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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASILIA


` Reitor
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A Lauro Morhy
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Vice~Reitor A l
Timothy Martin Mulholland
l
Çomo se escreve a história
I
D EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA
- Diretor
Alexandre Lima
UUUUU I JU .F

CONSELHO EDITORIAL
I.
I ._ - Tradução
- Presidente
Emanuel Araújo . Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp A _

Alexandre Lima .
Álvaro Tamayo Revisão técnica
Aqfon Dall lgna Rodrigues Gerusa Jenner Rosas
Dourimar Nunes de Moura
Emanuel Araújo
Eurídice Carvalho de Sardinha Ferro
Lúcio Benedito Reno Salomon ~ 4flE¿1içâ‹›
A Marcel Auguste_Dar_denne '
~ , Sylvia Ficher ›
. ' V Vilma de Mendonça Figueiredo ._ . _. _. _.

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Volnei Garrafa `
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Copyright © 1971 by Editions du Seuil para Comment on écrit Fhistoire


Copyright © 1978 by Editions du Seuil para Foucault révolutionne
Phistoire _ ›

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armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por ¡.
escrito da Editora. ' ' 'I I

I V :~
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Impresso no Brasil ~. | " zl
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I

SUPERVISÃO EDITORIAL
AIRTON LUGARINRO
I
I
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Ia REvIsÃO
.IIOELITA DE FREITAS ARAÚJO E WILMA GONÇALVES Rosas SALTARELLI

EDITORAÇÃO ELETRÓNIÇA W ~ _
RAIMUNDA DIAS

CAPA
CLAUDIA BIÀLABAN A ._ ._ ,M .V3 |
-:zmzwwaz I' iI
l :
SUPERVISÃO GRÁFIÇA _ ,__ __ _______
I
ELMANO RODRIGUES PINHEIRO ' _ i
I

:K5
ISBN: 85-230-0327-4
Ficha catalográfica elaborada pela 1
.Ii
A BibliotecaCentral daUniv`ersidade de Brasília

' Veyne, Paul Marie, 19304


:j{ To Helen whose lovable theoretism has ;
V595c Como se escreve a história; Foucault revolueiona E
a história. Trad. de Alda Baltar e Maria Auxiadora s
long been na indispensable Balance I .
I
Kneipp. 4a ed. - Brasília: Editora Universidade de . weightfor na obsoleto empiricisz . ¿i
Brasília, 1982, 1992, 1995, 1998.
' 285 p. _

Título original: Comment on écrit 1'histoire. Fou-


cault révolutionne Fhistoire
` 930.1
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Capítuio'2

Tudo e histórico,
logo, a história não existe

A incoerência da história V
Qfl ' V . I, 'I ,. .' . . . . 5
O campo,da..h1stor1.a..e,_,poIs, .inteiramente indeterminado, com Ii Í
uma unica exceção; é precisojque tudoo que nele se inc1ua,,tenha, ;
'realmeIIte,_ acoI_1tecidO.A Quanto ao resto, que a'tex_tu%ra do campo
seja cerrada ou rala, completa ou lacunar, não importa; uma páginãfi
da Revolução Francesa' tem uma trama suficientemente Cerrada
para que a lógica dos acontecimentos seja, quase completamente,
compreensível e para que um' Maquiavel ou um Trotsky tivessem
podido tirar dela toda uma arte dapolítica; no entanto, uma página
de história do antigo Oriente, que se reduz a unspoucos dados
cronológicose contém tudo O que se sabe de um ou dois impérios,
dos quais só restou O nome, ainda assim é história. Lévi-Straussl
mostrou, claramente, o paradoxo: .
A história é um conjunto descontínuo, formado por domínios,
cada um deles definido por uma freqüência própria. Existem
épocas em que numerosos acontecimentos oferecem, aos olhos
do historiador, os caracteres de eventos diferenciais; outras, ao
contrário, em que, para ele, aconteceram poucas coisas e, por
vezes, não aconteceu nada (a não ser, certamente, para os ho»
mens que viveram esses tempos). Todas essas datas não for-
25 Paul V6)/fle Como se escreve a história 27

