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INTRODUÇÃO

Pacaraína, Brasil, setembro de 2018. Cerca de 1,200 venezuelanos e


venezuelanas voltaram a cruzar a fronteira para deixar o Brasil após serem vítimas de
ataques de brasileiros. Os acampamentos improvisados em que estavam foram
queimados, assim como bens materiais e mantimentos que os imigrantes tinham
consigo. O tumulto começou, segundo as autoridades, quando um comerciante
brasileiro foi assaltado na região e o suspeito era um imigrante, resultando no protesto
de moradores brasileiros contra a presença dos estrangeiros e em ataques aos
acampamentos como retaliação.
A cidade é uma das principais portas de entrada de imigrantes para o Brasil,
sendo uma cidade fronteiriça a menos de 215 quilômetros da capital de Roraima, Boa
Vista. A maioria dos venezuelanos que estavam em Pacaraína se encontravam à
espera de atendimento para dar início ao pedido de refúgio no país. Segundo dados da
Polícia Federal, o Brasil recebeu pouco menos de 17 mil pedidos de refúgio entre
janeiro e junho de 2018. Desta soma, 97% dos pedidos realizados foram de
venezuelanos, sendo um número 20% maior do que registrado no ano anterior.
Após o ocorrido em Pacaraína, nas redes sociais foi possível ver comentários de
brasileiros em apoio a expulsão dos imigrantes do território nacional. Se a acolhida aos
imigrantes no Brasil já não é calorosa, esse acolhimento é quase inexistente quando
estamos falando de mulheres imigrantes. Segundo a antropóloga, historiadora e ativista
cubana Maria Ileana Aguaga, “Mais difícil do que ser um refugiado, é ser uma
refugiada. Sim, passamos mais dificuldades. Tem muitas mulheres que solicitam
refúgio e que têm crianças, estão grávidas, ou que chegam com crianças e grávidas.”
Solicitante de refúgio desde 2014, hoje Maria vive no Brasil, após aguardar por dois
anos para obter uma resposta ao pedido. Impossibilitada de voltar ao seu país de
origem, a imigrante trabalha como professora e participa do projeto Vidas Refugiadas,
divulgando sua história e ajudando outras mulheres refugiadas.
As discussões acerca dos fluxos migratórios vem crescendo nos últimos anos,
com o aumento das migrações forçadas ao redor do mundo torna necessário entender
esse fenômeno na sua totalidade e com lentes diferentes das que temos usado até
então. Para tornar essa análise um pouco mais rica e plural, escolhi usar as
abordagens feministas para entender deslocamentos internacionais nas últimas três
décadas, que é quando avançamos com Políticas domésticas brasileiras para
refugiados e começamos a debater gênero dentro das políticas da Organização das
Nações Unidas. Conseguimos entender a importância dessas lentes nas Relações
Internacionais pois essas abordagens trazem de novo a “integração entre consciência
intelectual analítica de uma categoria empírica – a mulher – com a consecução de uma
longa jornada de atividade política, que visava se referir a uma declarada necessidade
de transformar intensamente a concepção do papel histórico desse objeto e sujeito de
estudos” (COSTA, 2009, p. 207).
Esse trabalho se propõe a analisar o processo de refúgio a partir de lentes
feministas, procurando desmistificar a visão androcêntrica do tema e entender se
existem leis de proteção às mulheres refugiadas, que são a parcela mais frágil dos
imigrantes, se essas leis são suficientes para protegê-las e como esse fenômeno se
apresenta no Brasil. No primeiro capítulo, irei apresentar brevemente o cenário da crise
imigratória mundial e debater por que é tão importante a discussão do tema
atualmente, explicando por que devemos nos voltar para as mulheres como forma de
análise.
No segundo capítulo, abordarei a criação da ACNUR (Agência da ONU para
Refugiados) e suas contribuições para a defesa dos direitos humanos dentro das
migrações forçadas, bem como analisar a definição de refugiado segundo ACNUR e
por que essa definição é insuficiente para proteger às mulheres refugiadas. Também
vou expor os esforços realizados pela ONU através das Políticas voltadas para
Mulheres Refugiadas e entender se elas estão sendo realmente efetivas. Neste
capítulo também aproveito para revisitar o conceito tradicional de segurança nas
Relações Internacionais e discutir como as abordagens feministas nos dão um novo
fôlego para compreender as migrações do século XXI.
Por fim, no último capítulo, analisarei como os instrumentos jurídicos para
proteção de refugiados criados pela ONU repercutiram no Brasil, e suas influências na
criação da lei brasileira que, mesmo sendo considerada uma referência e um conjunto
de leis mais avançados no tema, também são falhas em proteger as mulheres em
situações de risco. Também neste capítulo apresentarei alguns desafios que o Brasil
ainda precisa enfrentar para alcançar uma maior igualdade de gênero dentro das
migrações forçadas.
CAPÍTULO 1 - O fenômeno migratório e o processo de refúgio

1.1 O crescimento do fenômeno migratório e por que isso é tão importante

No começo, era busca por alimento: quando a comida acabava, havia um


deslocamento para procurar um novo lugar. Este, com mais alimentos, mais segurança
e maior abundância de matérias primas necessárias para a sobrevivência humana. A
comida, então, acabaria novamente, levando o homem a migrar em busca de
recomeço.
Desde que o homem existe, ele migra procurando melhores condições de
sobrevivência. A mobilidade geográfica é um fenômeno tão antigo quanto a própria
história e inerente à existência humana, acontecendo em maior ou menor grau ao
longo dos anos (Richmond 1994).
Segundo Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto (*),
“A pesquisa histórica identifica que regras bem definidas para refúgio já existiam
na Grécia antiga, em Roma, Egito e Mesopotâmia. Naquela época, o refúgio era
marcado pelo caráter religioso, em geral concedido nos templos e por motivo de
perseguição religiosa. As pessoas entravam nesses lugares sagrados e seus
perseguidores, os governos e exércitos não podiam entrar. O respeito e o temor aos
templos e divindades faziam dos locais sagrados o refúgio contra violências e
perseguições. No entanto, o refúgio na Antiguidade beneficiava, em geral, os
criminosos comuns, numa inversão do que acontece no quadro atual, pois a proteção a
dissidentes políticos constituía ato de afronta entre nações que poderia gerar guerra.”
Apesar das reflexões sobre deslocamentos geográficos não serem recentes, os
primeiros debates tratados por sociólogos clássicos estavam mais preocupados em
descrever os sintomas do capitalismo e da industrialização da sociedade, apontando as
migrações como simples resultado desses processos. (Richmond, 1988).
Um dos primeiros teóricos a elaborar uma teoria para o fenômeno migratório foi
o economista britânico Thomas Malthus, ao tentar explicar o aumento populacional.
Para Malthus, os deslocamentos pelo globo são resultado da superpopulação: após
esgotados os recursos do país de origem, grupos que viviam na miséria partem em
busca de uma nova vida em países mais financeiramente atraentes.
Anos mais tarde Karl Marx também abordou o tema das migrações, dessa vez
como um resultado direto da naturalização da pobreza e aumento da desigualdade
social, fazendo com que as pessoas precisassem procurar novos subterfúgios para
sobreviver.
As migrações foram retratadas por muitos anos como fenômenos que podem ser
explicados focando exclusivamente na esfera econômica como principal gatilho para o
deslocamento geográfico. Segundo Parker, "embora a tentativa de buscar uma vida
economicamente melhor esteja quase sempre presente como motivação na migração e
movimento, outras questões podem estar envolvidas" (PARKER: 2002, p 246).
O debate acerca do tema de deslocamento e migrações vem crescendo
exponencialmente nas últimas décadas, o que pode ser explicado por dois fatores. O
primeiro fator é o aumento dos movimentos migratórios forçados como um todo. De
acordo com o Relatório de Migração Internacional de 2017, publicado pela ONU:
"Até o final de 2016, 65,6 milhões de pessoas foram deslocadas à força em todo
o mundo como resultado de perseguição, conflito, violência ou violações de direitos
humanos. Isso foi um aumento de 300.000 pessoas em relação ao ano anterior, e a
população deslocada à força permaneceu em um nível recorde." (ONU, 2017)
Segundo o mesmo relatório, o número de pessoas refugiadas ou deslocadas no
mundo cresceu 233% entre 2006 e 2016, como é possível ver no gráfico abaixo:

