásica na capacidade de compreensão da lei natural
pelos homens como base moral para as repúblicas – e sua versão concebida pelos tomistas que
influenciou os contratualistas modernos como o modo de fazer valer no mundo concreto a lei
moral que todos possuiriam na consciência: este caráter de legalidade e validade da política,
qual seja, uma política de matriz transcendente, mesmo não pressupondo a autoridade como
ordenada diretamente por Deus, afirma que, embora as sociedades políticas sejam criadas
pelos homens, devem fundamentar-se no direito natural; a outra perspectiva, a via moderna
desde Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua e, posteriormente, Maquiavel, rejeita esta
170
estrutura moral para a vida política e defende a ragione di stato como capacidade de
conservação do estado sem apelos à categorias metafísicas, tais como consciência moral ou lei
natural. Dessa forma, numa arqueologia da categoria do político desde sua configuração pré-
moderna90, afirma-se que a política não pode transcender a si mesma, não há nada exterior ou
uma finalidade transcendente nem uma lei natural universal a partir da qual se concede
autoridade, mas o político seria considerado como o fim do fim da política, portanto, como
uma desconstrução da metafísica política que, ao contrário, não apenas mostra os limites e
separa dentro e fora, mas torna-se limite da política como seu avesso. Ao invés de substância,
dualidade, simetrias, objeto ou sujeito, finalidade ou bem, considera-se relação e diferença,
portanto contra a separação da hipótese gnóstica uma vez que qualquer transcendência é
sempre da ou na imanência o que desfaz a necessidade da separação e resolve a querela da
secularização como um impulso para fora da analogia entre conceitos teológicos e conceitos
político-jurídicos e dá como referencial da ação apenas a diferença como antagonismo.
Nesta desconstrução da metafísica através do político, há uma negação da teologia
política tradicional como representação ou como conexão entre poder e bem, entre terra e céu,
mas também rejeição da estrutura específica da teologia política schmittiana. Após atribuir à
secularização uma função de transferência entre conteúdo teológico e conceitos jurídico-
políticos, como demonstramos na seção 2.3, bem como uma teoria genealógica da soberania
que articula decisão soberana à coação ordenativa, poder à ordem ou forma política, mesmo
que esvaziada qualquer representação substancial, Schmitt altera seu pensamento, acentua o
papel do finitismo e não repete, ao menos por algum tempo, a postura da filosofia política
moderna de pressupor uma origem ou fundamento pleno seguido por uma cisão ou crise
provocada pela técnica que determinaria a reflexão nostálgica sobre fundamento perdido ou a
realização da forma de direito. Pode-se afirmar que, segundo Schmitt, numa formulação ainda
imprecisa, a essência da política consistiria em uma falta de essencialidade que não se pode
solucionar, pois referente à relação concreta. Ele assume o político, afinal de contas, como um
desfundamento: se não há queda nem origem, então princípio e precipício são originários, tal
como um descentramento, sem dúvidas, uma desconstrução da lógica moderna, mesmo que
partindo do interior da própria modernidade, como fronteira, como limite do limite ou avesso
da representação. Assim, Schmitt não considera um movimento ou processo histórico
determinado por algo anterior como uma causa, substância ou uma explicitação da história, ao
contrário, analisa a política precisamente naquilo que não é exposto, como que desocultando
90
A reconstrução das discussões entre via antiga e via moderna é elaborada, entre outros, em SKINNER, 2006,
capítulo 14.
171
***
política, ou seja, o fio condutor cada vez mais importante que assume a ação na contingência
sem determinações racionais prévias. Dessa forma, propomos 3 momentos que podem ser
denominados como: política da transcendência (seção 2.2): uma teoria formalista apoiada na
teoria tradicional da legitimidade estatal não positivista; política da exceção (seção 2.3): um
realismo fraco marcado pelos conceitos de exceção e decisão, mas também pela secularização
e mediação; e como políticas da imanência (seção 2.4): uma ruptura da dicotomia entre
imanência e transcendência, tomando aquela instância como constitutiva da ordem, de
maneira distinta da redução do político ao econômico ou da recusa à qualquer autoridade
(transcendência). Esta última análise é, deliberadamente, uma interpretação não ortodoxa da
obra de Schmitt: os intérpretes consideram que mesmo no período tardo-weimariano ainda
persiste a luta contra a imediação e a referência da forma política ou ideia de direito à noção
de representação. Ao contrário, como pretendemos demonstrar na última seção deste capítulo,
interpretamos este período como o fim da representação e, por conseguinte, da política
moderna através da proposta de um realismo forte com uma noção de validade in re, pois se
refere à relação e aos arranjos de antagonismos. O desenvolvimento, porém, será feito apenas
no capitulo 3, ao tratar da pós-política e da proposta de indistinção entre imanência e
transcendência em teoria política, ou melhor, da diferença enquanto diferença entre político e
política.
A questão em torno do papel que as dicotomias ou cisões, tais como, entre realidade
e norma ou entre ação e racionalidade desempenham na reflexão jurídico-política remete ao
problema do dualismo metodológico tipicamente kantiano entre ser e dever-ser: é possível
algum medium entre estas esferas? Entretanto, há uma questão anterior que lhe serve como
pressuposto: o poder pode ser controlado por normas? Ou ainda: a lei moral (racionalidade) é
capaz de determinar a ação? Estas questões são bastante conhecidas na década de 1910
através do neokantismo e influenciam a reflexão schmittiana. Neste contexto, as influências
iniciais a serem verificadas quanto a sua relevância no pensamento de Schmitt são as
seguintes: (I) a reconstrução da teoria da mediação (Vermittlung) racionalista, especificamente
174
a matriz kantiana acerca da subjetividade que marca o período formalista schmittiano; (II) a
descrição da alternativa proposta pela teoria da mediação dialética hegeliana, o conceito de
Estado e o papel da violência na constituição da ordem; (III) o argumento do “como se” (als
ob) de Hans Vaihinger e o argumento cético ou finitista das ficções políticas e jurídicas.
O ponto de partida para o problema aqui exposto é a reconstrução da teoria
schmittiana da política e do direito como uma tentativa de solução da separação entre
imanência e transcendência, ou melhor, na proposta de uma estrutura de mediação entre
realidade e norma ao sugerir o esgotamento dos paradigmas políticos modernos do
normativismo e do realismo91. Notoriamente, o problema se constitui como uma questão
persistente na reflexão de inúmeros autores clássicos e contemporâneos seja na filosofia
teórica ou na filosofia prática moderna e, por isso, trabalha-se a questão no fundo histórico-
conceitual da matriz de todo desenvolvimento posterior, qual seja, na tensão entre Kant e
Hegel. O tratamento dispensado aos autores representa apenas uma das possíveis entradas no
tema em discussão e, portanto, tem valor propedêutico na tentativa de reprodução do contexto
teórico-histórico na base do qual se dá o desenvolvimento das reflexões schmittianas, mais
especificamente, na sua obra anterior à República de Weimar, pois a exigência da
Mittelbarkeit, como se demonstra em seguida, é o tema por excelência do jurista tedesco na
sua obra de juventude.
(I)
A partir da teoria do cogito cartesiano, a metafísica moderna se articulou enquanto
instância universal do conhecimento do mundo através do pensamento, ou seja, através da
categoria da consciência. Tal pressuposto fundamental para a metafísica racionalista foi
adquirido por meio da tese clássica da apreensão verdadeira da realidade através de conceitos
que possuem a pretensão de captar a realidade como ela é em si mesma, pois o real, segundo a
91
Em linhas gerais, a filosofia política moderna pode ser dividida em dois paradigmas distintos: o normativismo
e o realismo. Os extremos no pensamento político podem ser delimitados por abordagens racionalistas, de um
lado, ou cratológicas, de outro. Abordagens racionalistas requerem princípios normativos e desenvolvem uma
teoria sobre a validade da ação humana, constituindo assim uma filosofia prática em termos éticos. Abordagens
cratológicas levam em consideração as determinações concretas de relações de poder, movendo-se no interior do
paradigma da Realpolitik. A questão decisiva na discussão entre ambas posições é acerca da relação entre moral
e política, ethos e kratos, isto é, se o político é entendido como Macht ou como Recht. No primeiro caso, dá-se
uma fundamentação política das normas; no segundo, obtém-se uma fundamentação normativa da política. Sobre
isso, cf. V. HÖSLE, 1997, p. 100-101, onde expõe de forma aproximada essa distinção com os termos das
Politische e das Kratische: "Jedenfalls ist für eine befriedigende Theorie der Politik einer Untersuchung der
kratischen Fertigkeiten ebenso wie des politischen Sachverstandes unabdingbar. War es ein Fehler Platons, die
kratische Dimension der Politik nahezu auszublenden, so ist es eine noch verhängnisvollere Einseitigkeit der
meisten politischen Denker dieses Jahrhundert, die sachliche Dimension ignoriert zu haben. Carl Schmitt etwa
erfaßt im 'Begrif des Politischen' ausschließlich Aspekte des Begriffs des Kratischen, für der Gegensatz von
Freund und Feind in der Tat eine zentrale Rolle spielt. Unter 'Politik' verstehe ich also Handlungen, die im
Kontext von Machtkämpfen auf die Bestimmung und/oder Durchsetzung von Staatszwecken ausgerichtet sind".
175
os objetos em si de modo algum nos são conhecidos e que os por nós denominados
objetos externos não passam de meras representações de nossa sensibilidade, cuja
forma é o espaço e cujo verdadeiro correlatum, contudo, isto é, a coisa em si mesma,
não é nem pode ser conhecida com a mesma e pela qual também jamais se pergunta
pela experiência (KANT, 1974, p. 44)92.
Isso significa ainda que a natureza racional e a constituição antropológica são o
limite do pensamento humano diante do mundo, pois se dá através da mediação das categorias
universais e necessárias entre a experiência fático-causal e um conhecimento válido. Segundo
Kant, as afecções do mundo são captadas pela sensibilidade e pelas categorias do
entendimento e ao serem estruturadas pela consciência tornam-se objetos transcendentalmente
constituídos, afirmando a tese de que não existe um princípio imanente de organização da
realidade, mas apenas a estrutura transcendental que produz os objetos. Nestes termos,
92
KANT, Immanuel. “Crítica da razão pura”. In: Kant. Coleção Os pensadores. Trad. Valério Rohden e Udo
Baldur Moosburger, Kant I, 1974, p. 44; cf. também KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft 1, Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1968, p. 78 “sondern daß uns die Gegenstände an sich gar nicht bekannt sein, und, was wir
äußere Gegenstände nennen, nichts anders als bloße Vorstellungen unserer Sinnlichkeit sein, deren Form der
Raum ist, deren wahres Correlatum aber, d.i. das Ding an sich selbst, dadurch gar nicht erkannt wird, noch
erkannt werden kann, nach welchem aber auch in der Erfahrung niemals gefragt wird”.
177
ordenadora do sujeito racional que determina em última instância a realidade ou, pelo menos,
sua qualidade cognoscível. Dessa maneira, a teoria moderna transformou-se, na verdade, em
uma produção da forma, precisamente por conta da ausência de substância e, dessa maneira, a
objetividade passa a ser não mais o mundo das coisas (a tese identificação entre conceito e
realidade), mas sim a ordem racional do sujeito transcendental. Assim, a razão humana teria,
segundo Kant, a característica de legislar sobre a natureza como conhecimento dos objetos da
experiência, mas também – e aqui inicia o problema para a filosofia prática – sobre o agir
humano através de sistemas de leis a priori tanto da natureza quanto da liberdade. Neste caso,
a razão prática estabelece as condições de possibilidade de uma ação a partir de leis ou
critérios a priori universais e necessários para determinação da liberdade do agente.
Dos problemas que tal estrutura transcendental põe em jogo não apenas em sede de
teoria do conhecimento, mas também em sede de teoria política, pode ser ressaltada a questão
das dicotomias modernas e a caracterização de uma racionalidade como calculabilidade e
dedutibilidade: sujeito e objeto, pensamento e realidade, ser e dever-ser, faticidade e validade,
moral e direito, forma e conteúdo, teoria e práxis, etc., todas advindas do paradigma do
racionalismo moderno que segue a tese de que só se pode conhecer o objeto do conhecimento
na medida em que se cria tal objeto a partir da subjetividade. Nesse sentido, tornou-se a
questão central da Modernidade a criação da realidade pelo sujeito, pois a ordem é
compreendida não como algo dado, mas como um problema diante da ausência de
transcendência. Entretanto, a solução para o dilema provocado por essa nova concepção é, no
racionalismo, a apresentação da mediação moderna. Esta, por sua vez, tentou reestabelecer a
descontinuidade aporética entre realidade e mundo, ser e dever-ser ou, em termos políticos,
validade e facticidade (a partir de fora), em suma: a questão acerca da justificação do
conhecimento que se perdera na passagem para a modernidade ou, em termos da teoria
política, a questão acerca da legitimidade da ação ou da ordem que se perdera na passagem
para a modernidade93.
O aspecto mais importante da reconstrução dos argumentos de Kant para a pesquisa
nesta tese é a compreensão de que ao rejeitar a tese da estruturação imanente da realidade que
sustenta que todo ente é verdadeiro, Kant admite que qualquer conhecimento e ação humana
seria dado somente através de mediações, no caso, como validação do conhecimento através
das estruturas do sujeito que articula a instância transcendental como estrutura humana
93
Sobre a noção de legitimidade a partir de uma perspectiva da teoria política, cf. COSTANTINO, 1994, pp. 35-
46; GALLI, 2010, pp. 635-653 et seq. e HOFMANN, 1977, p. 50 et. al. De certa forma, Schmitt busca
precisamente recuperar essa espécie de legitimidade imanente da ordem pública, porém, evidentemente, de
maneira distinta dos antigos como se demonstrará durante a exposição deste trabalho.
179
universal e necessária, pois apenas através dessa forma os fenômenos seriam conhecidos, uma
vez que o mundo em si apenas é postulável. Nesse sentido, a tese da correspondência entre
esquemas conceituais e realidade em si é rejeitada diante da mediação transcendental, porém,
como consequência, admite-se também o abismo entre pensamento e realidade e a
necessidade de tematizar os pressupostos e condições do conhecimento humano que,
necessariamente, condiciona qualquer tentativa de conhecimento sobre a realidade. Dessa
forma, as consequências das teses kantianas em sede de teoria política trazem, em um
primeiro momento, a necessidade de uma instância de mediação das esferas separadas, entre
realidade e pensamento. Na modernidade, esta função coube ao indivíduo, pois como
principal elemento da relação racional da produção seja da ordem do conhecimento seja da
ordem jurídico-política a estrutura conceitual da modernidade exige o Mittel epistemológico,
mas também político, como elemento para validação dos pressupostos da ordem que, afinal, é
constituída a partir da razão humana. Assim, por exemplo, na tradição do contratualismo, o
indivíduo é posto na base da ordem política, na verdade, como princípio pré-social e pré-
político que instaura ab ovo a unidade política como um novo demiurgo. A invenção do
sujeito criador da ordem e da realidade estabelece a ordenação do mundo como um problema
e não como um dado natural o qual desde sempre o ser humano habitaria: a nova mediação
propõe uma solução racionalista e individualística que demonstra a capacidade ordenativa do
sujeito na sua autojustificação. Portanto, nesse quadro, subjetividade e mediação tornam-se as
palavras centrais para o racionalismo político ou normativismo94.
Assim, a articulação entre mediação teórica e mediação política aguça ainda mais o
principal problema para a questão entre ser e dever-ser, pois, de maneira sucinta, mediação é,
no sentido moderno, a relação racional, construtivista e discursiva que o sujeito institui com o
objeto que por intermédio da razão produz uma forma dotada de sentido, ou seja, a ordem a
partir da qual é possível conhecimento e ação. De maneira geral, o problema da mediação
moderna significa a questão da transformação do particular em universal, isto é, da percepção
do mundo e da construção da ordem artificial. Todavia, a crítica transcendental, ao contrário
da metafísica pré-crítica, parte, como já salientado, da diferença entre conceito e realidade e
renunciou o conhecimento do Absoluto e da verdade incondicionada, bem como a
94
Para Schmitt, a Vermittlung (mediação) é a categoria política moderna fundamental que determina a ordem ao
dotá-la de uma forma racional; cf. WSBE, pp. 4-5 e pp. 108-109; AB, p. 60. O tema da mediação em seus vários
momentos e aspectos é tratado minunciosamente por GALLI, 2010, cap. I, II, III e VII. GALLI, 2010, p. 5 “se la
ragione è il nouvo medio, il soggetto è lo snodo, l’articolazione, attraverso il qual ela ragione si fa azione e
l’esperienza può essere messa in forma e resa oggettiva, cioè comunicabile, universale. Il modo della mediazione
razionalistica moderna è quindi, primariamente, l’Opera del soggetto; e questa è rappresentazione, cioè
produzione e costruzione effetualmente formativa dell’immagine razionale del mondo”. Ainda sobre a relaçã
180
95
Ao declarar o fim da metafísica, Heidegger critica a constituição onto-teológica da metafísica como inscrita no
seu destino desde Platão. A tradição metafísica põe como primum cognitum do pensamento Deus ou o Absoluto
e, dessa forma, torna idêntica a ordem do conhecimento com a ordem do ser. Essa estrutura fundamental
demonstra, para Heidegger, a estrutura onto-teológica da metafísica – por exemplo, de Tomás de Aquino a Hegel
– que expressa uma dialética entre o Ser como fundamento do conhecimento dos seres e o Ente supremo como
fundamento ontológico dos seres, esquecendo-se assim da diferença ontológica entre Ser e entes: ser e divino se
relacionam necessariamente na ontologia transformando-a, na verdade, em uma onto-teologia que de Platão a
Nietzsche determina o destino dessa forma de reflexão. Sobre isso, cf. HEIDEGGER, 1979, p. 189-202.
96
Sobre a transformação da relação entre ética e direito, VAZ (2002, pp. 214-215) afirma que “na antropologia
política clássica, a universalidade do Direito tem a forma de uma universalidade nomotética, ao passo que na
antropologia política moderna estamos diante de uma universalidade hipotética. A universalidade nomotética é
aquela que tem como fundamento uma ordem do mundo que se supõe manifesta e na qual o nómos ou a lei da
cidade é o modo de vida do homem que reflete a ordem cósmica contemplada pela razão. A universalidade
hipotética, ao invés, é aquela cujo fundamento permanece oculto e requer uma explicação a título de hipótese
inicial não verificada empiricamente (…) no primeiro caso, permanecemos no âmbito da ontologia antiga, no
segundo caminhamos sob o signo do pensamento científico moderno. No primeiro caso, a Política conserva uma
intrínseca relação com a Ética, no segundo essa relação torna-se extrínseca e problemática, e a Política tende se
constituir em esfera autônoma, independente da normatividade ética e frequentemente a ela oposta”.
181
97
Cf. SENELLART, 2000, p. 45-79; sobre a origem da dicotomia entre normativismo e realismo político desde
Spinoza, Treitschke e os teóricos do Machtsstaat que fora sistematicamente empregada na obra de Friedrich
Meinecke sobre a razão de Estado, cf. KERVÉGAN, 1992, p. 136-137.
182
da inversão da questão fundamental sobre a relação entre política e moral que caracteriza o
autor pela consideração analítica do fenômeno do poder, pela utilização da categoria de
soberania derivada da discussão entre auctoritas e potestas98 e da abordagem dedutivamente
racional das questões políticas. A transformação da filosofia política operada por Hobbes
altera radicalmente a relação entre poder e normas, concedendo pela primeira vez de forma
sistemática o primado do paradigma do poder sobre o paradigma da norma, ressignificando
através, principalmente, das obras Leviathan, or the Matter, Form and Power of a
Commonwealth ecclesiastical and civil (1651), De cive (1642) e Elements of Law Natural and
Politic (1640) a constituição do político, pois a passagem dos direitos naturais pré-políticos do
estado de natureza para o direito e a lei civil no estado de sociedade demonstra a submissão da
ética à política, uma vez que a ação ética do indivíduo na sociedade civil pressupõe,
evidentemente, a superação do bellum omnium contra omnes e, portanto, uma ação fundada
na força para afastar o mal (a morte violenta) que baseia sua condição de cidadão e não a
objetividade de um bem, já que não se pode articular uma moralidade no estado de natureza,
mas apenas na sociedade civil, pois somente no Estado haveria segurança da vida e se
constituiria o bem e o mal, o justo e o injusto, a virtude e o vício. Dessa forma, para Hobbes,
contrariando a tese clássica da sociabilidade natural do homem, da hipótese do estado de
natureza surge o contrato, que representa a primeira manifestação do vínculo social que
estabelece a anterioridade do indivíduo sobre a sociedade; então, através do mecanismo da
situação originária de conflito, onde se dá a luta pela autoconservação e apenas vige o direito
natural pré-estatal, estabelece-se a passagem da liberdade do estado de natureza ao domínio
na sociedade civil e, por conseguinte, através do pacto regido pela razão intrínseca à natureza
humana, no caso um cálculo egoísta racional do indivíduo, dáse a justificação da relação entre
comando e obediência e a mediação criadora da ordem36.
Nesse contexto, são forjadas as categorias políticas modernas, tais como, liberdade,
igualdade, tolerância, estado de direito, etc. que estão estruturalmente vinculadas ao conceito
de soberania e representação através de um sistema universal de obrigação dos indivíduos
submetidos à obrigação na forma-lei: a ordem estatal, cuja universalidade abstrata todos os
particulares se referem, haja vista o acordo das suas vontades livres e iguais na participação e
criação dessa ordem, exclui a possibilidade da coexistência natural de homens como
portadores de direitos naturais e propõe a organização política através da transformação de
direitos naturais do indivíduo em direitos civis dos cidadãos e, sobretudo, a partir disso, a
98
Sobre os termos auctoritas e potestas, cf. VL, pp. 75-87; sobre o princípio do “princeps legibus solutus est” cf.
DINIZ, 2007, p. 139-148 e AGAMBEN, 2004, p. 37-45.
183
99
Sobre a relação problemática entre ser e dever-ser em Kant assevera SÁ, 2009, p. 40: “Assim, não estando
determinado pelo poder que é próprio da lei natural, o sujeito kantiano surge como o depositário de uma lei que
se fundamenta puramente em sua interioridade. Se chamarmos racionalidade à interioridade do sujeito, dir-se-ia
que uma tal lei surge como o imperativo autonómico de uma lei puramente racional. Torna-se possível a Kant
caracterizar o sujeito livre através da presença nele de uma pura lei racional, de uma lei que, surgindo como um
puro dever-ser (Sollen), como um puro imperativo sem poder, encontra diante de si a lei natural que, como um
poder, determina a exterioridade natural, fenoménica ou fática de todo o ser (Sein)”.
185
100
GALLI, 2010, p. 8: "Pensare la politica come la ricerca costruttivistica di eficacia e sicurezza significa che già
ab initio la mediazione è un'immediatezza, un riflesso obbligato o una coazione, il che implica che la forma
moderna è per sua essenza una tecnica, la prassi una poiesi, e l'azione è in verità un automatismo".
186
101
Segundo GALLI, 2010, p. 13-14 “La mediazione razionalistica moderna gli appare così percorsa da uma
aporia: um consequenziale pensiero empirico e concreto è incapace di totalità, mentre um pensiero soltanto
formale è privo di contenuti concreti (...) Il primato logico dell’Idea implica che per Hegel è irrilevante la
questione dell’origine dela politica così come viene posta – e risolta – nel razionalismo e nell’empirismo
moderni”.
187
política. Diante disso, ele afirma que a sociedade civil possui como finalidade não o universal,
mas sim a satisfação das necessidades102.
Na famigerada afirmação segundo a qual “o que é real é efetivo e o que é efetivo é
racional” reside a pretensão hegeliana de enquadramento especulativo da história empírica,
asseverando retrospectivamente o sentido que, de toda forma, demonstraria que a
contingência dos eventos revela a necessidade do conceito e, por conseguinte, garante a
contiguidade entre racional e efetivo103. A negatividade concreta rejeita a imediatidade da
ideia e a re-produz como realidade efetiva, pois a mediação concreta contém no seu
movimento dialético um momento de crise após do qual dá-se a superação reconhecendo-se a
origem e o telos ideal. Nestes termos, a mediação concreta para Hegel é o movimento do
imediato que pela negatividade se faz Espírito. Dessa forma, a mediação concreta em Hegel
apresenta-se como uma “negação da negação” já que nesse movimento o finito se descobre
como finito e, portanto, assume o primado do infinito não mais contrapondo-se-lhe, mas sim
como finito e infinito reciprocamente implicados como ideal e real e não apenas como
contraposição ou unidade. Através desta mediação, supera-se a formalidade e a empiricidade
contraditórias do racionalismo moderno, realizando uma coincidência entre o verdadeiro e o
todo: a ideia é o fundamento absoluto e imediato. O fato de que a mediação concreta encerra-
se no saber especulativo do Espírito mostra que esta mediação não desempenha o papel
intermediário que Schmitt lhe assegura no período pré-weimariano. Entretanto, a mediação
concreta prossegue sendo em Hegel a potência que opera a transformação do particular no
universal, da experiência subjetiva desenvolvendo-se ao universal.
No espírito objetivo, a mediação concreta manifesta a potência da negatividade,
como descrito nos Grundlinien des Rechtsphilosophie, onde a dimensão da objetividade tem
um início ideal universal – a ideia de vontade livre – que é imediatamente Direito, porém
articulado na própria determinação negativa: a primeira determinação é a pessoa jurídica, ação
concreta do indivíduo e consiste na decisão subjetiva que é assim, sendo imediata
negatividade, a cifra da objetividade, ou seja, o signo tanto do primado da ideia quanto da sua
não imediata efetividade. Esta objetividade é para Hegel mediações politicas e sociais nas
102
Sobre isso, cf. KERVÉGAN, 1992, p. 184 et seq. Schmitt utiliza a argumentação hegeliana com o intuito de
fundamentar sua tese da separação entre liberalismo e democracia, cf. VL, p. 253 “Das deutsche Wort 'Bürger'
umfaßt beide Bedeutungen: citoyen und bourgeois. Der Gegensatz der beiden Bedeutungen ist aber so groß wie
der Unterschied eines unpolitischen ethischökonomischen Liberalismus von Demokratie, die ein rein politischer
Begriff ist. Die erste und wichtigste Äußerung über den Bourgeois als Gegenbegriff gegen den in der politischen
Sphäre existierenden Staatsbürger findet sich bei dem jungen Hegel in der Schrift über die wissenschaftlichen
Behandlungsarten des Naturrechts”.
103
Sobre a filosofia do Direito de Hegel cf. D. HEINRICH/ R.P. HORSTMANN (Hrsg.), 1982; DREIER, Ralf,
1981, p. 316-350; RITTER, Joachim. 1988, p. 183-317; LEBRUN, 1988, p. 65-112.
189
O real é de fato compreendido por Hegel como objetivação e vida ética do ideal; esta
tem início imediatamente de si e sua objetivação – o Estado – é, enquanto em si
mediada, infundado e se exprime adequadamente na decisão imediata da
subjetividade do soberano. O máximo de idealismo (o primado lógico da ideia)
implica na realidade no máximo de realismo (o primado lógico do Estado) e também
o máximo desenvolvimento da contingência da política (...) que se exprime na
idealidade da decisão soberana do monarca; que esta seja o apogeu do Estado
significa na realidade que na soberania se manifesta a incompletude do princípio da
política. A soberania, em Hegel, não é construída, mas resulta da relação imediata
entre ideia e contingência: a soberania é a existência do Estado (GALLI, 2010, p.
21-22).
Nos Grundlinien des Rechtsphilosophie, este problema da relação entre mediação e
imediação é solucionado na figura do Estado, pois este seria tanto mediatidade quanto a
própria imediatidade e, por conseguinte, superior ao racionalismo moderno, pois o Espírito
seria a forma absoluta da mediação concreta, a conciliação entre subjetividade e objetividade.
Na seção Sittlichkeit, Hegel afirma que o Estado é uma realidade complexa, um Inteiro
(Ganze) e sua unidade substancial não pode ser nem conhecida da opinião pública nem
construída pelo racionalismo, visto que o Estado para Hegel está em uma relação específica
com a sociedade civil, sendo esta na verdade uma bürgerliche Gesellschaft. Para Hegel, a
sociedade civil é um sistema de necessidade que media a subjetividade imediata em uma
atividade de negação que é o trabalho na sua forma moderna; sociedade seria o sistema da
eticidade perdido no seu próprio extremo; lugar (sociedade) onde se manifesta a dialética do
trabalho alienado do sujeito singular e a separação moderna entre indivíduo privado,
indivíduo social e esfera política. Enquanto a sociedade política dos antigos se constituia
190
como esferas nas quais haveria uma complexa ordem dada, o racionalismo moderno teria a
pretensão de construir a partir do contrato o universal através do sujeito e da sociedade civil.
Para Hegel, a sociedade civil se abre para o universal na articulação com o Stände através da
qual se organiza em uma primeira presença do universal, uma primeira saída do sujeito da
própria particularidade através de uma mediação social pela representação parlamentar. O
parlamentarismo não configura uma massa informe de indivíduos atomizados e abstratos, mas
a objetividade da esfera essencial da sociedade. Assim, dá-se o momento subjetivo da
liberdade universal necessário ao Estado moderno e que lhe dá superioridade diante da "bela
eticidade" dos Antike como uma volição do universal por parte dos singulares104.
Nesse sentido, a contingência contida na negatividade vem reconhecida no
pensamento especulativo hegeliano como contingência da Ideia e, por conseguinte, a origem
não racional é submetida ao movimento da negatividade que constitui a conciliação entre
subjetividade e objetividade, ou seja, do Espírito absoluto como mediação concreta. Apesar da
concretude do Espírito objetivo, a contingência do Dasein não se torna originária uma vez que
a presença do Espírito absoluto na história é pressuposta na ciência especulativa. A
negatividade não empurra Hegel, como faz com Schmitt, para o âmbito do entendimento
assumindo a decisão ou o conflito como originários. Mais uma vez, Galli é preciso:
104
Sobre a noção de representação em Hegel e Schmitt, cf. por todos, KERVÉGAN, 1992, p. 263269; 284-316.
105
HEGEL, Rph, § 255, p. 396-397; §256, p. 397-398; “In der Wirklilchkeit ist darum der Staat überhaupt
vielmehr das Erste, innerhalb dessen sich erst die Familie zur bürgerlichen Gesellschaft ausbildet, und es ist die
Idee des Staates selbst, welche sich in diese beiden Moment dirimiert; in der Entwicklung der bürgerlichen
Gesellschaft gewinnt die sittliche Substanz ihre unendliche Form, welche die beiden Momente in sich enthält: 1.
der unendlichen Unterscheidung bis zum fürsichseienden Insichsein des Selbstbewußtseins, und 2. der Form des
191
Allgemeinheit, welche in der Bildung ist, der Form des Gedankens, wodurch der Geist sich in Gesetzen und
Institutionen, seinem gedachten Willen, als organische Totalität objektiv und wirklich ist”.
106
Acerca da aproximação entre Schmitt e Hegel, KERVÉGAN (1992, p. 143), afirma que “la référence à la
philosophie hégélienne joue un rôle determinant dans la constitution même de la problématique de Carl Schmitt
et dans la définition de ses lignes de force. Il n'est pas question de faire de Schmitt un 'hégélien'. Il se réclame
plutôt de Hobbes (…) En revanche, on peut considérer que l'appropriation critique des outils que la conceptualité
hégélienne peut offrir à une théorie positive du droit et de l'État est, du point de vue même de Schmitt, partie
intégrante de son travail de juriste”; porém, mais adiante, o autor arremata ao assinalar, por outro lado, a
distinção entre o jurista e o filósofo: “l'oevre de Schmitt vise à être l'accomplissement, sur le terrain de la
positivité et dans des conditions éthico-politiques profondément modifiées, des position fondamentales de la
philosophie hégélienne du droit et de l'Etat” (1992, p. 145).
192
através das grandes Guerras Mundiais e do advento da técnica; na esfera lógica, cuja ciência
jurídica e política diante da impossibilidade da racionalização da experiência realiza tentativas
de dedutibilidade formal do real; e nas relações políticas marcadas, por sua vez, pela
insuficiência do sistema parlamentarista em vista das contradições do mecanismo
representativo moderno, pelo anacronismo do Estado de Direito diante da democracia de
massas e da emergência dos tempos da técnica e da indústria no século XX.
A crítica de Schmitt ao racionalismo moderno ataca a tese que estabelece a noção de
subjetividade – ou individualidade em termos ético-políticos – como a mediação necessária e
universal através da qual se fundamenta a ordem e o direito da associação política. Nestes
termos, para Schmitt, o problema da Vermittlung significa o problema da legitimação de uma
ordem, pois o argumento principal é que, nesta fase inicial do seu pensamento marcado pela
busca da mediação racionalista fora do sujeito, o mecanismo de mediação é fático, porém
busca sua validade na medida em que consegue representar a forma abstrata. O problema
lógico, político e filosófico da mediação e da forma racional se expressa no pensamento de
Schmitt através da busca desse meio capaz e articular coerentemente validade e faticidade,
como representação. Em termos gerais, Schmitt discorda da mediação moderna como relação
racional que o sujeito institui com o objeto e com o qual determina a produção de ordem e
conhecimento, pois, para ele, a mediação entre ser e dever-ser se dá, na verdade, inicialmente
no Estado; após, porém, na denominada teoria da exceção, a mediação dar-se-ia através da
categoria da Entscheidung: o autor abandona o formalismo proveniente do idealismo
transcendental e do contratualismo, bem como as teses hegelianas e passa a apostar em uma
instância concreta que estabelece a ordem fática sustentando sua legitimidade a partir de uma
ordem de direito, tornando-se uma ordem ou Estado de direito ou ainda uma decisão concreta
sobre a forma de direito.
A mediação racionalista moderna é, sobretudo, uma grandeza subjetiva, ou seja, a
ação do sujeito é criadora da representação: produção e construção da imagem racional do
mundo sustentada por uma concepção subjetivista que concede sentido e ordem à realidade, à
questio facti – um mundo sem nenhuma configuração ou ordem prévia e, portanto, submetido
à capacidade ordenativa do sujeito cuja qualificação é posterior e determinante. A realidade
seria um apanhado de fatos brutos enquanto a atividade racional do sujeito se constituiria no
fator capaz de organizá-la. Nestes termos, a forma moderna de mediação assume como
condição necessária a ausência de substância, isto é, a objetividade do mundo moderno seria
uma ordem racional artificial, uma ordem produzida que deixa ausente ou inacessível o parti
pris da metafísica moderna que pretendiam ser capazes de maneira imediata das relações ou
195
* * *
A teoria normativista de Schmitt em Der Wert des Staates und die Bedeutung des
Einzelnen considera o primado do direito sobre o Estado, pois este ao se manifestar na esfera
fática do poder necessita qualificar-se como legítimo a partir da referência àquele, alcançando
sua justificação (Rechtfertigung). O paradigma da mediação racionalista moderna, tal como
descrito a pouco, é rejeitado por Schmitt inicialmente através das obras Über Schuld und
Schuldarten (1910) e Gesetz und Urteil (1912), depois, com maior ênfase, em sua fase ainda
racionalista ou formalista, em Der Wert des Staates (1914) até sua elaboração mais madura
em Die Diktatur (1921) e Politische Theologie (1922) quando abandona e critica tanto a
procedência kantiana quanto a hegeliana e desenvolve, segundo a interpretação que se faz a
seguir, um realismo fraco em teoria política. O problema é descrito como a exaustão do
modelo juspositivista, especificamente o logicismo kelseniano, que distingue realidade e
norma, tornando-se impotente diante da Rechtsverwirklichung – constituição da realidade
conforme o direito – além das críticas à legalidade estritamente formalista e a tese da ausência
de lacunas do ordenamento jurídico108. A tarefa imposta nesta fase do pensamento schmittiano
108
GU, pp. 4-9; contra o neokantismo, cf. WSBE, p. 60-66.
198
consiste na articulação de uma forma concreta com a exigência da Ideia de direito abstrata a
partir de um momento da negatividade. De forma geral, a tentativa do autor é pensar a política
a partir de uma origem comum que vincule Macht e Recht sem recair nas unilateralidades
representadas seja pelo realismo tradicional (Machtpolitik) seja pelo racionalismo (na forma
de um normativismo). A aporia da modernidade impõe como exigência a reflexão sobre uma
nova relação entre razão e forma política que nem a mediação racionalista nem a mediação
dialética através dos conceitos de sujeito e de Estado conseguem dar conta diante das críticas
a tais paradigmas, resultando no descrédito da política como Recht, ou seja, da forma racional
moderna do Estado de direito como juridificação da realidade social e política.
O argumento do Der Wert des Staates é expresso no trecho: “o direito como norma
pura, possui valor, independentemente de qualquer justificação fática”109. Na medida em que
sustenta essas duas esferas, Schmitt propõe o Estado como a instância concreta que possui a
tarefa da realização do direito ao captar a ideia de direito e torná-la efetiva na realidade do
mundo empírico de modo que na série de elementos proposta – Direito, Estado e Indivíduo –
o medium estatal articula adequadamente aquelas outras duas esferas, o ideal jurídico e o
empírico individual110. Assim, Schmitt afirma a tese do primado do direito sobre o Estado ao
defini-lo – isto é, justificá-lo – se e somente se estiver em relação com a norma pura que o
precede111. Esta tese racionalista leva a outra ainda mais radical, qual seja, a de que há uma
separação entre direito e ética, ou melhor: a norma jurídica torna-se heterônoma, pois é o
Estado e não o indivíduo que se torna fundamento da vida pública. Consequentemente, na
filosofia do direito público e do Estado na fase pré-weimariana do jovem Schmitt, há uma tese
lógico-normativa problemática a qual assevera que não há Estado que não se configure como
Estado de direito112, expressando o insuperável abismo entre norma pura e sua realização,
entre direito e fato, diferença entre direito e poder como o antagonismo fundamental que
109
O trecho inteiro em WSBE, p. 10 afirma: “Das Recht, als reine, wertende, aus Tatsachen nicht zu
rechtfertigende Norm stellt logisch das erste Glied dieser Reihe dar; der Staat vollstreckt die Verbindung dieser
Gedankenwelt mit der Welt realer empirisches Einzelwesen, verschwindet, um vom Recht und dem Staat, als der
Aufgabe, Recht zu verwirklichen, erfaßt zu werden und selbst seinen Sinn in einer Aufgabe und seinen Wert in
dieser abgeschlossenen Welt nach ihren eigenen Normen zu empfangen”.
110
Sobre a reconstrução dos argumentos de Schmitt contidos no texto WSBE, inclusive sobre o paralelismo entre
Schmitt e Kelsen, cf. HOFMANN, 2002, p. 38-46. WSBE, p. 56 “Welche Bedeutung dem staatlichen Gesetz
dabei zukommt, wird sich aus der Erklärung des Staates ergeben müssen, ebenso wie die Gliederung der Werte,
in der Recht, Staat und Individuum durch die zur allgemeinsten Grundlagen genommene Vorherrschaft des
Rechts gruppiert werden. In der Mitte dieser Dreiteilung steht der Staat”.
111
WSBE, p. 50 “Das heißt, da eine solche Gesetzlichkeit nur im Recht gefunden werden kann, daß das Recht
nicht aus dem Staat, sondern der Staat aus dem Recht zu definieren, der Staat nicht Schöpfer des Rechts, sondern
das Recht Schöpfer des Staates ist: das Recht geht dem Staate vorher”.
112
WSBE, p. 52 “Damit ist der Primat des Rechts begründet. Die lediglich faktische Gewalt vermag sich an
keinem Punkte zu irgend einer Berechtigung zu erheben, ohne eine Norm vorauszusetzen, an der sich die
Berechtigung legitimiert”.
199
apenas o fenômeno empírico (empirische Erscheinung) pode vir a comprovar tal poder (…) a
autoridade do Estado reside, porém, não no poder, mas sim no direito, que o traz e o realiza
(Ausführung)”113. Assim, por conta da necessidade de adequação entre estas instâncias, a
tarefa do poder de realizar a norma de direito consiste em uma representação, mesmo que a
forma de direito ideal nunca seja realizada por completo e, por isso mesmo, haja uma
impossibilidade, em última instância, da realização da justiça. A tese da separação entre a
universalidade da norma e a particularidade da realidade empírica expõe um meio, o Estado,
que põe em marcha a secularização no sentido de uma mediação entre um elemento
transcendente e o saeculum ao operar a introdução da ideia no mundo, isto é, a estrutura
metafísica entre ser e aparecer que serve de paradigma formal da legitimação da ação política
através do mecanismo da representação. Este é o teorema da secularização para Schmitt:
busca-se efetivar a forma ou ideia de direito. Por meio desta função legitimadora da ordem, o
positivismo é rejeitado como mera autoafirmação dos fatos, da subjetividade ou do arbítrio,
ou seja, como uma instância da contingência e, por isso, mostra sua incapacidade de validação
da ação política, embora se reconheça que a separação pressuposta entre ideal e empírico é
resolvida apenas parcialmente pela representação da forma através do Estado de direito. Esta
é uma tese dualista (não há efetivação do ideal no concreto) e normativista (anterioridade e
superioridade da forma) que, numa primeira leitura – da ação racional legitimadora entre
normas de direito e normas de realização de direito e primazia daquelas – mostra-se estranha
ao desenvolvimento posterior do realismo schmittiano, mas que prepara o contexto inicial
para a compreensão dos argumentos da exceção, decisão, político, etc., pois apresenta as
questões trazidas pela separação assumida entre imanência e transcendência.
Entretanto, neste texto de 1914, apesar de formalista, Schmitt já desenvolve uma
estratégia finitista. A tese racionalista possui como contrapartida uma proposta de corruptela
do jusnaturalismo que altera significativamente a concepção de direito pressuposta. Trata-se
de um peculiar Naturrecht ohne Naturalismus (direito natural sem naturalismo), isto é, o
direito seria uma estrutura formal carente de poder para a determinação do seu conteúdo. Em
outras palavras, haveria apenas a exigência da forma de direito, mas não um conteúdo pré-
determinado. Assim, embora a organização do poder fático se justifique através da vinculação
à forma do direito pré-estatal, a determinação do conteúdo é concreta e, por isso, contingente.
Esta estrutura seria um desvio em relação ao normativismo ou à limitação do poder seja
113
O trecho inteiro está em WSBE, p. 71: “Zum Begriffe des Staates gehört daher die Macht, so daß nur die
empirische Erscheinung Staat gennant werden darf, die solche Macht bewährt (…) Die Autorität des Staattes
liegt trotzdem nicht in der Macht, sondern im Recht, das er zur Ausführung bringt”.
201
através do direito natural seja através do constitucionalismo moderno: uma espécie de Razão
de Estado racionalista, uma vez que apesar da representação da ideia de direito, qualquer
conteúdo poderia ser posto. O argumento de Schmitt segundo o qual a ordem seja
determinada pelo Estado que teria a prerrogativa de efetivar seus conteúdos desde que os
constituísse como ordem jurídica também se diferenciava do positivismo jurídico já que
conservava uma instância não empírica como fundamento da validade estatal. Apesar do
decisionismo precoce e da necessidade de distinguir-se do positivismo, o pressuposto
schmittiano do direito natural força o autor a reconhecer em Der Wert des Staates uma ordem
racional superior e anterior ao poder. Esta transcendência ao poder caracteriza um
normativismo ou, na melhor das hipóteses, um tipo de realismo fraco, pois a estrutura da
mediação moderna exige a compreensão da ação política vinculada à cisão transcendência-
imanência da razão e do poder, isto é, a legitimidade ainda é compreendida como adequação
entre ação e direito que Schmitt assume como pressuposto: ordem e unidade da representação
por meio de um princípio normativo114.
Apesar disso, ainda na teoria pré-weimariana, surge uma concepção de ação política
deslocada do paradigma da transcendência. A solução da mediação racionalista assegura
apenas formalmente a legitimidade e a unidade da ordem a partir da representação de uma
instância externa ou configuração de uma forma na realidade concreta, mas não dá conta da
cisão entre instância da validade e da faticidade: mantém-se o problema da indeterminação
entre universal e particular. Schmitt assume a diferença entre as instâncias, o ideal como
separação do real e neste, ausência e perda irrecuperáveis – aliás, este diagnóstico do hiato
insolúvel entre as esferas será um dos argumentos centrais na transição de sua teoria e,
posteriormente, afirmação do político como finitude, como demonstramos no capítulo 3. A
particularidade da ação não guarda continuidade necessária com a racionalidade; pelo
contrário, a ideia de direito demonstra e realça a contingência e descontinuidade entre
transcendência e imanência. A contingência da validade da ordem política vincula a ação
política (quantidade de força) à exigência de ordem para ser considerada autoridade e justiça
(qualidade do direito). No entanto, cada vez que tenta aproximar estas instâncias mais se
arrisca a dissolução da segurança jurídica e da estabilidade institucional ao perceber a
diferença entre direito e decisão política ou entre racionalidade e ação como distintas da
lógica da subsunção. Neste contexto, Schmitt sacrifica o conceito de político e lança mão de
114
Neste trecho, assumimos em parte a interpretação de Alexandre Sá (SÁ, 2003). Embora o scholar português
tenha uma leitura original ao perceber um decisionismo já no Der Wert des Staates justificado racionalmente,
acredito que a matriz normativa ainda é fundamental na fase pré-weimariana. Sobre isso, nosso capítulo anterior
e seção 2.2 e 2.3 deste capítulo.
202
uma solução normativa diferente segundo a qual o Estado seria, necessariamente, uma função
da secularização, ou seja, o único meio pelo qual o direito pode ser realizado e, ao realizá-lo,
transforma ordem em ordem jurídica através da mediação racional como processo legitimador
do poder que passa a ser revestido com o atributo de soberania: afinal, surge o argumento da
progressiva concretização da matriz teológica que desempenhará papel importante na sua
teoria política.
A partir disso, o jurista alerta para o perigo de determinação da ordem fora do direito,
isto é, determinação a partir da imanência, contra a “força normativa do fático” característica
do positivismo. Para ele, ao afirmar a secularização, a ação exige a distinção entre forma e
experiência, através da qual consegue o critério da racionalidade do poder. Assim, ao manter a
distinção entre universal e particular, Schmitt por um lado justifica o Estado a partir da ideia
de direito mesmo ao preço de uma cisão irrecuperável entre as instâncias; por outro, cai numa
armadilha incômoda, pois considera a força ou a violência (a ação política) – portanto um
modo da faticidade – como determinante na realização da ideia e, ao concretizá-la, força
legítima. O critério para validade se dá quando a força nega-se como faticidade e representa
na experiência a dimensão ideal ao realizar o direito. Esta forma abstrata, no entanto, depende
de uma força contingente que se impõe para realização do direito, porém prossegue, mesmo
legitimada, ainda como força ou violência autorizada: não soluciona, antes alarga ainda mais a
separação entre realidade e ideia. Não há identidade entre ser e aparecer, nem a pressuposição
de que a violência seria apenas o início externo ou fenomenal dos Estados e não seu princípio
substancial, pois, diferentemente de Hegel, a mediação do Estado não soluciona o caráter
contingencial da realidade, a cisão entre ideal e real continua para Schmitt uma vez que a
mera quantidade de poder não se torna legitimidade: há separação entre poder e direito que a
mediação racionalista não soluciona. Daí a importância da estrutura representativa e da
secularização como relação entre metafísica e política uma vez que a transcendência garante
unidade e legitimidade à ação estatal que ordena e representa o universal no particular,
enquanto a realidade prossegue marcada pela negatividade, pois o direito é contrafático e o
político um modo de instituição e representação da ideia. Este argumento do finitismo ou da
separação entre transcendência e imanência desempenhará um papel cada vez maior na
argumentação schmittiana; bem como, a noção de ausência (normativa) será retomada em
outro nível: a indeterminação entre as instâncias demonstra a impossibilidade da decisão a
partir da norma e, posteriormente, é tratada através do argumento da decisão fora da lei ou
exceção. Mesmo com o esforço de uma justificativa racional para a ação e autoridade do
Estado, o argumento finitista problematiza a relação entre imanência e transcendência e
203
instaura um ceticismo quanto às teorias políticas normativas que explica, sob a hipótese
proposta, a ruptura das obras seguintes no final da década de 1920.
