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Sonhos de uma vida armada

João Pedro Moraleida1

Uma reportagem do dia 10 de maio da Folha de São Paulo anuncia a metamorfose causada
pelo recente decreto ligado a liberação do porte de armas no Brasil e aponta que a
liberação também se deu no nível das importações de armas e tecnologias militares. Se
observarmos, esse decreto obedece a um comportamento, como a reportagem mesmo
levanta, ao mesmo tempo que o positiva, praticado por países envolvidos interna, como
o caso brasileiro, ou externamente, como os EUA, o Reino Unido e etc em guerras e
conflitos definidos por teóricos militares norte-americanos como guerras de baixa
intensidade. Qual um dos possíveis significados disso? As áreas urbanas são o principa l
campo de conflito armado, o que envolve amplos setores industriais de armamento hoje
no mundo, do Oriente médio ao Haiti ou Rio de Janeiro, o que se pratica hoje tem, sob a
figura de um ou mais inimigos produzidos por um imaginário feroz, a eliminação de civis
sob pretextos diversos, do terrorista ao criminoso traficante. Isso se inclui no capital como
um dos mercados mais promissores e rentáveis no mundo – o mercado da guerra. Não é
atoa que Israel atravessou sua crise após 2003 competindo e se tornando o lugar par
execellence das altas tecnologias militares, de controle e guerra urbana. E, como lembrou
uma reportagem recente, os gastos militares no mundo no último ano representaram os
maiores gastos de diversos governos.

Trata-se de nos perguntar “que horas são no brasil”? Virada de mesa para com uma fração
da ''burguesia interna", radicalizando a assunção do capital internacional no Brasil, agora
também na indústria de armas? Fato é que esse decreto pode representar, e é o que parece,
a estratégia do atual do governo e seus dirigentes de incluir sob forma superior o Brasil
no fluxo armamentista e de alta rentabilidade no mundo. O gráfico abaixo aponta o
faturamento desse mercado e quais são seus representantes:

1Estudante de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais e membro do Coletivo Refas com Z –
Mostra Itinerante – Cinema Antifascista.
Faturamento, em US$ bilhões (dados de 2017)

Lockheed Martin (EUA)


44,9
Boeing (EUA)
26,9
Raytheon (EUA)
23,8
BAE Systems (Reino Unido)
22,9
Northrop Grumman (EUA)
22,3
General Dynamics (EUA)
19,4
Airbus (Europa)
11,2
Thales (França)
9
Leonardo (Itália)
8,8
Almaz-Antey (Rússia)
8,5

Fonte: Abimde

O texto da FSP, entretanto, não menciona o grande mercado de segurança privado hoje
no mundo que ultrapassa a chamada "segurança pública" em número de agentes. Ora, a
partir de então vemos que junto a um evidente beneficiamento por esse decreto das
atividades milicianas e paramilitares, bem como a garantia das despossssões diversas, a
chamada acumulação primitiva, como provavelmente iremos ver com a subida
exponencial da violência no campo praticada por grandes fazendeiros, o Brasil aprofunda-
se, em apenas 5 meses de governo, responsável, diga-se de passagem, por conseguir
desestruturar uma série de instituições através da exoneração de cargos, além de aumentar
o nível do desemprego e estimular a perseguição a professores, movimentos sociais
diversos e a educação pública, no grande fluxo global da guerra urbana. Isso envolve
compras de altas tecnologias de combate e financiamento direto do Estado a esses
desenvolvedores, que em sua maioria são estadunidenses e israelenses. Resta dizer que,
independente do decreto ou não, uma tecnologia já foi importada e agora ganhou ares
legítimos com o atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. O "atirar na cabeça",
descobrimos, é uma tecnologia vinda de Israel e da forma como eles eliminam os
palestinos, no Reino Unido ficou conhecida como Kratos, e conhecemos também a
história do brasileiro Jean Charles de Menezes assassinado pela polícia inglesa em 2005.
No RJ, há longa data, os voos de morte acontecem. Restaria nos perguntar se isso também
não é uma tecnologia de guerra aperfeiçoada durante a ocupação militar brasileira no
Haiti, principalmente em grandes favelas como Cité Soleil. Ocupação, aliás, que nós
brasileiros não nos preocupamos o suficiente em compreender, mas que representa, para
além da violência generalizada, uma laboratório de guerra e controle das populações
pobres nas cidades e retorna, como bem parece, nas chamadas UPPs. Em 2014 o atual
ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, general e
primeiro comandante brasileiro da missão no Haiti, revelou, como trás a reportagem de
José Arbex Jr. na Caros Amigos do mesmo ano que: “Os militares entenderam, no Haiti,
que era preciso fixar bases dentro das favelas.” Heleno omite o fato trazido pelo jornalista
de que em 2008 oficiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e da Coodenadoria
de Recursos Especiais (Core) foram treinadas no Haiti. A surpresa seria o fato de
assessores dos EUA, da CIA, do FBI e da DEA participarem, através de escritórios e
assistências diversas, nas ações em favelas do Brasil desde o governo de Fernando
Henrique Cardoso. EUA e Israel, país fabricante dos caveirões utilizados no RJ.