Dados: ACNUR, 2016a


Olhando por uma escala temporal, segundo o mesmo relatório da ONU, o
número de imigrantes cresceu 41% entre 2000 e 2015 e continuará aumentando em
ritmos alarmantes nos próximos anos. Essa intensificação no fluxo migratório
representa uma grande preocupação para as autoridades, principalmente as de países
receptores, que precisariam receber uma grande quantidade de pessoas fugindo da
sua terra natal.
O segundo fator é a intensificação em deslocamentos geográficos forçados
causados por crises humanitárias, resultados da combinação dos mais diversos
fatores. Nas últimas décadas, descobrimos que fenômenos eventuais e imprevisíveis,
como desastres ambientais, podem ameaçar a sobrevivência de uma população inteira
e criar um novo fluxo de imigração, como foi o caso do Haiti em 2010.
Atingido por um terremoto de magnitude catastrófica para o país, o Haiti já vinha
sofrendo restrições econômicas impostas por outros países, resultando na difícil
recuperação após o abalo sísmico. A Cruz Vermelha estimou cerca de 3 milhões de
pessoas afetadas pelo terremoto e as aproximações feitas pelo do Governo do Haiti
falaram em mais de 250 mil residências e 30 mil edifícios comerciais, levando o país ao
caos em poucos dias.
“Estimamos que 158.679 pessoas em Port-au-Prince (95% dos moradores da
cidade) morreram durante o terremoto ou no período de seis semanas depois devido a
ferimentos ou doença. As crianças estavam particularmente em risco de morte. Nas
seis semanas após o terremoto, 10.813 pessoas foram agredidas sexualmente, a
grande maioria das quais eram do sexo feminino. No mesmo período, 4.645 indivíduos
foram agredidos fisicamente. De todas as famílias, 18,6 por cento estavam passando
por insegurança alimentar grave seis semanas após o terremoto. 24,4% por cento das
casas dos entrevistados foram completamente destruídos.” (KOLBE, 2010)
Num clima de incerteza e insegurança, milhares de haitianos e haitianas
deixaram seu país de origem em busca de um recomeço além das fronteiras e o Brasil
foi um dos principais destinos desse fluxo migratório. Segundo estimativas do ACNUR
(2015), o número total dos imigrantes em condições de refúgio foi de 33.097 em 2010
para 73.094 em 2015 nos países vizinhos. No Brasil, esse número saltou de 7 pessoas
em 2009 para 595 em 2010 e, em 2014, 29.241 refugiados.
Assim como o caso haitiano, existem diversos fluxos migratórios nascendo e se
intensificando em níveis recordes nas últimas décadas. Ainda sim, existem poucos
esforços em refletir sobre o problema e não atrelá-lo somente a um fator econômico.
De acordo com Teixeira,
"Tradicionalmente, os estudos migratórios partem de pressupostos
heterossexistas e genéricos: os migrantes são tratados como uma massa universal de
sujeitos heterossexualidos e sem distinções de gênero, que migram apenas por
questões econômicas". (TEIXEIRA, 2015, p.25)
Diferentemente de como enxergávamos a questão imigratória e o processo de
pedido de refúgio há décadas atrás, é preciso entender as novas motivações e se as
leis em vigor estão preparadas para lidar e proteger essa população e a parcela mais
frágil dentro dela.
"Uma vez fora do país de origem,(os refugiados) permaneciam sem lar; quando
deixavam seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos
humanos, perdiam todos os direitos". (ARENDT, 1998, pág 300)
1.2 Quem são os refugiados e por que devemos olhar para as mulheres