mam uma série, elas pertencem a espécies diferentes. Codifica- tornar-se um verdadeiro reflexo; ele adivinha O lugar de lacunas `\ .
dos no sistema da pré-história, os mais famosos episódios da I mal preenchidas, nao ignora que _o___niii__ne_ro_çl_e,,págIuš1S.Çoncedidas "*¬¬¬,_,_ ,.
história modema deixariam de ser pertinentes, salvo, talvez (e, pelo__au_tor aos di_ferente,s_ momentos e aos diverso_s,,,a$peÇto_s 'do If
mesmo assim, não o podemos afirmar); certos aspectos maciços
da evolução demográfica, considerados em escala mundial: a Pasfifldfl é..H1*flaa›é‹1ifl arma iI'ae.9ItâII¢.ia.que..fastcs...aêIz.âzçi.‹Is.,...Iêm-.a
invqnção da máquina a vapor, a da eletricidade e a da energia ollfios e a abundância ,4da_Vd,ocumentação; sabe que os povos
nuc car. . ditos sem história são, simplesmente, povos cuja história se ignora, I.
e que os “primitivos” têm um passado, como todo mundo. Sabe, Ê
Ao que corresponde uma especie de hierarquia de modulos:
* 1
'I sobretudo, que, de uma página para outra, o historiador muda de
1 tempo, sem prevenir, conforme O “tempo” das fontes, que todo
A escolha relativa do historiador é feita, apenas, entre uma his- livro de história é, nesse sentido, uni tecido de incoerência, e que é
tória que ensina mais e ešplica menos e uma história que expli- não pode ser de outro modo; esse estado de coisa é, certamente,
ca mais e ensina menos. A história biográfica e anedótica, que insuportável para um espírito lógico e basta para provar que@_a__his-
está bem embaixo na escala, é uma história ƒraca con- tórianão _e lógica, mas, para isso, não ha remédio, nem pode haverfj
têm sua própria inteligibilidade, e só quando transpoitada, em
bloco, para dentro de uma história mais forte do que ela, é que
I ' “ Portanto, ver-se-á umahistória do Império Romano, em que a
lhe advém essa inteligibilidadefContudo, estaríamos enganados vida política e mal conhecida e a sociedade bem conhecida, suce-
se acreditássemos que esses. encaixes reconstituem, progressi- .I der, inesperadamente, a uma história do fim da República, em que
vamente, uma história total, pois o que se ganha de um lado O que se conhece bem é a vida política e em que mal' conhecida é a
perde-se do outro. A história biográfica e anedótica fé a menos sociedade, e proceder uma história da Idade Média que nos mostra-
explicativa, mas a mais rica do ponto de vista da informação, já rá, por contraste, que a história econômica de Roma é quase des-
que considera os indivíduos nas suas particularidades e detalha, I, conhecida. Não pretendemos, com isso, demonstrar O fato evidente
para cada um deles, as nuances do caráter, a sinuosidade de
' de que, de um período para outro, as lacunas das fontes não inci-
seus motivos, as etapas de sua deliberação. Essa informação é
esquematizada, depois abolida, quando se passa a histórias cada deni sobre Os mesmos temas; constatamos, simplesmente, que o
vez mais fortes. 2 caráter heterogêneo das lacunas não nos impede de escrever algo a
que se dá, ainda assim, O nome de história, e que não hesitamos em
reunir a República, O Império e a Idade Média numa mesma tape-
I
çaria, embora as cenas que nela bordemos não combinem umas
A natureza lacunar da história , . com as Outras. Mas, o mais curioso é que as lacunas da história se
_-¬\ -
Í fecham espontaneamente a nossos olhos e que só as discernimos
W ~
Para todo leitor , . critico
dotado de espirito , . ,
e para _
a maior parte N
com esforço, .ftantojsão vagas as nossas idéias sobre o que deve- 9
dos profissionaisf um livro de história nãoé, na realidade, O que , mos, a priori, esperar encontrar na história, como a abordamos
aparenta ser; assim, ele não trata do Império Romano, mas daquilo 'I desprovidos de um questionárid elaborado. Urnüséculo eum branco
que ainda podemos saber sobre esse im ério. Por baixo da su erfí- nas nossas fontes, e O leitor mal sente a lacuna. ‹¿i;g¶lç
. _ _ P P
ele tranquilizadora da narrativa, O leitor, a partir do que diz O histo-
riador, da iinpoitancia que parece dar a este ou àquele tipo de fatos
dedíaflf
(a religiao, as instituições), sabe inferir a natureza daszfontes utili-
- Ií5Êf=Í5;5ÍÍÊíf°F.
zadas, assim como as suas lacunas, e essa reconstituição acaba por *- I
,fIÍ1ë_ëɧÉ5 ¿¿ÊÊfi°S_§šIs_W;í9§ <_1e.,eIêrIII›§- t
If-

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Como se escreve a história _ 29


2.8 " Paul V\/'eyne 7
\ . _
des Annales, reunida em tomo da revista fundada por Marc Bloch,
A noção de não-factual dedicou-se ao desmatamento das Zonas vizinhas a essa clareira de ~ -
, as . . .- . , A . acordo; com :esses pioneiros, a historiografia tradicional estudava,
Ç Assim 5 os historiadores,
-r.-_.¬..›. E
em cada,,epoÇfl,.__t6m..&
,;..z.z;z_z.¬~_..__¬»z..¬.-~--'fz=‹ ' '.
liberdade dere-
---- ‹ - - "'“ .- ' ¬ c.. sz-az com demasiada exclusividade, -_
‹ 1 -' f ...
cortar a_,historia_¶_aM_ÀsettVi_inodo (em história política, erudiçao, bio-
g?ã`Í“i`ä',i"ë`t`ñölöšiiäfšöciölögia, história natural),3 pois piiçao i .r ens m1os
po_s_sui_Marticulaçao natural. Este é omomento de fazer `a_ distinção limtes,' ; 0 não-'factual são os eventos ainda.
entre.›o f'c`anipo” dos 'eventos .históricos e a história como gênero, 1 não consagradoscomo tais: a história das localidades, das mentali- _
iâ com as diferentes maneiras com que foi concebida através dos
^ sécu1os;”pois, nos seus sucessivos aggares, o gênero histórico co-
il
dades, da loucura ou da procura da segurança através dos tempos.
Denominar-se-á, portanto, não-factual a historicidade da qual não
z
'
nheceu uma extensão variável e, em certas épocas, partilhou o seu temos consciência como tal; a expressão será empregada com esse
* domínio com outros gêneros, história das viagens, ou sociologia, sentido neste livro, e é justo, pois a escola e suas idéias provaram, V
_' Distingamos, então, o campoepisódíco, queé o domínio virtual do suficientemente, a sua fecundidade. ` `
gênero históricoge o reino de extensão variável que esse gênero |