Esses argumentos e teses colhidos no texto de 1914 empresta às investigações
realizadas até aqui a seguinte posição de partida: há em Schmitt o reconhecimento da
contraposição entre ser e dever-ser, poder e direito, imanência e transcendência como
instâncias incomunicáveis, separadas de maneira a produzir um dualismo fundamental que
concede, no máximo, uma representação da ideia no mundo. Entretanto, esta dualidade é
parcialmente solucionada pela concessão do primado do direito como idealidade e da norma
pura diante do momento da negatividade. Tal instância abstrata empresta ao Estado sua
Rechtmäßigkeit (legitimidade), pois a organização do poder fático só alcança sua justificação
através da vinculação ao direito como norma pura pré-estatal que diante do momento da
negatividade da decisão concreta estatal sobre a forma jurídica torna-se efetiva, mesmo que de
uma maneira não necessária, pois em Schmitt, diferentemente de Hegel, esta forma jurídica é
abstrata, mas sua concretização é um ato de decisão soberano (Akt souveräner Entscheidung)
de representação desta forma abstrata como forma concreta, porquanto o momento do Estado
é marcado pela contingência radical da esfera fática. Assim, faz sentido a declaração de
Schmitt que “entre cada concreto e cada abstrato há um abismo insuperável” 115. Como
consequência, Schmitt admite que a realidade fática seja conformada de acordo com o
imperativo da realização do direito, sobretudo, no que concerne à ordem pública, sua
constituição conforme a regra universal e abstrata que deve, necessariamente, conduzir-se
como mediador e garantidor do direito.
* * *
115
WSBE, p. 80: “Zwischen jedem Konkretum und jedem Abstraktum liegt eine unüberwindliche Kluft”.
204
116
No ensaio Diktatur und Belagerungszustand de 1917, Schmitt já avistara a dimensão do problema entre
normas de direito e normas de realização de direito que pressuporiam uma situação fática propícia ao
ordenamento pelo Estado a partir daquelas normas. Entretanto, quando há uma situação de sítio ou de exceção
não é possivel seguir tal regra racionalista.
205
ordem política como co-pertencimento entre violência e forma que, afinal de contas,
possibilita a ordem jurídica, mesmo pressupondo ainda uma estrutura bipolar entre imanência
e transcendência.
Nesse sentido, após a investigação da consistência da mediação racionalista e da
reprovação da sua capacidade de elaborar em uma forma jurídica a articulação entre
concretude e Ideia, a rigor, a estrutura moderna estaria obliterada nesta clivagem originária;
ao invés, segundo ele, é necessário buscar em uma forma concreta o nexo entre
particularidade e universalidade que conforme os textos da Die Diktatur e Politische
Theologie estaria co-implicados no momento da exceção através da figura da Souveranität
(soberania), pois em contraposição ao dualismo entre transcendentalismo e historicismo, na
teoria da soberania Schmitt propõe o nexo entre faticidade e validade a partir da relação entre
decisão sobre o caso de exceção e representação da ideia de direito. Nestes termos, o autor
consegue superar a tese positivista ao articular uma forma jurídica originalmente política, pois
vincula ideia de direito e realidade concreta a partir da negatividade como a seguir se
demonstra.
não juridicidade. Neste contexto, nos escritos posteriores ao de 1914, Schmitt continua o
esforço na proposta de uma teoria jurídico-política (filosofia do Estado e do direito e teoria do
poder) que realize a ideia de direito e consiga auferir sua legitimidade a partir da idealidade
abstrata das normas, porém com algumas modificações fundamentais que vão configurar um
novo topoi: o novo argumento desloca a investigação da norma abstrata e da norma de
realização do direito para a consideração das situações fáticas que permitem tal realização. De
fato, apoia-se em uma concepção carregada por um realismo, porém moderado ou fraco e
adquire significado e relevância na elaboração no texto de 1921 Die Diktatur sobre o conceito
de ditadura (comissária e soberana) e, de forma mais explícita no texto da Politische
Theologie de 1922117.
Após isso, Schmitt conduz suas discussões até a elaboração do conceito de exceção
(Ausnahmen), isto é, uma situação onde fático e normativo se indistinguem, tornando-se,
entretanto, a condição de possibilidade concreta para a efetivação da ordem. Dessa maneira,
ocorre um deslocamento semântico do termo Entscheidung: no seu duplo significado
constante de origem da ordem e de manutenção da ordem, é inserido no interior do direito
como um dispositivo mediador entre norma e realidade que desempenha tanto a função de
mediação originária não normativa que captura o ideal jurídico para realizá-lo no mundo
empírico quanto a função de manutenção ou criação da ordem concreta no caso crítico
(Ernstfall), pois uma norma jurídica pressupõe uma normalidade fática. Apesar de solucionar
a questão da mediação entre ser e dever-ser ao propor um nexo constitutivo originário entre
forma jurídica e realidade concreta (konkreten Wirklichkeit), a teoria schmittiana da exceção
revela, para todos os efeitos, o conceito de Entscheidung como algo que estabelece a ordem
jurídica, no interior do direito, porém fora da história. Embora não seja deduzível
racionalmente de um fundamento normativo-abstrato – pois a exceção significa uma situação
fática de indistinção entre situação de fato e situação de direito, quaestio iuris e quaestio facti,
a partir da qual se requer a decisão e através da qual se dá a legitimidade fática do poder –
esta se mostra exterior à imanência da constituição e da experiência histórico-política, pois,
em última instância deve sua configuração jurídica à ideia de direito. E mais: a justificação da
validade da ordem nunca se dá a partir da esfera fática – pressuposto – mas apenas da relação
que ainda perdura entre normas de direito e normas de realização de direito que, afinal,
117
É necessário observar que já no texto de 1914 há uma continuidade entre o uso da temática da Dezision e o
pensamento posterior de Schmitt, ou seja, a relação entre a decisão concreta e o horizonte da ideia de direito.
Evidentemente, em Politische Theologie a decisão a que se refere Schmitt – seja Dezision seja Entscheidung –
desempenha um papel cada vez maior tornando-se, diferentemente, por exemplo, do texto de 1912 Gesetz und
Urteil e do texto de 1914 Der Wert der Staates und die Bedeutung des Einzelnen, para a constituição da ordem e
da forma jurídico-política.
207
emprestam sua legitimidade, no fundo, ainda racionalista. Assim sendo, a seguir são
analisadas as teses do autor em relação ao seu realismo fraco ou moderado.
(I)
118
DD, p. XVIII: “Abstrakt gesprochen, wäre das Problem der Diktatur das in der allgemeinen Rechtslehre
bisher noch wenig systematisch behandelte Problem der konkreten Ausnahme“.
119
DD, p. XVIII: "Gerade aus dem, was sie rechtfertigen soll, wird die Diktatur zu einer Aufhebung des
Rechtszustandes überhaupt, denn sie bedeutet die Herrschaft eines ausschließlich an der Bewirkung eines
konkreten Erfolges interessierten Verfahrens, die Beseitigung der dem Recht wesentlichen Rücksicht auf den
entgegenstehenden Wille eines Rechtssubjekts, wenn dieser Wille dem Erfolg hinderlich im Wege steht;
demnach die Entfesselung des Zweckes vom Recht".
120
DD, p. XVIII-XIX: "weil alles berechtigt wird, was, unter dem Gesichtspunkt des konkret zu erreichenden
Erfolges betrachtet, erforderlich ist, bestimmt sich bei der Diktatur der Inhalt der Ermächtigung unbedingt und
ausschließlich nach Lage der Sache; daraus entsteht eine absolute Gleichheit von Aufgabe und Befugnis,
Ermessen und Ermächtigung, Kommission und Autorität".
208
fundamentada por nenhuma norma, mas apenas pela necessidade fática do caso concreto.
Dessa argumentação decorre o paradoxo da exceção o qual afirma que para a realização das
normas de direito é necessário a ação soberana na realidade empírica que, paradoxalmente,
suspende as normas de direito para torná-las efetivas em um momento posterior depois do
reestabelecimento da ordem fática. O problema da ditadura torna-se, portanto, o problema da
exceção concreta (DD, p. XVII).
A ditadura não se confunde com despotismo ou tirania: os poderes extraordinários
exercidos objetivam a criação da situação fática onde o direito possua vigência. Apesar da
contraditória característica de não possuir circunscrição legal, a ditadura recebe uma tarefa,
qual seja, a construção das condições nas quais o direito possa ser efetivado. No entanto, por
esse motivo, não é possível definir juridicamente as ações do ditador nessas condições, pois a
delimitação jurídica neste caso faz-se insuficiente, já que a ditadura é uma “comissão de ação
121
determinada pela situação das coisas (Sachlage)” , por isso, a ação do ditador é
determinada pela natureza das coisas e não por normas de direito, ou seja, regra-se pela
necessidade imediata que se depara para eliminar a obliteração ao direito. Qualquer recurso
ou meio pode ser utilizado para afastar a pertubação da ordem fática – verdadeiro pressuposto
das normas de direito – o que caracteriza uma postura que se denomina aqui de cratológica,
pois enfatiza as relações de ação e de poder fáticos, porém com um horizonte jurídico, já que,
por um lado, a ditadura é compreendida por Schmitt como um instituto de direito público não
determinado juridicamente, mas sim baseado na natureza das coisas ou dos fatos com que se
depara; por outro, tal ação estabelece como objetivo a ordenação fática, uma vez que a “noção
de um adversário concreto, cuja eliminação é o que há de mais próximo de uma delimitação
do objetivo da ação (…) a delimitação de que se trata aqui não é uma apreensão dos fatos
122
através dos conceitos de direito, mas uma determinação puramente fática” . Isso significa
que não é possível enquadrar a realidade concreta dentro de normas e institutos legais, pois na
ditadura há uma suspensão do direito com o intuito de garantir os pressupostos fáticos da
validade do próprio direito: a ditadura faz referência apenas à realidade concreta, aos fatos
que determinam a autoridade na execução das medidas marcadas pela necessidade, pois se
justifica tudo que é necessário do ponto de vista do resultado concreto a ser alcançado que
121
O trecho inteiro é DD, p. 134: “Gerade solche Ausnahmen aber gehören zum Wesen der Diktatur und sind
möglich, weil es sich bei ihr um eine nach der Sachlage bestimmte Aktionskommission handelt”.
122
DD, p. 132: “Aber ihm fehlt das, was der Aktion ihren präzisen Inhalt gibt, nämlich die Vorstellung eines
kokreten Gegners, dessen Beseitigung das nächstumschriebene Ziel der Aktion sein muß. Die Umschreibung,
um die es sich hier handelt, ist keine tatbestandsmäßige Erfassung durch Rechtsbegriffe, sondern eine rein
tatsächliche Präzisierung”.
209
caracteriza fundamentalmente a ação ditatorial como uma ação técnica visando um fim
determinado.
No entanto, o significado da ditadura sofreu transformações a partir da Revolução
Francesa e na teoria marxista-leninista, pois passou a designar o fundamento da única ordem
legítima. Neste mesmo texto, atento às transformações semânticas, Schmitt utiliza uma
distinção fundamental entre ditadura comissária e ditadura soberana (kommissarischer und
souveräner Diktatur) para esclarecer essa situação. Enquanto a ditadura comissária recebe a
tarefa de restituir a ordem pública existente diante de um caso de ameaça interna ou externa
(por exemplo, uma guerra civil ou uma invasão das fronteiras por outro Estado) que, por isso,
provoca a suspensão da ordem jurídica e os poderes extraordinários do ditador para a proteção
da ordem, a ditadura soberana obecede a outra lógica: é sua função, ou melhor, sua finalidade
a constituição de uma nova ordem, pois se, por um lado, a ditadura comissária é uma
instituição, depende de uma constituição já existente e, por conseguinte, é estabelecida a partir
da ordem pré-existente, embora dela não receba legalidade, mas apenas a previsão ou
reconhecimento legal de que a norma é incapaz de agir no caso concreto e, por isso mesmo,
autoriza a ação ditatorial para sanar a situação problemática, por outro, a ditadura soberana
possui plena liberdade de proceder de maneira efetiva na criação de um novo ordenamento
constitucional tal como um pouvoir constituant. O ditador soberano, segundo Schmitt, dita ao
povo as leis sem estar vinculado a limites normativos, porém apesar disso não carece de
legitimidade, pois sua legitimidade é engendrada a partir da sua ação na situação concreta: de
modo geral, o conceito de ditadura significa a ação que visa a um fim, no caso, ao estado de
direito, mesmo que tal estado seja a negação desse meio.
O que torna semelhante os dispositivos é a relação com o direito, ou seja, a decisão
nestes casos se revela enquanto elemento constitutivo da ordem, e mais: a exceção torna-se
articulada ao momento da realização do direito (Rechtsverwirklichung) e a tese segundo a
qual uma norma para ser válida deve assumir um caráter geral e juridificar a realidade
empírica revela sua necessidade de que a situação a ser governada possua uma previsibilidade
e regularidade, pois:
se, em tempos normais, o meio para alcançar um resultado concreto pode ser
calculado com certa regularidade, no caso de necessidade, podese apenas dizer que o
ditador está autorizado a fazer precisamente tudo o que é necessário conforme a
situação das coisas. Aqui não importam mais as considerações jurídicas, mas apenas
o meio adequado para um resultado concreto no caso concreto (...) Aqui também o
procedimento pode ser falso ou correto, mas essa apreciação refere-se apenas ao fato
210
123
DD, p. 11: “Denn wenn das konkrete Mittel zur Erhaltung der öffentlichen Sicherheit tun darf, in normalen
Zeiten mit einer gewissen Regelmäßigkeit berechnet warden kann, so läßt sich für den Notfall nur sagen, daß der
Diktator eben alles tun darf, was nach Lage der Sache erforderlich ist (…) Auch hier kann das Vorgehen falsch
oder richtig sein, aber diese Beurteilung bezieht sich nur darauf, ob sie zweckmäßig sind”.
124
DD, p. 134: “Die souveräne Diktatur sieht nun in der gesamten bestehenden Ordnung den Zustand, den sie
durch ihre Aktion beseitigen will. Sie suspendiert nicht eine bestehenden Verfassung kraft eines in dieser
begründeten, also verfassungsmäßigen Rechts, sondern sucht einen Zustand zu schaffen, um eine Verfassung zu
ermöglichen, die sie als wahre Verfassung ansieht. Sie beruft sich also nicht auf eine bestehende, sondern auf
eine herbeizuführende Verfassung”.
211
ordem jurídica e libera parcialmente a ação política da carga normativa uma vez que,
paradoxalmente, a ditadura ignora o direito para realizá-lo125.
A origem da ordem de direito e sua aplicação na realidade concreta levanta outro
problema ainda mais fundamental, qual seja, a relação entre forma e violência para a
constituição de uma ordem normativa. A origem não racional da ordem resultaria, inclusive,
na radical afirmação de que, necessariamente, caso se queira efetivar uma justiça normativa
na realidade concreta, deve-se agir contra o direito: a realização do direito pressupõe sua
própria negação/suspensão. Nesse ponto, ao invés de relações estritamente jurídicas, tem-se
relações políticas, pois já no texto de 1921, segundo Schmitt, o estado de exceção é um estado
do conflito que inviabiliza qualquer contexto normativo, pois corresponde a um nada de
direito. Na ditadura, portanto, há o paradoxo de que a validade da ordem jurídica pressupõe
uma situação de fato na qual regras de direito não se aplicam, pois justamente através dessa
situação de exceção há a possibilidade de efetivação concreta do direito, já que como exceção,
ela se mantém em uma dependência funcional em relação àquilo que nega. Se é correto, como
Schmitt afirma, que a ditadura soberana provoca ruptura e criação da ordem, uma vez que
ignora, é certo, o direito, mas apenas para realizá-lo, por outro lado, tal situação não é
propriamente a-jurídica, pois “a ditadura é um problema da realidade concreta sem deixar de
ser um problema jurídico”126 e, assim, a ação do ditador é legitimada pela existência de uma
autoridade capaz de suspender o direito e, por conseguinte, estabelecer a exceção concreta,
portanto, seria justificada por uma grandeza política (fático-existencial ou pragmática) e não
por uma norma ou ordem jurídica, pois a dimensão política da finitude desempenha a função
de fundamento último de validade da ordem jurídica. Entretanto, como esse poder constituinte
é ininstitucionalizável e irrepresentável – isto é, ao mesmo tempo em que estabelece e funda a
ordem, permanece subjacente à ordem criada e possui, na verdade, uma potência constituinte
inesgotável – torna a ordem instável e sempre contingente em sua matriz originária mesmo
que se refira em última instância à realização do direito. O problema do texto de 1914 entre
normas de direito e normas de realização do direito, pressupondo o Estado como mediador,
resulta no texto de 1921 na solução através da qual o pressuposto agora é o ditador soberano
que encerra a discussão entre direito e poder. Assim, percebe-se o desenvolvimento
germinativo de 1914 a 1921 entre legitimidade do Estado e organização fática do poder que
dá origem à Politische Theologie e a sua específica teoria da soberania como a seguir é
125
DD, p. XVIII.
126
DD, p. 133-134: “Infolgedessen ist die Diktatur ein Problem der konkreten Wirklichkeit, ohne aufzuhören,
ein Rechtsproblem zu sein”.
212
reconstruída, ainda, porém, sob uma teoria normativista por conta da noção de político como
mediação derivada do teorema da secularização e reforçado no texto de 1924 Römischer
Katholizismus und politische Form através da defesa do conceito de representação.
A origem da ordem levantou a questão da negatividade do político e deslocou a
teoria schmittiana do normativismo: a relação entre forma e violência é assumida como a
origem não normativa e a abertura da ordem que resulta na afirmação paradoxal de que ordem
e representação exigem a ação contra o direito, pois a realização do direito pressupõe sua
própria negação/suspensão. Neste ponto, as relações estritamente jurídicas (por exemplo, a
crítica à relação entre direito e decisão nos textos de 1910 e 1912), tornam-se relações
políticas, pois no texto de 1921, a exceção e a ditadura referem-se a conflitos que inviabilizam
qualquer contexto normativo prévio uma vez que se referem à ausência de direito. A
compreensão da ordem a partir da necessidade e finitude faz Schmitt abandonar critérios
normativos para ação política. Entretanto, mesmo arriscando a relação entre político e
imanência, ele ainda mantém a ideia de direito como horizonte de legitimação (posterior),
bem como as noções de secularização e mediação: a relação da violência com o direito
pressupõe o locus da ação estatal. Esta estrutura teológico-metafísica serve de critério racional
– embora apenas metodológico – para a validade da ação política e mantém a diferença entre
ser e dever-ser, imanência e transcendência, apesar da virada finitista em curso127.
(II)
127
Esta virada finitista de Schmitt pode ser compreendida a partir da influência de HansVaihinger, por exemplo,
Hasso Hofmann capta isso ao afirmar que “Er war entschlossen, sich der vom Neukantianismus als bloße
Faktizität zurückgelassenen zu stellen und die Wirklichkeit selbst als Rechtswirklichkeit zu konstruieren”
HOFMANN, 2002, p. 87.
213
estado de exceção”128 e (ii) a tese que relativiza este realismo político ao estabelecer seu
horizonte normativo: “todos os principais conceitos da teoria do Estado moderna são
conceitos teológicos secularizados”129. Assim, a teoria da soberania é desenvolvida como
outra estratégia na solução do problema da mediação: estabelece uma cisão entre
determinação concreta e justificação normativa, ação e racionalidade acerca da estrutura e
origem da ordem a partir da decisão. Esta concepção decisionista ressalta o aspecto fático da
exceção, paradoxalmente fora da ordem jurídica, mas constitutiva, pois desempenha a função
originária de mediação entre forma e realidade. Há aqui outra intensificação do finitismo,
apesar da proposta do vínculo teológico-político e da diferença entre mediação e imediação: a
exceção torna-se condição de possibilidade da ordem jurídica, ainda mais necessária do que a
ação do ditador do texto de 1921, uma vez que a ação do soberano é a expressão da ação
como instaurador da ordem na faticidade a partir da qual possam valer normas jurídicas, ou
seja, o jurídico é constituído pela ação política que assume seu papel fundamental de
mediação: capta o universal a partir do particular, o excesso a partir da exceção.
A tese inicial da Politische Theologie é a relação, à primeira vista contraditória, que
se estabelece entre estado de exceção e norma através do paradoxo da soberania que
soluciona, segundo Schmitt, o problema da constituição da ordem normativa diante da
premência da Rechtsverwirklichung. Inicialmente, desenvolve-se a teoria schmittiana da
Ausnahmenzustand na tentativa de abordar o problema da mediação racionalista provocado
pela filosofia política e do direito modernos, ou seja, a resolução do abismo entre quaestio
facti e quaestio iuris, entre determinação concreta e justificação normativa, discutindo o
fundamento da ordem. Essa teoria se apoia em uma concepção carregada de realismo na
ênfase do aspecto fático e adquire significado no argumento da introdução da exceção no
interior da ordem jurídica desempenhando a função originária de um dispositivo mediador
entre forma jurídica e realidade concreta através do argumento da Entscheidung, a qual
destituída de um sujeito constitutivo, de um fundamento absoluto ou de uma teleologia
histórica, constitui-se como origem não normativa da ordem. A exceção, então, torna-se a
condição de possibilidade da ordem, uma vez que a partir dela, quer na manutenção quer na
criação da ordem, o soberano age para instaurar uma faticidade sobre a qual possam valer
normas jurídicas. Portanto, os três conceitos básicos que abreviam a teoria schmittiana neste
período são: Ausnahmen, Entscheidung e Souveränität, os quais a seguir são reconstruídos a
partir do texto de 1922 Politische Theologie .
128
PT, p. 13: "Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet".
129
PT, p. 43: “Alle prägnanten Begriff der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe”.
214
ser aplicado, visto que a normatividade pressupõe uma normalidade fática, pois nenhuma
validade normativa se faz valer a si mesma, mas depende de instâncias concretas para ser
efetivada. Além de não normativo, outro atributo da ação política soberana é ser uma vontade
que se torna a condição de validade da ordem. Diante da impossibilidade da validade de uma
ordem normativa a partir de si mesma ou de uma racionalidade intrínseca, a derradeira opção
que se apresenta para Schmitt ao rejeitar critérios normativos e universalistas ou qualquer tipo
de consenso sobre valores e normas é adotar o argumento finitista do decisionismo como ação
política constituidora da ordem:
Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quais
ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais, e os quais ela submete
à sua regulação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essa
normalidade fática não é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar;
ao contrário, pertence à sua validade imanente 132.
A superioridade fática da ordem diante do direito é reconhecida através de uma
paradoxal “validade imanente”, isto é, uma espécie de direito de autopreservação “sendo o
estado de exceção algo diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, uma
ordem, mesmo que não uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém aqui uma
supremacia sobre a validade da forma jurídica”133 que serve de justificação do poder
ilimitado. A normalidade possui um caráter ordenativo via exceção que representa ao mesmo
tempo supressão do direito e condição de validade. Na exceção, ocorre uma ação na qual se
dá a criação das condições para a realização do direito, pois “não existe norma que seja
aplicável ao caos. A ordem (Ordnung) deve ser estabelecida para que a ordem jurídica
(Rechtsordnung) tenha um sentido (...) soberano é aquele que decide sobre se tal situação
134
normal existe. Todo direito é direito situacional” . Esta afirmação mostra a inversão que o
argumento da finitude opera na teoria schmittiana e a consideração de uma validade in re: ao
invés da relação de adequação normativa de onde derivaria sua legitimidade; desde Die
Diktatur, ele aposta em uma ordem fática mais originária, sem vínculos normativos e
explicita, enfim, seu pressuposto mais potente, o ato anterior à ordem normativa. Além da
consideração da origem como um nada normativo, a ordem a ser criada depende de uma
violência originária que ao ordenar a realidade cria o direito mesmo sem autorização: a
132
PT, p. 19: “Jede generelle Norm verlangt eine normale Gestaltung der Lebensverhältnisse, auf welche sie
tatbestandsmäßig Anwendung finden soll und die sie ihrer normativen Regelung unterwirft. Die Norm braucht
ein homogenes Medium. Diese faktische Normalität ist nicht bloß eine ‘äußere Voraussetzung’, die der Jurist
ignorieren kann; sie gehört vielmehr zu ihrer immanenten Geltung”.
133
PT, p. 18: “Weil der Ausnahmenzustand immer noch etwas anderes ist als eine Anarchie und ein Caos,
besteht im juristischen Sinne immer noch eine Ordnung, wenn auch keine Rechtsordnung”.
134
PT, p. 19: “Es gibt keine Norm, die auf ein Chaos anwendbar wäre. Die Ordnung muß hergestellt sein, damit
die Rechtsordnung einen Sinn hat (...) souverän ist derjenige, der definitiv darüber entscheidet, ob dieser normale
Zustand wirklich herrscht. Alles Rechts ist Situationsrecht”.
216
violência escapa da qualificação jurídica, mas por pouco tempo. A relação entre ação política
e violência é o aspecto mais importante do realismo schmittiano e servirá de modelo para o
desenvolvimento da sua teoria do político quando se desvencilha do teorema da secularização.
Racionalidade normativa e exceção concreta, ordem e ausência de ordem, são, pois,
duas dimensões ou momentos opostos que o autor traz à reflexão como temas fundamentais
para a discussão jurídica, pois segundo ele a exceção é um conceito jurídico, refere-se ao
direito, porém, apesar disso, sua relação com o direito é peculiar, uma vez que a konkreten
Wirklichkeit é caracterizada como uma exceção concreta que afasta de si o caráter normativo
e enfatiza o aspecto existencial das relações fáticas. O pensamento juspublicista schmittiano
procura estabelecer os pressupostos fáticos da ordem e da sua validade concreta ou imanente,
pois, precisamente nesse sentido, o conceito de exceção desempenha um papel central na sua
argumentação: Schmitt tem a proposta de inserir no interior da ordem jurídica a figura da
exceção não como algo apenas referido à noção de necessidade, como no caso do texto de
1921 sobre a ditadura, onde o ditador agiria sobre a realidade com o intuito de dar-lhe a
medida do direito, mas sim como algo mais radical e fundamental, como um fundamento, ou
melhor, como uma mediação originária na constituição da ordem estatal-jurídica, uma vez
que, segundo o autor, “deve-se entender por estado de exceção um conceito geral de teoria do
Estado, mas não qualquer ordem de necessidade ou estado de sítio“135.
Segundo Schmitt, a vigência do direito está necessariamente vinculada às condições
concretas da normalidade fática. Nesse caso, o fundamento de validade da norma jurídica
consiste nas condições fáticas ou nas configurações normais das relações de vida produzidas
pela decisão que deixa de ser meramente instituto jurídico ou aplicação do direito para tornar-
se o fundamento político concreto, já que no estado de exceção as normas do direito não se
aplicam devido à relação sui generis entre normatividade abstrata e normalidade fática. A tese
exposta pelo jurista pode ser brevemente resumida no seguinte: a decisão cria a configuração
normal da situação concreta necessária para que o direito possa ser aplicado, visto que a
normatividade pressupõe uma normalidade fática para sua vigência, pois nenhuma validade
normativa se faz valer a si mesma, mas depende de instâncias concretas para ser efetivada.
Assim, a criação de um “meio homogêneo” (DD, p. 13; PT, p. 19) é a única forma através da
qual seria possível constituir o fundamento de validade da ordem, pois diante da
impossibilidade da validade de uma ordem normativa a partir de si mesma ou de uma
racionalidade intrínseca axiológica, a derradeira opção que se apresenta para Schmitt é rejeitar
135
PT, p. 13: “Daß hier unter Ausnahmezustand ein allgemeiner Begriff der Staatslehre zu verstehen ist, nicht
irgendeine Notverordnung oder jeder Belagerungszustand, wird sich aus dem Folgenden ergeben”.
217
tais critérios universais e racionais ou qualquer tipo de consenso normativo sobre valores e
normas e adotar radicalmente o argumento de que apenas em uma condição fática estável as
normas podem ter vigência:
Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quais
ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais, e os quais ela submete
à sua regulação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essa
normalidade fática não é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar.
ao contrário, pertence à sua validade imanente136.
A normalidade fática possui, segundo Schmitt, um caráter ordenativo que, por um
lado, embora represente a supressão do direito, por outro, determina a validade do sistema
normativo no estabelecimento de uma homogeneidade social que possibilita a vigência de
princípios normativos, pois na situação de exceção subsiste um ordenamento, ainda que não
um ordenamento jurídico. É precisamente no estado de exceção onde se dá a criação das
condições para a realização do direito:
Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que
a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano
é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente
dominante. Todo direito é direito situacional 137.
A tese da relação entre normatividade e normalidade demonstra em Schmitt que uma
norma não pode por si mesma fazer-se efetiva, pois, em última instância, as condições de
validade da norma tornam-se evidentes, de modo distinto da perspectiva racionalista, apenas
quando se depara diante de um caso limite, ou seja, a meio caminho entre a normalidade e a
anormalidade. A perspectiva racionalista toma como incontestável o caráter universal e
necessário que garantiria à ordem jurídica o status de contrafática da seguinte maneira:
independentemente das condições da realidade empírica uma norma seria válida por sua
lógica imanente descartando qualquer referência não normativa como pressuposto para a
validade do direito. No entanto, Schmitt lança mão do argumento da exceção precisamente
como crítica ao normativismo, pois “toda norma geral exige uma configuração (Gestaltung)
normal das relações de vida” e, por conseguinte, depende de um elemento não-racional ou
empírico para a constituição da ordem de direito. Nessa perspectiva, o estado de exceção
significa, em um primeiro nível de argumentação, a situação concreta que provoca a
136
PT, p. 19: “Jede generelle Norm verlangt eine normale Gestaltung der Lebensverhältnisse, auf welche sie
tatbestandsmäßig Anwendung finden soll und die sie ihrer normativen Regelung unterwirft. Die Norm braucht
ein homogenes Medium. Diese faktische Normalität ist nicht bloß eine ‘äußere Voraussetzung’, die der Jurist
ignorieren kann; sie gehört vielmehr zu ihrer immanenten Geltung”.
137
PT, p. 19: “Es gibt keine Norm, die auf ein Chaos anwendbar wäre. Die Ordnung muß hergestellt sein, damit
die Rechtsordnung einem Sinn hat. Es muß eine normale Situation geschaffen werden, und souverän ist
derjenige, der definitiv darüber entscheidet, ob dieser normale Zustand wirklich herrscht. Alles Recht ist
‘Situationsrecht’”.
218
suspensão da validade de um sistema normativo seja para dotá-lo novamente do suporte fático
necessário para sua vigência (normalidade) seja para, irrompendo sua validade, constituir
outra estrutura de validade, isto é, outra ordem jurídica. Como consequência disto, a topologia
da exceção – ou o momento da anormalidade fática que no fundo indistingue faticidade e
validade – pode ser compreendido como o momento onde não há normas, porém não se exclui
da esfera do direito, pois o que existe é uma relação de inclusão-exclusão caracteriza a
exceção como um caso singular que é excluído da norma geral, porém ainda possui vínculo
com a norma, mesmo sob a forma da suspensão. Desse modo, a exceção configura na teoria
schmittiana uma situação-limite na qual se reconhece a impossibilidade de fundamentação do
direito a partir de uma normatividade abstrata, porém também reconhece a necessidade de
constituição de uma ordem normativa para além da mera faticidade empírica. Em todo caso,
Schmitt assegura o estado de exceção no interior da ordem, pois, segundo ele, sempre
“subsiste um ordenamento, ainda que não um ordenamento jurídico”138.
Em um segundo nível de argumentação, o estado de exceção pode ser compreendido
como um mecanismo através do qual é possibilitada a organização da normalidade fática e,
por conseguinte, a realização daqueles pressupostos que permitem a vigência de uma ordem
jurídica e, assim sendo, revela-se como um problema da realidade concreta ao mesmo tempo
que se constitui como um problema do direito, pois ainda articulado com a tese da
secularização. De certa maneira, a criação da normalidade fática é não apenas uma realidade
externa à ordem jurídica, mas sim um elemento interno, algo que integra a “validade
imanente“ (PT, p. 19) de uma norma. Destarte, nesse momento, torna-se visível a dissociação
dos dois elementos que constituem a ordem jurídica (Rechts-Ordnung): o direito e a ordem. A
normalidade situacional não pode concebida em termos abstratos, mas depende da
configuração fática que, em última instância, possibilita a validade de uma ordem normativa e
revela a indepedência conceitual, particularmente, na situação extrema da exceção, onde há a
suspensão das normas e da normalidade e se põe a questão da origem, pois “é preciso criar um
ordenamento (Ordnung) para que o ordenamento jurídico (Rechtsordnung) tenha um
sentido”139. Em outras palavras, para Schmitt, no momento da exceção há a primazia da
existencialidade política em relação à vigência da ordem normativa: há ordem pública, mas
não ordem normativa e, por essa situação, “a existência do Estado demonstra uma indubitável
138
PT, p. 18: “Weil der Ausnahmenzustand immer noch etwas anderes ist als eine Anarchie und ein Caos,
besteht im juristischen Sinne immer noch eine Ordnung, wenn auch keine Rechtsordnung”.
139
PT, p. 19: “Die Ordnung muß hergestellt sein, damit die Rechtsordnung einen Sinn hat”.
219
140
PT, p. 18: “Die Existenz des Staates bewährt hier eine zweifellose Überlegenheit über die Geltung der
Rechtsnorm”.
220
ordenamento jurídico, pois, assevera, “o caso excepcional, o caso não descrito na ordem
jurídica vigente pode ser no máximo caracterizado como caso de extrema necessidade, como
risco para a existência do Estado ou similar, mas não ser descrito com um pressuposto
legal”141. Nesse caso, porém, para que haja tal ação desvinculada da ordem jurídica, faz-se
mister a suspensão desta, ou seja, em termos técnicos, a existência de uma situação anormal
que põe em jogo ou a manutenção ou a criação de uma nova configuração jurídico-política,
isto é, o estado de exceção, pois “no estado de exceção, o Estado suspende o Direito por fazer
jus à autoconservação”142. E “entrando-se nessa situação, fica claro que em detrimento do
Direito, o Estado permanece”143. Além disso, a consequência fundamental que Schmitt propõe
neste argumento é a separação do direito em dois elementos necessário: norma e ordem, visto
que “os dois elementos do conceito de ‘ordem jurídica’ defrontam-se e comprovam sua
autonomia conceitual. Assim como no caso normal o momento autônomo da decisão pode ser
repelido a um mínimo; no caso excepcional, a norma é aniquilada”144. Dessa forma, de acordo
com sua tese, a ordem jurídica pode ser interpretada como a composição de dois momentos ou
topoi, quais sejam, o momento da faticidade e o momento da validade: direito e poder,
transcendência e imanência seriam conciliados na expressão da ordem que agrega tanto o
momento da negatividade quanto o momento da idealidade.
No entanto, a demonstração da tese da articulação entre exceção e norma revela mais
um elemento fundamental na estrutura do seu pensamento nesta fase: o primado da decisão do
soberano, pois “também o conceito de ordem jurídica, aplicado irrefletidamente como algo
óbvio, contém, em si, a contradição dos dois elementos diversos do âmbito jurídico. A ordem
jurídica, como toda ordem, repousa em uma decisão e não em uma norma” 145. Essa tese
reforça o elemento da decisão como o organizador da realidade sem referências normativas
uma vez que é a norma que pressupõe o poder de normalização da faticidade e somente em
um momento posterior lhe concede a legitimidade.
141
PT, p. 13-14: “Der Ausnahmefall, der in der geltenden Rechtsordnung nicht umschriebene Fall, kann
höchstens als Fall äußerster Not, Gefährdung der Existenz des Staates oder dergleichen bezeichnet, nicht aber
tatbestandsmäßig umschrieben werden”.
142
PT, p. 18-19: “Im Ausnahmefall suspendiert der Staat das Recht, Kraft eines Selbsterhaltungsrechtes”.
143
PT, p. 18: “Ist dieser Zustand eingetreten, so ist klar, daß der Staat bestehen bleibt, während das Recht
zurücktritt”.
144
PT, p. 19: “Die zwei Elemente des Begriffes ‘Rechts-Ordnung’ treten hier einander gegenüber und beweisen
ihre begriffliche Selbständlichkeit. So wie im Normalfall das selbständige Moment der Entscheidung auf ein
Minimum zurückgedrängt werden kann, wird im Ausnahmefall die Norm vernichtet”.
145
PT, p. 16: “und auch der Begriff der Rechtsordnung, der gedankenlos als etwas Selbstverständliches
angewandt wird, enthält den Gegensatz der zwei verschiedenen Elemente des Juristischen in sich. Auch die
Rechtsordnung, wie jede Ordnung, beruht auf einer Entscheidung und nicht auf einer Norm”.
221
146
PT, p. 17: “Die Kontroverse bewegte sich immer darum, wem diejenigen Befugnisse zukamen, [über die nicht
bereits durch eine positive Bestimmung, etwa eine Kapitulation, verfügt war,] mit andern Worten, wer für den
Fall zuständig sein sollte, für den keine Zuständigkeit vorgesehen war”.
147
PT, p. 19: “Die Ausnahme ist das nicht Subsumierbare; sie entzieht sich der generellen Fassung, aber
gleichzeitig offenbart sie ein spezifisch-juristisches Formelement, die Dezision, in absoluter Reinheit. In seiner
222
absoluten Gestalt ist der Ausnahmefall dann eingetreten, wenn erst die Situation geschaffen werden muß, in der
Rechtssätze gelten können”.
148
Soberania pode ser compreendida como nada ter acima de si. Parece-nos que a argumentação schmittiana
busca atender a este critério. Em todo caso, o pensamento contemporâneo tenta superar este pressuposto,
precisamente, rejeitando esta figura do ente supremo (soberania, povo, etc.) em direção a um ultrapassamento da
teoria política moderna. A crítica de Heidegger à Schmitt reside neste ponto: o jurista teria capturado a lógica da
soberania e da representação, além de tomar o Estado como a figura por excelência da política. Dessa forma,
Schmitt é acusado de desenvolver a última versão do liberalismo, na esteira da crítica de Strauss, por ter apenas
invertido a estrutura própria do liberalismo. Schmitt tentaria ultrapassar o Estado como ente supremo, mas
permanecera como a consumação da soberania, visto que sua preservação atende à necessidade da ordem e ao
Katechon. Heidegger, assim, critica a estrutura metafísica da dominação e, através dela, desconstroi o
substancialismo político. Aí reside toda a questão do Dasein como ser-com (Mit-sein) e dos esforços contra a
noção de representação que daria espaço para compreender uma atitude política na qual cada um assume
resolutamente seu próprio ser (como resolução e não representação). Sobre isso, HEIDEGGER, GA, 86.
149
PT, p. 14: “Er (der Souverän) entscheidet sowohl darüber, ob der extreme Notfall vorliegt, als auch darüber,
was geschehen soll, um ihn zu beseitigen. Er steht außerhalb der normal geltenden Rechtsordnung und gehört
doch zu ihr, denn er ist zuständig für die Entscheidung, ob die Verfassung in toto suspendiert werden kann”.
223
conta da sua capacidade criadora do direito de uma perspectiva externa, o soberano inclui-se
na juridicidade, pois ao criar o direito por um ato de força, portanto na realidade empírica, tal
organização fática recebe do direito sua qualificação enquanto ordem jurídica: assume-se a
ausência de direito na força criadora do direito, porém, paradoxalmente, na mesma força que
afirma a ausência confirma a presença, uma vez que a decisão não apenas declara a exceção,
mas também constitui uma ordem. Portanto, o decisionismo schmittiano se enquadra nas
teorias da legitimidade político-jurídica, isto é, no interesse da justificação de uma ordem
ainda postulando uma perspectiva normativista. Como já exposto sobre o conceito de
soberania, Schmitt sustenta que como toda ordem, a ordem jurídica se fundamenta numa
decisão e não em uma norma. Evidentemente, tal proposição contrapõe-se à teoria kelseniana
do direito, cuja principal característica é a adoção do postulado kantiano de que um sistema
normativo deve manter uma estrita separação entre o ser (Sein) e o dever-ser (Sollen).
De modo contrário, Schmitt assinala que o conteúdo normativo de uma prescrição
jurídica só pode ser determinado por intermédio de uma decisão política a qual, por definição,
não é dedutível de parâmetros normativos, mas sim do concreto, das necessidades e
contingências do caso. Na filosofia kantiana do direito, o direito de emergência não é direito,
já que o “ser”, a emergência, deve permanecer estritamente separada do “dever ser”, o direito.
O caso crítico (Ernstfall), portanto, não prova absolutamente nada porque o que é excepcional
carece de consequências jurídicas para uma ordem legal. Esta proposição pode chegar a um
normativismo extremo quando se utiliza para ocultar o locus do poder que, para além do
sistema legal, a manifestação da exceção frequentemente revela onde reside o poder real
dentro do Estado. Porém, Schmitt não apenas quer conciliar direito e realidade, mas também
elaborar uma versão diametralmente oposta à fórmula kantiana, pelas noções de exceção e
decisão e de justificação das normas através das práticas e usos sociocráticos, ou seja, dos
jogos de poder. O problema da força normativa das normas (die normative Kraft des Normen)
não é a questão correta a ser enfrentada. Em vez da validade de um sistema jurídico, o que
importa para a política é sua eficácia numa situação concreta. É com esse teor não racional,
não normativo, não universalizável que a reflexão sobre o poder e as normas em Schmitt
critica o normativismo em todas as suas manifestações por não dar conta da realidade, pois
essa “normalidade fática não é somente um mero pressuposto que o jurista pode ignorar. Ao
contrário, pertence à sua validade imanente”150.
150
PT, p. 19: “Diese faktische Normalität ist nicht bloß eine ‘äußere Voraussetzung’, die der Jurist ignorieren
kann; sie gehört vielmehr zu ihrer immanenten Geltung”
224
A questão que interessa é quis iudicabit; sobre o "que" é o bem público e o interesse
comum decide o soberano; em que consiste o interesse do Estado, quando deve
ocorrer uma ruptura ou remoção completa da ordem jurídica existente, são todas
questões que não se deixam determinar normativamente, mas cujo conteúdo
concreto remete a uma decisão concreta da instância soberana 158.
Em todos os casos, a decisão a que se refere o autor possui um caráter real, nunca de
modo universalista ou ideal, muito menos não se pode falar em uma espécie de decisão
normativa (normativische Entscheidung), mas sim em uma decisão que dá a medida
(Maßgebendsentscheidung) no caso concreto, ou seja, determinante. A soberania se manifesta
precisamente na decisão sobre a manutenção ou instauração da ordem, ou seja, numa situação
151
PT, p. 16: "jede Ordnung beruht auf einer Entscheidung".
152
PT, p. 13: "Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet".
153
PT, p. 37-38: "Die Entscheidung ist, normativ betrachtet, aus einem Nichts geboren".
154
PT, p. 16: "Die Rechtsordnung, wie jede Ordnung, beruht auf einer Entscheidung und nicht auf einer Norm".
155
PT, p. 19: "Es gibt keine Norm, die auf ein Chaos anwendbar wäre. Die Ordnung muß hergestellt sein, damit
die Rechtsordnung einen Sinn hat".
156
PT, p. 19: "die Autorität beweist, daß sie, um Recht zu schaffen, nicht Recht zu haben braucht".
157
VL, §1, p. 7: "Denn richtigerweise kann nur etwas konkret Existierendes, nicht eine bloß geltende Norm
souverän sein"
158
VL, §6, p. 49: “Die Frage, auf die es ankommt, ist immer: quis iudicabit; über das, was das öffentliche Wohl
und der gemeine Nutzen erfordert, entscheidet der Souverän; worin das staatliche Interesse besteht, wann es eine
Durchbrechung oder Beseitigung des Bestehenden Rechtes erfordert, alles das sind Fragen, die nicht normativ
festgelegt werden können, sondern nur durch die konkrete Dezision der souveränen Instanz ihren konkreten
Inhalt bekommen".
225
de exceção na qual é necessária uma ordem concreta para que, afastando a situação anormal,
voltem a valer a normalidade garantida pelo soberano.
Há, para Schmitt, ainda nesta fase, uma separação originária entre ser e dever-ser,
realidade e norma. A partir do problema da mediação racionalista, Schmitt persegue a
mediação entre tais instâncias e elege a decisão como estrutura através da qual se dá a
mediação possibilitadora da ordem jurídica. Nesse quadro, a validade da ordem depende da
decisão não apenas como meio pelo qual o soberano organiza e/ou cria a ordem e a
normalidade, mas também como mecanismo através do qual a ordem fática consegue sua
legitimidade ao capturar a norma de direito e representá-la na realidade fática, pois a decisão é
sempre uma decisão pela representação. A decisão não é nem mediação (no sentido
racionalista) nem fundação, mas passagem entre ideia e contingência. Para Schmitt, a decisão
está no âmbito jurídico, é sempre jurídica, não é metajurídica uma vez que significa que a
criação das normas se dá a partir de uma situação de anomia, ou seja, a criação da ordem e das
normas se dá a partir de uma situação de ausência de normas e de ordem, mesmo que
compreenda a decisão como um instituto jurídico. Não à toa, a exceção é tratada como um
conceito geral da doutrina do Estado e a decisão assim como a norma e a exceção estão no
âmbito da juridicidade. Nesse sentido, a decisão não é arbitrária, mas é a exigência que a
efetivação da Ideia de direito desafia à ordem concreta realizar. Embora a soberania seja
definida como uma instância de decisão última, a sua competência para decidir não pode ser
determinada previamente, ou seja, sua ação não pode ser circunscritas por normas. Por isso,
Schmitt afirma que “a decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo e torna-se absoluta em
sentido real”159 e, por conseguinte, faz surgir a questão sobre o portador da soberania, pois
quem decide sobre as competências não reguladas constitucionalmente, ou seja, quem é
competente quando o ordenamento jurídico não dá resposta alguma à pergunta pela
competência? O soberano se constitui a si mesmo no ato da decisão, já que seria ilógico
derivar sua autoridade de qualquer norma prévia.
Entretanto, apesar da ênfase da realidade concreta na constituição da ordem não se
pode afirmar que tal ordem partilhe uma legitimidade existencialista, pois, como
demonstrado, embora a exceção seja concreta e a decisão sobre a exceção constitua o
pressuposto ou o fundamento fático para a validade das normas, a legitimidade do Estado
advém da relação deste poder com a esfera das normas de direito e não da ação fática
constituidora da normalidade. Assim, em relação à Ausnahmentheorie, ainda há a distinção
159
PT, p. 18: “Die Entscheidung macht sich frei von jeder normativen Gebundenheit und wird im eigentlichen
Sinne absolut”.
226
No que importa destacar, esta argumentação realista implicaria uma ação política
sem referencial legitimador, isto é, não existiria critério a priori, mas apenas a própria ação na
determinação da ordem, como uma recusa, nos termos de Eric Voegelin, do
transcendentalismo e aceitação do imanentismo. Entretanto, esta consequência típica de um
realismo político não é aceita plenamente neste momento por Schmitt, que enfraquece seu
realismo, pois a ação ainda teria uma matriz normativa: a exceção pressupõe um excesso,
referindo-se à outra tese estrutural do texto Politische Theologie. Isto significa que a decisão
precisa ainda de uma metafísica da legitimidade ou de uma teologia política tal como no
mecanismo de representação, pois Schmitt ainda não conseguira livrar-se da problemática
relação entre ação e racionalidade política e apesar de mostrar a origem concreta da ordem,
ato contínuo lança mão da tese do político como mediação e da relação entre imanência e
transcendência. Assume a ausência de direito no ato criador do direito, porém, no mesmo ato
que afirma a ausência é confirmada a presença, uma vez que a decisão não apenas declara a
exceção, mas também se constitui como ordem jurídica ao justificar-se como “de direito”.