As mulheres constituem uma boa parcela da população imigrante. Num estudo


pioneiro feito em 1995, levantado pela pesquisadora e fundadora do Programa de
Imigração e Refugiados da Escola de Direito de Harvard, Deborah Anker, mulheres e
crianças representam cerca de 80% em toda a população em situação de refúgio. Essa
estimativa é diferente da divulgada pelo relatório realizado pela UNHCR que, publicado
no mesmo ano, apontou que as mulheres representam em média, 50% os refugiados
registrados no mundo.
As estatísticas demográficas acerca dos refugiados tendem a ser contraditórias
quando examinamos diversos tipos de fontes, principalmente quando olhamos para
gênero. Essa falta de consenso entre dados é preocupante, pois significa que os
relatórios podem não estar enxergando o objeto de estudo na sua totalidade ou com a
profundidade que deveria. Essa dificuldade de mapear os refugiados impacta
diretamente na criação de políticas para ajudar e resolver o problema. Quando não
conseguimos mapear essas pessoas e suas motivações de imigrar, elas se tornam
invisíveis e incapazes de serem ajudadas pelo governo e organizações da ONU.
Apesar de constituírem pelo menos metade de toda a população refugiada ao
redor do mundo (UNHCR, 2017), os estudos relacionando gênero ao fenômeno de
imigrações forçadas e refúgio são bem recentes. Os primeiros estudos apresentando
problemas sobre o tema migrações forçadas e refúgio com recorte de gênero foram
feitos há pelo menos três décadas, mas foi só a partir dos anos 90 que os estudos
começaram a ganhar mais fôlego explicativo. Os estudos feministas de migrações
começaram com feministas criticando a ausência das relações de gênero nos modelos
que tentaram teorizar as migrações internacionais, principalmente na Europa.
A importância do tema ser analisado por essas lentes é grande, uma vez que
olhando por elas entenderemos melhor o fenômeno como um todo. Segundo
Morokvasic "Durante muito tempo, prevaleceu uma visão androcêntrica nas ciências
sociais em geral: nos estudos migratórios, a suposição de que o migrante internacional
é um jovem economicamente motivado, sua experiência assumida representativa de
todos os migrantes independentemente de seu gênero, ofuscou a diversidade da
migração. Córregos, incluindo aqueles em que as mulheres superavam os homens."
(Morokvasic, 1984: 898)
A visão androcêntrica do mundo é largamente utilizada para descrever
processos e fenômenos nas Relações Internacionais e, nos processos de refúgio e
migrações forçadas não seria diferente. Segundo Nahla Valji,
“Embora se saiba que a maioria dos refugiados são mulheres, como regra geral, as
mulheres refugiadas não receberam nada como a proteção oferecida aos refugiados
em países receptores de refugiados em todo o mundo, particularmente no mundo
desenvolvido. Até a última década, os refugiados eram considerados homens quase
que automaticamente, mulheres e crianças refugiadas eram reconhecidas apenas
como parte de um “pacote familiar”.”
Essa falta de reconhecimento das mulheres como pessoas que racionalmente
migram, sozinhas ou acompanhadas, faz com que os estudos não as levem em
consideração.
As mulheres, talvez, sejam a parcela mais frágil, invisível e vulnerável da
população. Oriundas muitas vezes de guerras civis, perseguições, regiões de conflito e
violências, essas mulheres sentiram na pele violações dos direitos humanos. Com uma
boa parcela delas sendo viúvas, elas tiveram seus parceiros mortos e agora migram
para poderem sobreviver. Carregando os seus filhos e, muitas vezes, grávidas, essas
mulheres podem ter sido vítimas de abusos sexuais, tanto no país de origem como no
percurso. Elas perderam suas casas, deixaram suas famílias para trás e estão, na
maioria das vezes, sozinhas. Além de passarem por traumas na saída do país e no
percurso, essas mulheres dificilmente receberão apoio no país receptor.
Quando tentamos enxergar essas mulheres, descobrimos que elas são as
pessoas que mais sofrem no processo. Segundo Lopes,
"há, portanto, um rosto feminino do direito e haverá um rosto feminino, mas não há
direitos diferentes, na minha opinião, para homens e mulheres; a maior parte dos
pobres do mundo são mulheres; a maior parte dos analfabetos são mulheres; a maior
parte dos crimes sexuais são praticados contra mulheres; as mulheres e jovens são a
maior parte das pessoas traficadas e exploradas sexualmente; quem mais sofre as
consequências da falta de assistência e de cuidados na saúde sexual e reprodutiva são
as mulheres e as adolescentes e, por fim, a maior parte dos refugiados e deslocados
em situação de guerra e conflitos armados, externos e internos, são as mulheres e as
crianças. (Lopes 2005:162).
Diante de uma grande crise de refugiado no mundo, é preciso entender o seu
fenômeno na sua completude. Este trabalho tem o objetivo de desconstruir um pouco a
visão androcêntrica dos deslocamentos forçados no mundo. Colocando as mulheres
como foco do estudo, entendemos como a migração forçada afeta a porcentagem mais
vulnerável da população. De acordo com Kofman, "As mulheres migram por uma série
de razões, como a pobreza, o deslocamento da terra, a dívida e muitas outras
restrições externas sobre as quais têm pouco controle. Esses problemas são
compartilhados com os homens, embora seu impacto seja sempre de gênero."
(KOFMAN,2000, p.)
Ao utilizar lentes feministas das Relações Internacionais no fenômeno dos fluxos
migratórios forçados, estamos dando visibilidade à parcela mais frágil da população
refugiada e também entendendo se ela está protegida através das leis vigentes.
No próximo capítulo irei analisar a definição de refúgio da ACNUR e o
documento oficial da Convenção de 1951 de Geneva para Refúgio, que são os maiores
instrumentos legais usados internacionalmente pelos países signatários da ONU. O
objetivo dessa análise é entender se essa definição também inclui e auxilia as
mulheres. Além disso, usarei as lentes feministas para compreender se os esforços
realizados pela ONU através das Políticas voltadas para Mulheres Refugiadas feitas
pela ACNUR são efetivas no combate ao problema das migrações forçadas.