recortou, para ele próprio, nesse domínio, através dos tempos. 1


I

1
Ê O antigo Oriente tinha as suas listas de reis e os seus anais dinásti- Os fatos não têm dimensões absolutas
› cos; com Heródoto, a história é política e militar, pelo menos, em
princípio; conta as façanhas dos gregos e dos bárbaros; contudo, o É No interior da clareira que as concepções ou as convenções de
viajante Heródoto não a separa de uma espécie de etnografiahistó- cada época recortarn no -campo da historicidade, não existe hierar- '
lr
Í; __ricaÍ Hoje em dia, a história anexou a demografia, a economia, quia constante entre as províncias; nenhuma zona domina outra e, `*, p
a sociedade, as mentalidades, e aspira atomar-se “história total”, a em todo o caso, não a absorvef Quando muito, pode-se pensar que"
reinar sobre todo o seu domínio virtual. Uma continuidade enga- certos fatos são mais importantes que outros, mas mesmo essa. ,
f nadora se estabelece, a nossos olhos, entre esses reinos sucessivosÍ importa-ncia depende, totalmente, dos criteri_os=_e_sco1hidos por ,cada
- donde a ficção de um gênero em evolução, cuja continuidade é his`to_riador e não tem uma grandeza absoluta“ÃpPor vezes, um hábil ç
assegurada pela própria palavra “história” (mas julga-se que a diretor de cena cria um vasto cenário: Lepanto, todo o século XVI, 4,
sociologia e a etnografia devem ser colocadas à parte) e pelo fato o Meditenâneo etemo e o deserto onde Alá é o único a existir; isso
l
I de a capital permanecer a mesma, ou seja,~a história política: con» é-ordenar, uma cenografia em profundidade e justapor, a maneira
I
tudo, atualmente, o papel de capital tende a passar para a história l de um artista bairoco, ritmos temporais diferentes, não éç seriar
_ social' ou para oque chamamos a civilização. , determ`inismosL. Mesmo que, para um leitor de Koyré, não fosse _
6 V ' - zé .- z ‹ l
, . Podemos, quando muito, constatar que 0 genero historico, que inconsistente e até absurda a idéia de que o nascimento da física no
H
i A tem variado muito no decorrer da sua evolução, tende, desde Vol-' século XVII pudesse ser explicado pelas necessidades técnicas da ,
taire,; a ampliar-se cada vez mais; como um no em regiao muito burguesia ascendentef' a história das ciências não desapareceria,
plana, expande-se amplamente e muda facilmente de cprsoš Os | por ser *explicada desse modo; de fato, quando um historiador in-
historiadores acabaram por e_¿i_¿i_r em doutrina essa espécie de im- l siste na dependência da história das ciências em relaçäo à história
perialismo; recorrem a uma metafora florestal e não fluvial; afir- social, é, na maioria das vezes, porque escreve uma história geral
mam, por palavras ou atos, que a¿iistó_ria,Çta1$_cpmor...« zzéea escrita
z-.¬-›-¬¬.›.:.zzu~em
›z«
de todo um período se porque obedece a uma regra retórica, que lhe _
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prescreve 0 estabelecimento de pontes entre os capítulos sobre a
,
resta'_gue
'f V_.; ;
lhes pertence, de direito
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por inteiro Na França, a Ecole
~-¬j¡;=;:":':-f›-;f;fƒa.':.';::.:...1 ciência e os relativos à sociedade. z z
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30 _ Paul Veyne ff Como se escreve a história 31

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f iii . .. démocrarique e que têm indicado, já no título, o critério escolhido
No entanto, permanece a impressao de que a Guerra de 1914
existem outros intitulados Le seizième síècle e cujo critério pe;-ma-
I a u ,

é, ainda assim, um acontecimento mais importante do que o incên-i .~.