Assim, para justificar o decisionismo baseado numa ordem política não normativa, o autor
propõe a tese da secularização ao afirmar a contiguidade entre política e teologia. Isto
significa que mesmo rejeitando a soberania da norma na constituição da ordem, ele vincula a
ação política à racionalidade, afirmando que a medida do poder é determinada pela ordem
teológica, afinal, sua racionalidade última, pois o único paradigma da ordem que se dá via
representação e impede a afirmação de uma ação imanente arbitrária. Se, por um lado, a
ordem jurídica pressupõe a decisão política como constituição; por outro lado, a política seria
uma mediação ou tradução da ordem teológica. Neste sentido, a ordem é alcançável apenas
como mediação do teológico pelo político: daí a síntese de sua teologia política e a
manutenção da diferença entre transcendência e imanência. A ação política é compreendida
através das categorias de mediação ou representação e pressupõem a distinção metafísica
entre ser e aparecer que cerram a ação política no âmbito institucional.
Apesar da decisão soberana sobre a exceção ser constitutiva da ordem normativa,
pois na origem há a primazia da singularidade da ação, Schmitt relativiza seu finitismo através
deste pressuposto teológico-político. A validade da ordem depende da decisão não apenas
como meio pelo qual o soberano organiza e/ou cria a ordem e a normalidade, mas também
como mecanismo através do qual o político consegue sua legitimidade ao capturar a forma
teológica e representá-la, uma vez que a decisão é sempre uma decisão pela representação. A
decisão é passagem entre contingência e ideia, a representação da ideia de direito para a
constituição da ordem estatal. Esta articulação entre decisionismo e secularização estabelece a
228
teologia como condição da ação política, tornando a autoridade justificada a partir de uma
instância anterior e, por conseguinte, uma ação política sem autonomia vinculada a uma
validade externa. Nesse contexto, a ação imediata torna-se uma ação contra o político e, por
conseguinte, não justificável: o acesso à ordem não é imediato, mas se dá através de
instituições, cujo paradigma não é o Estado, mas o catolicismo romano. Este é o papel do
argumento da secularização na Politische Theologie que traz elementos da tradição do
realismo político justapostos à noção de legitimidade metafísica e teológica, ou seja, a
secularização aparece como o horizonte da ação política não tanto por seu caráter de filosofia
da história, que Schmitt dispensa, mas sim por seu valor metodológico de evidenciar a
mediação racional. Esta mediação política e institucional do teológico assegura autoridade ao
poder. Dessa forma, o teorema da secularização mantém a cisão entre imanência e
transcendência, configurando ainda um realismo fraco ao adotar, neste resquício normativo,
uma validade externa ou ante rem do poder.
Este conceito de representação em Schmitt pode ser analisado exemplarmente no
texto Römischer Katholizismus und politische Form (Catolicismo romano e forma política) de
1923 como a última defesa do político como mediação, tendo como exemplo o modelo
institucional e jurídico da Igreja Católica. A pretensão é buscar transcender o imediato ao
propor uma racionalidade normativo-institucional que estabeleça uma ordem que não seja
meramente imanente, a rigor, contrapondo-se às despolitizações da economia e a da técnica
moderna. Em todo caso, uma exigência de dar forma à vida, de uma razão ordenadora. Assim,
a teologia católica carregaria uma lógica jurídica, uma espécie de racionalismo jurídico
romano, uma função sacerdotal universalizada que se caracterizaria pela representação: esta é
a forma ou ideia do direito que paradigmaticamente a Igreja realiza. A pessoa do sacerdote é
interligada via concreta por uma cadeia de mediações infinitas e representa a pessoa de Cristo
que lhe concede a capacidade de criar direito novo, isto é, fornece auctoritas e jurisdictio. A
mediação seria para Schmitt a principal característica de Roma e, precisamente, o que
possibilita a decisão da autoridade. A função do político é realizar esta mediação da forma de
direito via argumento da secularização tendo a igreja como modelo para o Estado: o político
como mediação é a tese reafirmada da teologia política. A relação entre decisão e ideia
(ordem), poder e autoridade é uma bipolaridade típica do catolicismo que se opõe ao
pensamento imanentista ou não representativo, pois como Schmitt afirma “nenhum sistema
político pode durar, nem sequer uma geração, através de uma mera técnica da conservação do
poder. A ideia é inerente ao político, dado que não há política sem autoridade, nem há
229
autoridade sem um ethos da convicção” 160. O ordo geométrico em forma de cruz da Igreja de
Roma estrutura-se como uma espécie de extensão horizontal governada por uma decisão
vertical: não há realismo politico aqui. A concepção católica da complexio enquanto diferença
horizontal e a transcendência da ideia enquanto diferença vertical expressa a bipolaridade
típica da representação politica católica. Além do representante e do representado, porém, é
necessário segundo Schmitt um terceiro elemento transcendente a ambos, este é a ideia,
novamente como horizonte formalista. Ao afirmar que ao político é inerente a ideia, ele
afasta-se de um pensamento não-representativo que reduz o conceito de autoridade ao
conceito de poder e conserva tanto a diferença-horizontal (pluralidade) quanto a diferença-
vertical (transcendência). Esta diferença é crucial, pois se a bipolaridade se romper, o
transcendente for esquecido ou o real compreendido a partir de sua própria nervura, então o
conceito de representação política com sua Veritas é dissolvido. Para Roberto Esposito, como
já expomos, a paradoxal posição de Schmitt demonstra que “o fim da bipolaridade metafísica
assinala o fim da representação; o fim da representação, o fim da política” (ESPOSITO, 1999,
p. 76). Isto revela que ao optar pela imanência na constituição da ordem, Schmitt não rejeita
apenas a instância transcendente, mas também a ideia de ordem de direito e, por conseguinte,
de representação. No final da década de 1920, Schmitt elide a dimensão da transcendência e
propõe uma alternativa imanentista do político, ela mesma pós-política e pós-estatal: a Veritas
é desautorizada, a secularização é, por fim, acabada161.
Schmitt se desfaz a bipolaridade imanência-transcendência e critica ao moderno
como cisão e descontinuidade. Se Hobbes inaugura, então Schmitt fecha o pensamento
político moderno e nesse percurso a transcendência se perdeu e o conceito de representação
sofreu transformações até sua dissolução no jurista alemão. O desinflacionamento da teoria
política de Schmitt, porém, só ocorrerá na fase posterior, quando a questão da validade será
considerada a partir da afirmação do caráter não normativo (não representativo ou mediador)
do político como condição da ação por meio da diferença como antagonismo. Em Der Begriff
des Politischen, o político irrompe os paradigmas normativistas, teológico-político e a
secularização, prescinde das justificações externas e alcança autonomia. Para isso, prepara
160
RK, p. 28:
161
Roberto Esposito partilha da mesma interpretação ao afirmar que “ambos os termos – unidade e oposição – se
tornam absolutos ao extremo de perder, (...) o significado conferido a eles pelo princípio bipolar, no sentido de
que a unidade tende a saturar a diferença metafísica em direção a um monismo completo, enquanto a oposição,
transferida ao nível de imanência tende, reciprocamente, a transformar a diferenciação na antítese, também
absoluta, amigo/inimigo” (ESPOSITO, 1999, p. 56).
230
outro paradigma cuja validade é imanente à ação. O que está em jogo é a autonomia do
político e o fim da representação-mediação racionalista. Algo que poderia ser descrito como
um political turn, rejeitando a distinção metafísica entre ser e aparecer ao revelar a
singularidade do negativo incodificável e o múltiplo na constituição da unidade do corpo
político que passa a ser enfatizado como diferença imanente entre político e política.
No que importa destacar, esta argumentação realista implicaria uma ação política
sem referencial legitimador, isto é, não existiria critério a priori, mas apenas a própria ação na
determinação da ordem. Entretanto, esta consequência típica de um realismo político não é
aceita por Schmitt o que enfraquece seu realismo, pois a ação ainda teria uma matriz
normativa: a exceção pressupõe um excesso. Isto significa que decisão precisa ainda de uma
metafísica da legitimidade ou de uma teologia política tal como no mecanismo de
representação, pois Schmitt ainda não conseguira livrar-se da indeterminação entre ação e
racionalidade política e apesar de mostrar a origem da ordem, ato contínuo lança mão da tese
do político como mediação. Este conceito de representação pode ser destacado como a última
defesa do político como mediação, tendo como exemplo o modelo institucional e jurídico da
Igreja Católica. A pretensão dele é buscar transcender o imediato ao propor uma racionalidade
normativa-institucional que constitua uma ordem que não seja meramente imanente. Não
obstante, assume-se a ausência de direito no ato criador do direito, porém, no mesmo ato que
afirma a ausência é confirmada a presença, uma vez que a decisão não apenas declara a
exceção, mas também constitui-se como ordem jurídica ao justificar-se ato contínuo como “de
direito”. Assim, para justificar o decisionismo baseado numa ordem política não normativa, o
autor propõe a tese da secularização ao afirmar que “todos os principais conceitos da teoria do
Estado moderna são conceitos teológicos secularizados”162. Isto significa que mesmo
rejeitando a soberania da norma na constituição da ordem, ele vincula a ação política à
racionalidade, afirmando que a medida do poder é determinada pela ordem teológica, afinal,
sua racionalidade última, pois o único paradigma da ordem que se dá via representação e
impede a afirmação de uma ação imanente. Se, por um lado, a ordem jurídica pressupõe a
decisão política como constituição; por outro lado, a política seria uma mediação ou tradução
da ordem teológica. Neste sentido, a ordem é alcançável apenas como mediação do teológico
pelo político: daí a síntese de sua teologia política e a manutenção da diferença entre
transcendência e imanência. A ação política é compreendida através das categorias de
162
PT, p. 43: “Alle prägnanten Begriff der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe”.
231
mediação e representação e pressupõem a distinção metafísica entre ser e aparecer que cerram
a ação política no âmbito institucional.
Apesar da decisão soberana sobre a exceção ser constitutiva da ordem normativa,
pois na origem há a primazia da singularidade da ação, Schmitt relativiza seu finitismo através
deste pressuposto teológico-político. A validade da ordem depende da decisão não apenas
como meio pelo qual o soberano organiza e/ou cria a ordem e a normalidade, mas também
como mecanismo através do qual o político consegue sua legitimidade ao capturar a forma
teológica e representá-la, uma vez que a decisão é sempre uma decisão pela representação, ou
seja, como passagem entre ideia e contingência. Esta articulação entre decisionismo e
secularização estabelece a teologia como condição da ação política, tornando a autoridade
justificada a partir de uma instância anterior e, por conseguinte, uma ação política sem
autonomia. A partir dessa teologia política, a ação imediata torna-se uma ação contra o
político e, por conseguinte, não justificável: o acesso à ordem não é imediato, mas se dá
através de instituições, cujo paradigma não é apenas o Estado, mas, sobretudo, o catolicismo
romano. Este é o papel do argumento da secularização na Politische Theologie que traz
elementos da tradição do realismo político com uma noção de legitimidade metafísica e
teológica. Em suma, a secularização aparece como o horizonte da ação política. Esta
mediação política e institucional do teológico assegura autoridade e representação. O teorema
da secularização mantém a cisão entre imanência e transcendência, configurando ainda um
realismo fraco ao adotar, neste resquício normativo, uma validade externa ou ante rem do
poder. O desinflacionamento da teoria política de Schmitt só ocorrerá na fase posterior,
quando a questão da validade será considerada a partir da afirmação do caráter não normativo
(mediador) do político como condição da ação por meio da diferença como antagonismo.
163
Em síntese de excertos coligidos, analíticamente, o Der Begriff des Politischen possui, ao menos, 8
proposições fundamentais: 1. “Der Begriff des Staates setzt den Begriff des Politischen”; 2. “Die spezifisch
politische Unterscheidung, auf welche sich die politischen Handlungen und Motive zurückführen lassen, ist die
Unterscheidung von Freund und Feind”; 3. “Der Krieg folgt aus der Feindschaft, denn diese ist die seinsmäßige
232
Negierung eines anderen Seins”; 4.“Das Politische bestimmt immer die Gruppierung, die sich an dem Ernstfall
orientiert”; 5. “Der Staat als die maßgebende politische Einheit hat eine ungeheure Befugnis bei sich
konzentriert: die Möglichkeit Krieg zu führen und damit offen über das Leben von Menschen zu verfügen”; 6.
“Aus dem Begriffsmerkmal des Politischen folgt der Pluralismus der Staaten”; 7. “Man könnte alle
Staatstheorien und politischen Ideen auf ihre Antropologie prüfen und danach einteilen, ob sie, bewusst oder
unbewusst, einen von 'Natur bösen' oder einen 'von Natur guten' Menschen voraussetzen” e, por fim, 8. “Durch
den Liberalismus des letzen Jahrhunderts sind alle staatlichen und politischen Vorstellungen in einer
eigenartigen und systematischen Weisen verändert und denaturiert worden”. Cf. MEHRING, 2009, p. 206-214.
164
Sobre a questão fundamental do pensamento schmittiano como um problema acerca da legitimação da ordem
pública, cf. HOFMANN, 2002, p. 11: "Und doch muß das ganze Werk vor dem Hintergrund dieser Fragestellung
gesehen, muß die Frage nach der Rechtfertigung staatlicher Gewalt als agens der Entwicklung begriffen werden.
Stets sind die Grundbegriffe und Grundpositionen Schmitts in den einzelnen Entwicklungsabschnitten wieder
zurückzubeziehen auf jene Ausgangsfrage". Na fase inicial, segundo HOFMANN, 2002, p. 12, Schmitt é
considerado como um teórico racionalista ao buscar uma legitimação do poder público a partir da ideia de direito
como norma pura independente de qualquer justificação fática, pois “Von da an zieht sich die Bemühung um das
so umrissene, 'metajuristische' Problem der Legitimität wie ein roter Faden durch das Werk Carl Schmitts” e,
adiante, arremata: “Indem das reine, nichtstaatliche, originäre Recht logisch als absolut gültig erschlossen und
dieses Recht als absoluter und maßgeblicher Wert rational bejaht wird, stellt sich die Abhandlung über den Wert
des Staates als ein Versuch dar, die Staatsautorität – in der Terminologie Max Webers gesprochen –
'wertrational' zu begreifen” (p. 66).
233
manifestação ou do modo de ser do político, o Estado não é sinônimo do político, pois apesar
de que a noção de unidade política tenha encontrado sua expressão mais forte no Estado
moderno, no qual se expressou privilegiadamente por meio das noções de soberania e de
jurisdição, que traduziram a natureza especificamente política do Estado, tal coincidência ao
nível do fenômeno não é algo necessário, pois apenas histórico e, portanto, contingencial e
não analítico169.
Segundo Schmitt, embora na sua criação o Estado moderno tenha se estruturado
como Estado absolutista, a noção de Estado de direito (Rechtsstaat), ou melhor, o bürgerliche
Rechtsstaat é a forma política capaz de expressar os ideais liberais burgueses e se desenvolver
como Estado Liberal. Embora designe uma realidade constitucional especificamente alemã ao
buscar uma alternativa entre o constitucionalismo da restauração baseada na soberania
monárquica (Carta constitucional de Luís XVIII de 1812) e o constitucionalismo da revolução
com seu princípio da soberania nacional ou popular, o Estado de direito torna-se, na verdade,
desde o século XIX sinônimo de Estado liberal de direito, pois limita-se à defesa da ordem e
segurança públicas em prol da autonomia privada. Neste contexto, a esfera da liberdade
individual delimita os objetivos do Estado, estabelecendo a primazia dos direitos à liberdade e
à propriedade (Freiheit und Eigentum) e tornando o soberano, da mesma forma, limitado pelo
direito que, em última instância, estava submetido ao império da lei (Herrschaft des
Gesetzes). Schmitt considera que a expressão Rechtsstaat denomina um estatuto jurídico
marcado por, pelo menos, três características: a. legalidade; b. constitucionalidade; c.
independência da magistratura. Em relação à primeira característica, pode-se afirmar que há
uma determinação de que toda medida estatal deve apoiar-se em alguma norma legal; em
outras palavras, ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei, pois o princípio da preeminência da lei, especialmente no tocante à proteção de
direitos individuais, articula-se com a noção de Estado de direito dotado de uma constituição
capaz de executar um controle formal da legalidade dos atos estatais – por exemplo, o
princípio da anterioridade da lei penal que afirma “nullum crimen, nulla poena sine lege”,
bem como o princípio da anterioridade da lei tributária e, de forma paradigmática, o princípio
da legalidade da administração pública – e, dessa maneira, garantir a segurança e a ordem
jurídica baseada na autonomia privada. Em relação à segunda característica, o
169
De uma perpectiva jurídica-constitucional, SKINNER, 2006, p. 393-413 e BERMAN, 1983, p. 85-119.
Conforme KERVÉGAN, 1992, p.68: "c'est avant tout comme Etat qu'un peuple est un, pour lui-même et pour les
autres peuples. Historiquement, la représentation est devenue l'être même de l'identité, singulièrement depuis le
XVIIª siècle: l'Etat est la figure dans laquelle une communauté représente (au double sens de darstellen et de
repräsentieren) son identité, et tend à en être la forme exclusive".
235
170
Cf. sobre “Die Prinzipien des bürgerlichen Rechtsstaat”, VL, p. 125-138.
171
Cf. VL, p. 126-127: “Aus der Grundidee der bürgerlichen Freiheit ergeben sich zwei Folgerungen, welche die
beiden Prinzipien des rechtsstaatlichen Bestandteils jeder modernen Verfassung ausmachen. Erstens ein
Verteilungsprinzip: die Freiheitssphäre des einzelnen wird als etwas vor dem Staat Gegebenes vorausgesetzt, und
zwar ist die Freiheit des einzelnen prinzipiell unbegrenzt, während die Befugnis des Staates zu Eingriffen in
diese Sphäre prinzipiell begrenzt ist. Zweitens ein Organisationsprinzip, welches der Durchführung dieses
Verteilungsprinzip dient: die (prinzipiell begrenzte) staatliche Macht wird geteilt und in einem System
236
Estes, portanto, seriam os princípios do Estado de Direito de tal modo que um Estado
só poderia ser considerado Estado de Direito caso possuísse estes elementos nos seus textos
constitucionais. Entretanto, para Schmitt, esses princípios não seriam suficientes para
constituir um Estado uma vez que sua configuração autêntica, a rigor, são exigidos além de
elementos jurídicos, outros especificamente políticos: além dos princípios liberais –
unilateralmente jurídicos – são necessários princípios políticos que seriam, na verdade, a
autêntica fundamentação do Estado enquanto unidade política (politischer Einheit). Os
elemento rechtsstaatlich (direitos fundamentais e separação dos poderes) apresentam apenas
uma versão individualista e liberal que se tornou na modernidade uma espécie de ideal
normativo, porém, incapazes de fundar uma realidade política, pois o Rechtsstaat, segundo
Schmitt, tem como objetivo impor restrições ao poder através de normas: “o esforço do
Estado de direito civil-burguês tende a reprimir o político, a delimitar todas as expressões da
vida do Estado por meio de uma série de normas e a transformar toda sua atividade em
competências”172. Nestes termos, é o elemento político que determina o Estado enquanto
modo de ser de uma forma de vida, ou seja, para além da exclusividade dada ao elemento
jurídico, Schmitt aposta na primazia da politicidade como fator determinante na configuração
do Estado que, mesmo sem abdicar da sua forma jurídica, possui como fundamento uma
grandeza política:
Na realidade, o Estado de Direito, apesar de todo o seu caráter “de direito” e de toda
sua normatividade, ainda continua sendo um Estado e contém, consequentemente,
além desse componente de Estado de direito civil-burguês, um outro componente
especificamente político (…) O político não pode ser separado do Estado – que é a
unidade política de um povo – e, despolitizar o direito constitucional não significaria
nada além de desestatizar173.
O estatuto jurídico do Rechtstaat é, pois, para Schmitt, incapaz de estabelecer uma
forma política, porém, paradoxalmente, traz consigo um sentido político, mesmo que
negativo: a politicidade do Rechtsstaat é, precisamente, a recusa de qualquer politicidade na
umschriebener Kompetenzen erfaßt. Das Verteilungsprinzip – prinzipiell unbegrenzte Freiheit des einzelnen,
prinzipiell begrenzte Machtbefugnis des Staates – findet seinen Ausdruck in einer Reihe von sog. Grund- oder
Freiheitsrechten; das Organisationsprinzip ist in der Lehre von der sog. Gewaltenteilung enthalten, d. h. der
Unterscheidung verschiedener Zweiger staatlicher Machtausübung, wobei hauptsächlich die Unterscheidung von
Gesetzgebung, Regierung (Verwaltung) und Rechtspflege – Legislative, Exekutive und Justiz – in Betracht
kommt”.
172
VL, p. 41: “Das Bestreben des bürgerlichen Rechtsstaates geht aber dahin, das Politische zurückzudrängen,
alle Äußerungen des staatliche Tätigkeit in Kompetenzen, d. h. genau umschriebene, prinzipiell begrenzte
Zuständigkeiten zu verwandeln”.
173
VL, p. 125: “In Wahrheit bleibt der Rechtsstaat, trotz aller Rechtlichkeit und Normativität, doch immer ein
Staat und enthält infolgedessen außer dem spezifisch bürgerlich-rechtsstaatlichen immer noch einen anderen
spezifisch politischen Bestendteil (…) Das Politische kann nicht vom Staat – der politischen Einheit eines
Volkes – getrennt werden, und das Staatsrecht entpolitisieren, hieße nichts anderes als das Staatsrecht
entstaatlichen”. Sobre o conceito político e o conceito jurídico de lei, cf. KERVÉGAN, 1992, p. 55- 60.
237
174
Especificamente em relação ao problema do Parlamentarismo no Rechtsstaat e na República de Weimar, cf.
LL e GLhP; GALLI, 2010, p. 463-512; BEAUD, 1997, p. 49-58.
175
Estes argumentos foram expostos por KERVÉGAN, 1992, p. 67 et seq., adaptados e expandidos, porém, na
investigação a seguir.
176
Sobre a concepção do Normativismus, cf. HERRERA, 2010, p. 86-101.
238
O Estado não tem uma constituição “de acordo com a qual” se forma e funciona uma
vontade estatal, ele é constituição, isto é, uma situação dada sobre o modo de ser, um
estatuto de unidade e ordem. O Estado deixaria de existir caso essa constituição, ou
seja, caso essa unidade e ordem cessasse. A constituição é sua “alma”, sua vida
177
BP, p. 20: “Staat ist seinem Wortsinn und seiner geschichtlichen Erscheinung nach ein besonders gearteter
Zustand eines Volkes, und zwar der im entscheidenden Fall maßgebende Zustand und deshalb, gegenüber den
vielen denkbaren individuellen und kollektiven Status, der Status schlechthin”.
239
178
VL, p. 4: “Der Staat hat nicht eine Verfassung, 'der gemäß' ein staatlicher Wille sich bildet und funktioniert,
sondern der Staat ist Verfassung, d.h. ein seinsmäßig vorhandener Zustand, ein status von Einheit und Ordnung.
Der Staat würde aufhören zu existieren, wenn diese Verfassung, d.h. diese Einheit und Ordnung aufhörte. Die
Verfassung ist seine 'Seele', sein konkretes Leben und seine individuelle Existenz” (grifo no original).
179
VL, p. 121: “ein Begriff wie 'Verfassung' nicht in Normen und Normativitäten aufgelöst werden kann. Die
politische Einheit eines Volkes hat in der Verfassung ihre konkrete Existenzsform (…) Vor jeder Norm steht die
konkrete Existenz des politisch geeinten Volkes”.
240
(II) Para Schmitt, porém, o político não se esgota na realidade estatal, pois o Estado
como status da unidade política não é nada mais do que o status político de um povo
organizado em um território, ou seja, a forma institucional moderna do político conforme a
tese afirmada logo no ínicio do Begriff des Politischen, "o conceito de Estado pressupõe o
conceito do político"180 e aprofundada na Verfassungslehre. Entretanto, a pressuposição
(Voraussetzung) estabelecida por Schmitt se realiza tanto de forma lógica quanto de forma
histórica, isto é, enquanto concreta unidade política de um povo, o Estado se estrutura através
do político, já que o político é estrutura relacional, necessária e suficiente, para a
determinação da politicidade de uma situação. Assim, apesar de lúcido quanto à distinção
conceitual e lógica entre Estado e político, em relação ao ponto de vista histórico, Schmitt
hesitava na dissociação da articulação moderna, pois embora lógica e conceitualmente
distintos, o estatal e o político empiricamente se identificaram por muitos séculos. Para
Schmitt, o Estado moderno conseguira identificar os conceitos de estatal e do político, pois foi
capaz de "conseguir a paz em seu interior e excluir a inimizade como conceito jurídico" 181,
precisamente, tal movimento de ordenação se deu em torno do Estado como "o campo de
referência do político"182, no qual pôs-se fim às guerras civis confessionais dos séculos XVI e
XVII. No entanto, no Vorwort à edição de 1963 do Der Begriff des Politischen, após analisar
o esgotamento da "época da estatalidade", e consequentemente de todo quadro teórico da
política moderna, afirma que "destrona-se o Estado como o modelo da unidade política, o
Estado como o titular do mais admirável monopólio entre todos, o monopólio da decisão
política"183. Em outros termos, em relação à Zeitalter der Staatlichkeit e a configuração do jus
publicum europaeum:
Não faz muito tempo, a parte européia da humanidade vivia uma época em que os
conceitos jurídicos procediam integralmente do Estado e o supunham como modelo
de unidade política. (…) Realmente existiu a época em que a identificação dos
conceitos estatal e político era justificada, pois o Estado europeu clássico tinha
conseguido essa coisa completamente inverossímil que foi instaurar a paz no interior
e excluir a hostilidade enquanto conceito do direito. (…) E, de fato, dentro desse
Estado não havia mais do que uma polícia, a política estava ausente (…) somento
era político no sentido pleno, alta política, a política externa praticada por um Estado
180
BP, p. 20: "Der Begriff des Staates setzt den Begriff des Politischen voraus". Em contraposição clara à
afirmação de Jellinek que afirma: “Politisch heisst staatlich; im Begriff des Politischen hat man bereits den
Begriff des Staates gedacht” apud GALLI, 2010, p. 755.
181
Para o trecho inteiro, cf. BP, p. 10: "Es gab wirklich einmal eine Zeit, in der es sinnvoll war, die Begriffe
Staatlich und Politisch zu identifizieren. Denn dem klassischen europäischen Staat war etwas ganz
Unwahrscheinliches gelungen: in seinem Innern Frieden zu schafen und die Feindschaft als Rechtsbegriff
auszuschließen".
182
BP, p. 9: "das Beziehungsfeld des Politischen".
183
BP, p. 10: "Der Staat als das Modell der politischen Einheit, der Staat als der Träger der erstaunlichsten aller
Monopole, nähmlich der Monopols der politischen Entscheidung, dieses Glanzstück europäischer Form und
occidentalen Rationalismus, wird entthront".
241
soberano enquanto tal em relação a outros Estados soberanos que reconhecia como
tais184.
Além disso, a consequência imediata do conceito do político para a realidade estatal
internacional é a configuração de um pluriversum político, ou seja, a existência de um
complexo de unidades políticas distintas, pois não há de se falar sobre um universum, mas sim
em um pluriversum, uma vez que "da característica conceitual do político resulta o pluralismo
do universo de Estados. A unidade política pressupõe a possibilidade real de existência do
inimigo e, com ela, outra unidade política coexistente (...) O mundo político é um
Pluriversum, e não um Universum"185. Assim, esta é a condição do Estado na teoria do
político, pois mesmo relativizada em sua centralidade não há dúvidas de que a forma política
da unidade de um povo, da maneira como se estabelecera na modernidade, deve ser
considerada a forma superior de organização política186, pois é a politicidade do Estado que
dele a unidade determinante e mais influente de um agrupamento humano:
184
BP, p. 10-11 (Prefácio da edição de 1963): “Der europäische Teil der Menschheit lebte bis vor kurzem in
einer Epoche, deren juristische Begriffe ganz vom Staate her geprägt waren und den Staat als Modell der
politischen Einheit voraussetzten (…) Es gab wirklich einmal eine Zeit, in der es sinnvoll war, die Begriffe
Staatlich und Politisch zu identifizieren. Denn dem klassischen europäischen Staat war etwas ganz
Unwahrscheinliches gelungen: in seinem Innern Frieden zu schaffen und die Feindschaft als Rechtsbegriff
auszuschließen (…) Politik im großen Sinne, hohe Politik, war damals nur Außenpolitik, die ein souveräner
Staat als solcher, gegenüber andern souveränen Staaten, die er als solche anerkannte”.
185
BP, p. 54: "Aus dem Begriffsmerkmal des Politischen folgt der Pluralismus der Staatenwelt. Die politische
Einheit setzt die reale Möglichkeit des Feindes und damit eine andere, koexistierenden, politische Einheit voraus
(...) Die politische Welt ist ein Pluriversum, kein Universum".
186
Embora da perspectiva de uma teoria normativa do Estado, segundo OLIVEIRA, 2003, p. 333-363, em
comentário à obra de V. Hösle, há também o reconhecimento do Estado enquanto forma política superior.
187
BP, p. 43: "Die politische Einheit ist eben ihrem Wesen nach die maßgebende Einheit, gleichgültig aus
welchen Kräften sie ihre letzten psychischen Motive zieht. Sie existiert oder sie existiert nicht. Wenn sie
existiert, ist sie die höchste, d.h. im entscheidenden Fall bestimmende Einheit".
242
privado, sociedade civil e Estado, cuja consequência seria a extensão radical do político para
qualquer instância da ação humana, pois a interpenetração entre sociedade e Estado provocou
uma politização total uma vez que, quando separadas, as esferas sociais e políticas não se
imiscuiam, porém quando confundidas, há uma expansão do político tornando políticas
relações outrora meramente sociais. Isso acarreta um declínio da Staatlichkeit moderna, mas
não do político que a partir da preeminência do econômico e da ruptura com o direito
internacional europeu moderno apresenta-se, renovado, em outras relações humanas188.
(III) A tese do Estado Total (totalen Staat) é desenvolvida, para além da controvérsia
nazista, a partir da análise das transformações do Estado moderno no século XX que indica,
na verdade, a transformação do político, mais precisamente, sua intensificação e extensão. A
questão posta por Schmitt trata do problema dos meios de subordinação e intervenção na
sociedade, marcados pelo desenvolvimento das técnicas de comunicação e dos métodos e
aparatos militares. De fato, o Estado total é um Estado da era da técnica. Após o Estado
absolutista do século XVII e XVIII e do Estado neutro do século XIX, surge o Estado Total
como identidade entre sociedade e Estado189, pois a dissolução das delimitações entre as
esferas da sociedade e do Estado provocou a indistinção daquela divisão bastante clara até o
século XIX:
188
Conforme KERVÉGAN, 1992, p. 80-81: “Il semble pourtant que l'Etat soit devenu la forme indépassable du
politique. Très probablemen, la forme politique qui succédera à l'Etat libéral sera encore un type – inédit – d'Etat
(..) Au moment même où il s'efforce de dissocier conceptuellement Etat et politique, Schmitt paraît ainsi
constater leur identification durable”.
189
Sobre o tema, cf. “Die Wendung zum totalen Staat”, In: PuB, p. 166-178; “Starker Staat und gesunde
Wirtschaft”, In: SGN, p. 71-91; “Weiterentwicklung des totalen Staates in Deutschland”, In: VA, p. 359-366;
comentários sobre a distinção entre Estado total por debilidade (aus Schwäche) e Estado total por força (aus
Stärke), cf. HOFMANN, 2002, p. 112-116; GALLI, 2010, p. 683-702; KERVÉGAN, 1992, p. 85-109.
190
HV, p. 78-79, apud, KERVÉGAN, 1992, p. 87.
191
BP, p. 24: “In ihm ist infolgedessen alles wenigstens der Möglichkeit nach politisch, und die Bezugnahme auf
den Staat ist nicht mehr imstande, ein spezifisches Unterscheidungsmerkmal des 'Politischen' zu begründen”.
243
imanente que o impulsiona como existência política. O primeiro tipo de Estado total possui
três características: é um Estado providência ou social, um Estado de partidos e um Estado
administrativo192, ou seja, configura-se como um Estado que intervém em todos os domínios
da existência humana – econômico, social, cultural, etc. – e, além disso, é determinado por um
regime partidário pluralista – parlamentarismo – que transfere o monopólio do político do
Estado aos partidos e, afinal, é caracterizado pela substituição das instâncias de decisão
política por uma burocratização da administração. Por outro lado, o Estado total por força é
movido pela autêntica politicidade, isto é: “consegue distinguir entre amigo e inimigo. Nesse
sentido, todo Estado autêntico é um Estado total; sempre tem sido assim, enquanto societas
perfecta deste mundo; há muito tempo, os teóricos do Estado sabem que o político é o
total”193, ou seja, não há nada que não possa ser, ao menos potencialmente, estatal e político.
Entretanto, Schmitt argumenta que o Estado total por força resulta do processo democrático
de identificação entre o Estado e o povo e não entre o Estado e a sociedade (leia-se:
economia). Desse modo, ao dar ênfase ao aspecto democrático, o jurista procura uma
legitimação plebiscitária ao Estado que se tornaria, então, numa grandeza política, pois
substituiria a lógica liberal por uma lógica democrática, ou seja, um princípio econômico por
outro especificamente político, pois, ao comentar sobre Estado fascista em 1929, Schmitt
revela o que está em questão nessa substituição, no fundo, uma teoria que não é
antidemocrática, mas sim antiliberal:
192
Cf. “Weiterentwicklung des totalen Staats in Deutschland”, In: VA, p. 359-366; cf. a excelente exposição de
KERVÉGAN, 1992, p. 85-109.
193
“Weiterentwicklung des totalen Staats in Deutschland”, p. 361: Ein solcher Staat kann Freund und Feind
unterscheiden. In diesem Sinne ist, wie gesagt, jeder echte Staat ein totaler Staat; er ist es, als eine societas
perfecta der diesseitigen Welt, zu allen Zeiten gewesen; seit langem wissen die Staatstheoretiker, daß das
Politische das Totale ist”.
194
“Wesen und Werden des faschistischen Staates”, in: PuB, p. 126 : “Daß der Faschismus auf Wahlen verzichtet
und den ganzen 'elezionismo' haßt und verachtet ist nicht etwa undemokratisch, sondern antiliberal und
entspringt der richtigen Erkenntnis, daß die heutigen Methoden geheimer Einzelwahl alles Staatliche und
Politische durch eine völlige Privatisierung gefährden, das Volk als Einheit ganz aus der Öffentlichkeit
verdrängen (der Souverän verschwindet in der Wahlzelle) und die staatliche Willensbildung zu einer
Summierung geheimer und privater Einzelwillen, das heißt in Wahrheit unkontrollierbarer Massenwünsche und
ressentiments herabwürdigen (…) Jene Gleichsetzung von Demokratie und geheimer Einzelwahl aber ist
Liberalismus des 19. Jahrhunderts und nicht Demokratie”.
244
197
BP, p. 27: "Den extremen Konfliktsfall können nur die Beteiligten selbst unter sich ausmachen; namentlich
kann jeder von ihnen nur selbst entscheiden, ob das Anderssein des Fremden im konkret vorliegenden
Konfliktsfalle die Negation der eigenen Art Existenz bedeutet und deshalb abgewehrt oder bekämpft wird, um
die eigene, seinsmäßige Art und Leben zu bewahren".
198
Para Hegel, o inimigo é a diferença ética enquanto negação do estranho em sua totalidade, pois, conforme
trecho de Hegel citado por Schmitt, BP, p. 62: "eine solche Differenz ist der Feind, und die Differenz, in
Beziehung gesetzt, ist zugleich als ihr Gegenteil des Seins der Gegensätze, als das Nichts des Feindes, und dies
Nichts auf beiden Seiten gleichmäßig ist die Gefahr des Kampfes. Dieser Feind kann für das Sittliche nur ein
Feind des Volkes und selbst nur ein Volk sein". Sobre o conceito de hostis e de inimicus, cf. BP, p. 29 et seq.
Sobre a relação entre Schmitt e Hegel, por todos cf. KERVÉGAN, 1992, et all.
246
vida ou morte. Nestes termos, qualquer conflito entre grandezas públicas é um justus bellum e
o inimigo um justis hostis, pois a relação amigo-inimigo pressupõe uma definição pública na
medida em que a definição schmittiana do politisch torna sinônimos os termos político e
polêmico, mas também político e público e, por conseguinte, a definição da inimizade, mesmo
que a noção de uma guerra civil não seja abordada por esta perspectiva.
Todavia, a ocorrência da criminalização do inimigo rompeu com a tradição do Jus
Publicum Europaeum199 que estabelecera a distinção entre criminoso e inimigo; este teria um
status jurídico e não poderia ser objeto de aniquilação porquanto seria o outro, diferente e
estranho, em um sentido intenso e existencial, com o qual, em caso extremo, o conflito fosse
possível, porém possuidor dos mesmos direitos e equivalentes numa configuração jurídica por
meio da qual ao final de uma guerra poderia chegar a um acordo de paz. Assim, para Schmitt,
não é suficiente apenas a distinção entre amigos e inimigos, mas é necessária também a
distinção entre paz e guerra e a concreta possibilidade desta, já que as relações de
antagonismo entre amigos e inimigos tornam imperativo o enfrentamento do inimigo por
motivos político-existenciais: "a guerra decorre da inimizade, pois esta é a negação que dá a
medida (seinsmäßige) de um outro ser. A guerra é apenas a realização extrema da inimizade
(...) tendo, antes, que permanecer existente como possibilidade real"200. A guerra para Schmitt
é uma espécie de situação-limite a partir da qual se determina a política, mesmo que seja
difícil imaginar uma relação de precedência da inimizade diante do conceito de guerra. Esta
crítica, no entanto, servirá de argumento importante para a configuração de uma ontologia do
antagonismo no capítulo 3. É uma espécie de pressuposição sempre presente (vorhandene
Vorausetzung), pois "o político não reside no conflito em si, (...) (mas sim) em um
comportamento determinado por essa possibilidade real na clara compreensão da própria
situação assim determinada e na incumbência de distinguir entre amigos e inimigos"201. A
partir disso, outra relação que se estabelece de forma inevitável na obra de Schmitt é entre as
noções de Krieg (guerra) e de Feind (inimigo). Neste caso, o conceito de paz não é
considerado, segundo Schmitt, como um conceito político, pois pressupõe a eliminação da
199
Sobre a criminalização do inimigo, cf. Die Wendung zum diskriminierenden Kriegsbegriff. In: FoP, p. 518-
597. Contemporaneamente, o desenvolvimento da guerra levou a conceitos de paz e de inimigos totalizantes, cf.
TP; "Die Wendung zum totalen Staat". In: PuB, p. 166-178; "Totaler Feind, totaler Krige, totaler Staat". In: PuB,
p. 268-273.
200
BP, p. 33: "Der Krieg folgt aus der Feindschaft, denn diese ist seinsmäßige Negierung eines anderen Seins.
Krieg ist nur die äußerste Realisierung der Feindschaft (...) wohl aber muß er als reale Möglichkeit vorhanden
bleiben, solange der Begriff des Feindes seinen Sinn hat".
201
BP, p. 37: "Das Politische liegt nicht im Kampf selbst (...) (sondern) in einem von dieser realen Möglichkeit
bestimmten Verhalten, in der klaren Erkenntnis der eigenen, dadurch bestimmten Situation und in der Aufgabe,
Freund und Feind richtig zu unterscheiden".
247
hostilidades e, dessa forma, a exterminação do inimigo que, porém, sequer mais recebe esta
denominação porquanto tornou algo fora da humanidade.
Como consequência da específica categoria política acima apontada, tem-se a
impossibilidade da constituição de um Estado mundial, pois, segundo Schmitt, como já
descrito, a condição do político necessariamente estabelece uma configuração plural na ordem
internacional, isto é, um pluriversum ou invés de um universum de unidades políticas. Disso
decorre que a concepção de pluriversum político, ou seja, a realidade política internacional é
composta por um complexo de unidades políticas soberanas, sendo impraticável, na teoria
schmittiana, um Estado, República, Federação ou Império mundial que agrupassem todos os
Estados e eliminasse a distinção especificamente política entre amigos e inimigos e a
possibilidade da guerra. Caso houvesse um universum, a condição do político seria negada e,
quando muito, um tal mundo apolítico se configuraria como uma forma técnico-econômica,
mas não governado, muito menos político.
A formação do conceito de inimizade é analisada por Schmitt como argumento
através do qual insere o elemento da eventualidade e contingência na política: não é
simplesmente uma contraposição objetiva e determinada, nem mesmo basta ser o outro e o
estrangeiro para considerá-lo inimigo, mas sim o diferente em um sentido existencial e
intenso. Em outras palavras: aquela alteridade que, no caso extremo, representa faticamente a
negação do próprio modo de existir e, por isso, torna-se necessário diferir e defender-se com o
intuito de preservação de si próprio. Essa perspectiva exclui da exclusão a discriminação
moral e a criminalização jurídica: o inimigo não é um conceito tratado através de normas e,
enquanto tal, é existencial e político, portanto, não se tem como qualificá-lo moralmente, pois
é a decisão sobre o inimigo que constitui a identidade e, por conseguinte, ordena o próprio
direito e a própria moral: o diferente é excluído da co-vivência como ato originário da decisão
sobre a constituição da identidade, pois o estrangeiro representa a negação do próprio modo
de ser o que implica, naturalmente, a necessidade da neutralização de um inimigo e a
pacificação da ordem interna. A partir da tese de que só existe identidade política caso haja
inimigo público, a determinação da ordem é tem causa na contingência concreta da exclusão
do inimigo. Assim, a origem da política é um ato de exclusão, pois na mesma medida em que
há a exclusão e diferença, há também a constituição do político como unidade e ordem.
Entretanto, o que está em jogo na argumentação schmittiana, ao menos no que se
refere ao objeto das investigações realizadas, é que a experiência política está marcada por
uma faticidade radical, qual seja, a existência concreta e contingente, pois uma vez que o
momento da distinção e da diferença é a origem do político, o inimigo torna-se,
248
202
A tese proposta por MEIER, 1998, p. 26-27 “Carl Schmitt's concept of the political presupposes the concept
of the enemy. The political can endure only so long as there is an enemy, 'at least as a real possibility', and the
political is real only where the enemy is know. Knowledge of the enemy seems to be fundamental in every way
(…) The central meaning that the distinction between friend and enemy is accorded in Schmitt's thought can
only be comprehended, the entire weight that Schmitt gives his criterion of the political only appreciated, by one
who does not fail to attend to that other criterion wich subjects the affirmation or negation of enmity to the
political-theological distinction”. O próprio Schmitt no Vorwort de 1963 ao Der Begriff des Politischen rejeita
tal interpretação e, como já exposto nesta pesquisa, o argumento central para compreender corretamente a tese
do amigo e do inimigo em Schmitt é o da polemicidade que pressupõe os dois momentos como inseparáveis.
203
BP, p. 26: "Die spezifisch politische Unterscheidung, auf welche sich die politischen Handlungen und Motive
zurückführen lassen, ist die Unterscheidung von Freund und Feind".
204
BP, p. 38: "es bezeichnet kein eigenes Sachgebiet, sondern nur den Intensitätsgrad einer Assoziation oder
Dissoziation von Menschen".
249
transforma-se em uma dissociação política quando discrimina entre amigos e inimigos diante
da possibilidade da morte, o que caracteriza em termos gerais o existencialismo político de
Schmitt, mesmo que, aparentemente, não haja afetos, paixões na relação política: seria uma
pulsão desapaixonada ou um afeto público, se é que seja possível. Entretanto, não se pode
reduzir o critério do político ao momento da negatividade originária e afirmar simplesmente
que o político é caracterizado pela inimizade ou pelo afeto impessoal208. A dialética do
político exige os dois momentos: amizade e inimizade. Não existe apenas inimigo e dissenso
radical, mas também associação e identidade. A sutileza do argumento schmittiano, como
afirma o autor num texto chave sobre Däubler, para compreender o que está em jogo é que "o
inimigo é a nossa própria pergunta enquanto forma e ele nos arrasta, e nós a ele, para o
mesmo fim"209. Assim, Schmitt busca na condição humana, o significado do político, ou seja,
o elemento antagonístico que une e separa os homens, seja pelo consenso seja pelo dissenso
que se desenvolve numa instância fática da vida humana e, portanto, torna-se prescindível a
referência a normatividades ou fundamentos racionais. O inimigo, no fundo, é o meu irmão e
Schmitt pensa em termos pouco normativos esta relação política por excelência.
A partir disso, o autor propõe a tese da autonomia do político através de um critério
próprio para a identificação do fenômeno, pois "a objetividade que dá a medida (die
seinsmäßige Sachlichkeit) e a autonomia do político já se apresentam nesta possibilidade de
separar-se de outras diferenciações tal contraposição específica como aquela entre amigo e
inimigo e de concebê-la como algo autônomo"210. Assim, as relações sociais seriam
construídas a partir de oposições específicas, ou seja, a dialética da amizade-inimizade é
constitutiva do mundo público, tornando-se o critério do político necessariamente agonístico.
Embora o autor não forneça uma definição rigorosa do que seja “político” e que, de fato, o
ponto de partida da argumentação, conforme nossa interpretação, seja o conceito de
polemicidade, ou melhor, de antagonismo – quando não o de inimigo identificado com a
guerra – este paradigma está em consonância com a tese política moderna do estado de
natureza, notoriamente, em Hobbes. Entretanto, apesar deste déficit conceitual, o que
interessa para este estudo é a possibilidade de identificar o político e, por conseguinte, a
origem da ordem, a partir da existencialidade e do conflito sem apelo à normatividades
anteriores à esfera fática e, por conseguinte, caracterizar uma teoria política pragmática. Não à
208
Sobre esta interpretação, cf. Derrida, 1.9. Desenvolvemos esta questão sob outra perspectiva no capítulo 3.
209
Gl, p. 213: "Der Feind ist unsere eigne Fragen als Gestalt. Und er wird uns, wir ihn zum selben Ende hetzen".
210
BP, p. 28: "Die seinsmäßige Sachlichkeit und Selbständigkeit des Politischen zeigt sich schon in dieser
Möglichkeit, einen derartig spezifischen Gegensatz wie Freund-Feind von anderen Unterscheidungen zu trennen
und als etwas Selbständiges zu begreifen".
251
toa, o jurista caracteriza o político a partir da diferença, tal proposta neutraliza a polarização
sobre algum tipo de primazia do conceito de inimigo ou do conceito de amigo como definidor
do político. Articulado dessa forma, o político não possui objeto ou sujeito, mas apenas
relações e diferenças produzidas de maneira imanente o que põe a contraditoriedade das
formas de vidas como a origem da ordem jurídico-política a partir de onde aufere sua
legitimidade, que para todos os efeitos, refere-se apenas à sua própria existência. De certa
forma marcado por um “conflitualismo”, Schmitt, porém, consegue elaborar uma teoria que
justifica a ordem normativa sem necessidade de alguma instância não política, isto é, a teoria
do político schmittiana não se configura como simplesmente irracional ou destrutiva, ao
contrário, busca estabelecer as condições concretas, por assim dizer, a existência fática de um
ordenamento como precondição da validade normativa de um ordenamento jurídico e,
portanto, um fundamento propriamente político como autêntico e real o que, afinal, articula-se
de certa forma à tradição de pensamento que de Treitschke, Ratzenhofer e Simmel ao propor a
vinculação da política aos conceitos de Macht, Kampf e Feindseligkeit211.