CAPÍTULO 2 - Combate à desigualdade de gênero

2.1 A criação do ACNUR e as definições de refúgio

Durante a segunda Guerra Mundial, tivemos uma das maiores ondas de


migrações forçadas já vistas na história. Centenas de milhares de pessoas foram
expulsas de suas casas e seu país de origem devido aos conflitos e perseguições e, na
maioria das vezes, cometidas pelo próprio Estado, como o caso da fuga dos judeus da
Alemanha nazista. Segundo Paiva,
“O número de refugiados durante a II Guerra Mundial, tanto na Europa quanto
no Oriente, é bastante controverso. As cifras geralmente variam entre oito milhões até
70 milhões, dependendo da fonte consultada. De qualquer forma houve, durante este
conflito, deslocamentos em massa de populações que fugiam do avanço nazista e, ao
mesmo tempo, um deslocamento forçado, para fazendas e fábricas, que utilizavam
pessoas para o trabalho escravo ou sua colocação em campos de concentração.”
Deste número de migrantes, uma grande parcela não estava disposta a voltar ao
país de origem, muitas vezes destruído após o conflito. Diante dessa crise migratória
no pós Guerra, era necessário um consenso entre os Estados para tomar uma medida
conjunta para resolver o problema da população deslocada. Foi sob essa questão que
foi estabelecida a Convenção Relativa ao Status de Refugiado de 1951, com o objetivo
de resolver de uma maneira permanente no pós guerra, em vez de dar solução a casos
específicos. Dessa Convenção nasceu o Protocolo Relativo ao Status de Refugiado,
que definiu refugiado como:
"Resultado de eventos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e devido a
medo de ser perseguido por razões de raça, religião, nacionalidade, pertencer a um
determinado grupo social ou opinião política, está fora país de sua nacionalidade e é
incapaz ou, devido a esse medo, não está disposto a valer-se da proteção desse país;
ou quem, não ter nacionalidade e estar fora do país de sua antiga residência habitual
como resultado de tais eventos, é incapaz ou, devido a medo, não está disposto a
voltar a ele."
O Protocolo de 51 apresentou um grande passo para regularização de milhares
de pessoas que estavam em situação ilegal e precária vivendo em outro país que não o
de origem. Contudo, a definição se mostrou muito restrita pois, como os Estados
acabaram percebendo, o problema de pessoas que migravam obrigatoriamente fugindo
da violação de direitos humanos e perseguições não terminou com a Segunda Guerra
Mundial. Nesse contexto, foi necessário elaborar outra Convenção para se chegar num
acordo interpaíses de como lidar com a questão.
Assim nasceu a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos
Refugiados e o Protocolo de 1967, que até hoje constitui um dos maiores instrumentos
jurídicos para tratar do tema de migrações forçadas no mundo, representando um
marco legal em muitos Estados signatários.
O Protocolo estabeleceu três tipos de provisões: entrou em consenso sobre
quem poderia se encaixar no status de refugiado; criou um estatuto legal dos
refugiados, seus direitos e deveres em seu país de refúgio e, por fim, a criou o
Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados como órgão para
auxiliar a implementar os instrumentos jurídicos e diplomáticos.
A criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR) foi fundamental para a aplicação dos instrumentos jurídicos e supervisão dos
mesmos. Adotado a partir do Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados, o ACNUR
foi apresentado na Convenção das Nações Unidas e assinado pelo ​Presidente da
Assembleia Geral no dia 31 de janeiro de 1967, Entrou em vigor meses depois, em
outubro de 1967, já ratificado pelos Estados membros da Organização das Nações
Unidas. ​Criado para “oferecer proteção e assistência às pessoas sob o seu mandato de
forma imparcial, com base nas suas necessidades e sem distinção de raça, sexo,
religião ou opinião política“. O ACNUR hoje atua em 130 países e é composto por
cerca de 10 mil funcionários.
O Protocolo de 67 funcionou como uma lei "guarda-chuva" para todas as leis
sobre refúgio em todos os países que ratificaram o documento, apresentando um
grande salto no tratamento do tema das migrações forçadas: pela primeira vez Estados
chegaram a um consenso que estabeleceu uma definição geral do termo “refugiado”,
bem como direitos e deveres entre refugiados e Estado que o concede abrigo. Usada
desde 1967 e que permaneceu inalterada por quase 60 anos, a definição de refugiado
segundo o Protocolo e a ACNUR é:
"pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de
perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a
um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e
generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados."
Como um bom fruto da Segunda Guerra Mundial, a definição de refugiado da
ACNUR é bem fundada no tocante ao temor de perseguições, refletindo a diáspora
judia durante os anos da Guerra. Apesar de ampla, essa definição não apresenta
clareza quanto ao que constitui uma perseguição, quais seriam os motivos da
perseguição, além de excluir alguns tipos de perseguições.
Para mulheres, reivindicar o refúgio em um país pode ser um processo perigoso.
Além de se arriscarem mais do que indivíduos do gênero masculino na travessia entre
seu país de origem e o receptor, para receberem o status de refugiadas elas precisam
provar que estavam sofrendo perseguições na terra natal. Em casos de fuga por
transgressão de leis ou costumes da sociedade, muitas mulheres se sentem inseguras
para reivindicarem seus direitos com medo de sofrer represálias no país receptor.
Quando falamos de gênero, a definição do ACNUR é bem escassa. Ela não cita
perseguições decorrentes pelo gênero e deixa de fora mulheres que são sexualmente
violentadas, viúvas condenadas à morte, perseguições domésticas, casamentos
forçados, entre outros tipos de que mulheres são vítimas. A falta da palavra "gênero"
nos tipos de perseguição implica na invisibilidade de milhares de mulheres que
sofreram e sofrem violações de direitos humanos e não puderam ser amparadas
legalmente.
Outro tipo importante de perseguição que a definição de 67 falha em reconhecer
são as perseguições que ocorrem na esfera privada, a exemplo da violência doméstica
e violência sexual, que constituem uma grande parcela das perseguições feitas à
mulheres. Segundo Valji,
“A visão tradicional do solicitante de asilo como homem, juntamente com
interpretações estreitas e razoavelmente rígidas do que constitui a perseguição, teve o
efeito de negar às mulheres o direito à proteção internacional. [...] Esta falta de
reconhecimento que permite o envolvimento político das mulheres impede a busca de
asilo por perseguição com base nessas ações. Além disso, o foco na perseguição pelo
Estado ignora a principal área de perseguição experimentada pela maioria das
mulheres refugiadas - a esfera privada. ” (VALJI, 2003)
A definição de refugiado de 1967 é insuficiente em vários aspectos e isso foi se
acentuando com os anos. Era necessário pensar nas migrações forçadas e
deslocamentos de populações de maneira mais holística, entendendo o fenômeno
como um todo - desde às motivações para migrar e até como auxiliar essas pessoas
que vinham em busca de uma nova vida.
Segundo o relatório da Anistia Internacional, migrações forçadas podem
acontecer por diversos motivos e não precisam estar necessariamente ligadas à
perseguições:
“Existem muitas razões pelas quais pode ser muito difícil ou perigoso para as
pessoas permanecerem em seus próprios países. Por exemplo, crianças, mulheres e
homens fogem da violência, da guerra, da fome, da pobreza extrema, por causa de sua
orientação sexual ou de gênero, ou das consequências da mudança climática ou de
outros desastres naturais. Muitas vezes as pessoas enfrentarão uma combinação
dessas circunstâncias difíceis.”
“The key criteria for being a refugee are drawn primarily from the realm of public
sphere activities dominated by men. With regard to private sphere activities where
women’s presence is more strongly felt, there is primarily silence – silence compounded
by an unconscious calculus that assigns the critical quality ‘political’ to many public
activities but few private ones. Thus state oppression of a religious minority is political,
while gender oppression at home is not. “ (Indra, 1987, p. 3)
Numa tentativa de dissecar os termos utilizados para definir o status de um
refugiado, o ACNUR publicou em 1967 o Manual de Procedimentos e Critérios para
Determinar o Estatuto de Refugiado. O Manual é um instrumento muito útil e ganhou a
sua segunda edição em 1992 e a terceira em 2011. Destrinchando cada um dos termos
usados na definição original, o Manual tenta corrigir uma das maiores falhas da
definição clássica: a falta de apoio às mulheres.
Apesar de ser amplamente usado como material de apoio, coube aos Estados
signatários da ONU estabelecerem suas próprias leis, usando como base os Protocolos
de 51 e 67. São definições amplas e, como vimos, falham em acolher mulheres vítimas
de migrações forçadas que não se encaixam na definição de refugiadas pelos termos
de perseguição. Como forma de mitigar a desigualdade de gênero e violência contra as
mulheres refugiadas, a ONU encabeçou uma série de medidas para sua a proteção,
como veremos a seguir.