O que o decreto traz, além de toda a gestão da (in) segurança que envolve o mercado de
armamento e o aumento do número de assassinados, sabemos, negros e pobres nas cidades
e agora camponeses e indígenas, é, em suma, a reposição do Brasil no processo global e
altamente lucrativo daquilo que o geógrafo Stephen Graham chama de “novo urbanismo
militar”. Não vamos nos iludir de que todas essas novidades não podem e não vão trazer
mudanças significativas no âmbito, digamos, do massacre da população brasileira através
de novas tecnologias importadas e flexibilizadas pelo novo decreto. As milícias são o
nosso presente e futuro, nesse caso. Mas como lembrou essa mesma reportagem: "Os
estrangeiros se preparam. Já em abril, durante a feira militar LAAD, no Rio de Janeiro,
o tema segurança era frequente. 'Temos soluções integradas de segurança, e dominamos
como poucos a tecnologia para operar drones', afirmou então Eli Alfassi, vice-presidente
de marketing da Israel Aerospace Industries. Israel, país cujo atual governo é um dos
mais próximos da gestão Bolsonaro, produz ampla gama de produtos aplicados à
segurança pública."

Tudo isso envolve um grande esforço de estudo e entendimento de como o atual governo
pretende gerir os pobres de maneira diferente dos governos anteriores, em que chamada
gestão do social penderá, mais ainda que antes, como numa reta, para a gestão armada, o
que já vinha ganhando contornos após a ditadura civil- militar e aperfeiçoada durante os
governos seguintes, FHC e Lula-Dilma. Nesse momento, o que poderíamos chamar de
“campo do social”, dos programas de assistência, estímulo ao consumo, aumento real do
salário mínimo, vê sua reversão brutal, como já ocorre com o desemprego crescente ,
muito embora continue a garantir a rentabilidade mundial, nessa reta, no nível do mercado
da guerra. Vemos, dessa forma, aquilo que um amigo, o sociólogo mineiro Moisés
Augusto Gonçalves, apontou como a restituição da ideia do século XIX de classes
perigosas, conceito desenvolvido sob forte influência racista, em que naquele momento,
essas classes precisavam ser administradas e controladas, outro tempo, em que o trabalho
era a disputa tanto pelos grandes movimentos operários quanto pela burguesia, ele alerta,
que essas classes perigosas, no mundo atual, são restituídas através da ideia de inutilidad e
– não há trabalho para todos e nem haverá, resta, ademais, os chamados bicos, como
entreposto para o desemprego e, posteriormente a eliminação física. O mercado da guerra
move a máquina capitalista e o Brasil atual se esforça para administrar o que reforça ainda
mais o poder do Norte Global, principalmente em momento de forte mudança na
geopolítica mundial. São sonhos de uma vida armada e nossa resposta, além da negação,
precisar partir pela imaginação e conflito nas brechas possíveis de enfrentamento a esse
processo, sabendo, de antemão, o risco representado pelos atuais dirigentes. A paralisação
do dia 15 de maio, próxima quarta-feira, poderá ser uma abertura para que pensemos um
para-além dessa condição, que só se efetiva na ausência de uma exigência constante,
coletiva e desejante por outra sociedade, dessa forma é opor a política, o acontecime nto
e o conflito ao poder policial para além dos campos de domesticação de nossa potência,
pois policial não se trata de ou tão somente aquilo que ordinariamente designamos como
polícia militar, civil e etc, mas sim de um poder que insiste em fazer coincidir política
com consenso, política com uma representação do povo, em simular a inserção popular
nas demandas que são unicamente do governo e de suas oligarquias e, por último, de
governar as condutas e insistir que a comunidade é aquilo que tal oligarquia fabrica como
bem-comum. Política é outra coisa, é imaginação e enfrentamento a essa prática que não
se cansa de forjar uma república e um país de todos, sempre haverá aqueles que não são
parte do todo e exigir a parte é desenrodilhar as representações do bem e da paz e dizer:
mais, mais ainda. E queremos?

Bibliografia:

ARBEX, José. Fascismo made in Brazil. Revista Caros Amigos, maio de 2014.

GIELOW, Igor. Abertura do mercado de armas por Bolsonaro assusta indústrias


de defesa. Folha de São Paulo, 10 de maio de 2019.

GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo:


Boitempo, 2016.

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