ciel do Bazar da Caridade ou do que o caso Landru; a guerra é his- .peço tgçgo: mas ele iião deixa de existir e é igualmente subjetivo.
tória, o resto é notícia de fjomal. Isso não passa de ilusão, queÍ . Oicixo dessas histórias gerais foi, durante muito tempo, a história'
Hesulta de termos confundido ,o peso e a dimensão relativa de cadaÍ -z.li'É‹! política, mas hoje é, sobretudo, _Q__Qã0'fã¢luaiÉ;.§9QIl9BÊífl,._..§0Ci§l13'
¬i_1m desses acontecimentos?-o caso Landru fez menos mortos do ia . -de, Mas isso não resolvëi'ifas*ooišas.' Ó nosso historia- f'
X?-"“ i . . ~
que a guerra, mas será eledesproporcionado em relaçao a um por- doii" certamente, .raciocinará assim: para não desequilibrar a
.li
menor da diplomacia de Luís XV ou a uma crise ministerial da Ill exposição, falemos do que mais importava à maioria dos franceses
República? E que dizer do horror com que a Alemanha de Hitler sl -: no reinado de Henrique III; a história política já não tem miúiaí
sujou a face da humanidade ou do fait divers gigantesco consumí- Í» . z importância, pois a maior parte dos súditos do rei só se relacionava z
do por Auschwitz? O caso Landru é de primeira grandeza numa com po poder enquanto contribuintes ou criminosos; falaremos
história do crime. Mas essa história é menos importante do que
'âšrã principalmente, dos trabalhos e dos dias de Jacques Bonhomme; “
a história política, ocupa um lugar menor na vida da maioria das umírápido capítulo esboçará o quadro da vida cultural, e os histori-
il
pessoas? O mesmo se poderia dizer da filosoña e da ciência antes lã adores mais habilidosos falarão, principalmente, dos almanaques,
illl
do século XVIII; terá ela menos conseqüências nos tempos atuais?, tt da literatura popular e das quadras de Pibrac. E a religião? Lacuna
E a diplomacia de Luís XV terá mais?
zv-E
de grandes dimensões para o século XVI. Mas devemos dedicar-nos
gli/las falemos seriamente: se um gênio bom nos concedesse 0' a descrever as linhas médias da vida quotidiana .dessa época, ou os
i i.
af* seus pontos máximos de afetividade, que são, evidentemente, in-
poder de conhecer dez páginas do passado de uma civilização des-
conhecida até hoje, o que escolheríamos? Preferiríamos conhecer tensos e, ao mesmo tempo, breves? Melhor ainda, contaremos o
belos crimes ou saber a que se assemelhava essa sociedade, se às que o século XVI~teve de mediano ou, então, o que o diferencia do
«:
tribos da Melanésia ou à democracia britânica? Preferiríamos, evi- século que procedeu e do que se lhe seguiu?
dentemente, saber se seitratava de uma sociedade tribal ou demo-
crática. Só que acabamos, mais uma vez, de confundir a dimensão
e a importância relativa dos acontecimentos.” A história do crime é, A extensão da história
apenas, uma pequena parte (porém muito m_A_gg§1;1,i¿a nas mãos de
Ora, quanto mais se a1arga,_a nossos olhos, o horizonte factu-
um hábil historiador) da história social; do mesmo modo, a insti-
alpinais ele parece indefinidošfitudo o que compõe a vida quotidia-
tuição de emb_aix`adas permanentes, essa invenção dos venezianos,
noapcle todos os homens, *inclusive o que só um virtuoso do diál-ig,
é uma pequenaparte da históriapolítica. O que preferiríamos sa-
discerneria nela, tudo isso constitui, de direito, caça para o
ber, se anossa civilização desconhecida era democrática e não
historiador, pois em que outra região do ser que não na vidapquoti-
tribal? Ou, então,_se era industrial ou se encontrava, ainda, na ida-
de da pedra lascada? Certamente, as duas coisas; a menosquie FÍ_1ä,I1f1, dia após dia, poderia refletir-se a historicidade? O que não
significa, de, modo algum, que a história deva tornar-se história da
preferíssemos discutir se o político é mais importante do que o
Í vida quotidiana, que a história da diplomacia de Luís XIV deva ser
social e se férias na praia são melhores do que nas montanhas?
substituída pela descrição das emoções do povo parisiense por
Com certeza, apareceria um demógrafo proclamando que a demo-
ocasiãojdas recepções solenes do rei, que a história da tecnologia
grafia deve levar a palma. ' #1
É dos transportes deva ser substituída por uma fenomenologia do
â O que confunde as coisas é 0 gênero chamado história geral
äliolado de livros que se intitulam Classes dangereuses ou Histoire
Nome sob o qual se designava antigamente o camponês francês. (N. do T.) '
> ___ _ """"""""`_`_""""`“'”"”" '~^ .