2.2 Esforços da ONU no combate à Desigualdade de Gênero

Como forma de promover a democracia e os princípios que guiaram a


Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, a Organização das Nações
Unidas promoveu em 1953 a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, que
configurou um dos primeiros avanços no combate a desigualdade de gênero. A
Convenção determinou o direito ao voto em igualdade de condições para mulheres e
homens, bem como a elegibilidade das mulheres para todos os órgãos públicos, além
da possibilidade de ocupar todos os postos públicos e de exercer todas as funções
públicas estabelecidas pela legislação nacional pelas mulheres.
Essa medida teve um efeito cascata em toda a agenda da ONU, que tornou a
mitigação da desigualdade de gênero uma das prioridades em seus mandatos. Essa
preocupação com igualdade entre sexos refletiu, também, no modo de tratar temas
importantes como a migração forçada e refúgio. A ONU começou a se atentar para
questões de gênero cerca de dez anos depois da ratificação do Protocolo Relativo ao
Estatuto dos Refugiados, em dezembro de 1975, quando a Assembléia Geral
proclamou 1976-85 como a Década das Nações Unidas para as Mulheres: Igualdade,
Desenvolvimento e Paz. Nas reuniões gerais, foram estabelecidas metas de curto
prazo em temas como aumento da alfabetização, igualdade de acesso à educação,
aumento do emprego, igualdade de elegibilidade para votar, maior participação das
mulheres nos cargos de formulação de políticas, maior provisão de serviços de saúde e
reconhecimento do valor econômico do trabalho das mulheres em casa. Dentro dessas
metas, reconheceram que as mulheres migrantes enfrentam problemas diferentes e
são mais vulneráveis em comparação com a população feminina que não precisa
migrar.
Refletindo a Década para Mulher, o ACNUR também adotou uma posição mais
compromissada no debate de igualdade de gênero - em outubro de 1985, incluiu o
tema das mulheres refugiadas na agenda do Comitê Executivo, configurando o primeiro
passo de discussão para proteção de Mulheres Refugiadas. Também acompanhando a
Década para Mulher, a partir dos anos 80 houve um crescimento de estudos e
pesquisas sobre gênero nas Relações Internacionais. Segundo Martin,
“Até meados da década de 1980, pouca pesquisa ou análise das tendências de
migração forçada se concentrava nas questões de gênero. Com o crescente
reconhecimento do grande número e proporção de mulheres refugiadas e pessoas
deslocadas, e a mudança do papel das mulheres em geral, significativamente mais
atenção é dada hoje a essas questões por pesquisadores e formuladores de políticas ”.
O primeiro grande avanço em termos de instrumento de proteção legal às
mulheres refugiadas vieram anos após a definição do ACNUR, em 1990 com as ​United
Nations High Commissioner for Refugees Policy on Refugee Women (Políticas da
Agência das Nações Unidas para Mulheres Refugiadas).
“A política estabelecida neste documento tem como premissa o reconhecimento
de que se tornar um refugiado afeta homens e mulheres de maneira diferente e que a
programação eficaz deve reconhecer essas diferenças.”
Com menos de dez páginas, o documento da Política do ACNUR para Mulheres
Refugiadas é um documento curto. Dividido em 5 partes, o relatório é introduzido por
um rápido histórico de iniciativas da ONU para igualdade de gênero voltados para
população refugiada. Sob a premissa de mulheres e homens encontram diferentes
dificuldades ao se tornarem refugiados, a Política do ACNUR é voltada para
“compreender plenamente a necessidade de proteção e os recursos de assistência da
população refugiada, e para incentivar a dignidade e a auto-suficiência, as próprias
mulheres refugiadas devem participar no planejamento e implementação de projetos.”
Além de incluir as mulheres no planejamento e implementação de projetos, a
Política tenta enxergá-las em papéis que diferentes que os tradicionais, mas como
pessoas que são fonte de renda para si e sua família, sustentando e gerindo sua
moradia.
Em 1991, um ano após a publicação do conjunto de Políticas da Agência das
Nações Unidas para Mulheres Refugiadas, o ACNUR adotou as Diretrizes para
Proteção de Mulheres Refugiadas que, até então, constituem o maior avanço em
termos de proteção legal para essa parcela da população. Pela área jurídica, as
Diretrizes são o resultado de todos os conceitos e debates ocorridos antes; apresenta
elementos da Convenção de 1951, do Protocolo de 1967, da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e, principalmente, da Convenção da Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra as Mulheres, a fim de sanar a distinção sofrida entre homens
e mulheres no processo de refúgio.
Em 31 páginas, as Diretrizes elaboradas pela ACNUR podem ser divididas em 5
partes: a primeira conta com a introdução e a explicação da necessidade das
Diretrizes; a segunda parte contém algumas diretrizes para avaliar o tipo de proteção
dadas às mulheres refugiadas.
A terceira parte tenta definir os tipos de necessidade de proteção que as
mulheres podem precisar e como intervir e ajudar dependendo do tipo de situação.
Nessa seção, as Diretrizes detalham tanto os problemas de segurança física quanto os
problemas jurídicos que elas podem estar sujeitas ao entrar em um país para procurar
refúgio.
Na quarta parte as Diretrizes apontam medidas que poderiam ser tomadas para
evitar abusos nas fronteiras e acampamentos de refugiados, além da prestação de
assistência e implementação de atividades de educação, capacitação e geração de
renda para promover maior proteção às mulheres refugiadas. Na quinta e última seção,
as Diretrizes descrevem medidas a serem tomadas nos próximos anos para a
promoção da igualdade de gênero.
Apresentando políticas especiais para a proteção de mulheres, as Diretrizes se
comprometem em estabelecer medidas para melhorar o problema, tomando ações
para levantar e impedir problemas relacionados à perseguição por gênero. O
documento também estabelece planos de ação em casos de situações emergenciais e
ações de longo prazo, criando métricas para identificação do tipo de perigo que uma
mulher poderia sofrer, e como auxiliar em cada caso.
Quase três décadas após a adoção das Diretrizes para Proteção de Mulheres
Refugiadas na agenda do ACNUR, ainda existem grandes críticas ao modo como são
implementadas as ações de proteção à população feminina refugiada. Talvez uma das
maiores críticas sejam as condições de vida em campos de refugiados que, segundo o
relatório da Human Rights Watch (HRW) (2000)
"As mulheres que fogem de suas casas em busca de refúgio contra a violência
muitas vezes acham que não há um refúgio significativo - elas simplesmente
escaparam da violência no conflito para enfrentar um tipo diferente de violência nos
campos de refugiados".
Uma das medidas estabelecidas pelas Diretrizes é a visita de funcionários do
ACNUR e da ONU aos campos de refugiados, a fim de fazer pesquisa e análise sobre
as condições de vida encontradas. Apesar de apresentar grandes avanços em termos
de reconhecimento da necessidade de tomada de decisões para proteção das
mulheres refugiadas, a implementação das Diretrizes ainda se mostra deficiente, como
apontou o relatório da ReliefWeb:
“A equipe de avaliação ouviu de mulheres angolanas e congolesas na Zâmbia
que trocaram sexo por peixe e outros bens básicos, incluindo materiais escolares para
seus filhos. Essas mulheres também relataram que a fabricação de cerveja em seus
acampamentos e por zambianos locais aumentou os níveis de violência doméstica.
Mulheres sudanesas no campo de Elit da Eritréia relataram problemas semelhantes. A
equipe visitou uma casa segura na fronteira turca com o Irã e o Iraque, conversando
com mulheres que estavam lá porque eram vulneráveis ao tráfico e à violência
doméstica. As mulheres sudanesas na Etiópia falaram de níveis crescentes de
perseguição por parte das populações locais, pois precisam viajar cada vez mais longe
dos campos em busca de lenha para cozinhar ”.
O relatório da Relief Web não é o único que apresenta denúncias de abuso
sexual e violência doméstica em campos de refugiados. Segundo a análise publicada
pela organização não-governamental norte-americana International Rescue Committee
(IRC) em 2007, numa entrevista feita com 190 sírias refugiadas, acampadas nos
arredores de Aleppo, cerca de 40% responderam terem sido vítimas de violência
sexual. Em alguns casos, esse abuso decorreu em troca de ajuda humanitária.
Esses relatos também estão presentes em documentos publicados por
organismos da ONU, como é o caso do Fundo de População das Nações Unidas
(UNFPA), órgão responsável por questões populacionais:
"há exemplos de mulheres e adolescentes se casando oficialmente por um curto
período de tempo para oferecer 'serviços sexuais' em troca de refeições, de agentes
pedindo os números de telefone de mulheres e garotas, de ofertas de carona até em
casa em troca de passar a noite com elas".
Por estarem mais vulneráveis a abusos sexuais, as mulheres refugiadas
precisam de uma maior atenção das autoridades. As Diretrizes apresentaram um
grande passo na instauração de um maior foco no gênero dentro das políticas de
refugiados. Elas complementam as definições clássicas de refugiado que se mostraram
insuficientes para proteger milhares de mulheres que seriam excluídas utilizando os
termos de perseguição tradicionais. Apesar de apresentar um grande passo, ainda há
uma lacuna grande entre a teoria e o que é de fato praticado pelos órgãos das Nações
Unidas e seus países signatários.