Ademais, segundo Schmitt, o conceito de amigo implica em sede de teoria da
democracia o conceito de homogeneidade. Para ele, há dois princípios fundamentais da forma
política, quais seja, o princípio da identidade e o princípio da representação: o primeiro,
significa a igualdade substancial entre governados e governantes, ou seja, a ausência de
diferença qualitativa; o segundo, ao contrário, significa a apresentação da unidade do todo,
isto é, da unidade política. Para o jurista, de maneira distinta do que sustenta a teoria
democrática liberal, o princípio da identidade é o que caracteriza uma autêntica democracia,
pois não é a liberdade – sempre reduzida à liberdade individual – mas sim a homogeneidade
ou igualdade substancial – não formal e marcada por uma existencialidade concreta, isto é,
amizade – que caracteriza o conceito político de democracia. Evidentemente, a
homogeneidade ou a igualdade substancial possui, necessariamente, uma desigualdade que se
dá, como já demonstrado, na distinção polêmica do inimigo e, por isso mesmo, a
representação não é, segundo Schmitt, um procedimento ou um processo normativo, pois
211
Cf. GALLI, 2010, p. 743.
252
212
VL, p. 209-210: “Repräsentation ist kein normativer Vorgang, kein Verfahren und keine Prozedur, sondern
etwas Existentielle. Repräsentieren heißt, ein unsichtbares Sein durch ein öffentlich anwesendes Sein sichtbar
machen und vergegenwärtigen. Die Dialektik des Begriffes liegt darin, daß das Unsichtbaren als abwesend
vorausgesetzt und doch gleichzeitig anwesend gemacht wird. Das ist nicht mit irgendwelchen beliebigen Arten
des Seins möglich, sondern setzt eine besondere Art Sein voraus. Etwas Totes, etwas Minderwertiges oder
Wertloses, etwas Niedriges kann nicht repräsentiert werden. Ihm fehlt die gesteigerte Art Sein, die einer
Heraushebung in das öffentliche Sein, einer Existenz, fähig ist”.
213
Ao contrário, na teoria do nomos os dois elementos da ordem – sua faticidade (existência) e sua validade
(legitimidade) – são novamente considerados, porém de uma perspectiva diversa, pois se inicialmente, por um
lado, nem o racionalismo nem o realismo fraco deram conta de uma mediação entre as instâncias ideal e real, o
realismo forte da teoria do político, por outro lado, abandona completamente a necessidade de uma legitimidade
exterior ao próprio ato de instituição da ordem – distinta ou posterior enquanto qualificação do poder – e torna
desnecessária e sem sentido a pergunta pela validade transcendente ou ideal da autoridade e da ordem.
253
214
PT, p. 21: "Die Ausnahme erklärt das Allgemeine und sich selbst". Neste trecho, o teólogo protestante a quem
Schmitt se refere é Kierkergaard.
215
PT, p. 21: "Das Normale beweist nichts, die Ausnahme beweist alles; sie bestätigt nicht nur die Regel, die
Regel lebt überhaupt nur von der Ausnahme".
254
forma tal que esta só se estabelece a partir daquela, ou seja, uma ordem normativa “exige uma
configuração normal das condições de vida nas quais deve encontrar aplicação segundo os
pressupostos legais e aos quais submete à sua regulação normativa”216, assegurado
estruturalmente pelo momento da exceção. Dessa forma, paradoxalmente, a ordem contém no
seu interior a exceção, ou seja, a condição de possibilidade de sua própria validade e também
a possibilidade de sua suspensão217.
Entretanto, é necessário levar em consideração a dupla estrutura da epistemologia
schmittiana: se a exceção mostra seu caráter necessariamente partisan, que pressupõe um
mundo público determinado politicamente, ou seja, através de decisões diante do inimigo; da
mesma forma, o agonismo das forças pressupõe a exceção como possibilidade da distinção e
da ordem, uma vez que "é preciso criar um ordenamento para que o ordenamento jurídico
tenha um sentido"218. Na ausência desses elementos, não existiria distinção política ou sentido
público, seja no âmbito interno seja no âmbito externo, pois haveria apenas a esfera
incomunicável da individualidade liberal. De maneira complementar, a estrutura do
conhecimento de proposições públicas dar-se-ia em torno de antagonismos e contraposições
como substrato real, inelimináveis das relações de poder, pois essas estruturas do
conhecimento político são determinadas, por um lado, por um perspectivismo polêmico do
agrupamento amigo-inimigo; por outro, através do mecanismo da exceção. Portanto, sem a
decisão sobre a exceção e a determinação do inimigo, não há conhecimento político
propriamente dito.
Esses pressupostos e consequências epistemológicas elementares do conceito do
político schmittiano conseguem articular a constituição da ordem e a determinação da política
e do poder como estruturas fáticas necessárias diante da incognoscibilidade do romantismo e
do niilismo moderno, pois, por exemplo, ao afirmar o primado do espaço diante do nada como
na passagem a seguir do Glossarium "onde há espaço, há ser"219, Schmitt se refere à
constituição do sentido na realidade histórica concreta e à superação da Aufklärung e do
racionalismo. Assim, ao pressupor seja uma epistemologia decisionista seja uma
epistemologia da exceção, Schmitt investe contra os cânones metodológicos do racionalismo
filosófico e científico, porque rejeita tanto o positivismo quanto o idealismo: nem a redução
216
PT, p. 19: "(die Rechtsordnung) verlangt eine normale Gestaltung der Lebensverhältnisse, auf welche sie
tatbestandsmäßig Anwendung finden soll und die sie ihrer normativen Regelung unterwirft".
217
Sobre a discussão acerca da exceção no pensamento de Schmitt, mais especificamente no Die Diktatur e
Politische Theologie, cf. SCHWAB, 1989; sobre o tema da exceção em Schmitt e Benjamin, cf. DERRIDA,
2010, et. all; para uma arqueologia da influência recíproca entre os autores, cf. AGAMBEN, 2004, p. 81-98.
218
PT, p. 19: "Die Ordnung muß hergestellt sein, damit die Rechtsordnung einen Sinn hat".
219
O trecho inteiro é: "Der herrliche Nietzschesatz: Mit festen Schultern steht der Raum gegen das Nichts. Wo
Raum ist, ist Sein. Daher also der Haß gegen das Wort Raum" Gl, p. 317 .
255
positivista do objeto à um fato, cuja decisão deve ser deduzida estritamente de normas válidas
nem o quadro teórico do normativismo e a necessidade de critérios universais ou lógico-
formais. Voltaremos a este tema no próximo capítulo ao tratarmos da questão dos afeto no
corpo político.
Em última análise, promover a exceção à condição epistemológica do conhecimento
político significa, entre outras coisas, afirmar que o mundo político não é tratado apenas a
partir das normas e do sentido estabelecido racionalmente. No realismo forte schmittiano,
evita-se qualquer consideração normativa lógico-formal ou instância normativa vinculadora
da decisão do soberano de forma que não é possível conhecimento político verdadeiro seja
como representação seja como estrutura lógica, pois, como demonstrado, qualquer
conhecimento político é necessariamente situado, partidário e, segundo Schmitt, esta é a única
forma de constituição do mundo público. Assim, ao colocar o sujeito decisivo e a exceção
como fundamento da ordem política, Schmitt assume que obrigações políticas têm um
fundamento não racional o que significa que “todas as representações, palavras e conceitos
políticos possuem um sentido polêmico”220. Tal leitura tem fortes consequências na reflexão
sobre política e epistemologia: essas esferas, que se mostram vinculadas, excluem qualquer
essência ou fundamento racional e complementam o movimento de destranscendentalização
da razão e a crítica da razão idealista. Não é a questão da representação correta da realidade
através de normas, mas sim contextos particulares de usos e práticas que determinam o
conhecimento político, dito de outro modo: são as relações sociais de consenso e dissenso que
marcam nossas proposições a respeito da constituição do mundo, pois o conhecimento teórico
assim como o conhecimento prático é, segundo Schmitt, necessariamente partisan. De forma
lúcida, o jurista tedesco mostra como mesmo naqueles que se pretendem justos e pacíficos, as
relações políticas não perdem suas peculiaridades, realizando deslocamentos semânticos e
polêmicos:
Para o emprego destes meios se tem formado em todo caso, um novo vocabulário,
essencialmente pacífico, que já não conhece a guerra, mas apenas execuções,
sanções, expedições punitivas, pacificações, defesa de tratados, polícia internacional
e medidas para garantir a paz. O opositor já não se chama de inimigo, mas sim
coloca-o hors-la-loi e hors l’humanité na qualidade de violador da paz ou ameaça
contra a paz, e uma guerra levada a cabo para a manutenção ou a expansão de
posições econômicas de poder tem que ser convertida com grande inversão de
propaganda em "cruzada" e na “última guerra da Humanidade”. Assim o exige a
polaridade entre ética e economia. Em todo caso, fica descoberto nela uma
surpreendente sistematicidade e coerência, porém também este sistema
supostamente apolítico e até mesmo anti-político serve a agrupamentos do tipo
amigo-inimigo, sejam já existentes ou novos, e não podem escapar da consequência
220
BP, p. 31: "haben alle politischen Begriffe, Vorstellungen und Worte einen polemischen Sinn".
256
do político221.
A rigor, para Schmitt, a consequência do político exige que, ao invés da existência de
uma verdade (Veritas) que sirva de fundamento ao Estado, às normas, etc., haja alguém
investido de autoridade (auctoritas) e que estabeleça a decisão ao determinar o que essa
verdade significa: Quis interpretatibur?, Quis judicabit? são as questões essenciais sobre os
fundamentos do Estado e da norma como um ato de vontade que constitui uma ordem
pública:
221
BP, p. 77-78: "Für die Anwendung solcher Mittel bildet sich allerdings ein neues, essentiell pazifistisches
Vokabularium heraus, das den Krieg nicht mehr kennt, sondern nur noch Exekutionen, Sanktionen,
Strafexpeditionen, Pazifizierungen, Schutz der Verträge, internationale Polizei, Maßnahmen zur Sicherung des
Friedens. Der Gegner heißt nicht mehr Feind, aber dafür wird er als Friedensbrecher und Friedensstörer hors-la-
loi und hors l'humanité gesetzt, und ein zur Wahrung oder Erweiterung ökonomischer Machtpositionen geführter
Krieg muß mit einem Aufgebot von Propaganda zum 'Kreuzzug' und zum 'letzten Krieg der Menschheit'
gemacht werden. So verlangt es die Polarität von Ethik und Ökonomie. In ihr zeigt sich allerdings eine
erstaunliche Systematik und Konsequenz, aber auch dieses angeblich unpolitische und scheinbar sogar
antipolitische System dient entweder bestehenden oder führt zu neuen Freund- und Feindgruppierungen und
vermag der Konsequenz des Politischen nicht zu entrinnen".
222
PT, p. 61: "Der Grund liegt darin, daß in der bloßen Existenz einer obrigkeitlichen Autorität eine
Entscheidung liegt und die Entscheidung wiederum als solche wertvoll ist, weil es gerade in den wichtigsten
Dingen wichtiger ist, daß entschieden werde, als wie entschieden wird (...) das Wesentliche ist, daß keine höhere
Instanz die Entscheidung überprüft".
223
PT, p. 19: "Die Ausnahme ist das nicht Subsumierbare; sie entzieht sich der generellen Fassung, aber
gleichzeitig offenbart sie ein spezifisch-juristisches Formelement, die Dezision, in absoluter Reinheit".
257
Nesse sentido, a legitimidade de uma ordem é produzida a posteriori por sua própria
faticidade, invertendo os termos da teoria racionalista.
Assim, Schmitt elabora um realismo político forte baseado no conflito como
condição original da política de forma que qualquer pretensão de conhecimento – público, ou
seja, político – que se propõe à neutralidade, à a-historicidade ou a condições ideais de ação é
inaceitável, já que não há modo de conhecimento sobre a política fora da política ou
independente da relação de conflito, pois, para o jurista tedesco, não se pode evitar as
consequências do político: nosso olhar desenvolve-se perspectivisticamente, sendo travejado
por relações sociais de poder, visto que "todos os conceitos da esfera espiritual, inclusive o
conceito de espírito, são pluralistas em si e só podem ser compreendidos tomando como ponto
de partida a existência política concreta (...) todas as representações essenciais da esfera
espiritual dos homens são existenciais e não normativas"224. Neste ponto, outra vez, não há no
pensamento schmittiano a possibilidade da regulação racional da política ou subordinação da
política a normas morais ou jurídicas, pois seu "existencialismo político" elabora uma
reflexão sobre as concretas relações entre forças contra qualquer especulação política de
matriz normativa. Conforme Arruda, para Schmitt, “a política é o fundamento de toda
normatividade objetiva e todos os conceitos normativos somente ganham densidade quando
referidos à esfera do político”225. Em outras palavras, a legitimidade é baseada não em um
fundamento apriorístico, normativo ou abstrato, mas sim em alguma forma de poder no
interior de relações fáticas através das quais ordem e direito são estabelecidos.
O realismo político schmittiano aproxima-se de uma compreensão anti-realista do
conhecimento político porque não se admite a autoridade epistêmica do sujeito cognoscente, o
modo representacional do conhecimento de objetos nem a verdade dos juízos como certeza. O
conhecimento não é a correspondência entre proposições e fatos, pois, normas, assim como
qualquer outro objeto, são produzidas pela práxis social, e não se pode conhecer normas
anteriores às próprias relações políticas ou realizar um consenso normativo incontroverso ou
ainda demonstrar critérios transcendentais de avaliação de normas concretas, como entidades
pré-estatais ou pré-sociais. Além disso, a autoridade epistêmica passou para a primeira pessoa
do plural, o nós soberano, ou seja, tornou-se pública a partir de uma concepção democrática
como a que Schmitt postula baseado no princípio de igualdade. Há, portanto, vinculação entre
uma interpretação pragmática do realismo político forte schmittiano e a compreensão
224
ZNE (1929) In: BP, p. 84: "Alle Begriffe der geistigen Sphäre, einschließlich des Begriffes Geist, sind in sich
pluralistisch und nur aus der konkreten politischen Existenz heraus zu verstehen (...) Alle wesentlichen
Vorstellungen der geistigen Sphäre des Menschen sind existenziell und nicht normativ".
225
ARRUDA, 2003, p. 60.
258
sociológica à qual pertencem. Dessa forma, o conhecimento está numa tessitura de poder no
qual agem as forças que ditam normas e comportamentos e o resultado desse embate é
chamado, com certo apelo, de verdade. Enquanto instância de imposição, a verdade é criada
por meio da polemização ou da politização das interpretações da realidade que se torna uma
perspectiva entre várias. Não mais universal e a priori, a verdade é determinada pelo poder
soberano que a interpreta e decide, portanto, estabelece-a institucionalmente: o único critério
para a verdade de um enunciado consiste em que medida ela está em condições de se impor
contra outros enunciados, ou seja, se ela é ou não confirmada e reconhecida numa relação de
supra- e subordinação aos seus destinatários. Seja na política, no direito ou em relação a uma
teoria da verdade, os interesses, vontades e necessidades, ou ainda as crenças e os desejos de
um grupo atuam como formas de produzir imagens de acordo com sua estrutura e valores: “a
partir da conceitualidade jurídica orientada nos próximos e práticos interesses da vida jurídica,
encontra-se a última estrutura radicalmente sistemática e essa estrutura conceitual é
empregada com a assimilação conceitual da estrutura social de certa época”228.
228
PT, p. 50: "hinausgehend über die an den nächsten praktischen Interessen des Rechtslebens orientierte
juristische Begrifflichkeit, die letzte, radikal systematische Struktur gefunden und diese begriffliche Struktur mit
der begrifflichen Verarbeitung der sozialen Struktur einer bestimmten Epoche verglichen wird". A partir daí,
Schmitt propõe a denominada sociologia dos conceitos que consiste, em breves palavras, na investigação
científica e teórica da história dos conceitos políticos constituindo uma espécie de hermenêutica do político em
Schmitt.
229
BP, p. 27-28: "In der psychologischen Wirklichkeit wird der Feind leicht als böse und häßlich behandelt, weil
jede, am meisten natürlich die politische als die stärkste und intensivste Unterscheidung und Gruppierung, alle
verwertbaren anderen Unterscheidungen zur Unterstützung heranzieht".
230
BP, p. 64-65: "Bei Hobbes, einem großen und wahrhaft systematischen politischen Denker, sind daher die
'pessimistische' Auffassung des Menschen, ferner seine richtige Erkenntnis, daß gerade die auf beiden Seiten
vorhandene Überzeugung des Wahren, Guten und Gerechten die schlimmsten Feindschaften bewirkt".
260
Aos opositores políticos de uma teoria política lúcida não lhes resultará difícil,
portanto, tomar uma concepção e descrição clara dos fenômenos políticos e, em
nome de alguma instância autônoma, declará-la imoral, antieconômica, acientífica e,
sobretudo – já que isso é o que importa politicamente – colocá-la hors- la-loi como
algo demoníaco que deve ser combatido 231.
Todo discurso é necessariamente situado, pois qualquer discurso que se pretenda
neutro ou imparcial cai numa contradição performativa, ou seja, nega aquilo mesmo que
pressupõe: sua situacionalidade histórica fundamental. Poderíamos arriscar dizer que, por se
tratar de afetos, há inter-esse como forma de conehcimento e ação do corpo político. A relação
com o direito e o poder é da mesma natureza, segundo Schmitt, pois:
Em primeiro lugar, se tem que perguntar se por direito se entendem as leis positivas
e os métodos legislativos existentes que devem seguir em vigência porque, nesse
caso, o “império das leis” não significa mais que a legitimação de um status quo
determinado em cujo sustentamento naturalmente tem interesse todos aqueles cujo
poder político ou cujas vantagens econômicas se estabilizaram nesse Direito 232.
Não apenas as configurações estruturais de uma sociedade são resultantes das
disputas e embates, como vimos, mas também as relações entre verdade e normas observam e
acompanham o que o poder e a ordem fazem valer como tais. O direito funciona como
elemento estabilizador de um status de uma circunstância atravessada por fluxos de forças.
Mais uma vez Schmitt:
São sempre grupos humanos concretos os que lutam contra outros grupos humanos
concretos em nome do direito, da humanidade, da ordem ou da paz. Se tem que ser
consequente com seu próprio pensamento político ainda a risco de que acusem de
imoralidade e cinismo, o observador dos fenômenos políticos apenas pode ver neles
231
BP, p. 65: "Den politischen Gegnern einer klaren politischen Theorie wird es deshalb nicht schwer, die klare
Erkenntnis und Beschreibung politischer Phänomene und Wahrheiten im Namen irgendeines autonomen
Sachgebiets als unmoralisch, unökonomisch, unwissenschaftlich und vor allem – denn darauf kommt es politisch
an – als bekämpfenswerte Teufelei hors-la-loi zu erklären".
232
BP, p. 66: "erstens, ob 'Recht' hier die bestehenden positiven Gesetze und Gesetzgebungsmethoden
bezeichnet, die weiter gelten sollen; dann bedeutet die 'Herrschaft des Rechts' nämlich nichts anderes als die
Legitimierung eines bestimmten status quo, an dessen Aufrechterhaltung selbstverständlich alle ein Interesse
haben, deren politische Macht oder ökonomischer Vorteil sich in diesem Recht stabilisiert".
233
BP, p. 66: "die Souveränität des Rechts nur die Souveränität der Menschen bedeutet, welche die
Rechtsnormen setzen und handhaben, daß die Herrschaft einer 'höheren Ordnung' eine leere Phrase ist, wenn sie
nicht den politischen Sinn hat, daß bestimmte Menschen auf Grund dieser höheren Ordnung über Menschen
einer 'niederen Ordnung' herrschen wollen".
261
Também aqui são possíveis numerosos tipos e graus do caráter polêmico, mas
sempre permanece distinguível o essencialmente polêmico das construções políticas
semânticas e conceituais. Questões terminológicas tornam-se, assim, questões de
alta política; uma palavra ou expressão pode ser, simultaneamente, reflexo, sinal,
distintivo e arma de um conflito inimigo 235.
Isso significa afirmar que os termos utilizados não possuem uma semântica fixada a
priori ou apenas pelo uso, como tradicionalmente a Filosofia da Linguagem assevera, mas
insere na significação dos termos da linguagem o contexto e as relações de poder nas quais o
usuário se situa. Assim, a situação do usuário da linguagem em questões políticas –
virtualmente, para Schmitt, engloba qualquer relação – é marcada por sua vinculação
existencial, porém, isso tem como consequência que a semântica é fundada pela pragmática
mediante o contexto de antagonismo e que é urgente a necessidade de uma teoria política da
linguagem que justifique o estado da questão ainda tão incipiente.
234
BP, p. 66-67: "denn es sind immer konkrete Menschengruppen, die im Namen des 'Rechts' oder der
'Menschheit' oder der 'Ordnung' oder des 'Friedens' gegen konkrete andere Menschengruppen kämpfen, und der
Betrachter politischer Phänomene kann, wenn er konsequent bei seinem politischen Denken bleibt, auch in dem
Vorwurf der Immoralität und des Zynismus immer wieder nur ein politisches Mittel konkret kämpfender
Menschen erkennen".
235
BP, p. 31: "Auch hier sind zahlreiche Arten und Grade des polemischen Charakters möglich, doch bleibt das
wesentlich Polemische der politischen Wort- und Begriffsbildung stets erkennbar. Terminologische Fragen
werden dadurch zu hochpolitischen Angelegenheiten; ein Wort oder ein Ausdruck kann gleichzeitig Reflex,
Signal, Erkennungszeichen und Waffe einer feindlichen Auseinandersetzung sein".
262
236
BP, p. 31-32: "Der polemische Charakter beherrscht vor allem auch den Sprachgebrauch des Wortes
'politisch' selbst, gleichgültig, ob man den Gegner als 'unpolitisch' (im Sinne von weltfremd, das Konkrete
verfehlend) hinstellt, oder ob man ihn umgekehrt als 'politisch' disqualifizieren und denunzieren will, um sich
selbst als 'unpolitisch' (im Sinne von rein sachlich, rein wissenschaftlich, rein moralisch, rein juristisch, rein
ästhetisch, rein ökonomisch, oder auf Grund ähnlicher polemischer Reinheiten) über ihn zu erheben".
237
PuB, p. 202: "entscheidenden politischen Begriffen kommt es eben darauf an, wer sie interpretiert, definiert
und anwendet; wer durch die konkrete Entscheidung sagt, was Frieden, was Abrüstung, was Intervention, was
öffentliche Ordnung und Sicherheit ist. Es ist eine der wichtigsten Erscheinungen im rechtlichen und geistigen
263
Leben der Menschheit überhaupt, daß derjenige, der wahre Macht hat, auch von sich aus Begriffe und Worte zu
bestimmen vermag. Caesar dominus et supra grammaticam: der Kaiser ist Herr auch über die Grammatik".
238
Sobre a teoria das garantias institucionais de Schmitt, cf. VL, § 14, principalmente, p. 170-174;
"Freiheitsrechte und institutionelle Garantien der Reichsverfassung" (1931), In: VA, p. 140-173; cf. ainda
BONAVIDES, 2004, p. 535-578; BEAUD, 1997, p. 89-96.
239
LL, p. 52-53: "Wo in einem größeren Umfang ein bestimmter Komplex materiallen Rechts, als ein Komplex
höherer Art, dem vom einfachen Gesetzgeber gesetzten materiellen Recht, als einem Komplex niederer Art,
gegenübersteht, und diese Unterscheidung gerade auf dem Mißtrauen gegen den einfachen, das heißt den
ordentlichen Gesetzgeber beruht, bedarf der Komplex höherer Normen konkreter organisatorischer Einrichtung,
um vor dem einfachen ordentlichen Gesetzgeber geschützt zu sein. Denn keine Norm, weder eine höhere noch
eine niedere, interpretiert und handhabt, schützt oder hütet sich selbst; keine normative Geltung macht sich selbst
geltend; und es gibt auch – wenn man sich nicht in Metaphern oder Allegorien ergehen will – keine Hierarchie
der Normen, sondern nur eine Hierarchie konkreter Menschen und Instanzen".
264
compreensão da relação entre linguagem e poder, bem como para o assentamento da noção de
pragmatismo político algumas considerações sobre a estrutura da norma, pois esta como
expressão jurídica do poder, segundo a lógica deôntica tradicional, enuncia uma obrigação,
proibição ou permissão; por exemplo, o enunciado "é proibido matar alguém salvo em caso de
necessidade" é verdadeiro e o enunciado "é pertimido não cumprir as promessas" é falso, ou
seja, enunciados deônticos afirmam que existem ou não determinadas obrigações e podem ser
verdadeiros ou falsos. Por outro lado, na base das considerações dos enunciados normativos
está a noção de imperativo ou, simplesmente, de ordem, pois enunciados normativos como os
acima só possuem valor de verdade quando se referem a obrigações previamente existentes,
porém tais obrigações previamente existentes não são nem verdadeiras nem falsas, pois ou
bem há um consenso normativo sobre valores ou bem o fato de que alguém proibe, ordena ou
permite algo, ou seja, impõe uma norma através de um ato de vontade, isto é, de autoridade é
suficiente para estabelecer sua validade numa ordem de direito, conforme a passagem:
Uma constituição não se baseia em normas, cuja correção seria o fundamento de sua
validade; ela se baseia em uma decisão do ser político que define o modo e a norma
de sua própria existência. A palavra “vontade” designa o elemento existencial
essencial deste fundamento, em oposição a qualquer dependência de critérios
normativos ou abstratos240.
A ordem põe normas e com essa manifestação afirma a validade do direito. O ato de
impor uma norma não depende das qualidades morais intrínsecas ou da necessidade lógica da
norma, mas da vontade do soberano que decide sobre sua validade. Daí, o conceito político de
norma em Schmitt, distinto do conceito formal de norma na versão liberal, revela o momento
da decisão e da autoridade, pois a norma é uma relação de mando e, como tal, revela a ordem
emitida como existencial, uma vez que esta é a decisão política como forma da unidade de um
povo. A impossibilidade de regulação racional da política se expressa na primazia do
elemento não racional que fundamenta normas, a decisão:
A Constituição não é portanto algo absoluto, na medida em que ela não se cria a si
mesma. Ela não vale também por conta de sua correção normativa ou por causa de
seu acabamento sistemático. Ela não se dá a si mesma, mas provém de uma unidade
política concreta. Linguisticamente é talvez possível dizer que uma constituição se
põe a si mesma, sem que a estranheza dessa forma de falar seja percebida de
imediato. Entretanto, que uma constituição se dê ela própria é claramente sem
sentido e absurdo. A Constituição vale por força da vontade política daquele que a
fez. Qualquer forma de normatização jurídica, inclusive as normas constitucionais,
240
VL, §8, p. 76: "Eine Verfassung beruht nicht auf einer Norm, deren Richtigkeit der Grund ihrer Geltung wäre.
Sie beruht auf einer, aus politischem Sein hervorgegangenen politischen Entscheidung über die Art und Norm
des eigenen Seins. Das Wort 'Wille' bezeichnet – im Gegensatz zu jeder Abhängigkeit von einer normativen oder
abstrakten Richtigkeit – das wesentlich Existentielle dieses Geltungsgrundes".
265
241
VL, §3, p. 22: "Die Verfassung ist also insofern nichts Absolutes, als sie nicht aus sich selber entstanden ist.
Sie gilt auch nicht kraft ihrer normativen Richtigkeit oder kraft ihrer systematischen Geschlossenheit. Sie gibt
sich nicht selbst, sondern wird für eine konkrete politische Einheit gegeben. Sprachlich ist es vielleicht noch
möglich zu sagen, daß eine Verfassung 'sich selber setzt', ohne daß die Seltsamkeit dieser Redensartsofort
auffällt. Aber daß eine Verfassung sich selber gibt, ist offenbar unsinnig und absurd. Die Verfassung gilt kraft
des existierenden politischen Willens desjenigen, der sie gibt. Jede Art rechtlicher Normierung, auch die
verfassungsgesetzliche Normierung, setzt einen solchen Willen als existierend voraus".
266
refere a estruturas interessantes, mas que se mostram limitadas: o que está em jogo aqui é a
análise do discurso no interior de um contexto histórico concreto; por isso, busca-se a partir
de Schmitt uma reabilitação da relação entre retórica e filosofia, ou em outros termos, entre
discurso-poder e saber-sistema e reintroduzi-lo neste, constituindo uma filosofia política da
linguagem na tensão entre discurso e poder.
Na pretensão de investigar a origem da ordem pública e da autoridade do poder, a
teoria do político de Schmitt afirma como realidade última condicionante, porém
incondicionada, uma existencialidade concreta originária que dá a medida (seinsmäßige
Ursprünglichkeit) e evidencia o caráter fictício de qualquer normatividade na tentativa de
fundação da ordem, inclusive, ao ponto de tornar a contraposição entre política e direito ou
poder e normas destituída de sentido, pois nesse caso considerado a partir da seinsmäßige
Ursprünglichkeit a distinção entre quaestio iuris e quaestio facti é solucionada, embora
advogando por um lado apenas. Schmitt propõe a polemicidade entre amigos e inimigos como
a categoria específica do político e o conceito de Estado como a unidade concreta de um
povo, mas a tese schmittiana de que todos os conceitos políticos são conceitos polêmicos é
mais uma expressão de uma espécie radical de pragmatismo, pois refere-se à situação
concreta histórica e à utilização semântica por um agrupamento na definição do significado.
Nesse sentido, cabe agora, finalizar a análise de teoria schmittiana investigando como se dá a
constituição da ordem e das normas através de um ato de vontade existencial.
242
BÖCKENFÖRDE, 1988, p. 283-299.
267
constituição formal e constituição material, por outro lado, a distinção sociológica entre
constituição real e constituição escrita.
Em relação ao pragmatismo político decorrente do argumento do fintismo, suas
consequências para a fundamentação da ordem pública e das normas mostram-se, em primeiro
lugar, com a investigação da Realität originária a partir da qual a constituição tem seu
fundamento, porém tal realidade referida às relações de forças e determinada, sobretudo, pela
Gesamt-Entscheidung. A decisão sobre o tipo e a forma da própria unidade política é, nesse
quadro, a decisão política fundamental da qual emerge a existência política ou o modo
concreto de ser de um povo, ratificando o momento da polemicidade como orignário da
ordem, pois nem apenas decisão sobre a exceção, nem apenas decisão sobre o inimigo, mas
decisão acerca da própria existência. O principal argumento a ser esclarecido nesta tese
schmittiana é (I) o conceito de unidade política (politische Einheit) e o desenvolvimento do
tema acerca da decisão (Entscheidung), bem como (II) analisar a tese da instituição da ordem
normativa a partir da concreta existência política; além disso, desenvolvendo a tese
interpretativa deste estudo, apresenta-se (III) a teoria schmittiana como um pragmatismo
político que acerta em rejeitar normas anteriores à forma política e dirigir suas ações através
do impulso existencial à conservação da forma de vida específica de grupo; e, por fim, (IV) as
considerações acerca da noção de poder constituinte do povo que serve como argumento
fundamental em direção ao esclarecimento sobre o que se denomina aqui teoria pragmática.
(I)
243 Cf. HOFMANN, 2002, p. 121: “Alle normativen Regelungen sind nach Schmitts Anschauung sekundär
gegenüber der existenziellen Gesamt- und Grundentscheidung über Art uund Form der politschen Existenz. Jene
existenzielle Entscheidung trägt alle normativen Regelungen und gibt ihnen Sinn, insofern sie den Staat als eine
politische Einheit konstituiert, prinzipiiert und d.h. Zugleich: andere Arten politischer Existenz entschlossen
negiert (…) Die bewußte politische Gesamtentscheidung über Art und Form der politischen Existenz ist für
Schmitt m. a. W. die schlechthin ursprüngliche und von seinem dezisionistischen Begriff des Politischen her
gesehen allein mögliche und wesentliche Manifestation des Selbstbehauptungswillens eines Volkes als einer
Einheit und Ganzhheit”.
244 VL, p. 121: “Vor jeder Norm steht die konkrete Existenz des politsch geeinten Volkes”.
268
sobre a existência da unidade política que produz originalmente as normas que são
autorizadas não por um consenso racional ou por alguma ordem de valores universais, mas
sim por um consenso existencial marcado polemicamente pela decisão. Numa perspectiva
anti-substancialista e anti-formalista, o conceito de decisão, segundo Schmitt, é a vontade que
funda a ordem pública a partir dos interesses e das forças existentes numa forma de vida.
Esta distinção pode ser caracterizada como consequência da tese acerca do político,
pois é através da negação decisiva sobre o outro que se constitui existencialmente a identidade
de si, sem a consideração de razões ou normas prévias para a formação política uma vez que o
que interessa para o autor é, justamente, ao realizar uma genealogia do político, buscar a
origem não racional do poder e da ordem. Tal decisão polêmica, isto é, produtora de um
consenso interno e de um dissenso externo é, porém, antecedido por algo ainda mais
originário: se, por um lado, a decisão produz a unidade política sendo portanto sua origem; ela
pressupõe, por outro lado, de forma ainda mais originária, uma manifestação da vontade
(voluntas) ou de um ato existencial do povo que produz a partir de si mesmo sua politicidade.
No entanto, esta vontade como auto-instituição reside em um fundamento ainda mais
subjacente, qual seja, no fundamento de legitimação último na realidade histórica, qual seja,
na própria existência originária ou em outras palavras, na própria facticidade política245.
Assim, as normas e a ordem jurídica, bem como as leis constitucionais dependem da
unidade política; por seu turno, a unidade política depende da decisão originária; esta, por sua
vez, depende da existência concreta de um povo como substrato último para o fundamento da
ordem: além deste não há nada nem fundamento jurídico nem fundamento moral, pois o
fundamento de legitimidade último da ordem política e do poder público é, na verdade, a
realidade histórica
A decisão jurídica mais importante está contida no Preâmbulo: “o povo alemão dá-se
esta Constituição”, e no art. 1, 2: “o poder do Estado emana do povo”. Estes
enunciados caracterizam-se como decisões políticas concretas e o pressuposto
jurídico-positivo da constituição de Weimar: o Poder constituinte do povo alemão
como Nação, isto é, unidade com capacidade de agir e consciente de sua existência
política246.
Dessa forma, a rigor, nem mesmo a decisão sobre o modo e a forma da unidade
245
Desta perspectiva pragmática é, portanto, sem sentido, por exemplo, o pedido do reconhecimento do Estado
da Palestina diante da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 23 de setembro de
2011, pois a existência ou não de um Estado, conforme Schmitt, está vinculada, na verdade, apenas à auto-
afirmação enquanto unidade política através da decisão como ato de vontade e fato institucional servindo de
fundamento ao poder público.
246
VL, p. 60: “Die wichtigste politische Entscheidung ist in dem Vorspruch: 'Das deutsch Volk hat sich diese
Verfassung gegeben' und in art. 1 Abs. 2: 'Die Staatsgewalt geht vom Volke aus', enthalten. Dieses Sätze
bezeichnen als konkrete politische Entscheidung die positiv-rechtliche Grundlagen des deutschen Volkes als
einer Nation, d.h. einer politischen Existenz bewußtsein, handlungsfähigen Einheit”.
269
política é o fundamento último da ordem, pois há uma realidade anterior, qual seja, a
existencialidade originária da realidade histórica, em outras palavras,
Toda lei, como regulamento normativo, e também a lei constitucional, necessita para
sua validade, como fundamento último, de uma decisão política que o preceda,
adotada por um poder ou autoridade politicamente existente. Toda unidade poítica
existente tem seu valor e sua razão de existência, não na justeza ou conveniência das
normas, mas sim na sua própria existência. Aquilo que existe como uma entidade
política é juridicamente considerado digno de existir. Por isso seu direito de auto-
conservação é o pressuposto de toda posterior discussão; procura sobretudo subsistir
na sua existência, in suo ese perseverare (Spinoza); defende “sua existência, sua
integridade, sua segunrança e sua Constituição” - todo o valor existêncial247.
Além disso, a unidade política é, segundo o autor, um todo (Ganze), porém uma
totalidade que compreende a inteira existência humana, como sendo aquela relação mais
intensa e mais presente até ao ponto da exigência política da vida e da morte mediante um
conflito e não meramente uma unidade formal marcada pela justaposição simples dos
indivíduos de um grupo ligados por algum liame jurídico; apesar disso, a condição do político
não se caracteriza a partir de uma perspectiva estável, pois as categorias de amigo e de
inimigo, ou melhor, a polemicidade que marca o político é algo dinâmico uma vez que, para
Schmitt, o status político é a forma de compreensão mais radical do ser humano que se
manifesta de maneira espontânea. Pode-se afirmar inclusive que Schmitt possui uma
perspectiva política holista, ou seja, há uma realidade marcada pela primazia do todo sobre o
mero somatório das partes. Em todo caso, a condição do político para Schmitt é uma condição
total, isto é, é a partir do político que se pode determinar a unidade política ou o Estado como
o status predominante de um povo, mais intenso e que o caracteriza e o torna uma grandeza
pública, pois como já demonstrado politicidade é sinônimo de publicidade.
O conceito de unidade política é algo da ordem concreta, por assim dizer, é um fato
institucional e não algo normativo, fictício ou formal. Para Schmitt, é desprovida de sentido a
pergunta sobre a legitimidade ou autoridade de uma tal coisa, pois o que interessa é a
imanência da existência política que garante uma homogeneidade substancial de um povo em
uma unidade política. Descrita como grandeza existencial, a unidade política ou o poder
público não se submetem ao crivo da justificação posterior elaborada através de critérios
jurídicos, morais ou racionais: basta configurar-se enquanto vontade política – ou melhor,
247
VL, p. 22: “Jedes Gesetz als normative Regelung, auch das Verfassungsgesetz, bedarf zu seiner Gültigkeit im
letzten Grunde einer ihm vorhergehenden politischen Entscheidung, die von einer politisch existierenden Macht
oder Autorität getroffen wird. Jede existierende politische Einheit hat ihren Wert und ihren
'Existenzberechtigung' nicht in der Richtigkeit oder Brauchbarkeit von Normen, sondern in ihrer Existenz. Was
als politische Größe existiert, ist, juristisch betrachtet, wert, daß es existiert. Daher ist ihr 'Recht auf
Selbsterhaltung' die Vorausssetzung aller weiteren Erörterungen; sie sucht sich vor allem in ihrer Existenz zu
erhalten, 'in suo esse perseverare' (Spinoza); sie schützt 'ihre Existenz, ihre Integrität, ihre Sicherheit und ihre
Verfassung' – alles existentielle Wert”.
270
(II)
e forma concreta.
Não apenas como normalidade fática, com o intuito de realizar normas de direito,
mas, sobretudo, como sentido concreto e determinado. Em todo caso, pode-se afirmar que a
decisão política é anterior à unidade política pois se o Estado é compreendido como grandeza
politicamente existente, deve ser fundado em algum substrato ou condição concreta. Assim,
unidade política significa uma condição concreta, existencial, no qual o conteúdo objetivo é
formulado na decisão constitucional como substância da constituição e qualificado através da
distinção peculiarmente política. O argumento da decisão não se refere mais à exceção
enquanto normalização da situação fática, mas, de modo específico, refere-se à polemicidade
característica do político, pois é o polémos dotado de uma originariedade existencial que dá a
medida política ao caso concreto (ursprünglich seinsmäßigkeit) e constitui a ordem pública
através da diferença existencial ao justificar o poder público através do seu fundamento de
validade do direito. Todas as distinções polêmicas residem em uma existencialidade
originária, evidentemente não tributária de qualquer perspectiva ontológica ou substancialista,
ou muito menos, étnica, mas radicalmente tratada como relações concretas, ou seja, na
contraditoriedade das relações agonísticas que são marcadas, como já exposto, por uma
indeterminação ontológica e, principalmente, por uma impossibilidade de termo ou teleologia.
(III)
248
VL, p. 89: “Von Legitimität eines Staates oder einer Staatsgewalt kann man nicht sprechen. Ein Staat, d.h. die
politische Einheit eines Volkes, existiert, und zwar in der Sphäre des Politischen; er ist einer Rechtfertigung,
Rechtmäßigkeit, Legitimität usw. sowenig fahig, wie in der Sphäre des Privatrechts der einzelnen lebende
Mensch seine Existenz normativ begründen müßte oder könnte”.
272
validade que desvela o fundamento originário da ordem como uma instância não racional e
contingente. Obviamente, tal tese se afasta do positivismo porque enquanto esta afirma a mera
validade a partir das próprias normas – p.ex. a Grundnorm de Kelsen – a posição de Schmitt,
denominada aqui de realismo forte ou de pragmatismo por partir de uma perspectiva
imanente. De forma geral, em uma formulação que engloba as características elementares do
seu conceito do político, Schmitt expõe o significado do realismo político num relato preciso
sobre a polêmica entre racionalismo das normas e pragmatismo político:
249
LL, p. 15: "Solange der Glaube an die Rationalität und Idealität seines Normativismus lebendig ist, in Zeiten
und bei Völkern, die noch einen (typisch cartesianischen) Glauben an die idées générales aufzubringen
vermögen, erscheint er jedoch gerade deshalb als etwas Höheres und Idealeres. Solanges kann er sich auch auf
eine vieltausendjährige Unterscheidung berufen und ein uraltes Ethos für sich geltend machen, nämlich den
nomos gegen den bloßen demos; die ratio gegen die bloßen voluntas; die Intelligenz gegen den blinden,
normlosen Willen; die Idee des normierten, berechenbaren Rechts gegen die von der wechselnden Lage
abhängige bloße Zweckmäßigkeit von Maßnahme und Befehl; den vernunftgetragenen Rationalismus gegen
Pragmatismus und Emotionalismus; Idealismus und richtiges Recht gegen Utilitarismus; Geltung und Sollen
gegen den Zwang und die Not der Verhältnisse".
250
VL, p. 76: “Das Wort 'Wille' bezeichnet – im Gegensatz zu jeder Abhängigkeit von einer normativen oder
abstrakten Richtigkeit – das wesentlich Existentielle dieses Geltungsgrundes”
273
política. O que interessa para Schmitt, segundo a tese que se persegue nesta pesquisa, é que,
afinal, foi encontrada a instância fática capaz de assegurar o único fundamento de
legitimidade possível, qual seja, a própria realidade política. Entretanto, tal fundamento – se é
possível utilizar este termo – não se reduz à polemicidade porquanto de uma maneira ainda
mais concreta refere-se em determinar efetivamente a existência da unidade política, sem
apelo à instâncias normativas a partir do poder constituinte que se caracteriza, acima de tudo,
como fundamento último de qualquer norma: “O poder constituinte não está vinculado a
formas jurídicas ou procedimentos”, pois, segundo Schmitt, “não necessita de legitimidade ou
justificação em uma norma ética ou jurídica; tem seu sentido na própria existência política.
Uma norma não seria adequada para fundamentar nada aqui. O específico modo da existência
política não necessita nem pode ser legitimado”251.
Assim, uma constituição em sentido positivo é legítima através da expressão da força
e da autoridade do poder constituinte sobre o qual a decisão se fundamenta porque a
legitimidade da constituição e o problema da justificação do poder estatal seja por meio da
imposição da força física seja por meio do reconhecimento da autoridade como legítima é
tratado por Schmitt como um problema de existência política e, por conseguinte, a rigor, é
inadequado utilizar o termo legitimidade ou justificação pois, afinal de contas, não se trata de
uma qualificação posterior que torna um poder fático uma autoridade, mas sim a própria
vontade que se determina enquanto tal ao dar-se uma constituição e decidir sobre o modo e a
forma da sua existência política. Evidentemente, a unidade política é constituída através da
decisão política concreta do sujeito constituinte que enquanto um todo é, na verdade,
propriamente, um fato e não apenas um ato, ou seja, a sua própria existência ou faticidade
acarreta, sem necessidade de qualificação posterior, sua validade. Em outros termos, segundo
Schmitt, “o poder ou a autoridade que domina ou governa não pode basear-se em instâncias
inalcançáveis ao povo, mas apenas na sua vontade”252.
(IV)
Assim, a diferença entre uma ordem jurídica e uma ordem não jurídica e que torna a
ordem justificável é que o poder estatal representa a unidade política de um povo e o
problema da legitimidade é resolvido no problema da qualidade do poder estatal, mais
251
VL, p. 79: “An Rechtsformen und Prozeduren ist die verfassunggebende Gewalt nicht gebunden” (...) (VL, p.
87) “Sie bedarf keener Rechtfertigung an einer ethischen oder juristischen Norm, sondern hat ihren Sinn in der
politischen Existenz”.
252
VL, p. 235: “Infolgedessen darf die Macht oder Autorität derer, die herrschen oder regieren, nicht auf
irggendwelchen höheren, dem Volke unzugänglichen Qualitäten beruhen, sondern nur auf dem Wille, dem
Auftrag und dem Vertrauen derer, die beherrscht oder regiert werden und die sich auf solche Weise in
Wahrheitselbst regieren”.
274
253
Conforme HOFMANN, 2002, p. 147: “Man kann weiter sagen, daß gerade darin Schmitts besonderes
Verdienst liegt, daß er schärfer und entschiedener als irgendein anderer deutscher Jurist oder Rechtsphilosoph in
der ersten Hälfte dieses Jahrhunderts die Rechtswissenschaft mit der Fragwürdigkeit ihrer Grundlagen
konfrontiert hat”.
275
das relações fáticas, pois ao compreender justiça como normatividade, Schmitt exclui da sua
apreciação qualquer consideração acerca dessa categoria, porém afirma a origem como um ato
de vontade originário:
254
VL, p. 75: “Verfassunggebende Gewalt ist der politische Wille, dessen Macht oder Autorität imstande ist, die
konkrete Gesamtentscheidung über Art und Form der eigenen politischen Existenz zu treffen, also die Existenz
der politischen Einheit im ganze zu bestimmen. Aus den Entscheidung dieses Willens leitet sich die Gültigkeit
jeder weiteren verfassungsgesetzlichen Regelung ab. Die Entscheidung als solche sind von den auf ihrer
Grundlage normierten verfassungsgesetzlichen Normierungen qualitativ verschieden. Eine Verfassung beruht
nicht auf einer Norm, deren Richtigkeit der Grund ihrer Geltung wäre. Sie beruht auf einer, aus politischem Sein
hervorgegangenen politischen Entscheidung über die Art und Norm des eigenen Seins”.
276
momento existencial da origem da ordem como na teoria descrita acima: para o jurista, após
perseguir de todas as formas e tentar equacionar a relação entre ser e dever-ser, há, na
realidade, uma origem em comum entre as instâncias o que, embora não represente uma
solução sem problemas, mostra a necessidade de tratar o assunto sob outra perspectiva255.
255
A inovação ocorre, inicialmente, ao tratar da contingência e da existencialidade da ordem e do político e
prossegue na década de 1930 impulsionada pelo pensamento da ordem concreta (Raumordnung) pela noção de
Großraum, da conquista marítima e terrestre (Land- und Seenahme). Neste trabalho, interpreta-se a postura
voltada à questão da existência da ordem como uma questão pragmática ou legitimidade existencial, porém, na
leitura que se realiza a seguir, diagnostica-se outra virada e ressignificação ao enfatizar o momento da
historicidade da ordem e uma originariedade, em última instância, indiscernível entre ser e dever-ser, facticidade
e validade como uma proposta de indiscernibilidade entre fato e norma que afinal é, se não o definitivo, ao
menos a última maneira através da qual o jurista tedesco averigua tal relação.
278
reconstruído até aqui. No entanto, neste momento, é detectada na obra de Schmitt uma grande
novidade que, na verdade, já fora esboçada desde cedo: a superação da simetria entre
imanência e transcendência, ou seja, o momento em que questio iuris e questio facti
coincidem na medida em que a contraposição dever-ser e ser não tem mais nenhum espaço,
mas sim a contraposição entre ser e não-ser. Entretanto, mesmo com tal tese já expressa de
alguma forma na teoria do existencialismo político, apenas na teoria do nomos o finistimo ou
pragmatismo chega ao seu auge e, de uma vez por todas, a dicotomia pode ser superada seja
em sede de teoria da legitimidade seja em sede de teoria da norma256.