32 W 'Paul Veyne , W Como se escreve a história 33

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espaço e seus mediadores; não, mas significa que um aconteci~ peste-.provocava uma tosse tao forte que não mais se rezavam
, -missascantadas. Ninguém morria-dela, mas era difícil curar-se.
mento só é conhecido __rnediante,indícios e que qualquer fato da
vida de todos os dias é indício ,de algumevento (quer esteja cata»
_ _V ~ Aqueieque se contentasse em sorrir diante dessas linhas nao
logado, quer durma, ainda, na floresta do não-factual). Essa é a
lição da historiografia desde Voltaire ou Burckhardt?*Ba1zac come-
fpode_ria,jamais~, tornar-se historiadorzgessas poucas linhas constitu-
çou fazendo concorrência ao registro civil, depois os historiadores
-~,-em'urnf'fato social total” digno de Mauss. Quem leu Pierre Gou-
bert reconhece, nelas, o estado demográfico normal das popuiações
fizeram concorrência a Balzac, que os havia censurado, no prefácio
Wpréàindusuiais, em que as endemias de verão eram, freqüentemen»
de 1842 à Comédia humaine, por negligenciarem a história dos
Vfítey substituídas por epidemias, e estranhava-se quando essas epi-
costumes. Inicialmente, repararam as lacunas mais gritantes, des-
demias não provocavam a morte do doente, e que eram aceitas
creveram os aspectos estatísticos da evolução demográfica e eco‹
nômica. Ao mesmo tempo, descobriam as mentalidades e os
com a leão com que hoje encaramos os acidentes de carro,
ainda que fossem a causa de um número ainda maior de mortes.
valores; que havia algo ainda mais interessante para ser feitodo
Quem leu Philippe Arriès reconhecerá, na gíria dessas crianças, os
que dar detalhes sobre a loucura na religião grega ou nas florestas
efeitos de um sistema de educação pré-rousseauniano (ora, para
da Idade Média: mostrar como as pessoas da época viam a floresta
quem. leu «Kardiner e crê que a personalidade de base...). Mas por
ou a loucura, pois não existe uma maneira própria de vê-las, cada
que mandar as crianças comprar, precisamente, vinho e mostarda?
época -tem a sua, e a experiência profissional provou que a descri-
Sem dúvida, os outros víveres não provinham de lojas, mas de
ção dessas visões ofereceria, ao pesquisador, matéria suficientemente
fazendas ou, então, eram preparados em casa (é o caso do pão) ou,
rica ze sutil, Dito isso, estamos ainda longe de saber conceptualizar
ainda, eram comprados, de manhã, em alguma feira; aí temos a
todas as pequenas percepções que compõem o vivido. No .lfoumal
economia, a cidade e seus hábitos, e as auréolas do economistavon
d'un 'bourgeois de Paris, .de março de 1414, lêem-se algumas li-A
Thünen... Ficaria, ainda, por estudar essa república dos meninos,
nhas tão idiossincráticas, que podem passar pela própria alegoria
que parece ter seus costumes, seus privilégios e suas brincadeiras.
da história universal:
Admiremos, ao menos, como Íilólogos, a forma característica de
Por essa época, à tarde, quando iam comprar vinho ou mostar- sua canção, com a repetição dos. versos e a zombariafeita com 0
da, as crianças cantavam: uso da segunda pessoa. Quem quer que se tenha interessado pelas
solidaiiedades, pelos pseudoparentescos e pelos parentescos de
_ Voltre c. n. a la toux, comrnère, brincadeira dos etnógrafos admirarã tudo o que há na palavra
Voltre c. n. ala toux, la toux. commère; quem quer que tenha lido van Gennep receberá bem o
sabor desse gracejo foiclórico. Os ieitores de Le Bras sentir~se-ão
em terreno conhecido com essas missas cantadas que servem de
[Sua b... está com tosse, comacire, medida para um acontecimento. Renunciemos a comentar esse “ar
Sua b... está com tosse, com tosse] t. A pestilento”, do ponto de vista da história da medicina, essas “cem
mil pessoas” na Paris da época dos Armagnacs, do ponto de vista
Com efeito, aconteceu que a vontade divina permitiu que -um ar da demografia e, também, da história da consciência demográfica,
pesttlento caísse sobre a terra fazendo com que mais de cem mil
enfim, essa “vontade divina” e esse sentimento de um ƒactum. Em
pessoas, em Paris, deixassem de beber, comer e dormir; essa
todo caso, uma história das civilizações em quenão estivessem
presentes todas essas riquezas mereceria seu título, se tivesse
' Na gíria' popular francesa, dizer-se que alguém está resfriado (ou, por extensão,
Toynbee como autor?
“com'tosse'~`) é uma referência a doenças venéreas. (N. do T.) V
.._.. ..._.._.....‹..a,»z.~.›.z .. __.z.
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|