2.3 As lentes feministas

Como vimos no item anterior, estudos sobre migração e gênero são


relativamente novos, com as primeiras análises sendo publicadas a partir dos anos 80.
Além de contribuir com uma lente de análise totalmente nova com foco na experiência
empírica da mulher, os estudos feministas deram fôlego e importância às medidas de
proteção às mulheres no mundo, bem como a fomentação de um importante debate
sobre a desigualdade de gênero.
Com o crescimento dos deslocamentos forçados pelo globo e a mudança no
caráter das migrações forçadas, mostrou-se necessário buscar novas formas de
interpretar e compreender esse fenômeno. As lentes feministas e de gênero aparecem
como uma forma de entender qual é o papel da mulher dentro do fenômeno analisado,
sendo motivadas pelo objetivo comum de tentar descrever e explicar as fontes de
desigualdade de gênero e, portanto, a opressão das mulheres, e buscar estratégias
para acabar com elas​.(Tickner, 1992).
Em seu livro, Securitização das Migrações e Mulheres Refugiadas, Alison
Gerard levanta dois motivos para utilizarmos as lentes feministas ao analisar o
fenômeno das migrações forçadas. O primeiro motivo é, a abordagem feminista
consegue criar novos caminhos para examinar migrações, caminhos que foram
negligenciados por estudos feitos por homens (Behera 2006). As mulheres são
tradicionalmente vistas como agentes passivos nas migrações, retratadas como
esposas ou mães, mas nunca como agentes racionais que optaram sozinhas por
migrar (Simon e Bretell 1986 em Kofman, Phizacklea, Raghuram e Sales 2000: 3). As
lentes de gênero permitem desconstruir essa ideia, transformando o ponto de vista das
mulheres numa análise válida.
O segundo motivo é que mulheres e homens experimentam migrações de
maneiras totalmente diferentes. Os problemas ligados com a partida, o trajeto e as
dificuldades encontradas no país receptor são experiências diferente, bem como o
motivo pelo qual o migrante decidiu deixar sua terra natal. Além disso, os papéis de
mudança tem mudado com os anos, à medida que mulheres refugiadas também têm
assumido o papel de chefe da família. (Nolin 2006: 32). Em alguns casos, a falta de
segurança física, alimentar e ameaças aos direitos humanos tem tem "empurrado
mulheres e meninas para assumir papéis-chave como ganhadores de renda
suas famílias ”( Sassen 2000).
No território de migrações forçadas, uma das contribuições que as Lentes
feministas trouxeram foi um novo olhar sobre o conceito de proteção e segurança.
Segundo as abordagens realistas tradicionais a segurança de uma população é de
competência estatal, em que delegamos ao Estado a proteção dos seus cidadãos. Não
há brecha para discutir perseguições feitas pelo próprio Estado dentro de seu território,
nem que medidas tomar quando os Direitos Humanos estão sendo infringidos
obrigando a população a migrar. As abordagens feministas propõe desconstruir essa
conceito e redefinir o significado distanciando das conceituações estatais (ANA
SOUZA)
“As perspectivas feministas de segurança internacional desafiam uma
concepção tradicional de segurança que se baseia em ideais de masculinidade. Uma
leitura feminista sobre segurança internacional permite entender de que maneira essas
representações sociais de gênero extrapolam para o imaginário político sobre o Estado
e sobre a população a ser protegida: o Estado eficiente – aquele que melhor
corresponde à masculinidade hegemônica – é aquele capaz de desempenhar
satisfatoriamente o papel de protetor de uma nação concebida como feminina.”
(Tickner, 1996 apud Ana Souza)
Portanto, é necessário que pensemos em segurança internacional não
necessariamente como um dever somente do Estado, nem tampouco como um ideal
de masculinidade. Quando não fazemos um mínimo recorte de gênero para entender a
dinâmica entre protetor e protegido, uma parte da população será ignorada na análise.
Para entender a dinâmica de uma forma mais justa, faz-se urgente ir além das
estruturas de hierarquia de gênero e entender como elas impactam na segurança dos
indivíduos (Ann Tickner2001, p48).
O debate acerca da desconstrução do conceito tradicional de segurança
internacional está é intimamente ligado com a questão de migração forçada. Se o
Estado não consegue oferecer à sua população proteção e segurança, como devem
agir as pessoas que sentem que seus direitos estão ameaçados pelo próprio Estado? E
como dar suporte à parcela da população mais desamparada e vulnerável nesse
processo? As abordagens realistas tradicionais não conseguem dar uma resposta
satisfatória para essa pergunta.
Além da desconstrução do conceito de segurança, as lentes feministas também
têm muito a acrescentar na análise da dinâmica das esferas público-privada. Somos
acostumados a atribuir características específicas para cada gênero não questionamos
esse processo. Para a Professora de Estudos de Gênero na Universidade de
Budapest, Sarah Smith,
“O gênero é entendido como as suposições socialmente construídas que são atribuídas
a corpos masculinos ou femininos - isto é, comportamentos que são considerados
comportamentos "masculinos" (masculinos) ou "femininos" (femininos) apropriados. A
masculinidade é frequentemente associada à racionalidade, poder, independência e
esfera pública. A feminilidade é frequentemente associada à irracionalidade, com
necessidade de proteção, domesticidade e esfera privada.”
Essa diferença de atribuições também pode ser vista em outras literaturas. Para
Tickner (1992, p.9), o gênero feminino e os estrangeiros são tradicionalmente
retratados como o "outro", diferentes dos indivíduos brancos do sexo masculino. Os
estudos feministas trazem de novo uma denúncia de como as análises em Relações
Internacionais são tomadas por indivíduos do sexo masculino, que constroem suas
ideias enaltecendo o "masculino" e inferiorizando o "feminino". Segundo Tamya Rabelo,
"A imagem do masculino recebe mais valor social e é associada ao espaço público, no
qual predominam características como racionalidade, força física, honra e coragem.
Por outro lado, a imagem do feminino é automaticamente atrelada ao espaço privado,
em que a mulher desempenha papéis de dona de casa, reprodutora e esposa."