No primeiro momento da sua obra, Schmitt recepciona a dicotomia apontada e
afirma que qualquer relação entre norma e realidade seria feita através da decisão (realização
do direito) de onde garantiria sua legitimidade; após o abandono paulatino do paradigma do
normativismo deu-se início à busca pela superação do problema da cesura: inicialmente,
através do paradigma decisionista e da teoria da exceção que, embora de uma perspectiva
realista, solucionava a questão de forma racionalista e unilateral, pressupondo uma instância
ideal a ser realizada, por isso, nesta pesquisa denominado de realismo fraco; posteriormente,
através daquilo que se convencionou denominar de existencialismo político, que solucionava
também por um realismo, porém dessa vez de viés forte, como já demonstrado; por fim, o
paradigma do nomos no qual a distinção entre questio juris e questio factis, ou seja, a
distinção entre ser e dever-ser já não tem nenhum sentido, pois, como será demonstrado, tal
cesura é superada por uma genealogia da legitimidade concreta e histórica da ordem que se
desvencilha das aporias e contradições modernas do racionalismo e depõe a contradição entre
sujeito e objeto, ser e dever-ser, forma e concretude, mediação e imediação, transcendência e
imanência, na proposta de um pensamento que articule em outra chave de leitura o poder
público no qual não jogam mais as dicotomias modernas. A tese neste estudo afirma que na
filosofia schmittiana do nomos há uma co-extensividade entre a legitimidade e a existência da
ordem de um ponto de vista concreto e histórico que provoca a superação da distinção entre
poder e normas e ressignifica a teoria do poder público na elaboração de outro paradigma
político denominado pragmatismo. A pretensão deste excurso é (I) apresentar a posição do
problema até aqui discutido; investigar (II) a passagem da teoria do político para a teoria do
256
HOFMANN, 2002, p. 231: “Schmitts Nomos-Philosophie erweist sich als der Versuch, vor aller
wissenschaftlichen Zergliederung die ursprüngliche Einheit und Ganzheit des menschlichen Lebens zu bedenken
und die ontischen Wurzeln des Rechts darin, in der je geschichtlichen Welt des Menschen, d.h. in der
Raumhaftigkeit des menschlichen Daseins selbst zu entdecken”. O autor reconstroi os argumentos da teoria do
nomos de Schmitt em paralelo com Heidegger e demonstra sua interpetação do ser-num-ordenamento-epocal-
mundano como um fundamento da vida dos povos e instância imanente de todo o direito, bem como traça a
noção de legitimidade histórica que caracteriza a derradeira fase do jurista alemão.
280
Posição do problema
257
BP, p. 11: "Die Krieg kann begrenzt und mit völkerrechtlichen Hegungen umgeben werden".
281
questão internacional da guerra. Uma circunscrição da guerra e não sua abolição foi
até hoje o autêntico êxito do direito, foi até hoje a única realização do direito
internacional258.
A guerra ou a violência ao invés de ser caracterizada como uma afronta à ordem
moral ou à humanidade é, para Schmitt, a expressão ineliminável do político e, por isso,
mesmo o direito configurou-se em função da guerra e não o inverso, ou seja, a ordem jurídica
é criada a partir desse horizonte de dissenso. Caso houvesse um movimento proclamando a
“última guerra da humanidade” com a intenção de superar as animosidades entre as nações e,
por conseguinte, pacificar o mundo, tal guerra, segundo Schmitt, seria uma tentativa de
superação do político e, a rigor, o inimigo seria apresentado como algo desumano e, enquanto
tal, aniquilado. Tal fato representaria uma situação de ruptura com o arcabouço jurídico que
fora criado não como forma de eliminar a guerra, mas apenas como um ordenamento concreto
que regia as relações interestatais ao reconhecer o político como condição ineliminável.
Entretanto, de forma especial no início do século XX, deu-se um movimento de dissolução do
jus publicum Europaeum marcado por um processo de criminalização do inimigo de guerra e
na concepção de guerra justa que provocou profundas transformações na concepção de
inimigo e na configuração do nomos tradicional. A partir de então, rompe-se o ordenamento
espacial criado no mundo europeu e o equilíbrio entre os Estados territoriais através da
Duellkrieg como luta pela existência para dar origem a uma situação de desregulação e
despolitização através da técnica.
A origem do jus publicum Europaeum como ordenamento espacial concreto subtrai a
perspectiva normativa – formal e universal – da fundação do direito e avizinha-se do
problema entre ser e dever-ser na tentativa de solucioná-lo: o ordenamento teria sua origem na
localização e apropriação soberana da terra. Nesse sentido, o princípio de legitimidade da
ordem residiria na localização espacial que o soberano estabelece em contraposição ao
princípio de legitimidade de cunho universalista que desarticula a conexão originária entre
ordenamento e localização, provocando a problemática dicotomia entre transcendência e
imanência. Daí, o esforço analítico e histórico de Schmitt ao recuperar o momento originário
da constituição da ordem: é a ordem de um determinado espaço histórico que determina o
soberano e, a rigor, sua legitimidade, pois fundado no ordenamento concreto que significa
258
O trecho na íntegra, NE, p. 159: “Es ist also unzulässig, jede kriegsförmige Gewaltanwendung
unterschiedslos als Anarchie zu bezeichnen und diese Bezeichnung für das letzte Wort zur völkerrechtlichen
Frage des Krieges zu halten. Eine Einhegung, nicht die Abschaffung des Krieges war bisher der eigentliche
Erfolg des Rechts, war bisher die einzige Leistung des Völkerrechts. Im übrigen ist die Verwendungdes Wortes
Anarchie typisch für eine Auffassung, deren Einsichten noch nicht so weit vorgedrungen sind, daß sie Anarchie
und Nihilismus zu unterscheiden weiß”.
282
Ele era, porém, delimitado com relação ao ordenamento jurídico normal: no tempo,
através da proclamação, ao início, do estado de guerra, e, ao final, através de um ato
de indenidade; no espaço, por uma precisa indicação de seu âmbito de validade. No
interior deste âmbito espacial e temporal, podia ocorrer tudo aquilo que fosse
considerado de fato necessário segundo as circunstâncias 260.
Dessa forma, a partir do fragmento, a soberania seria a justificação da violência ou,
em outros termos, a validade do fático. Nestes termos, desde remota época, a legitimidade de
uma ordem é posta diante da facticidade que a funda como soberana, tema, aliás, presente
259
Exposição bastante lúcida é desenvolvida por AGAMBEN, 2004, p. 37-45.
260
NE, p. 67: “Zeitlich ist es durch Verkündung des Kriegsrechts am Anfang und durch einen Indemnitätsakt am
Schluß von dem Zeitraum der normalen Rechtsordnung abgegrenzt; räumlich durch eine genaue Angabe des
Geltungsbezirks; innerhalb dieses örtlichen und zeitlichen Bereichs kann alles geschehen, was nach Lage der
Sache faktisch notwendigerscheint”.
283
desde, pelo menos, a obra Die Diktatur. Assim, para evidenciar mais uma vez a origem
concreta da ordem, Schmitt assevera em relação ao nomos que:
até mesmo Hördelin confunde a sua tradução do fragmento vertendo para o alemão o
termo nómos com Gesetz e se deixa desviar por esta palavra infeliz, embora saiba
que a lei é mediação rigorosa. O nómos em sentido originário é, ao contrário, o puro
imediatismo de uma força jurídica (Rechtskraft) não mediada pela lei, ele é um
evento histórico constituinte, um ato de legitimidade, a qual unicamente torna em
geral sensata a legalidade da nova lei261.
O velho nomos da terra referia-se à ordenação espacial dos Estados europeus até o
século XX. A partir daí, um novo nómos surge: a nova ordem espacial da terra, como nova
forma de organização histórica, pois o ordenamento eurocêntrico chega ao fim e com ele o
direito internacional. Com isso dissolve-se o velho nomos da terra que surgira com a
revolução espacial provocada pela descoberta do novo mundo, evento histórico irrepetível que
moldara o sistema da terra e que, no século XX, descobre sua ruína. Antes, porém, de analisar
as características e a dissolução do nomos, faz-se mister reconstruir a virada que ocorreu na
obra de Schmitt no período tardo-weimariano.
261
NE, p. 42: “Aber auch Hölderlin verwirrt seine Deutung der Pindar-Stelle (Hellingrath V 277) dadurch, daß er
das Wort Nomos im Deutschen mit ‘Gesetz’ wiedergibt und auf den Irrweg dieses Unglückswortes lenkt,
obwohl er weiß, daß das Gesetz die strenge Mittelbarkeit ist. Der Nomos im ursprünglichen Sinne aber ist grade
die volle Unmittelbarkeit einer nicht durch Gesetze vermittelten Rechtskraft; er ist ein konstituierendes
geschichtliches Ereignis, ein Akt der Legitimität, der die Legalität des bloß en Gesetzes überhaupt erst sinnvoll
macht”.
284
262
Segundo GALLI, 2010, p. 876: “si può affermare che come la teoria degli anni Venti individuava la
possibilità di concretezza di um ordine politico nella consapevolezza epocale, nella cosciente apertura
all’eccezione e alla coazione alla forma, cioè all’origine, così ora, alla ricerca di uma concretezza oltre le
categorie del Moderno, Schmitt la individua in uma consapevolezza ancora epocale, ma anche spazialmente
determinata: l’idea politica, che doveva passare attraverso um’eccezione, ora deve rendersi concreta – e questo
processo è il nomos – próprio con l’essere orientata da una specifica rivoluzione politico-spaziale, da uma
determinata appropriazione e divisione dela Terra. Il nesso originário Idea/eccezzione si arricchisce della
determinazione spaziale e si fa nomos, l’ultimo nome dell’origine dela politica”.
263
Segundo GALLI, 2010, p. 884: “L’istituzionalismo, in altre parole, rappresenta una sorta di svolgimento
idealistico della tematica del potere costituente: uno svolgimento che, rispetto alla ottusa negazione positivistica,
ha senz’altro il merito di non eliminare in partenza la questione dell’origine, ma solamente per poi trasferirla in
una sorta di situazione pacificata, del cui esito non conflittuale la dialettica è garante”.
285
pensamento do autor, a rigor, concretude. Tal termo, por sua vez, significa não mais exceção,
mas sim normalidade, pois a partir daí abandona-se definitivamente o nada normativo como
origem da política e admite-se a normalidade da ordem concreta, uma vez que qualquer
ordenamento – da mesma forma o ordenamento jurídico – pressupõe um concreto conceito de
normalidade que não deriva da norma, mas que, pelo contrário, produz essa mesma norma no
desenvolvimento histórico concreto a partir da imanência de um ordenamento social. O
desenvolvimento da modernidade a partir de uma perspectiva individualista e contratualista
confundiu ordem, direito e regra (Ordnung, Recht e Regeln) e fez do Estado de Direito um
Estado da lei, isto é, uma ordem que pretende ser constituída a partir da norma universal e
abstrata, pois, tecnicamente, seria concebido como um dever-ser (a norma) que não toca no
ser (o fato) que recebeu sua formulação mais radical, como já demonstrado no capítulo 1, na
obra de Hans Kelsen.
Neste sentido, pode-se afirmar uma virada institucionalista no pensamento de
Schmitt que esperava no movimento do nacional-socialismo uma superação da forma-Estado
e uma nova legitimidade para alargar normativismo e decisionismo na proposta do
institucionalismo como um passo para além da forma política moderna e sua abstrata
universalidade. Schmitt coloca a investigação da ordem concreta (família, burocracia corpo,
Igreja, exército e principalmente Estado) e não mais a decisão sobre a exceção como
legitimação do poder público. Essa virada, porém, configura mais uma continuidade do que
uma descontinuidade no seu pensamento e releva que a partir dos anos 1930 Schmitt acentua
o sentido da catástrofe da forma politico moderna a partir de um degeneramento teórico e
prático do dispositivo da "decisão pela representação".
No entanto, pode-se afirmar que ao propor uma teoria cada vez mais calcada na
concretude ou na ordem concreta, Schmitt encontra novo estímulo para tratar o problema
constante de sua obra, qual seja, como já salientado de várias formas, a relação entre Sein e
Sollen, ou simplesmente, entre normativismo e realismo, porém sob novos argumentos. A
virada institucionalista que o levou ao pensamento da ordem concreta provocou outra tomada
de posição que se pode designar de virada pragmático-histórica, basicamente expressa nos
estudos internacionalistas e, na sua forma melhor acabada, na teoria do nomos a partir da qual
o Kronjurist reflete sobre o fim do universal moderno na sua forma abstrata a favor do
universal concreto, pois deixa de se guiar pela temática da exceção e do nada normativo para
se ocupar da origem da ordem através da normalidade da ordem concreta.
A partir desta contraposição, Schmitt em um primeiro momento tenta superar a
forma-Estado através da noção, ideologiacemnte conotado, de Reich e de Grossraum e, em
286
seguida a esta primeira espacialização, advém, no pós-guerra, a última síntese do seu próprio
pensamento onde espaço (Raum) desempenha um papel de relevância na investigação sobre a
ordem, pois o Estado deixa de ser identificado com o próprio espaço considerado a partir de
uma ordem normativa para tornar-se espaço concreto. O Reich seria, na verdade, o grande
espaço (Grossraum), isto é, o locus do exercício hegemônico sobre outros espaços para além
do Estado, inclusive sobre espaços estranhos de outras nações. Assim, esta noção designaria
um espaço político plural – diferente do espaço meramente estatal moderno – e, por isso,
mesmo um espaço político e não meramente normativo. A capacidade de ordenação
dependeria dessa consciência espacial-política. O Reich seria, portanto, mais que Estado,
significando a forma política de um povo que possui a capacidade de influência espacial no
exercício de uma hegemonia em um Grossraum que organiza a partir de um ponto de vista
interno um ordenamento concreto plural, porém sob hegemonia de uma potência e a partir de
um ponto de vista externo um equilíbrio. Apesar das inúmeras críticas dirigidas à teoria do
Grossraum, o que interessa para este estudo é a superação da forma-Estado moderna como
dotada do monopólio do direito e a necessidade de pensamento da política em termos
espaciais como espaço politicamente interpretado, pois “o conceito de espaço e a ideia
política não podem ser separados (...) uma ideia política bem definida é aquela que vem
afirmada de uma determinada nação e que tem identificado um inimigo específico: dessa
característica advém a politicidade”264.
Para Schmitt, o movimento nacional-socialista representava a recuperação da
tradição de concretude tedesca como uma tendência/virada a uma direção política superior ao
universalismo que enquanto a teoria da ordem concreta é uma tentativa de superação da teoria
do político desenvolvida, após os acontecimentos nefastos da época hitlerista, através da
teoria do nomos que representa uma radicalização no sentido espacial a partir do qual os
conceito de espaço concreto (Raum) passa a jogar o papel mais importante na argumentação
schmittiana265.
264
“Il concetto d’Imperio nel diritto Internazionale. Ordinamento dei grandi spazi com esclusione dele potenze
estranee” (1941). Cita-se a partir da tradução italiana, p. 38-39.
265
A referência ao período nazista de Schmitt pode ser abordado a partir de três perspectivas: 1ª hipótese – sua
adesão intrínseca – representa uma necessidade imanente do seu pensamento e que, por isso, há uma
continuidade entre teoria política schmittiana e o III Reich, marcado por autoritarismo, anti-parlamentarismo,
catolicismo reacionário, decisionismo, violência, etc.; 2ª hipótese – a tese ocasionalista de Löwith – segundo o
qual a adesão de Schmitt ao nazismo embora não represente uma necessidade imanente da sua obra, demonstra
que algumas ideias estruturais, tais como anti-liberalismo e irracionalismo, são semelhantes e, por isso, num
juízo de oportunidade e ambição pessoal Schmitt preferiu aderir a nova ordem ao invés de contrapor-se; 3ª
hipótese – adesão extrínseca – nem por necessidade conceitual nem por oportunismo intelectual, Schmitt, na
verdade, teria por um lado, enxergado no nacional-socialismo um novo tipo de legitimidade do poder público
que tanto buscara e, além disso, a superação das contradições da República de Weimar. Esta última hipótese,
287
Entre os séculos XVI e XIX ocorreu o processo de formação daquilo que Schmitt
denomina de “época interestatal do direito internacional” (NE, p. 112), ou seja, a consolidação
do Estado como unidade política por excelência e a constituição do jus gentium moderno. A
época da estatalidade europeia cunhou os conceitos e as práticas políticas em torno da figura
do Estado determinando o jus publicum Europaeum que conheceu sua decadência no século
XX. A obra Der Nomos der Erde busca através de uma investigação analítica e histórica
desvendar a peculiaridade desse sistema jurídico e político e suas transformações na era
contemporânea.
Para Schmitt, o principal feito do jus publicum Europaeum foi, precisamente, a
delimitação ou circunscrição da guerra, isto é, a limitação do agonismo e a relativização da
inimizade. Nesse contexto, houve a exclusão da categoria de justa causa belli (a guerra justa),
tributário de uma perspectiva moralizante que prescrevia o aniquilamento do inimigo e, por
conseguinte, a negação do político, pois “as avaliações teológico-morais e jurídicas só
extraem a sua força de instituições concretas e não de si mesmas”266. Assim, a violência não
seria desencadeada aleatoriamente, mas posta em termos jurídicos, porém essa manifestação
jurídica não seria uma negação do agonismo humano, ao contrário: há o primado do político
que se serve de normas contra as tendências desagregadoras da vida humana. O cerne da
questão está na característica do Estado moderno como detentor do jus belli, isto é, o
monopólio do direito de guerra que, evidentemente, exclui soberanamente do seu interior a
possibilidade do conflito. Na esfera interna do Estado haveria apenas uma instância de
decisão e, por conseguinte, ordenação pública através da neutralização da guerra civil dentro
dos limites territoriais; no exterior, nas relações entre nações, a autodeterminação soberana
sem ingenuidades é claro, parece mais coerente e, de forma geral, explica os fatos posteriores na biografia do
jurista. Seja um oportunista ou um sincero entusiasta de uma nova possibilidade política, não se pode
desconsiderar sua obra por mácula tal que entre outros, assim como Heidegger, também cometeram. Na verdade,
a partir de 1935, Schmitt já se encontrava em suspeita pelas SS (Schwarz Korps), levado a juízo sumário e logo
expulso do Partido nazista em 1936 sob suspeita de ser uma “mente perigosa” para o regime. Em todo caso, a
chave de leitura aqui desconsidera aquelas obras escritas sob pressão dos acontecimentos que possuem sem
dúvidas valor histórico e político, mas para este estudo apenas complicaria mais ainda o percurso escolhido para
trabalhar os temas em questão. Para justificar-se, Schmitt utilizava a máxima de Macróbius, cf. ECS, p.23, 18-24
e 63: “num possum scribere in eum qui potest proscribere”.e durante o posterior exílio interno, autodenominava-
se em Gl, p.53 de “Epimeteu crstão”. Cf. ainda ECS, p.14 e 55. Cf. ainda, BENDESKY, Joseph W. Carl Schmitt.
Teorico del Reich. Bologna: Il Mulino, 1989; BALAKRISHNAN, G., The Enemy: An Intelectual Portrait of
Carl Schmitt. London: Verso, 2000; NOACK, Paul. Carl Schmitt. Eine Biographie. Frankfurt/Berlin: Ullstein,
1996.
266
O trecho inteiro, NE, p. 28: “Nur darf man dabei nicht vergessen, daß solche moraltheologischen und
juristischen Beurteilungen ihre Kraft nur aus konkreten Institutionen, nicht aus sich selber schöpfen.
Insbesondere ist Friede kein raumloser, normativistischer Allgemeinbegriff, sondern stets als Reichsfrieden,
Landfrieden, Kirchenfrieden, Stadtfrieden, Burgfrieden, Marktfrieden, Dingfrieden konkret geortet”.
288
pode residir na problemática autovinculação dos soberanos que se mantém livres, mas no
pertencimento comum a um espaço circunscrito, isto é, baseia-se no efeito abrangente de uma
ordenação concreta do espaço”271. Essa concepção já, de antemão, demonstra que Schmitt
prossegue na investigação da legitimidade da ordem a partir de uma instância concreta, ou
seja, acena mais uma vez para o problema da dualidade entre ser e dever-ser e busca para tal
questão uma solução que o supere adequadamente.
Tal organização, porém, pode ser melhor elucidada através da categoria do espaço
(Raum), pois como Schmitt afirma o Estado soberano não é apenas o novo conceito de ordem
em geral, mas sim o novo conceito de ordem espacial. É a existência de uma nova consciência
planetária do espaço, uma revolução espacial ocorrida com a descoberta do novo mundo que
determina a existência da época moderna:
Toda vez que, por um novo avanço das forças históricas, por um desatar de novas
energias, novas terras e mares ingressam no horizonte da consciência geral da
humanidade, mudam também os espaços da existência histórica. Surgem, então,
novas medidas e dimensões da atividade histórico-política, novas ciências, novas
ordenações (...) O alargamento pode ser tão profundo e surpreendente que
transforme não apenas as medidas e os parâmetros de mensuração, não apenas o
horizonte exterior dos homens, mas também a estrutura do conceito de espaço.
Pode-se então falar de uma revolução espacial272.
A época moderna sofreu a mais radical ruptura das concepções tradicionais, uma
autêntica revolução espacial planetária atingindo as representações tradicionais do espaço,
mas, principalmente, a nova ordenação do espaço provocou uma reorganização política e
jurídica uma vez que as referências de organização do mundo são determinadas por novas
representações da ordenação do espaço273. Para Schmitt, o que interessa nessas tais
271
NE, p. 198: “Immer wieder muß daran erinnert werden, daß die bindende Kraft einer völkerrechtlichen
Verpflichtung souveräner Staaten nicht in der problematischen Selbstbindung freibleibender Souveräne liegen
kann, sondern auf gemeinsamer Zugehörigkeit zu einem umhegten Raum, d. h. auf der umfassenden Wirkung
einer konkreten Raumordnung beruht”.
272
LM, p. 56-57: “Jedesmal wenn durch einen neuen Vorstoß geschichtliche Kräfte, durch eine Entfesselung
neuer Energien, neue Länder und Meere in den Gesichtskreis des menschlichen Gesamtbewußtseins eintreten,
ändern sich auch die Räume geschichtlicher Existenz. Dann entstehen neue Maßstäbe und Dimensionen der
politisch-geschichtlichen Aktivität, neue Wissenschaften, neue Ordnungen (…) Die Erweiterung kann so tief und
überrraschend sein, daß sich nicht nur die Maße und Maßstäbe, nicht nur der äußere Horizont der Menschen,
sondern auch die Struktur der Raumbegriffes selber ändert. Dann kann man von einer Raumrevolution
sprechen”.
273
A reflexão de Schmitt abre novo horizonte de pesquisa futuras como, por exemplo, a investigação sobre a
revolução espacial no século XX referente à expansão das novas tecnologias – no campo virtual, internet,
notoriamente, mas também em outras áreas como a revolução da imagem ou econômica – uma espécie de
revolução que, de forma ainda mais radical, altera completamente a compreensão do mundo e do espaço, porém
quase não abordada pelos juristas. A indicação dessa pesquisa, em breve, pode ser trabalhada em estudos
promissores. Cf. por todos, HARVEY, 2001, por exemplo, quando afirma que “A modernidade, por conseguinte,
não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é
caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes”, p. 22.
290
Toda ordenação fundamental é uma ordenação espacial (...) Desse modo, no seu
núcleo essencial, a verdadeira e autêntica ordenação fundamental reside em
determinados limites e delimitações espaciais, em determinadas medidas e em uma
determinada distribuição da terra. No começo de cada grande época, está uma
grande apropriação de terra. Em particular, toda mudança e deslocamento da
imagem da Terra está associada a mudanças de política mundial e a uma nova
repartição da Terra, a uma nova apropriação de terra274.
Nestes termos, a organização global do espaço dá-se, numa perspectiva eurocêntrica
e interestatal, a partir do Estado, pois a superfície terrestre foi apropriada, dividida e explorada
pelas unidades políticas sobre uma base territorial que implica o estabelecimento de novas
medidas e novas fronteiras em consonância com a disputa pela apropriação das novas terras e
mares por meio da Landnahmen e da Seenahme que inscreveu a ordem no espaço por um ato
concreto. O solo não europeu da Terra tornou-se, sem mais, solo colonial, isto é, espaço livre
para a apropriação e exploração: no solo europeu, havia qualidade jurídica e um direito
localizado; no resto do solo terrestre, apenas o fato bruto sem qualificação jurídica, por
conseguinte, liberdade na apropriação e qualificação ordenativa originária. Assim, havia um
espaço regulado pelo direito e outro sem juridicidade, um espaço liberado de restrições
jurídicas. A apropriação da Terra (Landnahme) é compreendida por Schmitt como esse
movimento originário de qualificação do espaço que ao mesmo tempo é marcado pela
facticidade da ação e pela juridicidade do ordenamento, é, na verdade, uma orden-ação, um
ato que constitui a ordem e o direito num espaço a partir de uma radical Einteilung der Erde
que qualifica o espaço como espaço do direito, isto é, como jurisdição onde vigoram normas
jurídicas. Assim, o direito possui como condição de validade o ato da apropriação do espaço,
por isso, é uma configuração histórica concreta e não de uma racionalidade normativa a
condição de possibilidade da ordem e do direito.
Nesse contexto, a oposição entre terra e mar passa a desempenhar um papel
fundamental na obra de Schmitt. Trata-se de mundos distintos e de convicções jurídicas
contrapostas que determinam o âmbito terrestre como território de um Estado ou solo livre
para a apropriação e o âmbito marítimo como livre e não ocupável. Enquanto o espaço
terrestre é concebido como um Raumordnungsbegriff (conceito de ordenação espacial), a
superfície marítima constitui uma esfera de não-estatalidade: “a separação entre terra firme e
274
LM, p. 71: “Jede Grundordnung ist eine Raumordnung (…) Nun, die wahre, eigentliche Grundordnung beruht
in ihrem wesentlichen Kern auf bestimmten räumlichen Grenzen und Abgrenzungen, auf bestimmten Maßen und
einer bestimmten Verteilung der Erde. Am Anfang jeder großen Epoche steht daher eine große Landnahme.
Insbesondere ist jede bedeutende Veränderung und Verlagerung des Erdbildes mit weltpolitischen
Veränderungen und mit einer neuen Einteilung der Erde, einer neuen Landnahme verbunden”.
291
mar livre foi o princípio fundamental e específico do jus publicum Europaeum”275 O que
interessa para a averiguação das hipóteses levantadas neste trabalho é que o espaço marítimo
é alheio às formas de ordenação concretas, isto é, o instrumento conceitual que Schmitt utiliza
para a análise sobre a espacialização da política é a distinção entre terra e mar, significando
mais do que a oposição entre indivíduo (sociedade) e Estado ou indústria/comércio e política,
mas sim, num sentido mais profundo, a oposição entre forma política concreta e
universalismo abstrato. Político significa agora dimensão político-espacial e não apenas
exceção concreta ou polemicidade e, diante disso, todas as revoluções políticas podem ser
compreendidas, a rigor, como revoluções espaciais, especificamente, terrestres. A
originalidade do espaço é a determinação fundamental do político, evidentemente como
intensidade conflitual do agir humano, mas principalmente, o espaço, para Schmitt,
estruturado e desestruturado a partir do político: espaço, assim, é ser, porém apenas o espaço
ordenado pode ser compreendido dessa forma. Nesse contexto, porém, o aspecto mais
relevante do argumento não reside na existencialidade da unidade política, mas sim na origem
concreta da política como dimensão do espaço, pois o conceito de espaço e a ideia política
não podem ser separados, essa é a aquisição do elemento de politicidade uma vez que em
Schmitt espaço significa impermeabilidade, visibilidade e publicidade e não é possível
estabelecer uma ordem concreta a partir do âmbito econômico-marítimo. Na constituição de
uma ordem jurídica, vigência e localização do direito estão relacionados a limites e fronteiras
fixas, ao contrário, no mar “os campos não se deixam semear e as linhas firmas não se deixam
gravar” e, evidentemente, “não conhece a unidade patente entre o espaço e o direito”276. De
forma semelhante, as terras livres não europeias eram concebidas como uma esfera de
emprego da violência subtraída ao direito.
No entanto, a dissolução do jus publicum Europaeum deu-se a partir do
desenraizamento espacial no solo europeu ocorrido por meio da expansão da economia
mundial internacionalizada, por um normativismo universalista e por uma tecnologia
indiferente a qualquer localização concreta. Esta tendência sempre foi verificada em todo
modernidade e conquista sua maior expressão na concepção legalista do direito como mera
positividade a partir da racionalidade formal da técnica. Nesse contexto, a ordem jurídica
experimenta uma cesura radical entre norma e realidade, ser e dever-ser, pretensão normativa
e experiência social, perdendo o caráter circunstancial da validade da ordem jurídica que
275
NE, p. 155: “Die Trennung von festem Land und freiem Meer war der spezifische Grundzug des jus
publicum Europaeum”.
276
NE, p. 13: “Das Meer kennt keine solche sinnfällige Einheit von Raum und Recht, von Ordnung und Ortung”.
292
termina por oferecer uma pista pela qual se pode compreender a tese de Schmitt na junção
destes elementos, negando uma concepção abstrata do direito. A mediação entre ideia abstrata
do direito e a contingência da existência concreta dá-se, segundo Schmitt, em um primeiro
momento, numa passagem violenta que impõe à experiência uma forma tal como articulado
na teoria da exceção, por isso a ênfase nas situações de guerra e de conflito, bem como na
exigência de relações de força e não apenas princípios normativos, mas, num segundo
momento, revela-se necessário a configuração da ordem normativa para a existência social. A
questão é que ambos – a irredutibilidade da realidade histórica à normatividade e a ordem
jurídica – dependem de uma lógica da imanência ou do concreto: a realidade, assim como a
norma, não necessita de legitimidade, pois basta a existência do espaço e a ocorrência da
apropriação-conformação. Não se trata de mera justificação do fático, mas sim de que tal
fático é ordenado e, por isso, legítimo como existente. O problema da validade do poder
público e da ordem jurídica é esclarecido no seguinte: o direito não é nem dever-ser racional e
normativo nem mera força e relação de fato; ao contrário, direito assim como o Estado é uma
“forma no sentido de uma configuração de vida”277. Neste sentido, a validade do direito é
condicionada ao pressupor um espaço de ordem concreta enraizado histórica e socialmente,
pois todo direito é ordem concreta, ao passo que normas e regras só obtém o seu significado e
sua lógica na moldura de uma ordem concreta.
Dessa maneira, Schmitt prepara a compreensão da questão de modo a corrigir os
equívocos anteriores: nem afirma unilateralmente a primazia da norma, nem a primazia do
fato ou realidade concreta (realismo fraco e realismo forte), mas, neste momento, estabelece
uma relação entre imanência e transcendência, faticidade e validade, concreto e abstrato,
ressaltando uma origem comum entre a norma e a realidade que se apresenta, na verdade,
como um processo interminável de ordenação da realidade na sua própria imediatidade. Neste
momento, já se anuncia a ideia de nomos como origem de uma ordem política articulando ao
mesmo tempo concretude e forma, facticidade e validade como a seguir se expõe com maiores
detalhes.
O conceito de nomos
277
PT, p. 33: “Der Staat wird also zu einer Form im Sinne einer Lebensgestaltung”.
293
e localização. A tese é a seguinte: há uma relação necessária entre espaço e direito, ou seja,
uma ordem jurídica é sempre desde o início uma ordem espacial. Para Schmitt, o conceito de
nomos possui tal caráter espacial, pois significa o ordenamento fundamental (Grundordnung)
compreendido como origem de uma ordem concreta, ou seja, é o sistema de limites e medida
espacial, uma nova divisão ou apropriação da Terra, pois diferente do que costumeiramente se
pensa, nomos não é uma série de regras e convenções internacionais, mas o princípio
fundamental da distribuição do espaço terrestre. A teoria do nomos se apresenta para Schmitt
como uma teoria da superioridade constitutiva do nomos sobre a lei (Gesetz, no sentido de
posição convencional), refere-se à criação e definição do espaço no qual a ordem jurídica
possui validade, afastando-se, assim, do pensamento legalista que perdera a relação originária
entre ordem jurídica e espaço, pois, por assim dizer, é a localização (Ortung) que determina o
interno e o externo a partir de onde o ordenamento pode ser considerado legítimo. No entanto,
a legitimidade deste peculiar pragmatismo espacial dá-se mediante um ato histórico: nomos,
assim, é ordenamento do espaço constituindo-se como uma tomada de terra (Landnahme) e
delimitação de uma ordem jurídica e territorial (Ordnung)278:
O espaço como tal não é evidentemente uma ordem concreta. Porém, toda ordem
concreta e toda comunidade têm um conteúdo específico em termos de lugar e de
espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que toda organização jurídica, toda instituição
contêm em si suas concepções de espaço e, portanto, também trazem consigo sua
medida interna e sua fronteira interna279.
A articulação entre Ortung e Ordnung constitui o nomos da terra (NE, p. 70), isto é, a
perspectiva originária entre facticidade e validade que Schmitt procurara para solucionar a
espinhosa questão genealógica. Para tanto, o autor se desvencilha das aporias da mediação
racionalista, bem como dos realismos propostos anteriormente para buscar um paradigma
político mais adequado. Nesse momento, é necessário reconstruir e desenvolver melhor o
argumento acerca da conceito de nomos para, após, traçar o esboço do que seria esse
pensamento político capaz de dar conta dos problemas herdados da modernidade. A palavra
nomos, segundo Schmitt, designa "a apropriação da terra como participação e divisão
278
Para Agamben, há uma conciliação entre a teoria da exceção e a teoria do nomos na medida em que o nomos
pressuporia um momento originário de exceção como indistinção entre fato e norma. A leitura do autor italiano é
bastante criativa, mas confunde estes dois níveis: a categoria de exceção não desempenha a centralidade teórica
pretendida. A tese de Agamben afirma que o estado de exceção é a estrutura original da política que emerge na
contemporaneidade até tornar-se regra. No entanto, essa tese não faz jus à teoria de Schmitt e, simplesmente,
reconstrói o jurista tedesco de uma forma caricatural.
279
“Völkerrechtliche Großraumordnung mit Interventionsverbot für raumfremde Mächte”, In: SGN, p. 319: “Der
Raum als solcher ist selbstverständlich keine konkreten Ordnung. Wohl aber hat jede konkreten Ordnung und
Gemeinschaft spezifische Ort- und Rauminhalte. In diesem Sinne läßt sich sagen, daß jede Rechtseinrichtung,
jede Institution ihren Raumgedanken in sich hat und daher auch ihr inneres Maß und ihre innere Grenze mit sich
bringt”.
294
fundamental do espaço”280. Nesse sentido, nomos seria o "ato originário que funda o
direito"281, ou seja, o ato-instituição histórico concreto da constituição da ordem e da norma.
Assim, o sentido original de nomos, que Schmitt se esforça por recuperar, revela a íntima
relação com o conceito de espaço (Raum), pois desvela o “ato de ordenação e de localização,
constituinte e espacialmente concreto”282. Entretanto, diante do uso impróprio, a palavra
nomos perdeu seu sentido originário e passou a significar qualquer regulação ou ordem
normativa, confundindo-se com o conceito formal de lei (Gesetz), ou seja, de um significado
concreto e histórico para uma acepção abstrata e universal. A interpretação que o
pragmatismo político schmittiano dá a partir da relação fundante do nomos, enquanto força
real que atua concretamente, entre espaço e ordem concreta traz consequências para a questão
sobre a caracterização da teoria política, mais precisamente, para a recusa do enquadramento
normativo da política e da primazia da norma sobre as relações concretas, bem como na
investigação sobre o persistente problema. Por outro lado, quando Schmitt quer fazer
referência ao conceito formal de norma, ou seja, à norma abstrata ou lógica, utiliza o termo
Norm ou ainda Gesetz e seus derivados.
Entretanto, para o interesse dos estudos desenvolvidos aqui, o problema central é o
nomos articulado enquanto “mediação” concreta e sua vinculação com o fenômeno
fundamental da tomada da terra (Landnahme), resultando daí o fenômeno de localização e
ordenamento (Ortung und Ordnung). Tais conceitos permitem ao autor demonstrar a estrutura
espacial de uma ordenação concreta, pois a ordem existe a partir da ordenação do espaço.
Dessa maneira, elucida e apresenta a relação originária entre ser e dever-ser ao sustentar a tese
da impossibilidade de separação entre estas instâncias que, afinal de contas, são
indistinguíveis. A distinção ocorre apenas nos paradigmas anteriores porquanto unilaterais e,
por isso, mesmo incapazes de compreender a constituição concreta da ordem, pois fixados
seja numa perspectiva universalista ou normativa seja numa perspectiva demasiadamente
fática, isto é, ou bem por um racionalismo ou bem por um realismo (positivismo).
Segundo Schmitt, no sentido original, a palavra nomos significa, a rigor, a plena
"imediatidade de uma força jurídica não atribuída por leis”283, em outras palavras, o nomos é
"um acontecimento histórico constitutivo"284. A partir disso, Schmitt desenvolve a noção de
280
NE, p. 36: "Landnahme als die esrte Raum-Teilung und -Einteilung".
281
NE, p. 16: "rechtbegründenden Ur-Aktes".
282
NE, p. 47: “konstituierenden Ordnungs- und Ortungsakt”.
283
NE, p. 47: "Unmittelbarkeit einer nicht durch Gesetze vermittelten Rechtskraft".
284
NE, p. 47: "ein konstituierendes geschichtliches Ereignis".
295
285
Sobre a idéia de legitimidade histórica em Schmitt, cf. HOFMANN, 2002, p. 189-248.
286
SGN, p. 581: "Am Anfang steht nicht eine Grund-Norm, sondern eine Grund-Name"; Cf. ainda o ensaio
"Nehmen, Teilen, Weiden" (1953). In: VA, p. 489-504.
287
NE, p. 40: “ein Stück Erde zum Kraftfeld einer Ordnung erhebt”.
288
“Nehmen – Weilen – Teilen. Ein Versuch, die Grundfragen jeder Sozial- und Wirtschaftsordnung von
Nomos her richtig zu stellen”. In: VA, p. 489-504.
289
“Nomos – Nahme – Name”. In: SGN, p. 583-585.
290
NE, p. 17: “In jedem Falle ist die Landnahme nach Innen und Außen der erste Rechtstitel, der allem
folgenden Recht zugrunde liegt”.
296
ou não, quais tipos de afetos permitem a constituição e crescimento do corpo social e quais
trazem sua dissolução. Em todo caso, perpassa por este capítulo a noção do político como a
questão sobre a natureza dos vínculos sociais, ou melhor, como uma questão dos tipos de
afetos que forjam a ordem política291. Assim, o poder circula por sua própria natureza
relacional e encontra aqui e acolá alguma sedimentação mais duradoura, embora precária. A
questão é que não se refere a uma vontade que submete outra vontade, mas à circulação de
algo que submete todas as vontades, escapando das marcas das filosofias da consciência ou do
sujeito e da mera dominação: este aspecto de totalidade, isto é, este afeto que perpassa todas
as vontades é denominado aqui como antagonismo, o fato mais básico da realidade que
traçamos, em esboço, através de uma ontologia do político292.
Ao final da pesquisa, realizamos uma leitura experimental da noção de comunidade:
o que determina a comunidade política não teria como pressuposto ou fundamento uma
substância comum, raça ou sangue, nem normas ou procedimentos, sequer ainda uma forma
de direito; nem mesmo afetos como medo, esperança ou desamparo, ou ainda a noção de ser-
com ou, simplesmente, de relação: antes, a ausência desapropriadora característica da noção
de comunidade tal como é pensada contemporaneamente293 seria melhor compreendida
através do antagonismo, princípio da ontologia política proposta. A questão é encontrar uma
configuração (afetiva) do poder, isto é, um circuito de antagonismos que não encontre nem a
estabilização definitiva marcada pela unidade metafísica, nem a dominação assujeitadora da
mera força do fático. O caminho proposto é proceder à ruptura da simetria entre
transcendência e imanência. Em nossa leitura, enquanto esta se refere às relações concretas
como causa finita não unificadora da realidade, numa palavra, aos afetos do corpo social;
aquela pode ser compreendida ora como contingência (o fundamento como ausência), ora
como resultado provisório ou hegemônico dos afetos que remetem constantemente à relação
concreta, eles mesmo condicionados pela contingência, provocando um jogo ou movimento
em que nenhum extremo é capaz de estabilizar algo que possa ser determinado como ordem
ou unidade. Esta experiência de impossibilidade da fixação da ordem pode ser ilustrada com a
291
Vladimir Safatle (SAFATLE, 2015) desenvolve esta tese e, apesar dos pontos de partida distintos, contribui
decisivamente para o desenvolvimento desta pesquisa. Cf. ainda AURÉLIO, 2000.
292
Da mesma forma que Nietzsche e, sobretudo, Heidegger, o que denominamos aqui não se confunde com um
fundamento no sentido tradicional do termo, cf. MÜLLER-LAUTER, 2009. Numa proposta de elaboração de
ontologia política em Carl Schmitt, cf. VIRISONOVA, 2011. Evidentemente, como o leitor logo perceberá,
neste capítulo, a influência de Espinosa também se faz presente, bem como, já que se trata de uma tentativa de
leitura a partir de Schmitt e não uma exegese, adotamos um estilo ensaístico que nos parece mais conveniente
para a proposição de alguns argumentos a serem explorados pela teoria política de forma mais autoral.
293
Sobre isso, cf. o desenvolvimento de alguns argumentos de Bataille, Blanchot, Nancy e, sobretudo, Esposito
na seção 3.4.
299
294
Evidentemente, a referência que utilizamos remete a Derrida (cf. 1.9). Temos consciência de que reinterpretar
a noção de guerra, da maneira como Derrida analisa em Schmitt, como antagonismo produz algumas
consequências que, em todo caso, pretendemos trabalhar durante o capítulo.
300
295
O tema possui um precursor bastante conhecido na modernidade sob a forma da relação entre Poder
Constituinte e Poder Constituído. Evidentemente, as considerações sobre o paradoxo político vão além e por isso
301
político a partir de Carl Schmitt como possuindo uma origem (histórica), a única possível, (i)
na relação e imanência; além disso, trata deste contexto através de uma perspectiva realista
em política, ou seja, (ii) da relação como conflito e, como consequência, de uma teoria que,
no final as contas, se mostra como um (iii) desfundamento296. Com Schmitt, a categoria do
político permite-nos pensar a fase termidoriana, isto é, a institucionalização do aparelho
burocrático-administrativo como uma estabilização jurídica necessária, porém não isenta de
transformações, visto que se apresenta como resultado de uma ação extralegal que expõe a
relação íntima entre ação, violência e direito fora do referencial teórico do normativismo ou
das políticas da transcendência. Entretanto, uma questão ainda preliminar se faz necessária:
como pensar a imanência sem compreendê-la como mera inversão de universais? No texto,
apresentamos duas hipóteses: uma que denominamos hipótese hobbesiana: redução das
multiplicidades e exclusão do conflito; outra, hipótese nietzschiana (mas bem poderia ser
maquiaveliana ou espinosiana): um caráter auto-fundador do corpo político que implica uma
ausência de relação com as esferas universais, ou melhor, considera o espaço social como
realidade passional e, por conseguinte, conflituoso, além da crítica ao direito por escamotear o
nexo violência-poder como um discurso sobre justificação e origem (abstrata) da ordem. A
interpretação sobre Schmitt que sustentamos aqui mostra o deslocamento de uma hipótese
para outra, do Schmitt hobbesiano para um Schmitt nietzschiano, se é que podemos falar em
algo do gênero. A exposição a seguir tenta reforçar esta transformação da categoria do
político de mediação para imediação, da referência à transcendência até a ruptura e afirmação
da tese do político como relação e violência e, por conseguinte, aquilo que é irrepresentável
ou avesso da política.
A relação a que o político se refere pode ser compreendida como graus de
intensidade de forças – leia-se, afetos – na tentativa de se fixar numa ordem a partir da
diferença. A interpretação que elaboramos acerca dos argumentos schmittianos considera que
sua compreensão ressalta este momento da relação e do antagonismo como fundamento
peculiar da ordem: ao invés de enfatizar a unidade ou identidade, a categoria do político
expõe o reverso da identidade, ou seja, o avesso da política como diferença que remete ao
externo e provoca uma persistente ausência no centro da ordem. Nesta proposta, o político
demonstra sua origem como crise, como avesso da política, visto que em sua estrutura operam
os afetos, os antagonismos ou oposições dos múltiplos em luta, isto é, a negatividade.
tentamos nos afastar desta distinção já desgastada em tantos manuais de Direito Constitucional e Teoria Política.
Sobre isso, cf. NEGRI, 2002 e VL.
296
Devemos esta noção de “desfudamento”, bem como de “decriação” à Simone Weil. Sobre isso, ESPOSITO,
1999, p. 189-244.
302
Portanto, o impulso para a diferença e não a constituição da ordem é a chave da relação entre
política e político. A relação de antagonismos que consideramos em Schmitt nada mais é do
que esta diferença como o resultado desta disputa dos afetos. Isso é o contrário de fascismo ou
aniquilamento do outro: o político como diferença e conflito pressupõe o outro, ou seja, a
multiplicidade permanente sem o procedimento do reduction ad unum. Mesmo quando se
refere à unidade política, a categoria do político tem em vista, sobretudo, os antagonismos que
a possibilitam, na verdade, que a determinam com uma causa imanente: não são considerados
amigos e inimigos em si, mas sempre a partir das relações, por isso contextual ou
pragmaticamente. A chave de leitura remete o político à relação de oposição entre desejos,
aquele de comandar e oprimir e aquele de não ser comandado e oprimido. Por esta forma,
podemos tratar a questão da liberdade, ou melhor, o desejo de liberdade como elemento
fundante de uma ordem política, tema quase inexistente na obra de Schmitt, mas que poderia
ser pensado por este meio, deliberadamente não liberal. O paradoxal da relação entre político
e política é que a negatividade do conflito é o fator produtivo das leis e instituições civis – o
que, certamente, é preciso entender, se considerarmos esta pulsão negativa como fundamento
da ordem política. A questão é, mais uma vez, como compreender o surgimento da ordem a
partir de uma “negatividade”? Mais precisamente, se impõe a tarefa de pensar o lugar do
fundamento da ordem política como desfundamento. O que Schmitt realiza, embora não
radicalize sua pretensão, consiste em um desvio da análise das estruturas estatais ou
normativas ao perceber uma relação anterior e concreta que constitui a ordem297. O argumento
do finitismo e o olhar para a exceção embutidos em sua reflexão desde o período pré-
weimariano provocam este movimento: as práticas sociais ganham estatuto constitutivo, mais
especificamente, o conflito ou as lutas em torno do poder e da ordem. Trata-se, então, de dois
termos que se implicam em sua exclusão mútua, polos cuja identidade se estabelece por seu
antagonismo permanente, de tal modo que remetem um ao outro indefinidamente o que
implica num recuo da reflexão sobre os polos para uma reflexão sobre a oposição e sua
natureza de afetiva. O realismo político, sem dúvidas, está na ação, mas a questão é se esta
ação se refere, afinal, à racionalidade.
No contexto da filosofia política moderna, a neutralização (rejeição do conflito que
gera a unidade) e despolitização (obediência ao soberano cuja validade advém da instituição
da violência contra a violência que, por fim, gera a ordem) são formas tradicionais da
297
Evidentemente, a reconstrução desta seção já não atende à tarefa de mera reconstituição dos argumentos
schmittianos através de uma exegese estrita. Pretendemos já abrir algumas veredas interpretativas que, apesar da
referência contínua à obra de Schmitt, serão utilizadas para pensar algo que o jurista, simplesmente, não tinha em
vista.
303
298
Evidentemente, o tema da representação não deixa de ser tratado por Schmitt, porém o que estamos
destacando neste momento é o problema que este tema enfrenta no período do final da década de 1920 e,
304
na política é aquela ação que busca a desocultação das inimizades e conflitos, como uma
desautorização do soberano, das convenções e da unidade da ordem. Ao assumir, embora com
nostalgia, o fim da representação política por conta da despolitização e neutralização da forma
política como mediação (secularização), Schmitt reconhece da mesma forma uma ausência de
fundamento transcendente, um nada ou vazio no centro da política moderna e remete a ação
política às relações concretas que determinam o poder: “todos os conceitos, representações e
palavras políticas têm um sentido polêmico, visualizam um antagonismo concreto, estão
ligados a uma situação concreta (...) e transformam-se em abstrações vazias (...) quando esta
299
situação é esquecida” . A noção de ordem política e essência ou substâncias políticas têm
agora como referência o vazio originário, a impossibilidade de enquadramento normativo ou a
falta e a lacuna. A questão é que neste autor há uma transformação ou um contínuo apelo à
constituição da ordem, mesmo que seja assumidamente precária ou contingente contra a
decisão ou coação à ordem: ao invés da transposição institucional guiada por uma forma
representativa e, por conseguinte, legitimadora, o político não pretende preencher esta lacuna
ou vazio originário, pois seria cometer o mesmo erro da teologia política da qual se afasta.