34 Paul Ve)/ne Como se escreve a história 35

O abismo que separa a historiografia antiga, com sua estreita ditam totais, _sem se darem conta, enganam .o ..leitor,.sobre, sua_`m¿r_
ótica política, de nossa história econômica e social é enonne; mas "cädori~a, eu as 'filosofias da história sãoum nonsçnse que resulta da
não maior do que separa a história de hoje do que ela podera v1r a ilusão dogmática, ou melhor, seriam um.norzsèi¿tÉëÍ"`se.`nãöÍÍfoissem-,
ser amanhã. Uma boa maneira de perceber isso é tentar escrever qUflSei Sflllíäifei Vfiloisofias de umaV"hiS,tó1fia..d©,;..Í'_/çlen_t§eÀ__outras,' a
um romance histórico, assim como a melhor maneira de testar uma história nââirónaifi' “ ' ' ' ` ' ~ “
gramática descritiva é fazer com que ela seja empregada, de trás Tudo caminha bem enquanto nos contentamos em afirmar,
para diante, por uma máquina de traduzir. Nossa conceptualização com Santo Agostinhmque a a dirige os impérios e as
do passado é tão reduzida e sumária, que o romance histórico mais nações e que a conquista romana se conformava ao plano divino:
bem documentado soa inteiramente falso assim que os personagens então sabemos de que “história de...” se fala; tudo se desarranja
abrem a boca ou fazem um gesto; como poderia ser diferente, quandoa História deixa de ser história das nações e começa, pouco
quando não sabemos dizer' sequer onde está a diferença que senti- a pouco, a inchar com tudo o que chegamos a conceber do passa-
mos existir entre uma conversa francesa, inglesa ou americana, do. Dirigirá a Providência a história das civilizações? Mas o que
nem prever os sábios meandros de um papo entre camponeses quer dizer civilizações? Será que Deus dirige em flatus vocis? Não
provençais? Sentimos, pela atitude destes dois senhores que con- z
vemos por que o bicameralismo, o coitus interruptus, a mecânica
versam na rua e cujas palavrasnão ouvimos, que não são pai e das forças centrais, as contribuições-diretas, o fato de levantar-se
1
filho, nem estranhos um ao outro: provavelmente, sogro e genro; Í
i
ligeiramente nas pontas dospés quando se pronuncia uma frase
adivinhamos, vendo seu modo de andar, que aquele outro senhor sutil ou enêrgica (assim fazia M. Birotteau) e outros acontecimen-
acaba de entrar em suarprópriacasa, em uma igreja, em um local tos do século XIX devam evoluir segundo um mesmo ritmo; por
público ou em uma casa que não é a sua. Basta, entretanto, que que o fariam? E, se não o fazem, a impressão que nos dá o conti-
tomemos um avião e desembarquemos em Bombaim para não mais nuum histórico de dividir-se em um certo número de civilizações
podermos adivinhar essas coisas. O historiador tem, ainda, muito não é mais do que uma ilusão de ótica e seria tão interessante dis-
trabalho para fazer antes que possamos virar a ampulheta do tem- cutir-se sobre seu número quanto sobre o agrupamento das estrelas
po, e os tratados futuros serão, talvez, tão diferentes dos nossos em constelações.
quanto os nossos diferem dos de Froissart ou do Bréuiaire de Eu- Se a Providência dirige a História e se a História é uma totali-
trope. dade, então o plano divino é ipdiscernjvel; _ç¿t¿_i119____t9_§_%i1ida,de,____a
l
`l i¡Iis_t_óiji@....escapa-,nQ_s,_,e, como entrecruzamento de séries, ela é um
i caos semelhante à agitação de uma grande cidade vista de um avi-
A história é uma idéia-limite ão. O historiador não se sente muito ansioso em saber se essa agi-
Il
tação tende para alguma direção, se ela obedece a uma lei, se há
f a Isso pode serexpresso, igualmente, sob a seguinte forma: ~a
evolução. Efetivamente, é bem evidente que essa lei não sería a
äistória, com maiúscula, a do Discours sur I 'Histoire universelle,
i
|¡ chave do todo; descobrir que um trem se dirige para Orléans não
das Leçons sur laphilosophie de L'histoire e de A study in History,
resume nem explica tudo o que podem fazer os viajantes no interi-
nao existe: somente existe “história de...”. Um acontecimento só
or dos vagões. Se a lei da evolução não é uma chave mística, só
tem sentido dentro de uma série, o número de séries é indefinido,
pode ser um indicador, que permitiria a um observador originário
elas não se 'ordenam hierarquicamente e veremos que também não
de Sirius dizer a hora no mostrador da História e afirmar que de-
convergem para um geometral de todas as perspectivas. A idéia de
terminado instante histórico é posterior a um outro; quer seja essa
história é um limite inacessível ou, antes, uma idéia trgnsçendental.
.lei a racionalização, o progresso, a passagem do homogêneo ao
_NÊtÍo. se pode escrever essa História; as historiografias que se acre-

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Como se escreve a história , 37


36-- Paul Veyne

_de_nt{e elas _ possam, distinguir-se ,_por_ _sua,,fecundidad_e,, _por¿t_o


heterogêneo, o desenvolvimento técnico ou o das liberdades, ela
muito importante). Em vez disso, apresentam-nas como doutri-Í j
permitiria dizer que o século XX ioé posterior ao IV, mas não resu- nas ou como teorias, «afirmando que toda a história é ahisçtória
miria tudo 0 que se passou nesses séculos. O observador vindo de "dawlutaliidiasn classes, etc. Os historiadores clássicos, que se)
Sirius, tendo o conhecimento de que a liberdade de imprensa ou o popoetn, com razão, aiesse procedimento, expoem.-se, por outro'
número de automóveis é um indicador cronológico confiável, con- lado, aipcair em umçerro aindapmaior; visando à objetividade,
sideraria esse aspecto da realidade para datar o espetáculo do pla- sentem-se obrigados a evitar todo, ípuontoiidefvista.seletivo,Ímas,
neta Terra, mas isso não significa que os terráqueos não já que isso é impossível, adotam pontos de vista, sem perceber-
continuassem a fazer muitas outras coisas além de dirigir automó- em, geralmente, que o fazem. ` = .
veis e maldizer o govemo no dia-a-dia de suas vidas. O sentido da 1