Quando resgatamos a definição de refugiado, importante divisor de águas


utilizado para embasar diversas políticas e medidas para prestar auxílio para a
população migrante, conseguimos entender que a definição foi criada sob uma ótica
patriarcal. A definição não considera os "outros" indivíduos, só explicita as
perseguições que ocorrem na esfera pública. Feita para uma massa de pessoas
heteronormativas, sem gênero, idade e orientação sexual, não consta a perseguição na
esfera privada, porque perseguição na esfera privada é uma problema que tange quase
somente às mulheres.
Mesmo após fugir do seu país de origem, as mulheres ainda podem ser vítimas
desse crime enquanto se locomovem em busca de um novo lugar ou até em
acampamentos da ONU para refugiados. Por se encontrar mais vulnerável, sozinhas e,
muitas vezes grávidas ou com filhos, as mulheres são um alvo fácil para violência
sexual.
Segundo um relatório do ACNUR,
“In many refugee situations, particularly those involving the confinement of
refugees in closed camps, traditional behavioural norms and restraints break down. In
such circumstances refugee women and girls may be raped by other refugees, acting
either individually or in gangs, and self-appointed leaders may thwart attempts to punish
the offenders. In certain camp situations, unaccompanied women and girls have been
known to enter what are called ‘protection marriages’ in order to avoid sexual assault.
The frustration of camp life can also lead to violence, including sexual abuse, within the
family.”
O estudo realizado pela Organização Não Governamental Caritas no Líbano
corrobora para com os dados sobre violência sexual contra as mulheres em
acampamentos. De acordo com o relatório, " that half of the Syrian female refugees
who sought aid from their workers reported having been sexually abused. And
shockingly, Caritas says, many of these women reported wishing that they could return
to Syria immediately, despite the ongoing dangers there that caused them to flee."
Em números gerais divulgados pela ONU estimam uma média de que uma em
cada cinco refugiadas - ou mulheres deslocadas estabelecidas em complexos
contextos humanitários - tenha sido violentada. Apesar de alta, a parcela de 25% das
mulheres terem sofrido violência sexual é subnotificada, ainda existem milhares de
casos que não chegam a ser reportados.
Nesse contexto, como o refúgio pode proteger mulheres que, em tese não se
adequam a casos tradicionais de refúgio, com os elementos de perseguição definidos
mas que fogem de seus países de origem porque existe claramente uma violação de
direitos humanos e uma perseguição que não é estipulada pela ACNUR? Esses casos
de violência permaneceram invisíveis por anos e começaram a serem reportados em
1991, com a publicação do Diretrizes para Proteção de Mulheres Refugiadas e que
estabelecia a visita frequente de um funcionário da ACNUR para reportar as condições
de vida nos acampamentos, além de um maior suporte às mulheres.
“The role of sexuality and sexual violence within refugee camps is further demonstrated
by the prevalence of prostitution, sexual favours and domestic violence, all of which are
common characteristics of the functioning of the institutions. “
A violência sexual experienciada por mulheres em campos de refugiados pode
ser interpretada como uma demanda por trabalho segregado por sexo, como por
exemplo alguns papéis no setor de serviços e trabalho sexual.(Kofman et al. 2000;
Sassen 2000). Apesar dessa realidade estar mudando aos poucos, com a necessidade
das mulheres assumirem novos papéis como responsáveis pelo núcleo familiar, o
sofrimento de milhares de mulheres não pode ser ignorado numa análise do fenômeno
das migrações forçadas.
Como forma de trazer à tona mulheres que são invisíveis em estudos
tradicionais nas Relações Internacionais, podemos tentar responder à pergunta “Where
are all the women?” feita pela Cynthia Enloe dentro do fenômeno da migração forçada
e novos deslocamentos pelo globo. Entendendo que as mulheres podem ser agentes
ativos no processo migratório, nós evoluímos o debate para um novo nível: o de
entender mulheres como as mais vulneráveis nesse processo migratório, mas também
como importantes engrenagens no fenômeno dos deslocamentos forçados.

CAPÍTULO 3 - Refugiados no Brasil

3.1 As leis existentes para refugiados no Brasil e a criação do CONARE

Em termos de instrumentos regionais para auxílio de pessoas refugiadas, a


América Latina já oferecia proteção em forma de asilo político muito antes do
continente europeu começar a tratar o problema de pessoas que sofrem de
perseguição em seu país de origem. Segundo um artigo publicado pelo Ministério da
Justiça brasileiro,
“O conceito jurídico de asilo na América Latina é originário do Tratado de Direito Penal
Internacional de Montevidéu, de 1889, que dedica um capítulo ao tema. Inúmeras
outras convenções ocorreram no continente sobre o asilo, tal como a Convenção sobre
Asilo assinada na VI Conferência Pan-americana de Havana, em 1928, dentre outras.
O asilo diplomático, assim, é instituto característico da América Latina.”

Protegida pela Constituição Federal de 1988, o asilo político é regido pelos


princípios da “prevalência dos direitos humanos e da concessão do asilo político”, com
especificações tratadas pelo Estatuto do Estrangeiro, conferindo ao asilado “além dos
deveres que lhe forem impostos pelo Direito Internacional, a cumprir as disposições da
legislação vigente e as que o governo brasileiro lhe fixar”

Apesar do asilo político conferir uma prática diferente da política de refúgio - o


asilo é concedido apenas em casos de perseguições políticas, além de outras
diferenças jurídicas - a prática da concessão de asilo político configura um avanço e
pioneirismo da América Latina ao pensar nessa questão. Esse vanguardismo
latinoamericano se deve ao fato da instabilidade política no continente, com sucessivos
golpes de estado e revoluções políticas, levando os países a se unirem para criar leis
que pudessem proteger presos políticos. Com o avanço do debate sobre migrações
forçadas na ONU e a Convenção de 1951, alguns países da América Latina também
passaram a adotar a prática de concessão de refúgio, como foi o caso do Brasil.