Além disso, afasta-se ainda da simetria decisão-representação, teologia e secularização, além
de problematizar a relação entre imanência e transcendência ao elaborar uma espécie de
políticas da abertura (cf.3.3).
A secularização tem um papel importante nisso. Ao mesmo tempo que explica,
também expõe a diferença entre forma política e realidade contingente, pois a indeterminação
entre ação e racionalidade torna, em nossa leitura, o argumento do finitismo ou da validade in
re a solução mais coerente. Ora, este é o argumento para compreender a transição entre os
textos do início da República de Weimar e os do final da década de 1920. Como a decisão do
soberano enquanto decisão pela realização de um ideal e da ordem é, em parte, descartada no
final da década de 1920 pelo politische Existentialismus, a contingência da realidade, exposta
por esta mesma decisão, passa a ser considerada o locus da ação política, afastando-se do
teorema da secularização ou do caráter transcendente. O problema é retomado sob a forma da
sobretudo, as consequências que alguns de seus argumentos teriam produzido em relação ao enfraquecimento da
centralidade da representação na teoria política, como ressaltamos, mesmo que o jurista não tenha assumido tais
consequências.
299
BP, p. 31: “Erstens haben alle politischen Begriffe, Vorstellungen und Worte einen polemischen Sinn; sie
haben eine konkrete Gegensätzlichkeit im Auge, sind an eine konkrete Situation gebunden, deren letzte
Konsequenz eine (in Krieg oder Revolution sich äußernde) Freund-Feindgruppierung ist, und werden zu leeren
und gespenstischen Abstraktionen, wenn diese Situation entfällt. Worte wie Staat, Republik, Gesellschaft,
Klasse, ferner: Souveränität, Rechtsstaat, Absolutismus, Diktatur, Plan, neutraler oder totaler Staat usw. sind
unverständlich, wenn man nicht weiß, wer in concreto durch ein solches Wort getroffen, bekämpft, negiert und
widerlegt werden soll”.
305
(GALLI, 2010, p. 342), configurando ainda um realismo fraco ao adotar uma validade
externa ou ante rem do poder pelo dispositivo de representação.
No final da década de 1920, todavia, conforme a tese que desenvolvemos, Schmitt
elidiu a dimensão da transcendência e propôs uma alternativa imanentista (preferimos, o
termos monista, pois demonstra a co-extensividade entre imanência e transcendência) do
político, ela mesma pós-política e pós-estatal, mesmo que de maneira ambígua: a Veritas é
desautorizada, a secularização é, por fim, acabada, ou pelo menos rejeitada em sua capacidade
hermenêutica, como exemplarmente Esposito assevera:
300
Sobre uma abrodagem histórica do tema, SCATTOLA, 2007 e MONOD, 2016. Para uma leitura que
distingue entre secularismo e secularização, cf. LÜBBE, 1965.
301
Recentemente, Agamben também engrossa esta fileira ao pensar a secularização como um dispositivo que
transfere e desloca os conceitos de uma esfera para outra sem os redefinir semanticamente. Assim, a
secularização seria, na verdade, uma “marca” ou “assinatura” que vincula o profano ao sagrado. No caso em
questão, Agamben analisa a assinatura teológica (seja como teologia política, seja como teologia econômica) da
secularização. Cf. AGAMBEN, 2007.
302
Sobre o tema, MARRAMAO, 1995; 1997; DUSO, 2007, LÜBBE, 1965, MONOD, 2016, SCATOLLA, 2007,
PEDRO, 2011.
309
história que figuram como problema central de qualquer abordagem sobre secularização: a
aceitação de uma transferência da providência e fé nos decretos da divindade implicaria até
que ponto a fé no progresso e em um Weltplan imanente? Se assim for, o milenarismo cristão
se transformaria em escatologia política e a tese segundo a qual a moderna noção de progresso
consiste em uma versão secularizada da escatologia judaico-cristã – ou seja, uma liquidação
da herança cristã, uma mundanização do cristianismo – ganharia uma realização imanente do
sentido da história303.
Em Schmitt, retornando ao nosso tema central, o caráter da secularização
intensificado na modernidade demonstra a relação entre transcendência e imanência. Ora, é
precisamente esta relação que gostaríamos de tratar, ou melhor, o que dela foi feito e qual sua
herança, por assim dizer. Inicialmente, é necessário lembrar que esta transferência entre
esferas funciona como uma passagem formal: o conteúdo teológico propriamente dito não é
importado para o âmbito secular. Em um trecho já bastante conhecido, Schmitt explicita a
chave do processo de secularização na modernidade, ou seja, o sentido das instituições
modernas se deve ao mecanismo de transferência, substituição ou analogia:
303
LÖWITH, 1983, p. 180 et seq.
304
PT, p. 43: “Alle prägnanten Begriffe der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe.
Nicht nur ihrer historischen Entwicklung nach, weil sie aus der Theologie auf die Staatslehre übertragen wurden,
indem zum Beispiel der allmächtige Gott zum omnipotente Gesetzgeber wurde, sondern auch in ihrer
systematischen Struktur, deren Erkenntnis notwendig ist für eine soziologische Betrachtung dieser Begriffe”.
310
vez que a estrutura do mundo que antes era garantida sob o auspício de uma ordem
cosmológica encontra-se diante da ausência de fundamento, ou melhor, o fundamento
universal da physis é problematizado a partir do sujeito, ele mesmo considerado como origem
e artífice do mundo, por exemplo, na hipótese do contrato social: ao invés da ordem ser
garantida como algo natural ou divino (direito natural ou direito subjetivo) passa a ser
considerada como um produto do espírito humano, cultural portanto, delimitando uma
separação forte entre natureza e cultura. Por isso, a cisão ou gap insolúvel que Schmitt detecta
como constitutiva da época moderna, marcada por concepções imanentistas. A pergunta pelas
condições da realidade ou do mundo dão lugar à pergunta sobre o cogito ou, mais
precisamente, como Kant, à inteligibilidade do mundo empírico a partir do sujeito. A solução
transcendental de Kant é marcada ela mesma pelo finitismo da condição humana,
precisamente esta característica que apostamos que Schmitt assume não sem hesitações no
final da década de 1920. O finitismo em Kant revela que a essência da realidade empírica não
pode ser apreendida, a coisa em si, afinal, é incognoscível. Esta realidade abandonada,
irracional, inexplicável, provocada justamente pelo argumento central do pensamento
moderno, recebeu diversos tratamento e arranjos para sua sutura: praticamente toda filosofia
moderna é uma resposta à perda da realidade numa interminável recherche de la Realité. Esta
emancipação do sujeito moderno provocou o abismo entre natureza e cultura, eu e mundo,
cuja unidade não é mais dada de antemão: a realidade torna-se irracional, inexplicável,
contingente, uma vez que a dualidade se instala como método não apenas do conhecimento,
mas também da própria ação.
No campo da teoria política, alvo da crítica de Schmitt, a modernidade se caracteriza
como essa perda da realidade provocada, sobretudo, pela nova posição do sujeito: passa ao
centro da vida política e, tal como demiurgo, é considerado a origem da ordem. No entanto,
isso provoca um efeito indesejável: Deus é encarnado no indivíduo liberal, mas este é o
agente produtor-consumidor no mercado, em última instância, uma esfera empírica. Não
pretendemos analisar a tese de Schmitt, segundo a qual romantismo articula-se com
liberalismo e demonstra como o sujeito liberal evita a tomada de decisão política assim como
o sujeito romântico se evade da realidade para a esfera da fruição estética. A análise da
secularização, feita em breves termos aqui, tem a pretensão de esclarecer um ponto muito
preciso: a reflexão acerca da secularização vale como crítica ao romantismo/liberalismo pelo
motivo de que esta modernidade política experimenta a inquietante (e, para Schmitt,
particularmente, desesperadora) impossibilidade de conferir forma à realidade. Eis o ponto
chave ao qual queríamos chegar. Há um gap entre experiência e forma, autoridade e força,
311
direito e fato que não encontra solução em nenhuma instituição moderna. Ora, o que Schmitt
lamenta é o fato da ausência de fundamentação para o político, ou seja, a perda da
transcendência que implica “esvaziamento do mundo” e ausência da ordem. Em termos que
aproximam de nossa tese: a separação entre imanência e transcendência provoca, a rigor, a
impossibilidade da teoria política. A imanência como irracionalidade e violência não fornece
nenhum modelo ou forma política, está entregue à contingência ou impossibilidade de
princípio de constituição da ordem. Vimos no capítulo anterior como Schmitt trata deste
problema: de alguma forma, haveria uma mediação que instaura uma representação e
transforma potestas em auctoritas. Esta mediação seria o político, leia-se bem, o político
como mediação do teológico, ou seja, sem a autonomia que o caracterizará em textos do final
da década de 1920. A defesa mais radical deste argumento de representação, mais uma vez, é
exposta em Römischer Katholizismus, no qual haveria um vínculo entre forma e representação
capaz de resgatar a mera imanência de sua faticidade contingencial. Tanto a economia quanto
a técnica seriam incapazes de fornecer uma representação política e, por conseguinte,
conceder forma à ordem, pois o econômico e o técnico apelam a uma presença real das coisas.
A modernidade secularizada revelou a impossibilidade de fundamento para a ordem quer da
esfera do conhecimento, quer da esfera da política e esta situação epocal revela o finitismo
como condição humana. Neste contexto, porém, qual a solução que propõe Schmitt, o último
defensor da ordem e do Jus Publicum Europaeum? A mediação é considerada a partir da
imanência, através da decisão, mas a forma jurídica advém do modelo representativo da Igreja
Católica, da decisão pela ordem, da mesma forma que lida com a ausência de Cristo, o Papa
sendo seu substituto, daria a tentativa de ordenação da realidade a partir de um princípio
transcendente. Esta seria durante boa parte do pensamento weimariano de Schmitt a solução
ao gap que a modernidade impôs ao mundo: ao elaborar a dialética entre excesso e exceção,
articulando teologia e política, Schmitt desdobra o conceito de secularização e consegue fazer
com que a própria secularização seja ao mesmo tempo o problema (evidenciou a contingência
da realidade cindida) e a solução (a decisão tal como a mediação na Igreja Romana articula
forma e experiência e constitui a ordem e a unidade). A partir daí, mesmo aceitando tal
arranjo, a fundamentação da ordem política consagra a perda da transcendência da realidade e
implica o espectro insistente do “esvaziamento do mundo” que se torna incapaz de rejeitar a
ilusão de auto-fundamentação, mesmo que sub-repticiamente abandone a necessidade de um
governo seja pelas leis econômicas, seja pelas leis técnicas, em todo caso por alguma
instância imanente:
312
Em grande medida, o lugar de Deus para o homem moderno foi ocupado por outros
fatores, por certo mundanos, como a humanidade, a nação, o indivíduo (...) A
postura não deixa de ser metafísica por isso. O pensamento e o sentimento de cada
homem contêm sempre um determinado caráter metafísico (...). A isso chamo de
secularização305.
A argumentação schmittiana percebe a ausência de fundamento da modernidade e sua
estratégia finitista, mas engrossa as fileiras daqueles que rejeitam o imanentismo cego que
beira o irracionalismo, mesmo que sofrendo precisamente esta acusação, como vimos, durante
a década de 1920. Apesar disso, ele rejeita as tentativas de mediação da modernidade, a ideia
de humanidade é considerada por ele como abstrata, assim como o liberalismo que pretende
governar através de leis imanentes, em todo caso, a ruptura já fora iniciada:
A realidade mais alta e mais segura da antiga metafísica, o Deus transcendente, foi
eliminada. Mais importante que a disputa dos filósofos foi a pergunta acerca de
quem assumia suas funções como realidade mais alta e mais segura e, desse modo,
como instância última de legitimação da realidade histórica. Apareceram duas novas
realidades seculares que impuseram uma nova ontologia, sem esperar a finalização
da discussão epistemológica: a humanidade e a história. Completamente irracionais,
se são consideradas com a lógica da filosofia racionalista do século XVIII, mas
objetivas e evidentes em sua validade supra-individual, dominam in realitate o
pensamento da humanidade como os dois novos demiurgos 306.
Assim como a secularização expôs a diferença entre imanência e transcendência, a
indeterminação entre contingência (da ação) e racionalidade mobiliza o argumento do
finitismo, qual seja, a questão da validade in re e permite considerar o monismo como um
forte candidato à solução do problema colocado no início da pesquisa. Ora, a proposta desta
tese – e grande parte da coerência da tese depende da correta colocação deste argumento – é
que Schmitt assume a narrativa moderna da imanência ao elaborar uma releitura, certamente
ambígua e hesitante, do seu conceito do político: ao compreendê-lo não mais como mediação
do teológico, mas como relação e antagonismo, o jurista não faz outra coisa que arriscar uma
tese imanentista e rompe de vez a diferença entre transcendência e imanência que, até a última
hora, e até mesmo depois, tentou salvar. Eis o argumento para compreender a transição entre
os textos do início da República de Weimar e os textos do final da década de 1920. Como a
decisão do soberano enquanto decisão pela realização de uma forma abstrata é descartada no
305
PR, 18: “Für den modernen Menschen sind weithin an die Stelle Gottes andere, und zwar irdische Faktoren
getreten: die Menschheit, die Nation, das Individuum, die geschichtliche Entwicklung oder auch das Leben als
Leben seiner selbst wegen, in seiner ganzen Geistlosigkeit und bloßen Bewegung. Das Denken und Empfinden
jedes Menschen behält immer einen bestimmten metaphysischen Charakter (...) Das nennen ich
Säkularisierung“.
306
PR, p. 68: “Die höchste und sicherste Realität der alten Metaphysik, der transzendente Gott, war beseitigt.
Wichtiger als der Streit der Philosophen war die Frage, wer seine Funktionen als höchste und sicherste Realität
und damit als letzter Legitimationspunkt in der historischen Wirklichkeit übernahm. Zwei neue diesseitige
Realitäten traten auf und setzen eine neue Ontologie durch, ohne auf die Beendigung der erkenntnistheoretischen
Diskussion zu warten: die Menschenheit und die Geschicht. Völlig irrational, wenn man sie mit der Logik der
rationalistischen Philosophie des 18. Jahrhunderts betrachtet, aber objektiv und evident in ihrer überindividuellen
Geltung, beherrschten sie in realitate das Denken der Menschheit als die beiden neuen Demiurgen”.
313
307
BP, p. 20: “Der Begriff des Staates setz den Begriff des Politischen voraus”.
314
de direito308. Assim, não se trata de uma definição de essência, mas “um estado (Zustand) que
fornece a medida em caso de decisão” (BP, p. 20)309, porém esta decisão se refere à medida
do status, da relação e do sentido concreto e existencial e não mais da medida transcendente
da ideia de direito: a questão não é se normas devem ou não valer, mas se a unidade política
existe ou não existe.
Se a questão tradicional da metafísica “por que o ser e não o nada?” pressupõe a
dialética metafísica do ser e aparecer e a lógica da reductio ad unum, bem como a diferença
ontológica entre ser e ente; então a questão clássica em filosofia política “por que ordem e não
o caos?”, da mesma forma, pressupõe a dialética da representação entre transcendência e
imanência implicada pela teologia política que preserva a relação entre racionalidade e ação,
bem como a diferença ontológica entre político e política. A teoria do político como finitude,
todavia, se desembaraça da metafísica política e recoloca a questão do sentido da ação,
tomando a diferença enquanto diferença e não como mera diferença entre instâncias (cf. 3.3).
Pode-se dizer que ser é aparecer, isto é, o acontecer do político afasta a disjunção entre o ser e
aparecer ou qualquer bipolaridade, além de assumir a ação no contexto existencial de formas
de vida e provocar a perda da autoridade ou soberania como fundamento transcendente. A
crítica às políticas da transcendência desempenha a mesma função da crítica à metafísica,
sobretudo, quanto à relação entre racionalidade e ação, desconstruída através da compreensão
da ação política enquanto diferença na imanência e não como cisão de instâncias: a pergunta
sobre a validade da ação, afinal, é metafísica e não se põe mais. O argumento da finitude
implica, portanto, na imanentização do político e, sobretudo, a alegada ausência de substância
ou essência provoca uma indeterminação na categoria do político. Dessa forma, o argumento
do político rejeita o processo de secularização, pois não se distingue da própria ação
constitutiva, uma vez que diferença e relação é sua medida.
O argumento da finitude remete a teoria para a imanência; desta, para a relação e
diferença; daí então, até restar a configuração do político como antagonismo. Assim, quando
se tem em vista a contradição que atravessa a política – o direito, a autoridade, o Estado –
mostra-se sua origem esquecida e inconfessável: o conflito. Todavia, quando se tem em vista
a possibilidade de constituição da ordem, há o reenvio para aquilo que poderia estabilizá-la,
mas que se encontra como um vazio ou ausência. Por este motivo, diz-se que a pós-política
308
Schmitt realiza uma provocativa inversão na tradição jurídico-política alemã que sustentava, conforme Georg
Jellinek em 1914, que “‚Politisch‘ heißt ‚staatlich‘; im Begriff des Politischen hat man bereits den Begriff des
Staates gedacht” (JELLINEK, 1929, p. 180). Apesar da abertura para uma política não estatal e a dissolução dos
conceitos de representação e soberania, Schmitt ainda hesita em uma circularidade ou ambiguidade entre Estado
e político, sobre isso, cf. SCHÖMBERG, 2003.
309
BP, p. 20: “und zwar der im entscheidenden Fall maßgebende Zustand”.
315
teria que considerar a experiência a partir da ausência, visto que impossível remeter à
fundamentação da maneira tradicional. Além disso, por apresentar-se como relação (neste vai-
e-vem não mais entre amigos e inimigos, mas sim entre política e político) e não como
substância, o político expressa sua ilimitabilidade e ubiquidade: ao alcançar o Intensitätsgrad
do conflito, qualquer relação social torna-se relação política, pois “como o político não tem
substância própria, o ponto do político pode ser atingido por qualquer domínio, e todo grupo
social”310. Isto, no entanto, provoca uma desestabilização no modo de conceber as relações.
Além disso, torna o político perigoso: recusa qualquer apelo à transcendência e passa a
ocorrer por contágio da relação. Visto estar assente a ausência da organização hierárquica, o
poder se constitui em relações de forças que, ao ponto extremo de intensidade, se transfigura
em poder político, isto é, polêmico e, principalmente, hegemônico. O caráter viral e
desestabilizador da relação no tecido social produz a forma imanente da ordem e,
precisamente neste ponto, é inaceitável pela teoria tradicional da política (inclusive, pelo
próprio Schmitt), por isso a imunização ou ordenação normativa, isto é, a representação
política contra o risco do político.
Além da diferença entre político e política, a ação é orientada pelo afecções ou
pathos do polêmico, tem em vista a pergunta pela diferença do político enquanto originária
ontológica (seinsmäßige Ursprünglichkeit) e não a pergunta por uma instância universal
(norma) ou particular (decisão). No entanto, nossa proposta da diferença ontológica entre
político e política, insere Schmitt em outro grupo de autores: ao invés de pensá-lo como um
teórico da política institucional, por exemplo, numa concepção jurídico-política de Estado e
da ordem, é possível interpretá-lo como o autor que inaugura a diferença política e pensa o
político não apenas como relação co-instituinte, mas também como uma abertura constante,
pois relação “incomensurável”, isto é, não institucionalizável e, por isso, portador de uma
validade in re ao pensar o singular do múltiplo311. Ele leva adiante sua lógica imanente ao
310
“Staatsethik und pluralistischer Staat”, In: PuB, pp. 159-160: “Weil das Politische keine eigene Substanz hat,
kann der Punkt des Politischen von jedem Gebiet aus gewonnen werden, und jede soziale Gruppe”.
311
Oliver Marchart desenvolve o tema da diferença ontológica como diferença política ao elaborar um paralelo
entre ontisch-ontologische Differenz e politik-politisch Differenz e sustenta a distinção conceitual entre político e
política desde Schmitt até o Linksheideggerianismus de Jean-Luc Nancy. Embora o autor reconheça a
originalidade da distinção em Schmitt, argumenta que o jurista não teria percebido a diferença entre os níveis
como diferença e, por isso, teria se fixado no papel de uma instância constituidora de fundamento ou “in der
Suche nach dem Sein des Seienden (die Substanz, die Subjekt)”. A Grundfragen não seria sobre o “ontologische
Sein” ou sobre o “ontisch Seiende”, mas sim “auf die Differenz zwischen beiden als Differenz” (MARCHART,
2010, p. 147), pois ao se tratar de outra forma a diferença, dá-se um “Ent-Zug des Grund”. Todavia, o autor
apenas repete o gesto já tradicional de rejeitar a obra schmittiana. Ele desconsidera que Schmitt não toma “keine
partikulare Domäne oder Spezies des ontisch Seiende” (MARCHART, 2010, p. 150), mas o contrário: em Der
Begriff des Politischen, Schmitt sustenta a diferença e relação, e não cada polo, como aquilo que determina o
político.
316
312
BP, p. 30: “Doch bleibt auch hier stets ein – durch die Existenz der alle Gegensätze umfassenden politischen
Einheit des Staates allerdings relativierter – Gegensatz und Antagonismus innerhalb des Staates für den Begriff
des Politischen konstitutiv”.
313
BP, p. 31: "haben alle politischen Begriffe, Vorstellungen und Worte einen polemischen Sinn".
317
314
Benjamin Arditi traz a mesma compreensão ao afirmar sobre Schmitt: “He is advancing a claim that in a way
mirrors the ontological difference in Heidegger and brings to mind Claude Lefort’s claim that we should not
confuse the political with its historical modes of appearance (…) the political in Schmitt will always be
excessive vis-à-vis its concrete manifestations” (ARDITI, 2008, p. 13-14).
315
Deleuze afirma algo similar em relação ao pensamento de Foucault: “Certamente, nada a ver com uma ideia
transcedente, nem com uma superestrutura ideológica; nada a ver tampouco com uma infra-estrutura econômica,
já qualificada em sua substância e definida em sua forma e utilização. Mas não deixa de ser verdade que o
diagrama age de acordo como uma causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a
máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de
318
força passam, não por cima, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem” (DELEUZE, 2005, p.
46, grifo nosso).
316
Gl, p. 213: "Der Feind ist unsere eigne Fragen als Gestalt. Und er wird uns, wir ihn zum selben Ende hetzen".
319
preliminar em regiões que seguem ainda muito escuras. Pretendemos avançar nessas
categorias e argumentos e esboçar uma teoria que se configure como um imanentismo ou
monismo político, ou seja, que consiga pensar a ruptura da simetria entre imanência e
transcendência, mas também que trate a noção de abertura e as categorias de contingência e
antagonismo. Para além dessas perspectivas, mais prospectivas do que exegéticas,
pretendemos tornar viável uma ontologia, tomando como parti pris a tese de que política se
refere a afetos e não a normas e de que a totalidade da realidade pode ser considerada sob a
inscrição do antagonismo como relação básica do próprio corpo social, um elemento comum
através do qual se dão as ações e vontades, inclusive as normas. A pergunta mais relevante
que poderia ser encaminhada neste ponto é a seguinte: a filosofia política seria, portanto,
meramente descritiva ao invés de estabelecer normas ou critérios a priori e procedimentos
racionais como horizonte de ação para alcançar a justiça ou a liberdade? A resposta, como se
verá, exige uma reconsideração da distinção entre normativo e descritivo, validade e
faticidade e outras dicotomias que, no geral, em outro campos da reflexão filosófica já
exercem um papel bastante debilitado, por exemplo, analítico e sintético, a priori e a
posteriori, natureza e cultura, sujeito e objeto, etc. Trata-se, portanto, de perguntar por que
razão a filosofia política continua operando com categorias já consideradas gastas, além de
tentar outro tipo de pensamento político317.
Segundo Arditi (2005, p. 227), seguindo de perto Schmitt, a época moderna seria
uma postura secular diante do perigo da ausência de um fundamento último de sentido do
mundo, assim “a genealogia política da modernidade começa com a delimitação de um
âmbito secular da decisão política separado da esfera religiosa”. Evidentemente, o autor se
refere à Hobbes e à instauração do âmbito institucional de modo estritamente político,
rejeitando-se a ordem natural ou teológica. Assim, ao mesmo tempo em que é revelada, a
contingência da ordem sofre uma tentativa de controle: apenas o soberano é sujeito político e
caso o conflito surja no corpo social sob a proteção do Estado, deve ser considerado um
assunto de polícia e não de política. De modo aforístico, Schmitt descreve este princípio da
modernidade política: o “protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”318. No entanto,
317
Sobre a diferença entre Politik e Politischen, Marchat argumenta que o resultado da “politische Differenz, und
als solche werde ich die Differenz zwischen Politik und dem Politischen im Weiteren bezeichnen, aus einer
Sackgasse, in die konventionelle politische Theorien und Sozialtheorien geraten waren. Nicht nur die
konzeptuellen Innovation des Politischen, sondern die eigentlich Differenz oder Spaltung, die auf diese Weise
dem konventionellen Begriff von Politik beigebracht wurde, scheint mir auf die Krise des fundamentalistischen
Horizonts der Sozialwissenschaften hinzuweisen (...) Was in den Bruchstellen dieses fundamentalistischen
Horizonts sichtbar wurde, war ein postfundamentalistisches Denken, durch welches zu erfahren möglich wurde,
was Lefort die ‘Auflösung der Zeichen der Sicherheit’ nennt” (MARCHAT, 2010, p. 144-145).
318
BP, p. 53: “Das protego ergo obligo ist das cogito ergo sum des Staates”.
320
ele mesmo percebe a permanência da questão do político e sutilmente considera que até
mesmo a negação política do político pode ser considerada como uma inconfessável
declaração de que a dupla inscrição da ação política não se deixa facilmente controlar319. A
experiência impredicável da contingência, no caso, a relação de conflito, demonstra seu
aspecto de ininstitucionalização. Ainda, conforme Arditi (2005, p. 228), “os distúrbios são
vestígios do político que permanecem alojados dentro do Estado, por isso a permanência do
político termina sendo reconhecida de maneira indireta pela mera necessidade de contar com
uma polícia dentro do Estado civil”. Dessa maneira, a ordem estatal da política se constitui
apenas como um modelo hegemônico que não esgota nem anula a realidade conflitiva do
político. Haveria, porém, migrações do fenômeno do político: no caso em questão, do Estado
absolutista ao Estado liberal, que teria como consequência expansões da fronteira política, a
partir do qual se poderia afirmar hoje, após deslocamentos da mesma natureza, um pós-
liberalismo320. Entretanto, esta relação significa apenas que “o subsistema da política passa a
hegemonizar o político e que, não obstante, o político transcende os confins do subsistema da
política” (ARDITI, 2005, p. 231). Assim, parece-nos que aquilo que a tradição grega apontava
como a stasis321 prossegue como o ponto central do problema da ordem. Neste momento,
precisamente, lançamos a tese da abertura: a ordem não é composta por uma das partes nem
de ambas, mas do espaço vazio ou em disputa permanente entre o político e a política, qual
seja, a fronteira do conflito, o avesso da política. Arditi continua: “o esforço por pensar esse
excesso é talvez o grande aporte de Schmitt, cujo conceito do político permite teorizar a
política mais além do subsistema político. Este excedente se ampliou nas últimas décadas
através da disseminação dos meios e dos lugares de intervenção política” (ARDITI, 2005, p.
231). Ora, se desde Platão – com a necessidade de apaziguar por meio da racionalidade a
tendência ao conflito da alma ou dos desejos (República, 572a-572b; 577d) – até Hobbes –
319
Exemplo disso é a compreensão de que a guerra seria apenas entre Estado e que uma guerra civil não seria,
propriamente dito, uma ocorrência do político. Ora, ao pensar dessa forma, o autor impõe um limite arbitrário ao
conceito do político. Posteriormente, na teoria do Partisan, Schmitt demonstra outra leitura sobre a guerra sem
considerar o Estado ou a ordem como lugar privilegiado da manifestação do político.
320
Cf. ARDITI, 2005, p. 219-248.
321
Conforme Nicole LOURAUX (1987, p. 103), o elemento do conflito é originário na cultura grega, assim “o
conflito na forma reprimida do agôn, constitui já o centro da pólis”. O mal-estar que se verifica ao tratar de
conflito, violência em relação aos fenômenos sociais não é percebido senão como uma incompreensão
humanística sobre o tema, uma vez que a guerra civil é constitutiva da pólis: “sous l'excommunication de la
stasis, la certitude que la guerre civile est connaturale à la cité, voire fondatrice du politique en tant qu'il est
précisément commun. Mais tel est l'oubli de ce politique indissociablement conflictuel et commun qu'il faut” (p.
103-104). Sobre a stasis como paradigma do governo moderno, Giorgio AGAMBEN, 2015. Hasso HOFMANN
(2002, p. XXXVIII) comenta sobre a staseologia em Schmitt como uma teoria da revolta que o jurista assume
em detrimento da leitura teológica-política: “Hat Schmitt nicht selbst die Idee des souveränen Vater-Staates
preigegeben? Vertritt er nicht selbst eine staseologische Position des eschatologisch notwendigen christologisch-
politischen Konflikts im trinitarischen Übergang vom Reich des Vaters auf das Reich des Sohnes”. Na literatura
alemã, as importantes pesquisas de Chrsitian MEIER, 1990, p. 13-25.
321
que, com outros mecanismos, tenta ordenar o corpo social contra o conflito sempre presente –,
a pergunta típica da filosofia política é acerca da estabilização da ordem, constituição da
unidade e validade racional, além claro, da neutralização dos afetos. Gostaríamos, agora, de
pensar o inverso desta pergunta: como pensar o poder em termos de abertura ao invés de
estabilização e unidade, em termos de relação e afeto ao invés de normas?
O ponto de partida, portanto, para este ultrapassamento da semântica política
moderna, em nosso ponto de vista, é a proposta do político como relação, a constituição do
corpo social a partir do afeto mais intenso, o antagonismo, e a contraposição à estabilização
puramente imanente da ordem. No Der Begriff des Politischen, Schmitt assume esta tese da
diferença baseada no afeto da contradição como medida para o político: “a oposição política é
a oposição mais intensa e mais extrema e qualquer situação de oposição concreta é tão mais
política quanto mais se aproxima do ponto extremo que é o agrupamento entre amigos e
inimigos” (BP, p. 30)322. Neste momento, ele tem em vista a transformação do volume da
oposição existencial em relação política. A categoria do político como o antagonismo é
interpretada como diferença e não como um simples critério amigo-inimigo, ou melhor, como
uma espécie de achatamento da bipolaridade entre transcendência e imanência. O critério do
político como o grau de intensidade do polémos refere-se ao antagonismo anterior às cisões e
instituições, inclusive às identidades de amigo e inimigo, pois o pólemos é compreendido
como multiplicidade e de formas de vida, portanto, de maneira imanente. Afinal, provoca-se
um curto-circuito no parti pris político moderno que pergunta pelo princípio normativo ou
fonte de autoridade da ação política. Estas oposições fáticas constituem a totalidade das
relações e não deixam espaço algum para distinções como anterior e exterior, normas de
direito e normas de realização de direito, exceção e norma, decisão e ordem ou legalidade e
legitimidade porque, como já exposto, qualquer transcendência é da imanência, ou seja,
derivada dos lances e das ações concretas e, dessa maneira, a ausência da condição política
aponta para a contingência estrutural. Este antagonismo refere-se à relação: em um primeiro
nível, o político abandona a diferença ôntica (amigo e inimigo) para trazer consigo algo mais
radical, qual seja, expressa esta diferença enquanto relação. No entanto, ainda não é esta a
configuração final da estrutura política: o modo de relação ou de ser-com baseado nos afetos
(antagonismo, sobretudo) mantém-se em diferença com o modo das tentativas de sequestro ou
de estabilização via ordem (da política) e, a partir daí, nem renunciamos ao conflito, nem à
322
BP, p. 30: "Der politische Gegensatz ist der intensivste und äußerste Gegensatz und jede konkrete
Gegensätzlichkeit ist um so politischer, je mehr sie sich dem äußersten Punkte, der Freund- Feindgruppierung,
nähert".
322
ordem, ao invés, sustentamos que a abertura enquanto tal, ou seja, a diferença entre conflito e
ordem: isso é o que podemos considerar a experiência co-instituinte e afetiva do corpo
político.
O quadro geral é, naturalmente, a postura antiliberal schmittiana323. No contexto da
disputa das interpretações acerca da República de Weimar, a crítica à despolitização e
neutralização liberais desencadeou a reação do jurista durante toda sua obra. Entre outros
argumentos, ele ataca a tradicional distinção entre político e Estado e, por conseguinte,
desautoriza a leitura liberal, econômica e tecnicista da determinação da ação política
totalmente secularizada324, bem como a leitura da modernidade tardia – como consequência,
em parte, do sucesso das ciências da natureza – na qual todos os objetos passam a ser
governados por concepções de imanência. Diante disso, Schmitt percebe que o lugar do
político como mediação está ameaçado pela perda da transcendência (externa) e pelo
mergulho na imanência como fonte última da validade.
[o] argumento cogito ergo sum remeteu o homem para um processo subjetivo e
interno, para o seu pensamento, em lugar da realidade [Realität] do mundo externo.
A ciência natural deixou de ser geocêntrica e buscou o seu centro fora da Terra, o
pensamento filosófico tornou-se egocêntrico e buscou o seu centro em si mesmo. A
filosofia moderna é dominada por uma dissociação entre pensamento e ser, conceito
e realidade, espírito e natureza, sujeito e objeto, que nem mesmo a solução
transcendental de Kant remediou (PR, p. 62-63)325.
Por isso, ele constroi uma nova e mais sutil contraposição às tendências anti-políticas ou
apolíticas da modernidade sob a estratégia da finitude326: a categoria do político do final da
década de 1920 pode ser inicialmente considerada como uma resposta à concepção liberal de
Estado. Por sua peculiar metodologia antagonística, Schmitt se posiciona de modo
diametralmente oposto às teses analisadas, captando suas ideias ou conceitos e levando em
conta seu extremo, precisamente, seu contrário ao tentar dissolver os esquemas conceituais da
323
Inúmeras pesquisas já foram realizadas acerca da postura antiliberal de Carl Schmitt. Nossa argumentação
parte especialmente de FERREIRA, 2004.
324
Apesar de ser considerado, paradoxalmente, como liberal por autores como Leo Strauss e Martin Heidegger,
cf. 1.2.
325
PR, 62-63: “ihre Argumentation cogito, ergo sum, wies des Menschen an einen subjektiven und internen
Vorgang, an sein Denken, statt an die Realität den außenwelt. Das Naturwissenschaftlichen Denken der
Menschen hörte auf, geozentrisch zu sein und sucht den Mittelpunkt außerhalb der Erde, das philosophische
Denken wurde egozentrisch und suchte den Mittelpunkt in sich. Die moderne Philosophie ist von einen
Zwiespalt zwischen Denken und Sein, Begriff und Wirklichkeit, Geist und Natur, Subjekt und Objekt beherrscht,
den auch die tranzendentalen Lösung Kants nichts behoben hat”.
326
Neste contexto, Schmitt realiza uma releitura do conceito do político e, ao conceder-lhe autonomia, tenta
superar os prolemas relativos à colonização do político por áreas ou instâncias apolíticas ou antipolíticas: como o
político é uma relação, não importa qual seja a instância neutra ou imparcial, nem mesmo depende da noção de
representação, pois, como algo relacional, isto é, imanente, ele pode ser marcada pelo político: no caso extremo,
até o pacifismo mais consequente poderia ser considerado político justamente por uma implicação inesperada.
Os motivos pacifistas numa guerra entre pacifistas e não-pacifistas, tornariam-se políticos, uma vez que nada
escapa de suas consquências.
323
posição em ataque. Além disso, segundo o jurista, cada época elaborava para si uma imagem
metafísica e a questão que Schmitt se coloca é saber qual é a imagem metafísica do mundo na
modernidade tardia? Para isso, Ojakangas tem uma resposta precisa:
327
Para Schmitt, seria Maquiavel “portador do principal traço negativo do Moderno, isto é, a perda do nexo com
a transcendência, sem a qual não há política eficaz” (GALLI, 2008, p. 87)
328
Sobre a contingência como fundamento, cf. 3.3, a seguir.
329
“Auflösung der europäischeen Ordnung im ‚International Law´ (1890-1939)” (1940) in SGN, 382.
324
da realidade concreta como relação social marcada pelo antagonismo. Assim, não há mais
espaço além ou dualidade dentro-fora, mas transcendência dentro da imanência: a constituição
da ordem, por assim dizer, representa as relações tomadas no corpo social no que ele possui
de violência e poder, numa palavra, antagonismo. Todavia, esta configuração que podemos
sem dúvidas nomear – como se fosse necessário nomear as coisas – de realismo forte ou
pragmatismo, não designa algo como um fundamento, visto que também se refere para fora de
si, no caso, para o outro como externo constitutivo necessário. Esta passa a ser a medida da
ordem que, por sua própria natureza, apesar de Schmitt não admitir suas últimas
consequências, demonstra a instabilidade do poder que se movimenta tal como um pêndulo
entre política e político.
Ora, nossa interpretação é que justamente em Der Begriff des Politischen Schmitt
passa a atacar a simetria entra imanência e transcendência com o arsenal do adversário,
lidando com a perda da transcendência (no caso dele, a noção de representação e forma
política) e a absolutização da imanência (provocada pelas concepções imanentista, sobretudo,
pela ciência e técnicas modernas, mas também pelo capitalismo e socialismo): se não é
possível pensar a dicotomia entre normas de direito e normas de realização do direito, forma e
experiência, excesso e exceção, pois estes ainda se referem a algo fora da história e da
constituição imanente da realidade, Schmitt arrisca – ou arriscamos por ele – uma teoria
política imanentista fortemente marcada por um finitismo, mas que não se limita a uma
Selbstbehauptung nem mesmo à certeza ou ao cálculo da técnica. Na verdade, o jurista
prepara um arranjo que no final das contas implode a concepção de imanência da
modernidade, pois haveria uma transcendência dentro da imanência, como um duplo que não
se refere ao binômio dentro-fora ou imanência-transcendência, mas política-político, ou seja,
qualquer sentido ou forma política tem caráter secundário diante da prática social que aponta,
afinal, para uma ausência de origem no movimento do pêndulo político, pois encontra no seu
termidor uma estabilização mesmo que precária. Nesta tese, reinterpretamos a imanência
como relação (na qual ocorre a multiplicidade de afetos, sobretudo, o antagonismo, isto é, a
condição da ordem, se quiserem, como um transcendental histórico) e a transcendência como
contingência (por se referir ao não fundamento, mas sim à abertura entre político e política, ou
seja, à diferença que, no fundo, marca uma ausência). Além disso, por não apostar em algum
dos lados, sustentamos que a reflexão política deve partir desta abertura, ou seja, o movimento
mesmo entre o antagonismo e a contingência. Na balança entre os espectros insolúveis,
encontramos o passo mais importante para fora das bipolaridades: tanto do antagonismo
(diferença meramente ôntica) quanto da contingência (impossibilidade de fixação da forma
325
330
Galli sustenta que Schmitt teria medo do conflito e por isso propõe o Estado como a forma através da qual o
conflito e a morte é controlada. Ele afirma que Schmitt “é o pensador do conflito como ordem negada, na ótica
de uma soberania que é portadora de ordem própria porque capaz de chegar ao extremo em seu espasmo
decisionístico” (...) Schmitt, na realidade, teme o conflito” (GALLI, 2008, p. 103).
331
Em Politische Romantik, Schmitt critica a ontologia naturalista ou imanentista de Espinosa: Mas o sistema de
Spinoza é a primeira reação, e na verdade análoga àquela outra pós-kantiana, contra a abstração do racionalismo
moderno, representado então por Descartes e Hobbes, e contra uma concepção mecânica do mundo. A cisão
característica – que se distingue claramente não apenas em Descartes, mas também de forma especialmente
interessante em Hobbes – entre um fenomenalismo que considera o mundo exterior como mera percepção e um
materialismo caracterizado do mesmo modo, isto é, que somente reconhece movimentos dos corpos, é superada;
pensamento e ser se convertem em atributos da mesma substância infinita” (PR, p. 64). Sobre uma aproximação
entre os autores, WALTHER, Manfred. “Carl Schmitt et Baruch Spinoza ou les aventure du concept du
politique” In.: BLOCH, Olivier (Org.) Spinoza au XXe. Siécle. Paris: PUF, p. 361-374.
326
332
Mesmo que se aponte que Schmitt tenha como meta a preservação da ordem e a manutenção do conflito fora
do Estado, as consequências do político o impedem de realizar seu desiderato. Neste ponto, talvez, tenhamos que
ser mais coerentes do que o próprio autor, ou seja, Schmitt foi pouco schmittiano.
328
político e Estado (política) e lança mão de um argumento que, de certa forma, põe a pergunta:
Schmitt não estaria propondo um “estado de natureza”, retomando o político como pré-
política e pré-estatal?333 Na verdade, a crítica de Schmitt se dirige à forma de não-política que
a política moderna assume, inclusive através de Hobbes, no caso, como uma sublimação ou
sequestro do político pelo liberalismo sob os valores de segurança e certeza da ordem. Ora, a
natureza conflitual do corpo social depõe contra a narrativa de despolitização liberal e
individualista, ou seja, o conflito demonstra sua irredutibilidade à ordem334.
A dupla inscrição do político, como Zizek descreve335, estabelece logo de entrada o
excesso que o político figura em relação às formas institucionais da política: ao mesmo tempo
em que desterritorializa a teoria política – pois o político é considerado como relação e afeto e
não como substância ou região de coisas – torna-o uma espécie de universal concreto,
garantindo uma plasticidade e uma relatividade, numa palavra, um perspectivismo político.
Por isso, a possibilidade de se referir com esta dupla inscrição aos eventos ou ações fora da
esfera institucional e ainda assim considerá-las como objeto da reflexão política. Além disso,
por se tratar de uma relação marcada pelo antagonismo, há uma expansão dos modos de
aparição, ou seja, fornece mecanismos conceituais para pensar o fora-da-lei ou o externo da
representação e da política partidária ao invés da percepção dos modos de aparição da política
simplesmente ao nível institucional e vinculada a um sistema formal exclusivo.
Evidentemente, não é possível pensar exclusivamente um ou outro. Por exemplo, enquanto o
refugiado é a expressão nua deste deslocamento e desterritorialização que o político implica,
um estado totalitário ou império absoluto seria a tendência à ausência do político. Na tese que
333
O diagnóstico de Galli, traçando um paralelo entre Schmitt e Maquiavel, não autoriza esta leitura: Se a
fórmula schmittiana do ‘político’ como relação amigo/inimigo institui entre guerra e política um continuum, se
Maquiavel afirmou muitas vezes e em muitos lugares a identidade das ‘boas leis e das boas armas’, todavia a co-
implicação originária entre guerra (ou melhor, conflito) e política não torna igual Maquiavel e Schmitt. Na
realidade, na antítese entre ordem e conflito, Schmitt e Maquiavel estão em dois partidos diversos: o primeiro é o
pensador do conflito como ordem negada, na ótica de uma soberania que é portadora de ordem própria porque
capaz de chegar ao extremo em sua pulsão decisionística, enquanto o segundo aceita o conflito enquanto
constitutivo da política como fato humano coletivo. Schmitt, na realidade, teme o conflito; Maquiavel, não; para
o segundo é fim em si (se o conflito é glorioso e não determinado pela ‘avareza’). E esta distância estrutural
desmente a presumida consonância entre eles, ou mesmo a sua identificação como dois mestres daquilo que se
costuma definir como ‘realismo político’ (isto é, um pensamento que oscila entre o reconhecimento do papel da
violência e a busca pelas ‘leis’ da ordem) (GALLI, 2008, p. 103). Sobre a relação entre Maquiavel e Schmitt, cf.
ADVERSE, 2016.
334
É necessário notar que não apenas a base do “pesimismo antropológico” e seu antiliberalismo, mas também o
contexto de conflito desde a I GGM até a turbulenta década de 1920 e 1930 condicionam o pensamento de
Schmitt como um permanente tema e contínua reflexão sobre o conlfito e violência, mas também “the
emmergence of effective, non-state political actors and processes, such as expansion of democracy and
politicization of civil society” (VIRIASOVA, 2011, p. 3); cf. também, ARDITI, 1996, p. 15. as fronteiras foram
definidas e o político seria uma reação ao beyond perdido.
335
“The political is inscribed as a gentrified domain of normalized or institutional political exchanges (politics)
and as the negativity of decisions and actions that put objectivity into question (the political), whether at the local
or macro levels, within or outside the political sub-system” (apud ARDITI, 2008, p. 17).
329
é irrelevante se aceita ou não a antítese amigo-inimigo, uma vez que é inegável que
as nações continuam a agrupar-se em conformidade e que continua a ser uma
possibilidade sempre presente na esfera política: "O núcleo do político não é
inimizade, mas sim a distinção de amigo e inimigo que pressupõe amigo e inimigo
do corpo"(TP, p. 93). A chave para o conceito de política não é, portanto, inimizade,
mas a própria distinção. A situação mais perigosa surge quando esta distinção é
desfocada, o que resulta em desfocagem da distinção entre guerra e paz (ULMEN,
1987, p. 189, grifos do autor).
Esta diferença entre político e política mais do que tornar insolúvel a relação entre imanência
e transcendência, demonstra o caráter antipredicativo da ação política que não se fixa em
alguma das instâncias, tal como uma totalidade incomensurável não representável. A partir
disso, traçamos a função ontológica do antagonismo à margem dos mecanismos de
institucionalização ou, em outros termos, o princípio da ordem, paradoxalmente, como
princípio de des-identidade e de des-diferenciação como condição própria do impróprio da
ação política.
336
Entretanto, o conflito não teria aqui maior peso? Ou não seria a ordem ainda o objeto da filosofia política? É
bem verdade que Schmitt, em Der Begriff des Politischen, afirma que a prerrogativa do político pode ser
reivindicada por todo agrupamento que detiver poder suficiente para assegurar a proteção, a despeito, portanto,
da autoridade do Estado. Mas está claro que seu objetivo é exatamente restaurar esta autoridade. A respeito, ver
o artigo de Benjamin Arditi (2008, p. 7-28).
330
***
Para analisar a diferença política – não como discriminação entre amigo e inimigo
nem mesmo como mera oposição – mas sim como diferença entre política e político e suas
decorrências, é necessário ainda caracterizar a noção do político. A ênfase será dada a este
conceito por um motivo simples: as políticas da metafísica foram constituídas com base na
recusa da finitude do finito. Com a crise da metafísica política, pretendemos liberar aquelas
dimensões do real esquecidas ou relegadas a um tratamento secundário pela tradição, como a
vida, os afetos, o concreto, o corpo, a existência humana, a palavra, o irracional, a exceção,
entre outros, ou seja, aqueles planos e relações mais travejadas na trama da finitude. O que
Schmitt parece desencadear é uma espécie de infinitização (imanente) do finito, ou seja, uma
compreensão de que na concretude das relações do corpo social se estabeleçam como um
movimento sem fim entre político e política, esta tensão insolúvel que marca a ausência e
perda, numa palavra, a contingência que passa a ser a própria condição da ação política. Por
isso, nosso interesse em suas teses como ferramenta conceitual para pensar uma política não
metafísica, ou melhor, uma política da abertura337.
