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Nelson Rodrigues

F E ST A D E C A B E Ç A S
CO RTADAS
Graças ao Dumas pai, eu e o José Lino Grünewald somos
íntimos da Revolução Francesa. Falo da primeira, da autêntica e não
da atual. A atual tem um defeito indesculpável: — falta-lhe sangue e,
repito, o sangue não jorra como a água dos tritões de chafariz. E,
como não há marias antonietas, nem cabeças cortadas, o mundo já
boceja.
Sim, é o tédio antes do Terror (e talvez não haja nem o
Terror).
Eu e o José Lino Grünewald, com base em nossa experiência
de Dumas pai, diríamos que a atual revolução francesa não tem nada
de Revolução Francesa. Ainda ontem, Raul Brandão, o pintor, bateu
o telefone para mim: — “Como a greve é chata!”. Dava uma opinião
pictórica. E, realmente, só tem valor plástico a greve metralhada,
com operários emborcados na sarjeta. Mas nada mais insípido do
que a greve consentida, abençoada, unânime. Imaginem, imaginem:
— a própria polícia é grevista também.
Eu e o José Lino poderíamos sugerir ao público: — “Não
leiam os jornais. Leiam o velho Dumas”. Falta ao noticiário atual o
frêmito, a tensão, a crueldade das Memórias de um médico.
Portanto, entendo o comentário restritivo do Raul Brandão: —
“Como é chata a greve!”.
Todavia, alguma coisa salva a “revolução cultural” da
monotonia irremediável. É um certo suspense, é um certo mistério.
A França parou. Primeiro, os estudantes e, depois, o resto. Nunca
houve tamanha greve. Até os papa-defuntos, até os coveiros,
cruzaram os braços. Ninguém morre, por falta de quem o enterre.
Mas eis a pergunta que o mundo faz, sem lhe achar a
resposta: — “Por quê?”. Os artigos sobre as greves não explicam
nada e por uma razão óbvia: — o inexplicável é inexplicável. A

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princípio, imaginei que os grevistas quisessem o poder. São milhões
e milhões. Portanto, os grevistas têm o que eu chamaria de
onipotência numérica. Não há o que objetar, o que discutir, o que
resistir. São milhões e eu imaginei que a história lhes daria o poder
imediato.
Engano. Os dez ou 12 milhões de franceses não querem o
poder. Vocês entendem? O poder está, diante deles, como um fruto
próximo, fácil, indefeso; basta o gesto de colhê-lo. Mas ninguém se
dispõe a tal gesto. E nem há, ao menos, o vago, surdo, informulado
desejo do poder. A presente “revolução cultural” corre o risco de ser
um movimento idiota. Dirá alguém que as greves assumem uma
dimensão de catástrofe. Mas insisto: — pode haver a catástrofe
idiota.
Sem querer, deixei escapar a palavra exata: — idiota.
Há quinze ou vinte dias atrás, escrevi sobre o grande tema de
nossa época. Não sei se vocês se lembram. Falei da ascensão do
idiota. No passado, eram os “melhores” que faziam os usos, os
costumes, os valores, as idéias, os sentimentos etc. etc. Perguntará
alguém: — “E que fazia o idiota?”. Resposta: — fazia filhos.
Mas vejam: — o idiota como tal se comportava. Na rua,
passava rente às paredes, gaguejante de humildade. Sabia-se idiota e
estava ciente da própria inépcia. Só os “melhores” sentiam,
pensavam, e só eles tinham as grandes esposas, as grandes amantes,
as grandes residências. E, quando um deles morria, logo os idiotas
tratavam de erguer um monumento ao gênio.
E, de repente, tudo mudou. Após milênios de passividade
abjeta, o idiota descobriu a própria superioridade numérica.
Começaram a aparecer as multidões jamais concebidas. Eram eles,
os idiotas. Os “melhores” se juntavam em pequenas minorias

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acuadas, batidas, apavoradas. O imbecil, que falava baixinho, ergueu
a voz; ele, que apenas fazia filhos, começou a pensar. Pela primeira
vez, o idiota é artista plástico, é sociólogo, é cientista, é romancista, é
prêmio Nobel, é dramaturgo, é professor, é sacerdote. Aprende,
sabe, ensina.
No presente mundo ninguém faz nada, ninguém é nada, sem
o apoio dos cretinos de ambos os sexos. Sem esse apoio, o sujeito
não existe, simplesmente não existe. E, para sobreviver, o
intelectual, o santo ou herói precisa imitar o idiota. O próprio líder
deixou de ser uma seleção. Hoje, os cretinos preferem a liderança de
outro cretino.
Escrevi tudo isso há uns quinze dias. Ou por outra: — há um
mês, mês e meio. E, súbito, as greves da França parecem dar razão
aos meus escritos. Eu queria, aqui, insinuar a hipótese de que a
“revolução cultural” seja obra de idiotas. São milhões de sujeitos
implicados no movimento. Mas não há um único e escasso líder; não
se ouve um nome.
Aí está um dado patético. Não há nada mais impessoal do que
o idiota e nada mais idiota do que a unanimidade. E os milhões
exprimem a “onipotência numérica” de que falei mais acima.
De Gaulle tem, nisso tudo, a solidão do herói. Sua liderança
foi um equívoco que teria de ser desfeito. É o herói puro e, ainda
mais, com esporas e penacho. Diria também que não há francês mais
radical. Foi francês no momento em que ninguém era francês. Mas
tem o defeito realmente indesculpável de não ser idiota. Terá que
cair, mais cedo ou mais tarde.
Mas devo fazer uma ressalva. E, de fato, o idiota francês não
será nunca trivial. Tem, a seu favor, a língua. A lavadeira parisiense é
uma estilista; fala como uma heroína de Racine. E o chofer de táxi

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descompõe os turistas com o rigor, a melodia, a plasticidade da
prosa francesa. Em tal idioma, a pior vulgaridade está a um
milímetro do sublime.
Nos telegramas, não se cita um grande nome da França.
Minto. Vi uma fotografia de Sartre ao lado de grevistas.
Estava, ali, fingindo-se de idiota para sobreviver.

[O GLOBO, 24/5/1968]

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