Dentre os seus vizinhos latinos, o Brasil é um dos países que mais se destaca
na implementação e criação de leis para regulamentar a situação de refúgio. O governo
brasileiro foi o primeiro do continente latino a ratificar a Convenção de 1951, apesar da
a limitação temporal e geográfica característica do tratado - conceder o status de
refugiado àqueles que se migraram forçosamente em razão dos ocorridos antes de 1º
de janeiro de 1951, dessa forma acolhendo apenas refugiados europeus e não abrindo
essa política para pessoas que enfrentavam condições de perseguição e violação dos
direitos humanos nos países além fronteiras.

Além de ser o primeiro país do continente latino a ratificar a Convenção de 1951,


o Brasil tem sua própria lei que trata de refugiados, a Lei n. 9.474 de 22 de julho de
1997. Sendo executada em consonância técnica e jurídica com a Convenção de 1951 e
o Protocolo de 1967, a Lei n. 9474 foi aprovada 30 anos depois do Protocolo de 67 e
usa as mesmas premissas estabelecidas pela ONU para constituir sua definição de
refugiado:

​Art. 1º. Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:


I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país
de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua
residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das
circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é


obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Além de definir quem pode se enquadrar na concessão de refugiado, a lei


nacional também estabelece diretrizes para a criação do Comitê Nacional para os
Refugiados (CONARE), que hoje é responsável por analisar os pedidos de refúgio,
orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, e prestar assistência
e apoio jurídico aos refugiados​. ​O CONARE hoje conta com a participação do ACNUR,
de ONGs como o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e as Cáritas
Arquidiocesanas de Rio de Janeiro e São Paulo, compondo um órgão misto.

Além do CONARE, outro órgão que tem uma grande importância no Brasil é o
ACNUR. Iniciando suas atividades no Brasil em 1982, a Agência da ONU para
Refugiados a princípio auxiliou os cidadãos europeus que procuravam abrigo
temporário em terras brasileiras. Somente em 1989 o escritório regional passou a atuar
em Brasília. No Brasil, o ACNUR tem o papel de contribuir para a formação de políticas
públicas no tema de refúgio e migrações forçadas, fiscalização das medidas brasileiras
tomadas pelo governo para promoção do refúgio, e implementação de projetos de
caráter humanitário

3.2 Avanços Legislativos no Brasil nos últimos dois anos

Apesar de ser considerada referência no mundo, vista como uma legislação


avançada no tema e ter servido para vários países vizinhos como modelo a ser
seguido, a Lei brasileira ainda apresenta lacunas. Escrita em 1977, a estrutura foi a
resposta para a demanda de 500 pedidos de refúgio anual e não sofreu nenhuma
alteração até o ano de 2016, quando as solicitações de refúgio cresceram 2.868%,
como podemos ver no gráfico abaixo segundo dados da ACNUR:

Com o aumento das solicitações de refúgio no Brasil, o governo se deparou com


a necessidade de rever se a estrutura brasileira ainda conseguia oferecer proteção
para todas as pessoas que precisam dela. Nesse contexto, em 2017 foi aprovada a Lei
de Migração, como lei complementar ao Estatuto dos Refugiados.

Baseada nos princípios dos Direitos Humanos, a nova Lei de Migração define
imigrantes, emigrantes e apátridas e visa a garantia de que os imigrantes possam
gozar dos mesmos direitos que cidadão brasileiros. A nova Lei também descriminaliza
as migrações, tornando ilegal prender migrantes por estarem irregulares no Brasil.

Como resposta ao deslocamento massivo de vítimas de deslocamento forçado


sírio e haitiano para o Brasil nos últimos três anos, a nova Lei de Migração prevê a
criação do visto humanitário; provisórios e somente aplicados para imigrantes dessas
duas nacionalidades, compondo uma tentativa de fornecer apoio para vítimas
desburocratizando o processo de visto temporário.

As novas medidas estabelecidas pela nova Lei de Migração apresentam um


primeiro grande passo para a regulamentação das consequências dos deslocamentos
forçados no Brasil. Elas são políticas complementares às leis anteriores, principalmente
à Lei n. 9.474 de 22 de julho de 1997, a Lei que regulamenta o refúgio.

A Lei brasileira sobre refúgio é referência no mundo, sendo reconhecida


internacionalmente como uma das mais avançadas e generosas no tema e servindo de
modelo para diversos países da região mas ainda temos alguns desafios grandes
quando comparamos as políticas públicas feitas pelo Brasil com outros países.

Quando estamos falando de igualdade de gênero, a Lei Brasileira ainda está


longe do ideal: é possível notar que na definição brasileira também não há referências
a outros tipos de perseguição, como as de gênero e orientação sexual. Como já
discutido, a falta de referência desses tipos de perseguição implica na invisibilidade de
mulheres que sofrem com ela.

A legislação brasileira também é falha em casos de migrações forçadas que não


configuram perseguição, a exemplo de pessoas que se locomovem para fugir de
infrações dos direitos humanos, crises econômicas e mudanças climáticas, como o
caso dos colombianos tratados no começo desta monografia.

"Assim, é preciso ter atenção aos casos empíricos que evidenciam que há
muitas outras pessoas deslocadas que não estão incluídas nas atuais definições de
refugiado, todavia também não estão excluídas. Cite-se aquelas pessoas que deixaram
seus países de origem em razão de situações terríveis como miséria econômica
generalizada, fragilidade democrática e tantas outras formas de violação ou restrição a
direitos fundamentais, mas que não são consideradas oficialmente refugiadas, vez que
estas situações não são vislumbradas no regime atual ."
Além das questões jurídicas e legislativas, o Brasil enfrenta alguns desafios
quanto a sua estrutura. Segundo um Relatório publicado pelo CONARE em março de
2018, o Brasil atingiu o número de 86 mil solicitações de refúgio no país e contava com
apenas 14 funcionários para avaliar os pedidos. Com isso, a fila de espera é lenta e
milhares desses pedidos de refúgio ficam sem resposta.

Outro desafio estrutural é a criação de inteligência no tema: o Brasil não possui


nenhum tipo de sistema digital com informações sobre os refugiados dentro do
território. O CONARE, órgão que é responsável pela análise das solicitações de
refúgio, não possui nenhuma base de dados disponível para estudo. Essa falta de
informações consolidadas impacta diretamente na otimização de políticas públicas e
projetos de caráter humanitário. Segundo Maria Nogueira, pesquisadora no Instituto
Igarapé:

"Particularmente preocupante é o fato de o Brasil não possuir um sistema digital


para rastrear sua população de migrantes e refugiados. Ninguém realmente sabe
quantos requerentes de asilo e refugiados existem no Brasil. Não há informações
centralizadas sobre suas nacionalidades, idade ou sexo, muito menos suas
necessidades básicas de proteção e apoio. Se o Brasil deseja atualizar seu sistema
para o século 21, ele precisa, no mínimo, de um sistema unificado de gerenciamento
de dados. As informações devem ser coletadas nos pontos de entrada e saída,
processadas no nível federal e utilizadas para orientar políticas públicas informadas."

Considerações finais

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