evolução é um problema biológico, teológico, antropológico, soci- ' A todo momento, dão-se acontecimentos de toda espécie, e o
ológico ou parafísico, mas não histórico, pois o historiador não nosso mundo é o do vir a ser; é vãoucrer-se que alguns desses
aceita sacrificar a história a um só de- seus aspectos, ainda que esse acontecimentos teriam uma natureza particular, seriam “históricos”
aspecto seja significativo: tanto a física quanto, até mesmo, a ter- e constituiriam a História. Ora, a questão inicial que o historismo
modinâmica também não se reduzem a contemplação da entropiaf colocava era a seguinte: o que é que d_is_ti_ngue_ _u_m evento histórico
Ê*Então, se tão vasto problema não interessa §t_g__o historiador, o de um outro que nãoíe? (foiiibfllogio se tomou evidente que não era
que lhe interessa? Ouve-se, freqüentemente, essa pergunta, e a fácil fazer-sieieislsa distinção, que não se podia confiar na consciên-
fesposta,inão”e,' de modo algum, simples: op intepressedohistoriador cia-ingênua ou na consciência nacional para fazer a separação, mas z

df=P¢11<.1sf.ád9 .sstêdø da d9.<.=s.me,n1açã9› se šíÍiÍëíÍáfí5Ífëf¢rë`nÇiflS..pesáöâ que não seconseguia fazer melhor do que ela e que o objeto do i

ai'šÍde" uma idéipajique veioà mente,_doipediclo de um editor, de debate escapava por entre os dedos, o,historiSm0.. concluiu- que
quantai. coisa mais?"l\/las, se com essa pergunta se pretende saber História era ,subjetiva,`que ela era a projeção deinossos valores e a
pelo que deve um historiador interessar-se, então qualquer resposta resposta às perguntas que houvéssemos por, b,§I11,_f2tzer-lhe.
é impossível: concordaríamos em reservar o nobre nome de histó- É Ota» basta éëlfllifif que .tais éthi_SIé.fi.‹.=0, Para que esse problema
ria- a um incidente diplomático e em recusa-lo à história dos jogos se fitóri1Í:Íao'inesnid"tempo,_evidenteçe inofensivo; Sim, .fl história i

e esportes? É impossível fixar uma escala de importância que não não -ëísenãd respostas. as nossas indagações, porque não se pode,
seja subjetiva. Terminemos com uma página de Popper que expri- materialmente, fazer todas as perguntas, descrever todo o porvir, e
me as coisas com vigorzfi f ' _ porque o progresso do questionário histórico se coloca no tempo
e é tão lento quanto o progresso de qualquer ciência; sim, ahistória,
A A única maneira de resolver a dificuldade é, acredito, introdu- ép subjetiva, pois não se pode negar que a escolha de um assunto
zir, c nscientemente, um ponto de vista preconcebido de sele- para um livro de história seja livre? ®
çã‹›› ,¿>a,.!}.i§.EF.i£°Ê§1?3f?...,§s_›_rs1§;z.,fêzlâëmsntâ,_..as,,,,_..is.tsrrt¢tssõasnor
ffi° ;fl%-.›;-E P055f\'sL12£>£.¶¿aniQz.i11fi@mts@Ã._ã_.ÍÍ13i§tÉníÍ°°“3°
fiÍfiä¡fif.š¢¡5`f1ÍãÍš1ÃÍL1!Fë...Fíê§. _<.êl,=.*¬S..~°.›5=.,.â-. 21L£1,â}HEë,..ç!asL.r.aça§,...1>ršÍä'Íês-
pi*einaci4a,""ou como a história do progresso cientíiicopu _ind,u_s-_
tt'ial,;fl:odosÇ esses _pon_to`sp de, vistaf___š'ã`o mais V ou menos
iíííšrêšsafl.t¢s.ÍëÍšiíàúáat9 .P.9st9$. d‹âJ_iSffl,z. ,abS9.1.u.ta.1_1wnt@- irre-
ipreensíveis. Mas os historicistas não_o_s_apresentam como tais;

não" vêeniiique necessariamente, uma pluralidade de inter-
. 'pret7aç_õesÍfundamentalmente equivalentes (mesmo que algumas
6 .
Como se escreve a história 39