Este problema é retomado sob a forma da desterritorialização, ou mais precisamente,
da desestatalização do político: a compreensão de que a instituição é assumida como
fenômeno posterior ao político, segundo a tese que “o conceito do Estado pressupõe o
conceito do político” (BP, p. 20). Se o argumento do finitismo – ou como interpreta Voegelin,
entre outros, na crítica à Schmitt, como o imanentismo – recusa a relação entre transcendência
e ação política, então torna-se necessário demonstrar como a instância não normativa e
contingente conseguiria (in)determinar o corpo político sem apelar a uma fundamentação
racional ou universal ao mesmo tempo em que rejeita a simples identificação com a força.
337
Apenas a título de recapitulação, é conveniente lembrar a contextualização acerca do conceito do político, que
realizamos. Basicamente, 3 momentos no pensamento de Schmitt: (i) o momento formalista durante a década de
1910 – especialmente, o Der Wert des Staates – que pode ser denominado como período pré-weimariano; (ii) o
momento marcado pelos textos Die Diktatur e Politische Theologie até meados da década de 1920 compreendido
como um realismo fraco, pois há decisão e exceção, mas em função da instauração da forma e ordem política,
denominado como período weimariano, ainda na defesa da representação ou de uma validade ante rem, baseados
no teorema da secularização e (iii) um momento de realismo forte, sobretudo, em Der Begriff des Politischen,
mas também em Verfassungslehre, marcado pelo politische Existentialismus ou pela compreensão do político
como relação e antagonismo, denominado de período tardo-weimariano, caracterizado ainda por uma validade in
re ou imanentista, pois refere-se à relação e arranjos de forças e corpos políticos, em último caso por um
perspectivismo político. Este último caracteriza-se por um abandono da semântica metafísica da decisão e da
exceção, além da rejeição do político como mediação. Neste período tardo-weimariano, a decisão do soberano
enquanto decisão pela realização de um ideal e da ordem no corpo social é recusada e assume-se a tese do caráter
autônomo do político na diferença imanente. Como consequência, a contingência da realidade, exposta pela
decisão, passa a ser considerada o locus da ação política, afastando-se do teorema da secularização ou de uma
metapolítica.
331
***
338
Diferentemente de Schmitt, não pretendemos nem mesmo como um expediente de pensamento sustentar o
conflito em uma antropologia, por isso a proposta de uma ontologia do conflito tal como esboçamos nesta tese.
339
BP, p. 26: “Die spezifisch politische Unterscheidung, auf welche sich die politischen Handlungen und
Motive zurückführen lassen, ist die Unterscheidung von Freund und Feind. Sie gibt eine Begriffsbestimmung im
Sinne eines Kriteriums, nicht als erschöpfende Definition oder Inhaltsangabe”
340
BP, p. 30: "Der politische Gegensatz ist der intensivste und äußerste Gegensatz und jede konkrete
Gegensätzlichkeit ist um so politischer, je mehr sie sich dem äußersten Punkte, der Freund- Feindgruppierung,
nähert".
332
o político se refere aos afetos que ocorrem nas relações do corpo social, sobretudo, ao mais
intenso, qual seja, ao afeto de antagonismo; (ii) por se referir à relação (imediatidade
relacional), o político é marcado pela ausência de substância ou essência; (iii) a autonomia do
político é garantida pela adoção de um critério hermenêutico (o grau de intensidade da
relação); (iv) a consequência do político: unicidade e totalidade; (v) o político como
pluralidade ou ser-com (relação propriamente plural); (vi) a ilimitabilidade do político e (vii)
o político como ininstitucionalizável. Logo após, demonstramos como através das teses
schmittianas alguns conceitos em teoria política podem ser redefinidos341.
(i) A categoria do político é discutida através de uma abordagem existencial em
detrimento da leitura normativa: os afetos que perpassam os corpos nas relações sociais
determinam a estrutura do poder. Como visto, aquele afeto mais intenso, o afeto que se refere
à oposição e à heterogeneidade de formas de vida, apresenta o critério para a ação, qual seja, a
polemicidade. O polémos ou antagonismo, por assim dizer, é o afeto que determina a
experiência do poder e instauradora da ordem, o dado último possível da realidade, mais
como um factum brutum e potência destituinte do que fundamento normativo: normas de
direito, normas de realização de direito, normas de ação técnica ou decisão sobre a exceção
não constituem mais uma possibilidade válida ou coerente de legitimação do poder, mas
agora, na releitura de Schmitt, o político como o pólemos ou antagonismo. Por este meio, a
relação entre imanência e transcendência sofre uma revisão e torna-se uma relação
concreta342. Pelos mesmos motivos, pode-se afirmar que esta categoria desautoriza a
imposição de um poder que se intitule transcendente. Este political turn no final da década de
1920 revela uma transformação do realismo fraco caracterizado na teoria da decisão em Die
Diktatur e Politische Theologie: se pelo mecanismo da exceção, a ordem possui uma origem
concreta, porém submetida à exigência da forma abstrata para ser legítima; na teoria do
político, a ordem se estabelece ainda a partir de alguma relação concreta, porém a exigência
da forma é inexistente, ou melhor, é constituída de maneira contingencial e nisso reside sua
legitimidade denominada aqui de pragmática e a proposição de um realismo que assume uma
validade in re, pois assume a ausência de forma universal. Entre universal e particular,
apostamos na seguinte tese: a originariedade particular da ordem deixa de articular sua
legitimidade através de um ato de vontade (como decisão racional) e assume a relação social
(como movimento passional) como seu princípio, tal como uma existência concreta originária
341
Alguns textos importantes para nossa leitura: SHAPIRO, 2010; 2003, SZABO, 2006; WOLLIN, 1990;
MARDER 2005; CHROSTOWSKA, 2009; ARDITI, 1996, 2008. Tal como propomos nesta tese, François Julien
propôs uma interpretação da filosofia política não a partir, mas através de Schmitt, cf. FREUNDE, 1965.
342
Sobre a noção de concretude em Schmitt, OJAKANGAS, 2004.
333
343
VL, p. 89: “Von Legitimität eines Staates oder einer Staatsgewalt kann man nicht sprechen. Ein Staat, d.h. die
politische Einheit eines Volkes, existiert, und zwar in der Sphäre des Politischen; er ist einer Rechtfertigung,
Rechtmäßigkeit, Legitimität usw. sowenig fahig, wie in der Sphäre des Privatrechts der einzelnen lebende
Mensch seine Existenz normativ begründen müßte oder könnte”.
344
Após as críticas de Quine e Sellars aos dogmas do empirismo e ao mito do dado, aliadas às críticas de
Davidson ao dualismo esquema conceitual-conteúdo, parece-nos necessário atualizar a filosofia política e
reconhecer alguns ganhos conceituais que substituem noções semânticas tradicionais como o
representacionalismo, referencialismo, atomismo.
345
VL, p. 87: “Sie bedarf keener Rechtfertigung an einer ethischen oder juristischen Norm, sondern hat ihren
Sinn in der politischen Existenz”.
334
co-extensivas. A hipótese que tomamos de Schmitt, afinal, é que para compreender a lógica
do político, como o avesso da política, é preciso pensar essa relação constitutiva do
antagonismo, ou seja, que na origem há afetos e não normas. Além disso, ainda
desenvolvendo as teses de Schmitt, podemos pensar o afeto numa dimensão pública, a rigor,
como uma intensidade impessoal e coletiva a partir da qual se co-institui o corpo político
como relação e, por isso, a recusa schmittiana da transcendência como universal.
(ii) Ao analisar o corpo político podemos perceber mais a ocorrência de relação (na
verdade, relações) do que a presença de normas. A partir disso, a descrição de essência ou de
algo em comum a toda comunidade política se torna inviável pelo próprio objeto em questão.
Admitido este ponto de partida, estaríamos diante de uma postura pós-metafísica em teoria
política, pois é estabelecido um critério para a identificação do político, ao contrário de um
conteúdo substantivo. A autonomia do político reside precisamente neste ponto. Ao afirmar
que "o político não tem substância própria"346, recusa-se a bipolaridade entre transcendência e
imanência, mas tampouco se contenta com qualquer consideração de origem da ordem como
imediato: se a transcendência (aqui entendido como forma, a priori, ou qualquer instância
racional ou universal externa às práticas e usos da ação política) é abandonada, mesmo a
contragosto, ela se reinsere no interior da imanência, considerada a única instância possível.
Logo, se não é uma substância ou conjunto de objetos, mas sim uma relação, uma função ou
modo decorre daí a tese da imediatidade relacional como medida do político, bem como uma
ontologia política que seria, a rigor, uma ontologia relacional e não substancialista. Assim,
mesmo que a (in)determinação do político, de forma histórica, seria dada a partir de um
“critério conceitual” (Begriffsmerkmal) e não por uma “definição de essência”
(Wesensbestimmung), ainda é preservada uma instância transcendente como aquilo que
concede a forma à experiência347. A dualidade entre imanência e transcendência ou excesso e
exceção passa a ser considerada a partir de uma nova perspectiva, como já demonstrada, a
política e o político. Estes, porém, como algo recíproco e co-extensivos modos da finitude.
Apesar disso, o objetivo de Schmitt é apenas trazer as características determinantes de uma
noção e, conscientemente, tratá-la como algo que sempre escapa a qualquer descrição ou
classificação metafísica, pois, caso contrário:
346
PuB, p. 160: "Das Politische (hat) keine eigene Substanz".
347
De modo similar, analisando Espinosa, Diogo Pires Aurélio sustenta que “a essência do político é impossível
de confundir com uma qualquer moldura racional de onde e no interior da qual as normas de conduta fossem
deduzidas, de modo a imporem-se como condição necessária e legítima da paz e da estabilidade. Os últimos
fundamentos de um estado ou da qualquer ordenamento jurídico não estão jamais isentos da contingência e do
aleatório que lastram a ação humana, não passando as construções políticas alegadamente fundadas numa razão
indiscutível de simples máscaras que ocultam a verdadeira natureza do poder” (AURÉLIO, 2004, p. xxii)
335
política seria considerada na ausência de uma essência política ou uma estrutura universal. As
condições políticas se referem, nesta releitura, às relações e afetos dos corpos em associação e
dissociação, levando em conta a intensidade e a possibilidade da morte como características:
esta é a virada em direção à postura pragmática com primazia dos afetos que leva a marca da
finitude e se resigna com o topos da ação na contingência.
A intenção de Schmitt logo no início do Der Begriff des Politischen é demonstrar
que o político não é limitado ou subordinado pelo Estado. Evidentemente, ele inverte os
termos e provoca alguns mal-entendidos. A questão do político se torna intrincada, uma vez
que é o conceito daquilo que não tem conceito, ou melhor, que é ininstitucionalizável. A
própria teorização de Schmitt, perde controle sobre ele, por isso, por não se referir à
substância ou essência, “but finds its temporary certainty in a ‘criterion’, which, by definition,
is always potentially multiple since it does not refer to any essence” (OJAKANGAS, 2005, p.
36). Para Marton Szabo, “the political does not seek the essence, but the specific (...) Schmitt
chooses from the competing possibilities of specification that one aspect based upon which
things get a political meaning, namely the friend-enemy distinction” (SZABO, 2006, p. 32).
(iii) A partir da indeterminação substancial, libera-se o político da referência externa:
sua configuração é, na verdade, de um poder sem externo, sem reconciliação em sua
diversidade contextual. No mesmo movimento de afirmação da indeterminação, da autonomia
e do caráter relacional, o critério político é designado ainda pelo grau de intensidade das
relações e afetos dos corpos em associação e dissociação, levando em conta a possibilidade de
morte. Esta postura pragmática dá primazia ao existencial e altera seu conceito de
legitimidade, deslocando-a, como já exposto, de uma posição meramente normativa ou
institucional: “a oposição política é a oposição mais intensa”350. Assim, o político refere-se ao
corpo social como relação imediata tomada como existência concreta diante de outros corpos
cujos afetos se mostram irredutíveis e contrários: marca a pluralidade do político. A
identificação coletiva através do conflito não é determinada pelo par amigo e inimigo,
identidade e alteridade, mas sim pelo tipo da relação que se instaura, isto é, uma relação
marcada pela diferença e violência. Numa palavra, um tipo específico de afeto que engloba a
vida social. Este é a chave de leitura que adotamos e a coerência da teoria do político depende
da compreensão desta questão.
350
BP, p. 30: "Der politische Gegensatz ist der intensivste und äußerste Gegensatz und jede konkrete
Gegensätzlichkeit ist um so politischer, je mehr sie sich dem äußersten Punkte, der FreundFeindgruppierung,
nähert".
337
351
“Staatsethik und pluralistischer Staat”, In: PuB, p. 159: “Richtigerweise bezeichnet das Politische nur den
Intensitätsgrad einer Einheit. Die politische Einheit kann daher verschiedene Gehalte haben und in sich
umfassen. Sie bezeichnet aber stets den intensivsten Grad der Einheit, von dem aus infolgedessen auch die
intensivste Unterscheidung”.
352
BP, p. 39: "Das, worauf es ankommt, ist immer nur der Konfliktsfall. Sind die wirtschaftlichen, kulturellen
oder religiösen Gegenkräfte so stark, daß sie die Entscheidung über den Ernstfall von sich aus bestimmen, so
sind sie eben die neue Substanz der politischen Einheit geworden".
338
uma distinção: ao contrário de Hobbes, os afetos constitutivos não são sacrificados diante da
ordem, mas permanecem como arcano ineliminável. Caso se pretenda conhecer a ordem do
mundo, torna necessário conhecer os afetos do corpo social.
(iv) A característica da intensidade provoca outra consequência para a
inteligibilidade do fenômeno do político: a unicidade. Em outras palavras, por conta da
intensidade caracterizadora do político, ao ocorrer o agrupamento entre cooperadores e não-
cooperadores há o movimento de unificação e submissão de todas as outras esferas da vida
àquela hegemônico. No entanto, diferentemente do que interpreta Derrida353, em Schmitt não
há um fechamento necessário da ordem. Ao menos, interpretamos a teoria schmittiana, não
obstante incoerências com o restante do pensamento, como uma abertura constante. Sem
dúvidas, o jurista hesita quando combate pela ordem e tenta afastar qualquer possibilidade de
destruição da unidade política, mas nas entrelinhas mesmo do seu texto deixa escapar que não
há como estabilizar a ordem, uma vez que sua garantia é sempre precária, provisória,
dependente dos jogos de antagonismo: a identidade ou estabilidade da ordem seria assegurada
apenas por uma instância externa e última o que, a esta altura, já não é mais possível: a
relação do corpo social é a causa imanente da ordem, recusando as narrativas de constituição
do corpo social através de um poder transcendente ou da figura do indivíduo racional que
calcula perdas e danos no contrato de criação da cidade. Em suma, o político é o campo da
experiência ou dos afetos. Ao deslocar seu jogo argumentativo para a imanência, a
contingência assume o centro da ação política e aquele afeto mais intenso – capaz de se
configurar tanto como uma força centrípeta quanto como uma força centrífuga em relação à
ordem, pois intensidade impessoal baseada no conflito que provoca a co-instituição da ordem,
como uma potência constituinte, mas também com uma potência destituinte – se transforma
na causa imanente da ordem. Denominamos esta forma assumida como uma invariância da
multiplicidade. Esta característica provoca o fenômeno de totalização do político, bem
diferente dos totalitarismos, pois a unidade política é sempre a unidade suprema porque nivela
todas as outras relações através de afinidades e similaridades (não como uma Artgleichheit,
mas sim como uma Gleichartigkeit) e impede os outros agrupamentos conflitantes de
convergir até a hostilidade extrema (a guerra civil), mesmo que sua possibilidade,
evidentemente, não possa ser extirpada por normas. Ao mesmo tempo em que assevera a
tendência à totalização da política, mantém-se a abertura constitutiva, ou seja, a dialética entre
abertura e fechamento, das Politische e die Politik é proposta como estrutura da teoria
353
Derrida sustenta a tese do fechamento da ordem em Schmitt. Ao contrário, tentamos demonstrar o inverso: a
infinitização da dupla inscrição do político. Cf. 1.9.
339
política. No lugar onde exista essa unidade, os conflitos dos indivíduos ou dos grupos sociais
podem ser resolvidos de maneira tal que exista uma ordem, ou seja, uma situação normal, mas
nunca definitiva ou natural, visto que multíplice e não suscetível de síntese que reconcilie em
definitivo. A unidade mais intensa está ou não está no caso; ela pode se dissolver, e então a
situação normal desaparece, porém, ela é sempre irremediavelmente unidade, mesmo que se
dê como unidade provisória ou meramente hegemônica. Diferentemente, das utopias e
totalitarismos pacificadores, não há possibilidade lógica de apaziguamento do corpo social,
visto que a stasis que a constitui não se arrefece por decreto.
(v) O político se manifesta na sua imediatidade como pólemos e quando, por um
instante, a intensidade da relação forma a distinção entre amigos e inimigos, dá-se ali a
diferença ontológica política: uma configuração existencial cujos valores e notas são
incompatíveis uns com os outros. É precisamente o outro e sua impossibilidade que co-institui
a unidade. A polemicidade, portanto, traz consigo a necessidade de uma relação heterogênea
conflitiva, ou seja, um âmbito da vida humana caracterizado por uma oposição existencial ao
outro que, por via indireta, termina por afirmar a identidade hegemônica da unidade política.
Se o político é marcado por um grau extremo de intensidade entre grupos humanos, então tal
relação, paradoxalmente, tem como questão anterior à associação ou dissociação, o conflito:
354
BP, p. 72: "in der konkreten Wirklichkeit des politischen Seins keine abstrakten Ordnungen und Normen
reihen regieren, sondern immer nur konkrete Menschen oder Verbände über andere konkrete Menschen und
Verbände herrschen, so hat natürlich auch hier, politisch gesehen, die 'Herrschaft' der Moral, des Rechts, der
Wirtschaft und der 'Norm' immer nur einen konkreten politischen Sinn"
340
A guerra, disposição para a morte por parte dos homens em combate, a morte física
de outras pessoas que estão do lado do inimigo, nada disso tem um sentido
normativo e sim apenas um sentido existencial, mais precisamente na realidade de
uma situação do combate real contra um inimigo real e não em quaisquer ideais,
programas ou normatividades. Não há nenhum fim racional, nenhuma norma por
mais correta que seja (…) nenhuma legitimidade ou legalidade que possam justificar
o fato de que, por sua causa, os seres humanos se matem uns aos outros. Se tal
extermínio físico da vida humana não ocorre a partir da afirmação fática da própria
355
O conceito do político de Schmitt não é guiado pela guerra nem mesmo estão ausentes no político os afetos,
tal como Derrida insiste. Ao contrário, partindo da chave de leitura do político como relação entre corpos ou
afetos, pode-se elaborar uma precisão categorial: o afeto que determina o conflito é o antagonismo. Quando
Schmitt se refere ao conflito entre amigos e inimigos, ele teria em vista a questão do afeto do antagonismo como
determinante e não a luta em si, uma “pureza impura” ou um transcendental a priori. Sobre isso, em parte, cf.
Derrida 1.9, no qual o argelino expõe o problema da circularidade entre inimigo, política e guerra.
356
O trecho inteiro é, BP, p. 33: “Der Krieg folgt aus der Feindschaft, denn diese ist seinsmäßige Negierung
eines anderen Seins. Krieg ist nur die äußerste Realisierung der Feindschaft (…) wohl aber muß er als reale
Möglichkeit vorhanden bleiben, solange der Begriff des Feindes seinen Sinn hat”.
357
Ao contrário de Strauss, que interpreta esta escolha pela seriedade ou guerra como uma escolha moral;
preferimos interpretá-la como a convicção não assumida de uma ontologia do político.
341
forma existencial perante uma negação igualmente fática dessa forma, esse
extermínio não pode ser justificado (BP, p. 49-50)358.
Neste excerto, Schmitt argumenta sobre o caráter pragmático do político: não há
normas nas quais se possam fundamentar a ordem política, pois o político carrega esta
contingência originária consigo, qual seja, para além de legalidades ou legitimidades, é o ato
concreto que institui polemicamente a ordem diante do desafio posto pela decisão contra um
inimigo real359. Para ele, esta estrutura justifica a existência política: a decisão polêmica e
discriminatória sobre a exclusão, sem fundamentos normativos, visto que baseada na
existência concreta de uma comunidade marcada pelo conflito que a partir disso constitui sua
identidade e torna-se política. Na verdade, o político é caracterizado como esta comunidade
do conflito e a decisão sobre a guerra mostra ainda o trágico no político: apesar de não o
caracterizar enquanto tal, a possibilidade real e presente sobre a morte física dá a chave de
leitura para o político como momento fundamental da vida humana, ou seja, aquele afeto mais
intenso e, sobretudo, aquela relação que co-institui a identidade polêmica via emergência do
dissenso. Ao afirmar na sequência do texto que não se pode fundamentar guerra alguma com
normas éticas ou jurídicas (“Auch mit ethischen und juristischen Normen kann man keinen
Krieg begründen”), o Schmitt propõe a tese do existencialismo político como uma tese
pragmática, ou seja, são as relações concretas de poder (ou como preferimos, os afetos como
intensidades impessoais de antagonismo) e não princípios racionais ou normativos que
determinam o corpo político:
358
BP, p. 49-50: “Der Krieg, die Todesbereitschaft kämpfender Menschen, die physiche Tötung von andern
Menschen, die auf der Seite des Feindes stehen, alles das hat keinen normativen, sondern nur einen
existenziellen Sinn, und zwar in der Realität einer Situation des wirklichen Kampfes gegen einen wirklichen
Feind, nicht in irgendwelchen Idealen, Programmen oder Normativitäten. Es gibt keinen rationalen Zweck, keine
noch so richtige Norm (…) keine Legitimität oder Legalität, die es rechtfertigen könnte, daß Menschen sich
gegeseitig dafür töten. Wenn eine solche physische Vernichtung menschlichen Lebens nicht aus der
seinsmäßigen Behauptung der eigenen Existenzform gegenüber einer ebenso seinsmäßigen Verneinung dieser
Form geschieht, so läßt sie sich eben nicht rechtfertigen”.
359
A questão em jogo nesta característica é compreender o político nem como um convite à destruição do
inimigo nem como homogeneização global, mas sim como pluralidade e diferença (ôntica) radical: o outro é que
me constitui e, em última instância, precisa-se dele como um externo constitutivo para existir. Digamos,
portanto, que o político é a forma extrema do ser-com, ou melhor, do ser-diante-da-morte. Apenas em uma
sociedade de cumpridores de normas teríamos o sossego propiciado pela falta de pluralidade, mas logo veríamos,
parafraseando Wittgenstein, que sem conflitos não teríamos como andar.
360
BP, p. 72: "in der konkreten Wirklichkeit des politischen Seins keine abstrakten Ordnungen und Normen
reihen regieren, sondern immer nur konkrete Menschen oder Verbände über andere konkrete Menschen und
Verbände herrschen, so hat natürlich auch hier, politisch gesehen, die 'Herrschaft' der Moral, des Rechts, der
Wirtschaft und der 'Norm' immer nur einen konkreten politischen Sinn".
342
361
DEUBER-MANKOWSKY, 2008.
362
BP, p. 36: "(das) religiöse, moralische und andere Gegensätze sich zu politischen Gegensätzen steigern und
die entscheidende Kampfgruppierung nach Freund oder Feind herbeiführen können. Kommt es aber zu dieser
Kampfgruppierung, so ist der maßgebende Gegensatz nicht mehr rein religiös, moralisch oder ökonomisch,
sondern politisch (...) Nichts kann dieser Konsequenz des Politischen entgehen".
344
realizamos, assim como não há distinção entre político e público, também não há distinção
entre político e legítimo, esquema e conteúdo, experiência e forma. Assim, por mais que
deseje a durabilidade da ordem, a energia do político impede qualquer fechamento
transcendente. O autor arremata esta peculiaridade do político enquanto relação e conflito ou,
em uma palavra, enquanto polemicidade – intensidade que não conhece fronteiras
estabelecidas por sua própria natureza – ao estabelecer a necessária consequência do conflito,
antecipando, da sua maneira, a noção de políticas virais e os movimentos políticos fora da
institucionalidade363. Daí revisitamos a tese da totalidade do político, pois da maneira como
foi caracterizado torna-se, na verdade, um relação ubíqua dotada de força irresistível e
ineliminável. É necessário ainda considerar que a correlação entre político e política expõe
um paradigma da atuação desta dupla inscrição: o paradigma da fluidez. Se, por um lado,
como já criticado, o paradigma da rigidez, revela a burocracia, normatividade e
procedimentos como força de imunização dos desejos sociais; aquele, o paradigma da fluidez,
refere-se à intensidade, conflito, expansividade e movimento de deslocamento. Diante da
pergunta: o que está além do político? Schmitt teria a seguinte resposta: nada (está além do
político). Assim como não é possível pensar uma sintaxe fora do uso (fora da linguagem ou
fora do mundo), também não existiria algo que escapasse da lógica viral do político. Neste
caso, um outsider é a negação da ausência e finitude que carrega o corpo social, a rigor, seria
mesmo a negação de relação, uma vez que pensa o sujeito sem desejo ou antagonismo, numa
palavra, sem afetos ou corpo. Ojakangas se refere à impossibilidade em questão quando
afirma que existe apenas uma transcendência imanente da exceção (OJAKANGAS, 2005).
Caso levemos a sério as teses schmittianas, o político como destino, assim como a morte, sua
tendência à totalização não se refere ao monopólio do tipo instaurado pelo Estado, mas sim de
outro modo: nem rígido nem monopolístico, pois seria contraditória uma totalização estável, a
noção de totalidade que se pode construir através das teses schmittianas seria a de uma
totalidade resiliente a movimentos internos e externos, uma totalidade fluída não composta
por objetos ou subtâncias, mas corpos que interagem, ou seja, relações e diferenças que se
constituem em ordens provisórias. A noção de intensidade é fundamental para compreender
esta característica: a intensidade é o que determina a aquilo que é politicizado. A politicização
é, dessa forma, algo da ordem do evento, construindo após sua ocorrência,
retrospectivamente, sua validade, ou melhor, demonstrando que não há diferença entre
363
Ao aliar uma reflexão filosófica com aparatos da ciência política, Arditi desenvolve uma teoria da viral
politcs que pode ser definada, de maneira simples, como aquelas ocorrências do político fora dos esquemas
conceituais ou institucionais, por exemplo, manisfestações de massa, os refugiados ou qualquer movimento de
corpos que ponham em jogo a questão dos limites nromativos da ordem, cf. ARDITI, 2010.
345
validade e faticidade, normativo e descritivo, uma vez que não é possível distinguir a
racionalização da legitimação da ordem de sua propróia ocorrência enquanto ordem: tal como
um jogo de linguagem, o que se apresenta nas teses de Schmittt é uma rejeição da diferença
entre imanência e transcendência ao sustentar que, afinal, qualquer transcendência é da
imanência e encontra suas bases num momento mais íntimo do que assume. Assim, num self-
grounding phenomena (VIRISANOVA, 2011, p. 10) ou “to everything that surrounds or falls
outside of it” (MARDER, 2005, p. 19) qualquer diferença pode ser politicizada, e nisto
consiste o caráter total do político: a passagem da quantidade para a qualidade do político é
dado por uma relação que põe em jogo a eventualidade da morte num lance de vontades do
corpo social. Se esta energia ou força centrípeta pode ainda assustar por seu irracionalismo
assumido ou até por um cinismo calculado em declinar a validade universal à configuração de
poder particular, a alternativa em fazer cumprir normas e procedimentos legais não soa, a esta
altura, menos estranho nem, certamente, mais eficaz.
(vii) É, precisamente, a relação de inimizade que de-põe e irrompe a identidade: a
diferença a que se expõe é sempre uma transcendência da relação imanente, ou seja, refere-se
ao contingente, é, por conseguinte, ininstitucionalizável e, no limite, não-conceitual. Numa
palavra, a fundação da ordem sob o incômodo elemento irracional. Todavia, dito assim, algo é
movido no interior da teoria política que precisamos ainda elaborar. No final da década de
1920, Schmitt realizou o political turn: o movimento de tentativa de ruptura da distinção entre
transcendência e imanência ao justificar a ação política através desta última, ressaltando a
questão da autonomia do político. A pressuposição de uma ideia ou forma de direito é
abandonada e o problema da legitimidade passa a ser considerado como um problema
concreto que implica a existência de contraposições ou antagonismos como condição para a
organização política. O tema em questão é sobre a possibilidade da ação política sem critérios
racionais (institucionais ou normativos) e da transcendência, seja ela de que tipo for, no
interior da imanência. Aliás, a teoria do político torna-se um sintoma da crise da estatalidade e
da ausência de fundamento, como já exposto, ou seja, um deslocamento da questão do sujeito
(da decisão) para a relação como diferença enquanto diferença, nesta releitura, como afeto do
antagonismo. Neste quadro teórico, a ação política é singular, dá-se na negatividade e daí
assume sua característica desestabilizadora. Ao compreender os dualismos e cisões
schmittianas num grau crescente de concretude e contingência, percebe-se que aquilo que
possibilita a ação política não é alheio à própria ação, por isso a leitura finitista ou monista:
Schmitt é responsável pela ruptura da compreensão normativa da ordem e, ao perceber, resta-
lhe como dado bruto a relação de antagonismo como aquilo que, efetivamente, produz e dá a
346
medida, isto é, ordem política alcança uma validade in re, uma perspectiva interna, no caso,
através das relações dos corpos sociais, nomeadamente, dos afetos que compõem estes corpos.
Esta distinção que nas obras anteriores se referia à decisão e forma, exceção e excesso,
político e ideia, no Der Begriff des Politischen torna-se um abismo que revela como algo
irrepresentável, incodificável, pois se mostra anterior e, paradoxalmente, o fundamento
negativo como das Politische em contradição com die Politik: este se refere ao poder
institucionalizado; aquele, ao conflito, heterogeneidade e pluralidade de relações, constituindo
uma dialética entre ordem e conflito364. Ao afirmar que a anterioridade e autonomia do
político diante do Estado ou de qualquer paradigma normativo anterior, Schmitt adota a
determinação fenomenológica mais próxima às práticas do que aos conceitos universais ou
critérios abstratos da mediação política. Assim, sua Kehre afirma que o político não se
restringe ao Estado, uma vez que este é apenas um status ou modo de aparecer hegemônico,
uma forma institucional derivada da relação e do conflito e, por esta contingencialidade da
forma, põe em questão a dialética entre ser e aparecer. Esta dialética própria da estatalidade
moderna esconde a violência na formação da unidade política e busca uma medida
transcendente, essência ou origem como condição não política da política, isto é, nega a
compreensão da política como conflito e relação por instâncias apolíticas ou morais, ao invés
da relação e do sentido concreto.
***
Nesta seção, resta apontar alguns traços para uma ontologia do político a partir da
diferença entre política e político. A oposição mais intensa teria a capacidade de transformar
mero agonismo, concorrência ou oposição em um antagonismo político. Entretanto, o que
significa afirmar que este antagonismo político, ao envolver afetos numa relação ao extremo,
transforma ações e relações em algo político? A pergunta pode ser colocada de outra forma:
seria possível conceber algo concreto que perapasse todas as relações políticas e através dessa
universalidade concreta propor que funcione como um princípio de realidade? Ao propor uma
ontologia do político, surge a pretensão de análise de algo que atravessa toda a realidade na
forma de um princípio de inteligibilidade do real, mas que, não funcione nos moldes de um
fundamento, ao contrário, como uma condição necessária nos moldes de um transcendental
histórico. Mesmo essa proposta estaria em apuros, pois poderia exigir-se que tal princípio da
364
Benjamin Arditi traz esta mesma compreensão ao afirmar sobre Schmitt: “He is advancing a claim that in a
way mirrors the ontological difference in Heidegger and brings to mind Claude Lefort’s claim that we should not
confuse the political with its historical modes of appearance (…) the political in Schmitt will always be
excessive vis-à-vis its concrete manifestations”. (ARDITI, 2008, p. 13-14).
347
realidade seja algo fora da realidade, sobretudo, quando se trata de filosofia política. De outra
forma, a violência ou a mera faticidade das relações sociais não poderiam conceder nenhum
princípio ou forma à experiência nem mesmo a consideração de uma natureza intrínseca ou
final do ser humano, tal como uma antropologia (pessimista ou otimista). Neste ponto,
lançamos o pressuposto de que esta ontologia do político a ser construída, se for possível,
sustenta-se numa concepção de que a totalidade das coisas ou modos de coisas, a rigor, a ação
humana, só poderia ser compreendida através dos afetos que estas relações constituem365 366.
Um dos principais elementos para imaginar a ontologia em questão é a marca do
político como totalidade. A partir da totalidade imposta pela lógica do político, cada relação
pode alcançar o grau de intensidade e, portanto, passa a ser considerada através do não espaço
do político que significa incerteza e desapropriação do comum. De certo modo, a leitura de
Derrida expressa este espectro do inimigo e da guerra presente em todo laço social. Por nossa
vez, analisamos este espectro como a ameaça da ausência e lugar vazio do poder, e até mesmo
o momento institucional pode ser compreendido como a estrutura residual que se sedimenta
como momentâneo cessar fogos dos afetos em cadência. As apostas na origem ou
fundamento, ao invés de determinar como algo positivo, mostram sua negatividade insolúvel.
365
Ao comentar acerca da ontologia imanentista de Espinosa, Diogo Pires Aurélio, mais uma vez, joga luzes em
um importante antecedente da tese aqui proposta: “[a] inserção do político numa ontologia imanentista leva, em
primeiro lugar, a negá-lo como espaço imune à conflitualidade, tal como Hobbes o pretendera, um espaço de
onde a violência estaria ausente porque ficara, mediante o pacto, concentrada toda numa pessoa, soberana e
racionalmente legitimada, que do exterior do corpo social imporia as condições da paz (...) O político em
Espinosa é, pelo contrário, ainda e sempre um modo da natureza (...) a atividade de cada ser constitui sempre um
esforço de libertação, de redução de dependência. Não quer dizer que q única situação imaginável entre os
indivíduos seja a de conflito. Os indivíduos, da mesma forma que podem entrar em guerra e, com isso, aumentar
conjuntamente a impotência, podem igualemente encontrar modos de cooperação mutuamente vantajosa, não
universal nem definitivamente, mas em agregados mais ou menos ocasionais, formados por situações ou desafios
comuns que geram afetos igualemente comuns (...) superando as divergÊncias e anulando, tendencial e
provisoriamente, a instabilidade nas relações” (AURÉLIO, 2004, p. xx). Na ontologia que propomos, todavia,
não há nehuma dinâmica afetiva ou passional para suspender o antagonismo.
366
Dentre as referências imprescindíveis para compreender esta proposta, está Espinosa. Em sua contraposição à
teoria do contrato de Hobbes, mantem intacto o direito natural, isto é, o direito que cada um possui se refere à
sua potência, ou seja, a capacidade de afirmar e realizar o que deseja (AURÉLIO, 2004, p. xvii). Visto que a
natureza é o todo, não há exterior ou limites, ele evita propor formulações sem conteúdo, universais,
despreendidas da prática e relativas ao contexto de ação. Numa palavra, conflito e relação imanente aproximam
Schmitt de Espinosa. Dessa forma, apostamos nesta tese da ausência da transcendência tradicionalmente
interepretada como o infinito ou o fora: “na impossibilidade de encontrar a fundamentação em qualquer
transcendência (...) a política somente pode ser pensada na imanência e como configuração específica do
relacionamento entre esses modos da natrueza que são os seres humanos” (AURÉLIO, 2004, p. xlii). Ou ainda
no trecho a seguir: “essa forma de encarar o político como um processo relacional e como continuação do estado
de natureza não equivale, porém, a extrair a conclusão aristotélica segundo a qual o homem seria naturalemente
sociável. Pelo contrário, trata-se de um pocesso que é tanto associação como de conlfito (...) considerar, pois, a
natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade
e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoura consoante os afetos
comuns que estabilizam e predominam em dado momento” (AURÉLIO, 2004, p. xliii). Na doutrina espinosana,
“o corpo político ou república é tão-só a forma como a sua potência, sem jamais suturar a conflitualidade que em
si lateja e intrinsecamente a constitui, se afirma coesamente através de um regime ou conjunto de normas que
normalizam e preservam duradouramente a interação evolutiva de seus membros” (AURÉLIO, 2004, p. xliv).
348
Este caráter de ambiguidade e ubiquidade mostra que o político não seria uma coleção de
objetos nem relações específicas ou procedimentos e critérios universais, mas um evento que,
ao ocorrer, a comunidade é exposta à vida e à morte. Evidentemente, nas teses schmittianas
encontramos, ao menos em parte, aquilo que Bataille denomina de “horizonte sacrificial da
filsoofia política”, mas de modo diverso dos demais, pode-se sustentar que o afeto do
antagonsimo, como aquilo que mais basilar, move de modo pleno o corpo social, bem como a
noção de que o afeto que conduz o corpo social.
O rastro da totalidade do político nos libera para pensar uma ontologia do político,
isto é, sua concepção como algo necessário dentro da finitude, pois todas as partes envolvidas
pelo mesmo fluxo afetivo. Dessa forma, a noção de que o politico se refere à energia ou à
intensidade367 ou ainda, como preferimos, esta tendência totalizante do político ratifica que é
impossível esboçar ou traçar limites, pois se aproxima da imagem de uma fronteira, bem
como indica que as dualidades tradicionais já não funcionavam diante da leitura imanentista.
A ontologia é, por assim dizer, um sucedâneo improvisado e mal-visto para a ausência de
substância e perda de transcendência: como todas as bipolaridades e simetrias se dão nos
jogos entre forças e afetos, ao menos algo neste jogo é universal, qual seja, no que se refere ao
corpo social aquele afeto mais intenso que é posta em jogo não como a possibilidade da
morte, mas sim como Derrida mesmo reconhece “esta pulsão mortífera do amigo/inimigo
procede da vida e não da morte, da oposição a si da vida enquanto que se afirma ela mesma, e
não de algum tipo de atração da morte pela morte ou para a morte” (DERRIDA, 1998, p.
146). Assim, nesta ontologia, a passagem da potência para o ato não é determinado pela morte
propriamente dita – o que a distancia de críticas em relação à crueldade ou violência de suas
teses – mas, pelo contrário, o antagonismo surge como potência transformada em ato e aqui
temos a emergência da abertura ontológica: o político como negatividade permanente (e a
367
Para Nietzsche, a consciência é, a rigor, algo tardio em relação ao nível fisiológico, que por sua vez consiste
num desencadeamento de forças (cf. KSA 11, 27 [3], p. 275), ou seja, “luta por potências dos quanta de
vontade” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 126). Assim, consciência é apenas uma excrescência do
desencadeamento de forças, como um “impulso que subordina a si uma multiplicidade de impulsos e forças”
(MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 128). De maneira contrária à postura da simplificação falsificadora do medo
contra à instabilidade e à abertura, Nietzsche toma a profusão de vontades e consciências (vontade de potência)
como algo não apenas de facto, mas também de juri; assim, como algo estrutural, a perspectiva afirmada não se
constitui como mais um princípio da metafísica, mas como algo relacional e, enquanto tal, irredutível a uma
perspectiva unitária, pois Nietzsche “não busca, de maneira nenhuma, deduzir o múltiplo a partir de um
princípio; ao contrário, para ele tudo o que é simples se apresenta como produto de uma multiplicidade efetiva
(...) trata-se aqui de eliminar o mal-entendido de que, por fim, a multiplicidade remete ainda a uma ‘unidade’
última da qual ela surge no sentido de uma arché (pois) (...) não é necessário colocar uma unidade atrás da
multiplicidade dos afetos” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 66). Na leitura de Müller-Lauter, contrapondo-se à
interpretação heideggeriana, “com seu discurso da unidade do múltiplo, Nietzsche não visa a uma raiz
metafísica, mas a uma relação recíproca: dependência dos múltiplos entre si que se dá no conjunto de um mundo
único” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 67, grifo do autor).
349
368
Poderíamos acrescentar que estas reflexões schmittianas se aproximam de uma análise biopolítica. Em geral,
a pergunta que poderíamos estabelecer é a seguinte: de que forma pensar o político como estrutura afetiva do
antagonismo sem aproximá-lo da figura da morte? Como, por outro lado, estabelecer uma relação entre
político/política fora do horizonte sacrificial dos afetos e aproximá-lo da vida ou da liberdade? Em todo caso, é
350
“Schmitt enquadra sua discussão do político em uma espécie de ontologia negativa, no não-
espaço ou, melhor ainda, no deslocamento de diferentes domínios da ação humana”
(MARDER, 2009, p. 60). Esta ontologia negativa delimita uma ausência ou o não-espaço
como fronteira daquilo que denominamos de movimento ou abertura entre político e política:
não se dá primazia a algum dos momentos, mas ao abismo, ou melhor, à ausência entre ambos
como política autêntica.
Evidentemente, a abertura é marcada pelo conflito em torno da ordem e acarreta um
problema: como evitar que a teoria política sofra de circularidade e configure de fato uma
ausência de si mesmo sem postular algum tipo de fixidez, mesmo como um expediente. Em
outras palavras, como a luta em torno da ausência abdica de pensar o político como ordem,
mesmo quando já constituída, e declara a si mesmo como um mero expediente. Não seria
melhor apostar numa teoria política que deixasse às normas e procedimentos a definição o que
seja liberdade e justiça? Já que o político, neste contexto, é o deslocamento, o devir-outro da
política, como conceber para a prática política – é a prática política que importa, afinal de
contas – o político como aquele displacement, como desterritorialização contínua? Isso
implica renegar a ideia de ordem? A ontologia prepara o caminho para compreender a
despossessão que a comunidade provoca via conflito e ausência de centro da ordem por
assumir como estrutura sua própria inviabilidade. Se fornece um argumento importante para
pensar uma política sem sujeito, longe dos esquemas da subjetividade e do
próprio/propriedade, por outro lado, sofre de um déficit sociológico para transformar em
prática esta possibilidade imagética. Da mesma forma que é impossível pensar o político sem
política, é impossível pensar a política como surgida entre protocolos e atos formais. O
conceito do político, por um lado, evidencia a indeterminação do direito e a impossibilidade
da representação ou transcendência externa; por outro, a tessitura de contradições do corpo
politico expressa o afeto mais potente: o antagonismo, que evidencia a contingência ou a
ausência de fundamento como uma transcedência interna. A imanência da relação, na
estrutura dos afetos do corpo político expõe a ausência de fundamento ou substância, pois
submetido à abertura irredutível do conflito, isto é, a relação como dado mais originário e
negatividade. Na teoria do político, Schmitt assume como ponto de partida que a cisão entre
transcendência e imanência é uma impossibilidade: a autoridade não recebe legitimidade a
válida e presente a questão que Esposito põe acerca da biopolítica: por que a biopolítica transformou-se em uma
tanatopolítica? Da mesma forma, crítica óbvias de teóricos normativistas podem ser antecipadas: em relação à
falta de segurança e certeza, ao déficit de institucionalidade e procedimentos; à rejeição precoce de parãmetros
normativos que servam ao mesmo tempo de horizonte da ação e constituidores de instituições. Compreendemos
tais questões como relevantes, mas estabelecemos outro framework para debatê-las posteriormente.
351
partir de uma instância externa. Desse modo, a organização do poder é engendrada através de
uma relação concreta, mais especificamente, a ação se dá contingência, ou seja, numa in-
finitude entre crise e decisão. A decisão, porém, possui um caráter inédito em relação ao texto
do Politische Theologie: decide-se sobre o inimigo a ser combatido e não sobre as condições
fáticas para a realização do direito, isto é, tem um caráter declaratório e não constitutivo. O
político, como já destacado, parte desta situação marcada pela polemicidade uma vez que o
inimigo concreto, ou melhor, a relação polêmica, é estabelecido por meio da exclusão e da
diferença. O factum brutum do político como hostilidade originária refere-se à distinção do
corpo e dos afetos, ao contrário dos parâmetros universais, inserindo a violência ou simples a
ação sem lastro normativo como constitutiva da ordem. Deste ponto, de uma ontologia do
político insistimos em elaborar a noção de abertura: a constituição de uma ordem a partir dos
afetos que o discurso subjetivista tenta sequestrar demonstra que o antagonismo não apenas se
dá na relação concreta de oposição (diferença ôntica), mas sobretudo na diferença entre
politico e político, por isso, ao invés da ordem, pensamos a ausência e a abertura como tema
para a teoria política.
A questão que nos encaminha para o debate acerca da abertura entre o político e a
política é a tentativa de ultrapassamento da estrutura metafísica da dominação: a crítica ao
substancialismo ou essencialismo político que instaura a relação já descrita entre imanência e
transcendência com a pretensão de unidade e durabilidade da ordem política. Se com Schmitt
percebemos a ausência de substância e o conflito como pressuposto político da política,
podemos propor a partir dele uma dialética negativa entre das Politische e die Politik como
uma potente abertura para a compreensão da teoria política que, sem excluir unidade e ordem,
considere estas realidades como constituídas a partir da imanência. Como afeto e relação,
Schmitt deixa entrever a ação através do político: exclui a metafísica da decisão e permite
pensar a ordem como resultado contra-hegemônico das forças em ação. A leitura que
realizamos das teses de Schmitt se aproveita de um contexto de rejeição, esgotamento ou
abandono da transcendência a partir do qual propomos a pós-política, uma política pós-estatal
ou pós-fundacionista. Segundo De Wit (2008, p. 165), o pensamento moderno, em última
instância também o schmittiano (cf., sobretudo, as análises de Voegelin, Strauss, Esposito e
Derrida), se desloca em virtude de uma “sedução da imanência (...) uma negação de toda
352
moderna tardia, suas tendências (...) o político é abordado como potencialidade que existe e
pode atualizar em qualquer lugar e a qualquer momento, seja em um evento, decisão,
resistência, revolução, insurreição, inscrição dos excluídos, e assim por diante”
(VIRISONOVA, 2001, p. 5). Schmitt dá nome a algo novo: das Politischen. Entretanto,
gostaríamos de acrescentar que esta concepção se refere à ausência de fundamentação, ao
contexto não normativo, ao papel co-institutivo dos afetos e, por conseguinte, ao fim das
dicotomias uma vez que todas as instituições se referem às práticas, em especial, a
dissolução/ruptura da simetria entre imanência e transcendência, bem como entre faticidade e
normatividade, do universal e do particular. Em todo caso, está em jogo agora a noção de
ausência no interior da teoria política e os textos de Schmitt são úteis como guia para chegar
até este ponto. Todavia, de agora em diante, é necessário dar um passo além do jurista.
Neste momento, pretendemos reforçar a possibilidade de uma teoria do político fora
do paradigma moderno da dominação ou da soberania. Para isso, acolhemos algumas
indicações já expostas nas seções anteriores, dentre elas, (I) trazer novamente a compreensão
dos afetos como elemento mais basilar do corpo político a partir do político como relação de
antagonismo, tal como vimos na ontologia política; (II) a contingência como estrutural ou
transcendental diante do movimento pendular entre político e política e, por conseguinte, a
noção de ausência de fundamento que garante, em parte, uma abordagem pós-fundacionista e
(III), finalmente, a noção de abertura.
(I)
Entre outros, o diagnóstico de Chantal Mouffe sobre o político é elucidador quando
se tem em vista uma reinterpretação do legado de Schmitt em termos de relação e afetos.
Segundo ela, “a principal tarefa da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do
público, para tornar possível um consenso racional, mas para mobilizar essas paixões em
direção a projetos democráticos” (MOUFFE, 2000, p. 103). É neste contexto que
consideramos que o político refere-se a afetos e instaura uma rede ou movimento afetivo, um
circuito de afetos, aliás, como já expomos acima. A compreensão daquilo que a tradição
denomina “fundamento” da política é, em última instância, a análise destes afetos ou
movimentos afetivos do corpo social que, porém, desconstroem a noção de fundamento ou de
centro da política. A imunização contra o político ou violência é instaurada através das formas
jurídicas do Estado moderno, diante do medo que permeia todas as ações na narrativa
justificadora elaborada desde Hobbes, ou seja, o que está em jogo são os epifenômenos
institucionais, o movimento daquilo que denominamos “paradoxo do político”. Parece-nos
que este argumento inicial merece ser tratado, mesmo que de relance, em dois pensadores
354
standarts: Platão e Hobbes. Logo após esse breve excurso, esperamos encontrar uma chave
diferente para pensar a instauração do corpo político. Ao invés de privilegiar as análises
através do afeto do medo, da esperança, da liberdade, do desamparo, entre outros, reforçamos
a análise do antagonismo como afeto ou relação constituidora da comunidade.