Notas fato histórico; no segundo caso, ou essa misteriosa força é conhecida pela
revelação (Santo Agostinho), e tentaremos o possível para reencontrar os
traços no detalhe dos acontecimentos, a menos que, mais sabiamente, se re-
nuncie a adivinhar os caminhos da Providência; ou bem (Spengler) o fato de
que aq história gira em círculos é curioso e inexplicado que descobrimos
olhando a própria história, mas então, em vez de entrar em transe, é conveni-
La pensée sauvage, Plon, 1962, pp. 340-348; citamos livremente essas pági- ente expl.ica.r essa estranha descoberta, ver quais as causas concretas que fa-
nas sem assinalar os cones. Zern com que a humanidade gire em círculos; talvez não se encontre essas
causas: aí, a descoberta de Spengler será um problema histórico, uma página
ll Para ilustrar certas confusões, citemos essas linhas de A. 'Toynbeez "Não
estou convencido de que se deva conceder uma espécie de privilégio à histó-
de historiogratia inacabada.
Voltemos às filosofias da história que, como Kant, constatam que, no
,I
ria política. Sei que existe aí um difundido preconceito; é um traço comum à conjunto, o movimento da humanidade segue ou tem tendência a seguir tal
historiografiachinesa e à grega. Mas é inaplicável à história das Índias, por ou tal caminho c que esta orientação é devida a causas concretas. Essa se-
exemplo. As lndias têm uma grande história, mas é a da religião e da arte, melhante constatação só rem significação empírica: 6 como se substituísse,
não é de modo algum uma história política (L'hisroire et ses interprétarians, de repente, o conhecimento parcial da Terra e dos continentes por um pianis-
entreriens autour d 'Arnold Toynbee, Mouton, 1961, p. 196). Estamos diante fério completo em que o Contorno dos continentes nos aparecesse na sua to-
de imagens ingênuas nos templos indianos; como se poderia julgar não talidade. Saber qual a forma geral do continente por inteiro não nos levaria,
grande uma história política que, na India, por falta de documentos, é quase certamente, a modificar a descrição que tínhamos feito da parte conhecida;
desconhecida, e principalmente o que quer dizer “grande”? A leitura de do mesmo modo, saber qual será o futuro da humanidade não nos fará mudar
Kautilya, esse Maquiavel da India, faz ver as coisas de outra maneira. . nossa maneira de escrever a história do passado. E isso não nos traz nenhu-
ma revelação filosóñca. As grandes linhas da história da humanidade não
Por exemplo, a história das artes, em Histoire naturelle de Plínio, o Antigo. têm valor especialmente didático; se a humanidade vai mais ou menos no
l sentido de um progresso técnico, não é talvez porque essa é sua missão; isso
l A. Koyré¡ Êtudes d'hi.rtoire da la pensée scientiƒique, pp. 61,-148,, 260, n. 1, pode ser devido a banais fenômenos de imitação, de “bola de neve”, ao aca-
352 ss.; Etudes newroniennes, p. 29; cf. Êtudes d"h|'stoire de la pensée philo- so de uma corrente de Markov ou de um processo epidêmico. O conheci-
sophique, p. 307. 7 I mento do futuro da humanidade não tem nenhum interesse próprio: ele se
voltaria para o estudo dos mecanismos da causalidade histórica; a filosofia
P¿_§losofia da hisgória é hoje um gênero morto, ou pelo menos só sobrevive | da história se voltaria para a metodologia da história. Por exemplo, a “lei”
entre epígonos de sabor bastante popular, como Spenglcr. Pois e_r¿\Mun1Wg_êne- dos três estados de Comte volta-se para a questão de saber por que a huma-
romfalqoz a menos que seja uma filosofia revelada, uma filosofia da" história nidade atravessa três estados. É o que fez.Kant, cuja lúcida filosofia da his-
fará duplo emprego com a explicação concreta dos fatos e se voltará para os tória se apresenta como -uma escolha e segue para uma explicação concreta.
mecanismos e leis que explicam esses fatos. Somente os dois extremos são Ele não esconde, com efeito, que o projeto de uma história filosófica da es-
viáveis: o providencialismo da Cidade de Deus,¿a epistemologia histórica; pécie humana não consistirá em escrever filosoficarnente toda a história, mas
todo o resto é_ bastardo. Suponhamos, com efeito,.que estamos em condição em escrever afparte dessa história que entra na perspectivaescolhida, a dos
de afirmar que o movimento geral da história se dirige para o reinode Deus progressos da liberdade. Ele tem o cuidado de procurar que razões concretas
(Santo Agostinho) ou que ele é fonnado de ciclos das estações que reapare- fazem com que a humanidade se dirija para esse fim: é, por exemplo, que,
cem numa etema volta (Spengler), ou que é conforme uma “lei” _ de fato, mesmo quando existem retornos momentâncos de barbaria, pelo menos um
em uma constatação empírica _ dos três estados (A. Comte); ou ainda que, “gérmen de luz” é transmitido às gerações futuras, e que 0 homem é feito de
“considerando o jogo da liberdade, se descobriria um curso regular, um des- tal sorte que é um bom terreno para o desenvolvimento desses germens;
envolvimento contínuo" que leva a humanidade a viver livre sob uma Cons- E esse futuro da humanidade, se ele é possível e provável, não É absoluta-
tituição perfeita (Kant). De duas uma, ou bem este movimento é a simples mente certo; Kant quer escrever sua História filosófica para trabalhar em fa-
resultante das forças que conduz a história, ou então é causado por uma vor desse futuro, para tornar sua vinda mais provável.
misteriosa força exterior. Noprimeiro caso, a filosofia da história faz duplo
emprego com ahistoriografia, ou melhor, ela é somente uma constatação K. Popper, Misère de l'historíci.rme, trad. Rousseau, Plon, 1956, pp. 148-
Ii
'L
histórica em grande escala, um fato que pede para ser explicado como todo 150.

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