O que nos interessa em Platão é perceber como já era claro para os antigos a
periculosidade (Gefährlichkeit, para utilizar um termo próximo a Schmitt) instaurada na alma.
Ele sustenta algo neste sentido ao afirmar que “o que queremos saber é o seguinte: que existe
em cada um de nós uma espécie de desejos terrível, selvagens e sem leis” (República, 572b) e,
logo mais, executa a importante passagem do indivíduo ao corpo social: “se, por conseguinte,
o indivíduo é semelhante à cidade, não é forçoso que se encontre nele as mesmas
disposições?” (República, 577d). Sua análise da alma dos seres humanos se realiza em
paralelo com a estrutura da cidade e uma vez que “a cidade está divida em três corpos,
também a alma de cada um tem três partes” (República, 580d). A pergunta do autor poderia
ser a seguinte: como produzir a unidade e ordem na pólis? Evidentemente, sabemos qual é
resposta platônica e não nos causa estranheza o exercício de rejeição do empírico ao associar
a ação diretamente à racionalidade: “quando toda a alma obedece à parte filosófica e não se
revolta contra nenhuma parte, é-lhe possível cumprir em tudo suas funções e ser justa
(República, 586e) (...) o que mais se afasta da razão não é o mesmo que está mais distante da
lei e da ordem?” (República, 587a). Isso tudo já é de conhecimento pleno dos intérpretes.
Todavia, há um trecho interessante, pouco comentado, mas a partir do qual é possível
encontrar uma brecha bastante generosa. Na República, Platão afirma que “alguém que tem a
sua melhor parte tão débil por natureza, que não é capaz de comandar os monstros que nele
habitam, antes os acalenta, a única coisa que aprende é a adulá-los" (República, 590c-d) e no
Livro IX em 558c é comparado a um monstro policéfalo capaz de devorar o homem. Ao que
tudo indica, não é outra a referência que Nietzsche colhe quando trata dos múltiplos afetos no
corpo em detrimento da unidade. No final das contas, até mesmo Platão sabe o que interessa
quando se trata do corpo social: instaurar corretamente os afetos, ou melhor, instaurar os
afetos de modo a neutralizá-los, uma vez que não é possível eliminar simplesmente uma das
partes da alma.
O conceito de soberano em Hobbes atende à mesma lógica: a base da filosofia
politica moderna é a noção de poder soberano que inculca o medo como elemento central da
coesão social. O estado seria o garantidor da segurança, ou melhor, o gestor da insegurança
neste jogo disfarçado de procedimentos e normatividades, mas que lida com o movimento dos
afetos e corpos. Tanto quanto Platão, Hobbes também entende que os corpos políticos se
355
nos sobre o “impróprio” que se dá justamente nas relações que acreditamos, podem ser
repensadas como relações comunitárias rejeitando o caráter contratualista e sua noção de
liberdade marcada pela autonomia do sujeito ou proprietário de si. Para especificar melhor o
que significa cada um destes termos e delimitar mais um pouco o contexto da nossa
argumentação, escolhemos o tema da contingência e na próxima seção a questão da
comunidade.
O ideal de conhecimento e de verdade vigente não apenas na modernidade, mas
desde cedo na tradição política, oblitera o papel dos afetos na construção do conhecimento e
da ação. O banimento dos afetos ou o “horizonte sacrificial” da filosofia política pode ser
indicado, entre vários, por um trecho estratégico de Schopenhauer, segundo o qual “a fim de
vermos que uma apreensão puramente objetiva e, portanto, correta das coisas, só é possível
quando as consideramos sem qualquer participação pessoal, portanto, sob completo silêncio
da vontade, tornamo-nos presente pra nós o quanto todo afeto ou toda paixão turva e falsifica
o conhecimento, sim, como toda inclinação ou aversão , desloca, colore, distorce, não apenas
o julgamento, não, mas já intuição final das coisas” (SCHOPENHAUER, 2002, p. 30) Os
afetos seriam elementos negativos, a vontade e as paixões devem ser silenciadas e excluir
qualquer consideração de ordem pessoal. O sujeito ideal de conhecimento e da ação possui a
característica de um conhecimento e ação puros: destituído de vontade, de dor e alheio à
temporalidade está fora do circuito dos afetos, um sujeito desinteressado. De outro modo,
todavia, compreende Nietzsche esta questão:
conceitos que, não se pode negar, tem alguma repercussão em Schmitt. A orquestração das
vivências humanas com a precariedade da realidade representa o perigo que Platão considera
alimentar e fortalecer o "monstro de mil formas" (República, 589a), fornecendo as imagens do
lado irracional, a parte irascível do homem (República, 604d-605e). Para Nietzsche, ao
contrário, o que está em jogo é o domínio das paixões, não a rejeição ou extirpação dos afetos:
“quanto maior é a força dominadora de nossa vontade, tanto mais liberdade é lícito ser dada às
paixões. O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões: porém, ele é
suficientemente forte para fazer desses monstros seus animais domésticos”369.
(II)
O pensamento pós-fundacionista que trazemos para o debate sobre a diferença
política se mostra como consequência do tipo de argumentação que serve como raison d’être
deste capítulo. Parece que ao dissolver e rejeitar algumas categorias (lembremos que o que
move esta pesquisa é a dissolução da simetria entre transcendência e imanência a partir de
Carl Schmitt e suas consequências), torna-se inevitável pensar sobre um novo topoi em teoria
política que leva a sério temas como a ausência (de fundamentação), negatividade, violência,
indecidibilidade, contingência, abertura. A delimitação destas últimas constitui a tarefa a ser
realizada nesta seção.
Acerca da contingência, sustentamos a leitura de que a ruptura da estrutura entre
imanência e transcendência, desatada na obra de Schmitt, expõe como o mecanismo de
secularização se enreda com o problema da contingência. Nas obras de Schmitt, sobretudo no
período weimariano, por secularização é compreendido uma estrutura de pensamento que, de
várias formas, delimita uma distância entre transcendência e imanência, entre ideia abstrata e
vida concreta, ao mesmo tempo em que exige uma representação ou uma necessidade de
adequação entre forma e experiência, segundo a qual a particularidade histórica sempre
haveria de ter um resíduo ou matriz universal, por exemplo, no trecho já aludido: “em grande
medida, o lugar de Deus para o homem moderno foi ocupado por outros fatores mundanos
(irdische), como a humanidade, a nação, o indivíduo, o desenvolvimento histórico ou também
a vida como vida por si mesma, em sua total banalidade (Geistlosigkeit) e mero movimento
(...) A isso chamo de secularização”370. No entanto, este mecanismo serviu como modelo para
destacar a transcendência da imanência e, por conseguinte, estabelecer um padrão universal e
369
NIETZSCHE, Fragmento Póstumo 16 [7], da primavera de 1888, KSA XIII, p. 485.
370
PR, 18: “Für den modernen Menschen sind weithin an die Stelle Gottes andere, und zwar irdische Faktoren
getreten: die Menschheit, die Nation, das Individuum, die geschichtliche Entwicklung oder auch das Leben als
Leben seiner selbst wegen, in seiner ganzen Geistlosigkeit und bloßen Bewegung. Das Denken und Empfinden
jedes Menschen behält immer einen bestimmten metaphysischen Charakter (...) Das nennen ich Säkularisierung“
358
necessário que atenda aos requisitos da razão. Em matéria de teoria política – que funcionou
como parâmetro de organização da ordem e unidade do poder político legítimo, isto é, como
critério para distinção entre validade e faticidade, tomando este como um mero arranjo de
força sem o princípio racional previamente decidido – a secularização busca evidenciar a
dimensão contingencial da realidade, desprovida ela mesma de validade ou normatividade.
Uma vez rejeitada, as opções disponíveis não seriam as mais adequadas, pois remeteriam
apenas a algo terreno. Em Schmitt, como demonstramos no capítulo anterior, em uma atitude
desesperada, a decisão política pela realização de um ideal, ou seja, a decisão pela
representação do período weimariano assume a forma política como parâmetro de
legitimidade do poder e transforma o conceito do político em uma chave de mediação do
teológico, retirando-lhe a autonomia e o caráter constitutivo em troca da tarefa da ligação
entre o céu e a terra. Em suma, ao mesmo tempo em que Schmitt aposta no teorema da
secularização como transferência, há uma implicação do gap entre imanência e
transcendência e, por conseguinte, na compreensão de que a realidade fática carece
originalmente de validade, pois o critério racional de avaliação das práticas não é outro senão
o universal, no caso da teoria política em Schmitt, a forma ou representação política, ou seja,
os institutos da ordem estabelecida pelo Estado de Direito. A modernidade, porém, não
consegue conferir forma à realidade371, por isso torna-se necessária a figura do herói/soberano
para remediar o caso concreto e conseguir realizar o ideal no real: no caso grego, um Teseu
para fundar o Estado; para Schmitt, a decisão do soberano. Caso contrário, só restaria a
interminável recherche de la réalité. Seria necessário neste momento, segundo Schmitt, algo
que a partir da imanência se negue como imanência e realize o universal na história.
A questão em jogo, porém, é: ao desvincular racionalidade e ação concreta, o jurista
considera um abismo entre as duas instâncias e o caso fica ainda mais sério quando,
paulatinamente, ele concebe um abandono da transcendência ou da decisão pela ordem estatal
e realiza uma virada rumo à realidade concreta. O abandono da simetria custa um preço muito
alto. Ora, estas são algumas das consequências: (1) a realidade concreta/ação política não
possui mais um horizonte normativo; (2) ela mesma é caracterizada como contingente e tecida
por relações de conflito. Estas consequências do político liberam a contingência e permitem
371
Helton Adverse possui uma leitura lúcida ao tratar deste período da obra de Schmitt em paralelo com
Maquiavel: “ambos os pensadores assinalam a ausência de fundamento último para a política moderna,
respondendo a ela, porém, com estratégias diferentes. Para Maquiavel a perda da transcendência implica a
retomada do político como lugar para a manifestação da virtù, única possibilidade de construção de uma nova
ordem política duradoura. Para Schmitt, abre-se o espaço para a teologia política na qual a transcendência apenas
é recuperada na exigência da forma, por meio da representação. Esta diferença é bastante clara no que concerne
ao tema do conflito” ADVERSE, 2016, p. 42.
359
pensar uma teoria política – como pretendemos, em termos de uma ontologia política – que
concede primazia à noção de contingência, numa palavra, ausência de fundamento, ou
melhor, o fundamento como ausência, desatado o nó entre as instâncias além-aquém. A chave
para compreender este deslocamento é a alteração no conceito do político que deixou de ser
considerado como uma mediação do teológico e passou a referir-se à relação concreta de
conflito: a ação é liberada do seu paradigma racionalista e, a partir disso, pergunta-se: onde
estaria seu elemento transcendente? Neste contexto, desenvolvemos a crítica à metafísica
através de uma estratégia pós-fundacional, mais especificamente, através (a) do argumento do
finitismo, (b) da constituição da (im)possibilidade da ordem/unidade política a partir da
relação e diferença. Isso implica na (c) a necessária configuração das relações e diferenças
como antagonismos e (d) no papel originário dos afetos. Além disso, como já apresentada
acima, (e) a noção de abertura entre político e política e, como veremos abaixo, implica ainda
na (f) noção de contingência que prepara, finalmente, uma abordagem pós-fundacionista em
teoria política ou, como preferimos, uma pós-política que, em conjunto, esboçam uma teoria
política que, provisoriamente, pode ser chamada de monismo político.
Sobre a contingência, podemos apanhar um trecho de um autor contemporâneo
importante para a compreensão de nossa própria teoria. Segundo Ernesto Laclau, “o momento
de instituição originária do social é o momento em que se mostra sua contingência (...) O
momento do antagonismo, em que se faz plenamente visível o caráter indecidível das
alternativas e sua resolução através das relações de poder é o que constitui o campo do
político” (LACLAU, 1993, p. 51-52). Com uma tonalidade nitidamente foucaultiana, Laclau
traz um argumento que já encontramos em Schmitt, qual seja, a noção de contingência como
algo impredicável, isto é, que não pode ser controlada, classificada ou prevista em esquemas
conceituais. Considerando que são afetos e não normas que constituem o corpo social e que o
medo, conforme vimos, seria este alegado afeto primordial e fundador da modernidade,
propomos que, através de uma ontologia do político, o antagonismo passa a ser este afeto que
envolve toda a realidade, não seja outro que não o antagonismo, tal como uma estrutura
afetiva antagonística ou um circuito afetivo movido pelas lutas partisans. A política moderna
se estruturou em torno da defesa contra a contingência, contra o caráter desestabilizador que a
contingência impredicável produz. A rigor, a contingência e o antagonismo compõem o
mesmo fenômeno e, na leitura que propomos, constituem os novos lugares da transcendência
e da imanência. Neste contexto, pensar a contingência significa a compreensão da ação
política sem laços externos, na ausência do além, na necessidade do reconhecimento do outro
não como violência inicial controlada que me torna possuidor (mesmo que na figura do
360
Estado que garante duração e estabilidade ao corpo social na base do “protego, ergo obligo” e
legitima sua proteção na inculcação contínua da lembrança da violência que haveria caso não
estivesse presente), mas sim como violência atual que despossui o sujeito, desestabiliza a
ordem e instaura outra configuração afetiva que impede a formação de autonomias ou
subjetividade justamente por apostar na experiência da contingência e despossessão via
antagonismo.
Após o abandono da concepção de ordem como algo natural, bem como da rejeição
da articulação entre céu e terra numa concepção de ordem teológica, o período moderno com
os teóricos do século XVII assume uma noção de ordem construída (ao invés de natural ou
divina) e, enquanto tal, um ato de instituição política. A ordem cosmológica é substituída pela
ordem hipotética. A denúncia do mito do dado e a impossibilidade de reconstruir a ordem sob
os auspícios de algum Deus concede razão a Nietzsche quando afirma que a ordem é um
artifício e a harmonia nada mais é do que um jogo de força, assim como a verdade ganha ares
de uma metáfora ao invés de algum princípio universal e abstrato. Assim, tomando a
contingência como única origem possível, uma origem que não se qualifica com longínqua,
pelo contrário, sempre presente, o primário na constituição da ordem passa a ser considerados
como aquele fluxo de forças que, na releitura que elaboramos, pode ser nomeado como
antagonismos. É a partir dessa constelação afetiva, imanente, necessária que a ordem pode ser
pensada. No lugar de normas, uma contingência originária que aparece como o dado último.
Se a modernidade é compreendida como uma resposta secular à ausência de um fundamento
transcendente da ordem; parece-nos que, efetivamente, esta ausência é levada à sério através
do pensamento pós-fundacionista, cuja categoria principal é a de contingência. Antes de
explorar esta categoria, cabe neste ponto uma citação bastante conhecida de Wittgenstein que
fora concebida para tratar, sobretudo, de questões relacionadas à teoria da linguagem e do
conhecimento, mas que expressa bem o terreno político no qual propomos nossa tese372:
Quanto mais precisamente considerarmos a linguagem real, tanto mais forte se torna
o conflito entre ela e a nossa exigência. (A pureza cristalina da lógica não se deu a
mim como resultado -, ela era, sim, uma exigência). O conflito torna-se
insustentável. A exigência corre o risco de se converter em algo vazio. – Entramos
por um terreno escorregadio, onde a falta de atrito, portanto, onde as condições, em
certo sentido, são ideais, mas nós, justamente por isso, também não somos capazes
de andar. Queremos andar. Então precisamos do atrito. De volta ao chão
áspero!”(WITTGENSTEIN, 2014, § 107, p. 70)
372
Poderíamos aqui antecipar uma crítica do leitor. Como é possível sustentar uma tese (monismo político) que
concilia: ontologia política (afeto do antagonismo como necessário no corpo político) e estrutura contingencial
da realidade (ausência de fundamentação)? Haveria algo contingente e necessário ao mesmo tempo? Parece-nos
que a questão deve ser posta em outros termos: sobre o estatuto de necessidade da contingência.
361
373
Em um trecho que bem poderia ter sido escrito, em parte, por um discípulo de Schmitt, Foucault trata desse
tema: “se, em compensacão, dizer ‘renunciar a fazer uma teoria do Estado’ significa não começar por analisar
em si e por si a natureza, a estrutura e as funções do Estado, se renunciar a fazer uma teoria do Estado quiser
dizer não procurar deduzir, a partir do que é o Estado como uma espécie de universal politico (...) Sim, claro, a
essa forma de análise estou decidido a renunciar. Nao se trata de deduzir todo esse conjunto de práticas do que
362
seria a essência do Estado em si mesma e por si mesma. É preciso renunciar a tal análise, primeiro, simplesmente
porque a história nao é uma ciência dedutiva, segundo, por outra razão mais importante, sem dúvida, e mais
grave: é que o Estado não tem essência. O Estado não é um universal, o Estado náo é em si uma fonte autônoma
de poder. O Estado nada mais é que o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou de
perpétuas estatizações, de transações incessantes que modificam, que deslocam, que subvertem, que fazem
deslizar insidiosamente, pouco importa, as fontes de financiamento, as modalidades de investimento, os centros
de decisão, as formas e os tipos de controle, as relações entre as autoridades locais, a autoridade central, etc. Em
suma, o Estado não tem entranhas, como se sabe, nao só pelo fato de não ter sentimentos, nem bons nem maus,
mas não tem entranhas no sentido de que não tem interior. O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um
regime de govemamentalidades múltiplas” FOUCAULT, 2008, p. 105-106.
374
Parece-nos que esta noção fora explorada inicialmente na filosofia políica por Jean-Luc Nancy e Phillipe
Lacue-Labarthe como o retrait (Entzug) do político. Sobre isso, o texto já clássico: NANCY; LABARTHE,
1981.
363
O nível ontológico não pode ser acessado imediatamente, pois isso exigiria que o
considerasse como um terreno sólido (como Ser). Se é para cumprir sua função de
fundação, no entanto, o fundamento, como vimos, é simultaneamente um abismo.
Uma vez que não há motivo de ser, o nível ontológico é irremediavelmente separado
do nível ôntico. E é precisamente porque não podemos acessar o nível ontológico
diretamente que (...) devemos necessariamente passar pelo nível ôntico, a fim de
"agitar" algo que sempre escapará do nosso entendimento devido ao fosso
irremediável entre o ontológico e ônitco. (MARCHAT, 2007, p. 24).
Apesar de reconhecermos em Schmitt como paradoxo do político (entre político e política),
parece-nos que o jurista não percebeu a capacidade ontológica de suas considerações. Diante
do gap que ele também diagnosticou, o jurista rompe a simetria entre imanência e
transcendência, mas não alcança este nível de reflexão ontológica. Neste contexto, tentamos
demonstrar o esforço de não empreender qualquer conceito de carga substancialista ou
essencialista, mas sim que atenda a noção de processo interminável, de ininstitucionalização,
da dialética negativa ou qualquer outra noção que figure a impossibilidade e ausência como
padrão não contextual. Reiner Schürmann reforça nossa compreensão quando afirma sobre a
herança propiciada por Heidegger:
Outra vez a pergunta é posta, afinal, qual o objeto da filosofia política? Talvez uma
resposta, mesmo que tradicional, seja a seguinte: a natureza do poder e suas formas de
governo. De fato, a filosofia política desde Platão e Aristóteles tem se empenhado em elaborar
as bases do viver junto na polis. Todavia, outra pergunta que poderia ser elaborada para
compreender a teoria política seria: como o poder cria coesão, unidade? Ou ainda, como e que
375
Sobre a interpretação de Derrida sobre Schmitt, seção 1.9.
376
Sobre isso, cf. SÁ, 2009.
366
tipo de coesão se torna necessária ao corpo social? Em suma, quais as condições para este
viver juntos? Quais as condições do viver juntos para a instauração do governo não
simplesmente como coerção, mas como adesão, não como dominação, mas liberdade? É
possível pensar em liberdade ou democracia, termos tão caros até hoje, fora do paradigma da
subjetividade ou da autonomia? Em outros termos, no contexto das críticas às democracias
representativas e no esgotamento e percepção dos limites da participação política, como é
possível uma filosofia política contemporânea que escape dos estereótipos da reflexão sobre o
governo ou sobre o poder e utilize outra semântica? Desde início das análises, propomos tratar
a questão do político como a questão sobre a natureza dos vínculos sociais através dos afetos
que mobilizam e circulam no corpo: tratamos relações sociais como relações marcadas por
afetos e estas, por sua vez, não se configuram de outra forma senão como relações de poder.
É possível imaginar um contexto social onde não haja dominação, aliás, o poder não é, de
maneira necessária, uma forma de dominação: não é algo fixo como uma estrutura natural
nem compreendido por meio de instituições normativas, mas se refere a relações e a contextos
fáticos e, enquanto tais, marcadas pela contingência e ausência de fundamento. Assim, a
resposta à pergunta sobre qual elemento, se é que existe, seja capaz de ordenar a experiência
política passa pela compreensão das condições da forma de vida concreta. No entanto, mesmo
ao considerar as relações no corpo social, percebe-se que não há uma simetria entre imanência
e transcendência ou cálculo e indivíduos portadores de direitos naturais/subjetivos: por mais
que se tente tornar os afetos previsíveis, seguros e certos com algum tipo de homogeneização
dos desejos e interesses, o resultado a que se chega não é o de uma vontade que submete outra
vontade, mas sim, a despeito das tentativas de capturas e racionalizações, a circulação de algo
que submete todas as vontades, no caso da ontologia proposta, este aspecto da totalidade ou
este afeto que perpassa por todas as vontades, denominamos antagonismo. Este elemento é o
transcendental histórico, aquele espectro que Derrida se refere, que serve de condição do
corpo social. Da mesma maneira, este afeto provoca uma ruptura da estrutura tradicional da
teoria política através da diferença política (paradoxo do político) que implica na questão do
fundamento como ausência. O que nos resta é encontrar uma configuração (afetiva) do poder,
isto é, um circuito de antagonismos que não encontre nem a estabilização definitiva nem a
dominação assujeitadora, nem a redução simplificadora e formal a normas, mas que através
dela seja possível a liberdade. O início da solução passa pela questão de como pensamos o
problema da comunidade hoje. A leitura que realizamos sustenta que a comunidade é uma
questão não de essência ou substância, mas, tal e qual a diferença política estabelece, remete à
relação e às práticas sociais. Desse modo, ao insistirmos nos movimentos dos afetos do corpo
367
social como elementares para a comunidade, ressaltamos o antagonismo como dado último ao
qual se pode chegar a reflexão política: os afetos como temas e conteúdo do político é uma
expressão da suspeita acerca das narrativas de fundamentação racional da ação.
Evidentemente, nossa proposta assume alguns pressupostos schmittianos e tenta lê-los pelo
avesso. Ou melhor, procuramos elaborar uma interpretação da categoria de comunidade
através desse novo quadro conceitual, qual seja, a tese da diferença política como relação, o
político como afetos, a estratégia da finitude da ação (imanência), a ausência de fundamento
ou o fundamento como ausência e a concepção de pós-política, da inevitabilidade do conflito,
bem como o esboço de uma ontologia do político (antagonismo como afeto central) e a
impossibilidade de sua juridificação ou institucionalização.
***
377
Sobre uma filosofia prática em termos normativos, é notório o movimento de reabilitação da filosofia prática
representado sobretudo por Rudiger Bubner, Otfried Höffe, Karl Heinz Ilting, Manfred Riedel e Joachim Ritter,
partindo da releitura de Aristóteles e Kant na tentativa de fundamentar uma concepção normativa do direito e da
política, sobre isso, cf. por todos M. Riedel (Hrsg.) Rehabilitierung der praktischen Philosophie. Band I,
"Geschichte, Probleme, Aufgabe". Freiburg i./B., Rombach: 1972; Band II, "Rezeption, Argumentation,
Diskussion". Freiburg i./B., Rombach: 1974.
368
378
ESPOSITO, 2008.
369
sujeitos finitos recortados por um limite que não pode interiorizar porque constitui
precisamente seu ‘fora’. A exterioridade sobre a qual aparece e que os penetra em
seu comum não-pertencer. Por isso, a comunidade não pode ser pensada como um
corpo, uma corporação, uma fusão de indivíduos que dê com resultado um indivíduo
maior (ESPOSITO, 2006, p. XIV).
Para Esposito, a principal – e mais perigosa – consequência do munus como falta ou
ausência é esta expropriação e, por conseguinte, desapropriação num sentido centrípeto que
implica compreender a subjetividade de maneira radicalmente distinta: como outro e não
como mesmo, a rigor, como um sacrifício ou uma compesatio. A compensatio é implicação
social do munus como uma partilha da ausência que caracteriza o comum e os leva ao vazio
da comunidade e, paradoxalmente, ao niilismo. A referência polissêmica do munus a uma
carga, dívida, dom e dádiva não apenas reforça a compreensão da condição de finitude e
negatividade, mas põe como constitutiva da relação ou do ser-comum a questão do
fundamento como vazio ao invés de plenitude ou liame que vincula indivíduos antes isolados,
pelo contrário, é a exposição ao fora, ao outro ou relação que a constitui, pois “a comunidade
não é um modo-de-ser – menos ainda, de ‘fazer’ – do sujeito individual (...) mas a exposição
que interrompe seu fechamento e o inverte ao exterior (la rovescia all’esterno), uma vertigem,
373
Não é mais o mecanismo imunológico uma função da lei, mas a função certa do
mecanismo imunológico. Este passo decisivo [...] tem origem na relação estrutural
entre lei e violência. Não é mais do que apenas o papel desempenhado pela lei, a
imunização da comunidade pela ameaça de violência, caracterizada pelos mesmos
procedimentos imunes: mais do que eliminados, a violência está incorporada no
dispositivo destinado a repressá-lo - ainda violentamente (ESPOSITO, 2002, p. 12).
A relação comunitária é portadora de um perigo mortal e diante deste a única saída
seria suprimi-la através de um terceiro ao qual todos se vinculem e sem que devam vincular-
se imediatamente entre si. Evidentemente, a relação retorna à cena, porém sob a forma estatal,
controlada juridicamente, ou seja, sob a forma da mediação racional/institucional
possibilitadora da ordem e da pacificação. Assim, a imunização da communitas refere-se à
redução da relação do munus apenas ao terceiro que garante que o munus não destrua o corpo:
introduz-se um antígeno para provocar a proteção. O Estado é a proteção contra a relação
imanente desapropriadora ou contra o impróprio e instaura o motto: proteção e obediência,
certeza e segurança. Pode-se afirmar que o Estado existe em função da propriedade ou da
apropriação do sujeito e o direito conserva esta lógica imunitária. Segundo Esposito, a relação
entre direito e comunidade é paradoxal:
identidade individual, então a immunitas é a condição de dispensa de tal obrigação e, por isso,
de defesa nos confrontos de seus efeitos expropriativos. O autor refere-se à generalização do
munus provocado pelo cum, por isso a lógica do sistema imunitário contra o sistema de
reciprocidade tributária, pois a proteção imunitária da vida combate aquilo que nega através
de neutralizações, visto que “o que se sacrifica é precisamente o cum que é a relação entre os
homens e portanto, de certo modo, os próprios homens” (ESPOSITO, 2006, p. XXIII). Se, por
um lado, a communitas torna inviável a identidade individual por conta da obrigação
originária diante do outro; por outro, a immunitas é a neutralização dessa obrigação e, por
conseguinte, a proteção contra os efeitos expropriativos da relação. Da mesma forma, que o
político enquanto antagonismo é neutralizado pela ordem. Esse dispositivo de proteção da
vida provoca uma homogeneização a partir da neutralização do externo (ou internalização da
exceção ou do fora, que desestabiliza), isto é, indistinção entre dentro e fora através da
produção da identidade (indivíduos) e da compreensão do outro como outro-eu e não como
diferença, pressuposto elementar da relação. Entretanto, tal dispositivo imunitário exige um
sacrifício, aparentemente menor do que a obrigação do munus: as pulsões e os afetos. A
mediação racionalista se revela como um útil mecanismo de controle dos afetos, se localiza
entre a conservação e a exclusão da vida. Tal como em Schmitt, o expediente imunitário
consiste num processo de insensibilização e despolitização do espaço político. Se a
comunidade vê-se diante da obrigatoriedade do tributo que anula a individualidade, isto é,
sobre a negatividade ou ausência de fundamento, então o sistema imunitário é o mecanismo
que bloqueia as consequências deletérias desta lógica imanente.
A questão que se põe neste momento é a seguinte: tal modelo societário não seria
melhor do que a deriva comunitária? Não seria um sacrifício válido diante da auto-dissolução
ou do niilismo? O caso em questão, no entanto, exige outra pergunta mais radical: o
mecanismo imunitário do Estado moderno preenche o vazio constitutivo da comunidade? Se
levarmos as considerações de Esposito a sério, de fato, a comunidade mostra-se insustentável
e precisa da prevenção, do controle, segurança e esterilização contra seu imanente conteúdo
relacional. Todavia, quando imunizada, é exposta ao contágio mais uma vez, pois o sistema
imunitário como proteção negativa da vida combate aquilo que se faz o tempo inteiro
presente: possibilita a conservação da comunidade, mas paradoxalmente pela negação de seu
horizonte originário de sentido “as estratégias imunitárias (que) visam salvar a comunidade do
fardo de seu niilismo de base, tendem por isso a entregar a comunidade ao nada do qual
pretendem salvá-las” (ESPOSITO, 2008, p. 94.), ou ainda, “(...) sacrificada para sua própria
conservação. Nesta coincidência entre conservação e sacrifício da vida, a imunização
376
É precedida por um “fora-da-lei” mais originário ainda, que é justamente esse cum
ao qual pertencemos desde sempre enquanto existência temporal: a coexistência. Isto
que dizer que a comunidade é irrealizável não pelo fato de estar presa por um nomos
cruel que nos impede de acessá-la, mas sim porque ela está aqui e agora em seu
constitutivo a-partamento (ESPOSITO, 2006, p. 47).
Neste sentido, não se pode nem mesmo falar de um nós que não seja também um
nós-outros. Isto significa o seguinte: não partir do eu ou do não-eu, mas do cum, da relação:
nós somos juntos aos outros, não como pontos que em determinado momento se agregam,
nem tampouco com um conjunto subdividido, mas desde sempre uns-com-os-outros e uns-
dos-outros” (ESPOSITO, 2003, p. 158-159). Em nossa reinterpretação, poderíamos ler esta
relação de perda ou ausência em Schmitt como a relação do político, ou seja, do antagonismo:
tanto a communitas quanto o antagonismo tentam ser exorcizados pela ordem politica. A
mesma relação desapropriadora que Schmitt enxerga como relação de antagonismo, do
externo constitutivo, também pode ser vista, mutatis mutandi, na leitura de Esposito. Não
obstante, mais refinada e assertiva, é possível pensar uma influência oblíqua de Schmitt na
obra de Esposito tal como sustentamos no capítulo 1 haver uma influência quanto à categoria
de impolítico, cf. 1.8 (supra). A partir da ontologia do conflito que esboçamos neste capítulo,
talvez deveríamos acrescentar: uns-contra-os-outros, visto que parece-nos que a relação mais
constitutiva não é outra senão aquela do antagonismos, ela mesma provocadora do desamparo
ou ausência.
* * *
ressalta o argumento de que não é o munus como relação desapropriadora, mas o cum
compreendido como relação conflitiva que sofre a neutralização, por isso a individualização
moderna teria como objetivo rejeitar o conflito (cum) e não apenas o munus, pois este não
seria mais do que consequência daquele. O que pretendemos neste momento é demonstrar que
a neutralização do munus não se dá pela compensatio do complexo de dívida-dádiva ou do
dom a dar obrigatório, mas sim pela exclusão do cum, este sim a origem da desestabilização e,
sub-repticiamente, o problema enfrentado pela política ocidental. É este o ponto fundamental
que Esposito e demais autores não dão a relevância devida: o problema é o cum, isto é, a
relação e não o munus, uma vez que aquele é matriz deste. Esposito chega a afirmar que “se
em definitivo a privação concerne ao munus, o ponto de confrontação que dá sentido à
imunização é o cum no qual se generaliza em forma de communitas” (ESPOSITO, 2009, p.
15), mas compreende o cum como apenas um fator de generalização do munus e não como a
relação que provoca o conflito como Schmitt explicitamente elabora não apenas na origem da
ordem, mas também, como interpretamos, na duração da ordem. Além disso, o cum como
antagonismo implica numa releitura da tese ou desenvolvimento diferente da perspectiva
espositiana. Senão, vejamos.
A suspeita do sentido de cum não apenas como uma partícula aditiva, mas também
como “contra”, designando uma contraposição é confirmada ao analisar os mesmo textos e
dicionários que Esposito cita na sua reconstrução filológica acerca dos termos cum e munus.
Parece-nos que Esposito deixou de considerar uma possibilidade semântica bastante plausível
presente no termo cum: esta partícula não significa apenas uma partilha ou uma relação de
adição ou justaposição, mas também pode ser considerada como uma oposição e significar
uma relação de conflito. No Dictionnaire etymologique de la langue latine (1951) de Alfred
Ernout e Antoine Meillet (4ª ed. 2001) e no Lateinisches etymologisches worterbuch (1910)
de Alois Walde – dicionários que Esposito se utiliza no texto para aduzir argumentos para sua
análise filológica sobre os termos -cum e -munus – respectivamente, afirmam nossa tese380.
380
Nos verbetes abaixo: cum (ancienne forme com ; con- co-) : « avec », préverbe et préposition accompagnée
de l'ablatif-instrumental (et, à basse époque, avec l'accusatif, ou plutôt le cas régime unique). Un emploi
adverbial n'est pas attesté. Souvent joint à des adverbes marquant l'égalité ou la simultanéité : simul cum, pariter
cum ; marque la simultanéité : cum prima lûce, ou le moyen avec lequel on fait quelque chose, ou les
circonstances qui accompagnent l'action. Avec certaines expressions telles que agere cum, bellum gerere cum, le
sens est voisin de celui de contra, le partenaire étant aussi l'adversaire. L'indépendance originelle de la place de
la préposition apparaît encore dans certains emplois comme quïcum, mëçum, etc., où la particule est postposée.
Usité de tout (temps; conservé dans les langues romanes) (MEILLET, 2001, p. 156.); e Com-, cum “mit” (...)
*kom “mit” steht in Beziehung (...) aus dem Lat. selbst contra “gegenüber, dagegen, gegen” (...) doch ist das mit
com in der Vokalstufe stimmende contro- (gegen-über kelt. gr. n) wohl in *com-tro zu zerlegen und hat als eine
Komparativbildung wir al-ter (: alius) spez. die aus dem “beisammen” bloSS zweier erklärbare Bed. des.
“gegenüber” (WALDE, p. 180-181). Em português, no tradicional Novíssimo Diccionario Latino-Portuguez de
380
Na leitura que realizamos, Schmitt pensa a mesma ausência ou falta e separação que
os teóricos da comunidade que segue uma linha argumentativa baseada em Heidegger e
Bataille também insistem, mas não assume a relação diante do outro como dívida ou culpa,
mas sim como conflito: aquilo que dá medida não é a dívida-dádiva, mas sim o antagonismo.
Da mesma maneira, a falta é caracterizada por um antagonismo (como em Nietzsche, afinal
de contas) que implica, inclusive, na luta e violência que leva à morte. Este argumento,
entretanto, não leva ao extermínio ou ao totalitarismo, pelo contrário, pode ser considerado
que apesar de possuir um critério discriminatório e estar próximo ao horizonte sacrificial da
política moderna, não é um elogio à morte, tal como Derrida mesmo reconhece. Por outro
lado, o cum-munus em nossa releitura não torna a comunidade im-munus: na verdade, apenas
explicita algo mais originário: não a dívida, mas o antagonismo. Nesta interpretação, o mais
perigoso não é o complexo semântico de dívida-ônus-dádiva que determina o munos, mas a
relação que o cum propicia: o antagonismo (expresso no sentido de cum como contra) que
aproxima e repele, demonstra que apesar da identidade ser constituída a partir do outro, ela
mesma se mostra sem fundamento possível, pois se baseia em sua própria ausência ou
impossibilidade, qual seja, o inimigo; o conflito do contra que também é cum: neste sentido
que a teoria schmittiana ganha atualidade ao possibilitar o desenvolvimento de uma dialética
entre com e contra. Todavia, não seria ela precisamente a tese do cum e do contra como uma
teoria política realista tal como Esposito afirma? Da relação como antagonismo, ou seja, do
amigo e inimigo interpretado no sentido mais próximo ao que Schmitt propôs, portanto sem
as simplificações ingênuas ou de má-fé dos autores, isto é, sem elaborar uma interpretação do
amigo ou do inimigo, mas compreender o político como diferença e relação, afinal, como já
demonstramos. A novidade é aplicação à leitura da comunidade: resta à teoria política seguir
esta trilha e buscar uma teoria do contra-hegemônico ou uma teoria da comunidade que aceite
violência e conflito como algo inscrito na própria possibilidade de ser, pensar a ação política
como abertura381.
Francisco dos Santos Saraiva380: “1 Cum, prep. de abl. 1º Com em companhia de; ao mesmo tempo que; 2º Com
ajuda de, com auxílio (...) 8º Com, contra. (...) §8º Bellum gerere cum aliquo (Fazer a guerra contra alguém)”.
(SARAIVA, S/D, 5ª ed. p. 324).
381
Ao dissociar todas as relações ou liames que sejam estranhas à estrutura institucional da proteção-obediência
(vertical), a ordem se estabelece instaurando uma relação através da não-relação. Se a comunidade é marcada
pelo delito, então a política é o delito contra o delito, isto é, a forma de precaver-se contra a comunidade. Se,
conforme Esposito, “o que se sacrifica é precisamente o cum que é a relação entre os homens” (ESPOSITO,
2006, p. 45), o que ponho em interpretação é que o que se sacrifica não é apenas a relação, mas a violência, o
conflito que este cum traz consigo. Ora, no decorrer do texto, o autor ressalta a neturalização da obrigação e
desapropriação que o munus representa. Paradoxalmente, sacrifica-os a sua própria sobrevivência e vivem em e
da renúncia a conviver.
381
Neste ponto surge uma crítica inevitável às teses apresentadas: até que ponto a
irrepresentabilidade pode ser pensada? Não tornaria o político uma aporia? Da mesma forma,
a communitas não seria impossível? A violência (ou niilismo) seria apenas destrutivo?
Esposito sustenta a relação entre niilismo e communitas, analisa a immunitas assimilando a
questão ao tema da biopolítica e, além disso, afirma que o que constitui a comunidade é um
“nada” e a partir disso conecta com o tema do niilismo. Portanto, faltaria à Esposito sustentar
que este nada ou ausência não é gratuito, mas refere-se (conforme podemos analisar com
Schmitt) ao conflito mais originário. Esposito e demais autores contemporâneos da
comunidade dissociam a ação política do conflito (“comune è solo la macanza”(...) “la
comunità è ‘esteriozzazzione dell’interno” ESPOSITO, 2006, p. 150) e perde um potente
argumento para sua reflexão, tornando aporético o pensamento da comunidade. Se a violência
é compreendida como alheio à communitas, pois refere-se à immunitas ou outra causa não
descrita, então a violência não desempenharia nenhum papel no pensamento político. Parece-
nos preocupante um pensamento sobre/da comunidade que imuniza-se da violência e não trata
de um dos temas principais da filosofia política. A tese de Esposito poderia tomar outros
rumos se, de fato, assumisse a influência schmittiana: apenas dessa forma, ele compreenderia
o fato de que a comunidade “expor o sujeito ao risco mais extremo: perder, com sua
individualidade, os limites que garantem a intangibilidade do outro” (ESPOSITO, 2006,
p.151) não advém de um romântico “nada”, mas do conflito de morte, aliás, esta tese da
Gefährlichkeit (periculosidade) do ser humana e da rejeição da futilidade do mundo burguês-
liberal e técnica-científico. O paradoxo que encontramos na leitura de Esposito é que nela não
há lugar para pensar a violência ou o antagonismo: o tema salta aos olhos, mas não é
abordado. É bastante plausível que haja ausência, nada, falta, desapropriação, impróprio, etc.,
mas parece-nos que há um déficit no conceito de relação em Esposito e nos teóricos da
comunidade que uma ontologia do político poderia sanar.
Em última instância, o político mostra sua inevitabilidade e totalidade como tensão e
antagonismo, na sua vocação à conjunção e disjunção, relação não calculável e não
compreendida em termos normativos nem metafísicos. Assim, não apenas fornece munição
para uma crítica ao individualismo, à fundamentação metafísica, mas também aponta para a
instabilidade da ordem e, por conseguinte, para a luta por hegemonias. O principal limite da
reflexão sobre a comunidade é que não dá conta do conflito ou, quando o faz, elabora
considerações em tons negativos. Ao contrário, a partir de Schmitt, é possível conceber o
político como um entre: a possibilidade como relação; isto é, o ser como aparência, sem
pressupor identidades metafísicas ou essências políticas e, por isso, mesmo suportar a tensão
382
382
A interpretação mais interessante de Schmitt parece apontar para a noção do cum ou do contra (em todo caso,
da contradição que o político expressa) para compreender a ação política como finitude e, sobretudo, abertura: a
possibilidade de outra ordem. O desafio é conceber com Schmitt e o conflito como constitutivo, caso contrário,
incorre-se na mesma análise equivocada, gira em falso, da homogeneização do político (amigo) contra os
inimigos, sem perceber que o que está em jogo não é a determinação dos polos, mas a relação como conflito co-
institutivo. Evidentemente, potencializados por Bataille e Heidegger, Esposito propõe teses que Schmitt nunca
assumiria, mesmo que seu débito inicial, a intuição da diferença ontológica entre política e político e a noção do
político como não normativo ou ininstitucionalizável, assim como a compreensão do político como relação e
conflito são temas em pauta em qualquer discussão política de matriz não normativa. Após demonstrar a tradição
recebida às escondidas pela discussão política contemporânea, o próximo passo seria aproximar Schmitt de
Maquiavel e, sobretudo, Espinoza: uma tarefa a ser realizada.
383
Esta pesquisa procurou realizar uma leitura de Carl Schmitt, tomando como fio
condutor a intensificação do argumento da finitude em sua obra que revela a tentativa de
ruptura da simetria entre transcendência e imanência. À guisa de conclusão, gostaríamos de
explicitar o mais breve possível quais os principais lances da interpretação elaborada e a quais
posições e conceitos a análise da obra schmittiana levou. Ainda, como uma explicitação das
teses propostas, o que efetivamente consideramos de relevante nas investigações realizadas,
como a seguir:
(1) A proposta de uma releitura das leituras de Schmitt (status quaestionis) demonstra
uma constância interpretativa nos comentadores abordados: o apelo à imanência na obra
schmittiana, sobretudo, na forma dos antagonismos. A história da política é a história da
morte/dissolução do impulso ao conflito; é a história da neutralização do político, contra o
contato e conflito, fechamento e estabilidade. Contra o afeto do antagonismo, direitos e
normas. Por isso, ao contestar a possibilidade de unidade (transcendente) e fechamento da
ordem, aproxima-se de uma postura assumidamente pós-política que encontramos
paradoxalmente em Schmitt.
384
relações sociais, sempre permanece como insolúvel, nunca adquire uma configuração final. O
elemento pragmático do político se refere à recusa de enquadrar-se em esquemas normativos.
(9) A distinção entre imanência e transcendência é reavaliada como distinção
(concreta) entre amigo e inimigo. Entretanto, conforme nossa proposta, esta exige que se
enfatize não um dos polos em questão, mas sim a própria relação como relação de
antagonismo.
(10) Conforme nossa tese, o político compreendido como antagonismo revela que na
base das considerações schmittianas, mesmo que não desenvolvidas, estaria o argumento de
que qualquer abordagem em política tem que levar em conta o âmbito dos afetos e não a
estrutura normativa como mais fundamental.
(11) Ao compreender o político como antagonismo, ressaltamos que as
consequências do pensamento schmittiano não permitem afirmar que ele seja, sem mais, um
“autor da ordem”, isto é, apesar de sua explícita vocação para garantir a ordem, suas teses não
permitem tirar esta conclusão, inserindo um elemento desestabilizador na teoria política: o
incessante movimento entre político e política.
(12) O antagonismo retorna neste ponto ao garantir uma dialética negativa entre
político e política, impossibilitando o fechamento da ordem ao apostar que qualquer ordem
constituída nada mais é do que o resultado provisório de uma relação de afetos (antagonismo)
no corpo social. Daí, argumentamos que haja uma espécie de transcendência da ou na
imanência, demonstrando sua origem nos lances dos jogos de poder, estritamente contextuais
ou pragmáticos. Schmitt percebe algo nesta direção ao estabelecer o antagonismo como
princípio que, no entanto, não funciona tipicamente como um fundamento: a partir dele, é
possível uma crítica à razão/metafísica. Ao criticar a possibilidade da simetria entre forma e
experiência (a noção de representação), Schmitt impossibilita a estrutura teológico-política da
distinção entre ser e aparecer: como a política refere-se sempre ao político e vice-versa,
Schmitt estabelece um critério hermenêutico importante, qual seja, qualquer transcendência é
da imanência. Como não há referência a algo externo (forma política, ideia de direito,
representação, etc.) a pergunta pela unidade ou melhor ordem ou forma política não faz mais
sentido. A pós-política ignora a distinção entre faticidade e validade, dissolve-a assim como a
distinção entre analítico e sintético, sujeito e objeto, entre outras.
(13) A partir disso, ao mesmo tempo em que propomos esta contingência como origem
da ordem (por conta do movimento entre política e político que causa a ausência), isto é,
como uma fundamentação que se nega enquanto tal, pois ausência de fundamentação; também
arriscamos uma ontologia do político, como aquele fluxo de afetos no qual o antagonismo é o
386
principal e, por isso, determinante desta estrutura da realidade que não está nem além nem
aquém, mas que reside inteiramente no contexto sócio-prático. Denominamos isto de
ontologia do antagonismo como a própria condição do ser-com: multiplicidade, conflito e
fragmentação.
(14) A ontologia do antagonismo pode ser vista como um argumento útil na
compreensão do tema contemporâneo da comunidade: compreendê-la como a ausência de
substância, de centro ou de fundamento provocada, precisamente, pelo antagonismo próprio
das relações do corpo social, dado último a que podemos chegar através das considerações
acerca da realidade política.
(15) Desenvolvemos por conta própria as teses schmittianas e, para além do autor,
esboçamos uma teoria política pós-fundacionista que denominamos de monismo político:
ausência de unidade e estabilidade, bem como de um saber seguro acerca da ação política, ou
seja, a desvinculação entre ação e racionalidade, entre ser e aparecer. Numa expressão: a
dissolução da representação a partir da ruptura entre imanência e transcendência não por
escolher um dos lados da questão, mas por considerá-las como co-extensivas, uma vez que
toda constituição transcendental é uma instituição social.
(16) O abandono da semântica política moderna e a assimilação dos ganhos teóricos
de outras áreas da filosofia na teoria política: as dicotomias normativo-descritivo, forma-
conteúdo, natureza-cultura, ser-aparecer, etc, se tornam sem sentido.
(17) A abertura refere-se a algo constante no movimento político: se fundamento é
ausência de fundamento, nem o político nem a política conseguem se impor e moldar a
realidade e as instituições. Quando sustentamos a abertura, estamos nos referindo à diferença
entre os elementos: esta diferença que é por definição instável, ininstitucionalizável, o avesso
ou a fronteira esquecida que denuncia a falácia de fundar a cidade e a ação política no
universal e na razão. O que enfatizamos na noção de abertura é a dimensão não institucional
da experiência política.
387
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