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José Paulo Vasconcelos

ENTREVISTA

A entrevista é um género jornalístico caracterizado pela alternância “pergunta /


resposta”, que reproduz tão fielmente quanto possível uma conversa entre entrevistador e
entrevistado e que tem como objectivo uma de duas finalidades:
a) dar a conhecer a opinião de uma figura pública (entrevistado) sobre um tema da
actualidade. Esta opinião pode ser importante por duas razões:
1) Porque o tema é relevante e universal (e portanto, interessa a quase
todos nesse momento);
2) Porque o entrevistado tem relevância especial (pela sua conduta, pela sua
história ou por razões circunstanciais) no tema em questão.
b) dar a conhecer a importância de uma personalidade, instituição ou circunstância
que, embora não sendo do conhecimento geral, tenha vindo a assumir pelo seu
trabalho ou impacto uma relevância que justifique a sua divulgação.
As entrevistas podem ser de dois tipos: oral (radiofónica ou televisiva) em que o texto é
registado no discurso oral, em directo; ou escrita (impressa) em que o enunciado da
entrevista é passado ao registo escrito, em diferido, permitindo pequenas correcções ou
reformulações.
Para todas as entrevistas, é fundamental a elaboração de um guião que oriente o
processo de entrevista.

1.1. Características do registo linguístico

· uso de registo formal;


· utilização de uma linguagem simples e clara mas que se deve adaptar à
formação científica e cultural do entrevistado, por vezes com recurso a
gíria técnico-profissional (todo o vocabulário que não seja corrente,
deve ser explicado ao leitor/ouvinte);
· utilização da terceira pessoa do singular (nas perguntas, identificando o
entrevistado pelo nome ou cargo), e da primeira pessoa do singular ou
do plural (nas respostas).

1.2. Estrutura da entrevista

· Introdução / Abertura – apresentação breve do entrevistado ou das


circunstâncias que levaram à entrevista. Podem também ser dadas

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informações complementares sobre o contexto da entrevista (local, data,


condicionantes…);
· Corpo da entrevista – conjunto de perguntas e respostas; Uma entrevista é
mais do que um questionário ou inquérito (em que as perguntas são
pré-determinadas e imutáveis). Numa entrevista as perguntas devem
sempre levar em consideração as respostas já dadas e adaptar-se ao
ritmo da conversa, suscitando esclarecimentos ou evitando questões já
respondidas.
· Fecho / Conclusão – breve opinião do entrevistador sobre as questões
abordadas, destaque de uma ideia forte resultante da entrevista ou um
apontamento sobre a importância do tema / entrevistado.

1.3. Guião da entrevista

Qualquer entrevista deve ser cuidadosamente preparada através de uma elaboração de


um guião, ou seja, um texto que servirá de base à condução da entrevista. O guião deve
respeitar os seguintes procedimentos:
· Definição do tema – indicação clara da temática a abordar na entrevista e
sua relação com o público (“O que é que o público quer saber sobre este
tema e que importância tem esse tema para o público?”);
· Escolha do entrevistado – que deve ser uma pessoa que
reconhecidamente tenha relevância para o tema, seja pelo cargo que
desempenha, seja pelos seus conhecimentos específicos;
No caso de a entrevista ser motivada pela relevância do entrevistado (e não pela
pertinência do tema) os dois pontos anteriores devem inverter-se na sequência de
procedimentos, reformulando-se da seguinte forma:
· Escolha do entrevistado – deve ser uma pessoa que por uma razão ou por
outra seja do interesse do público e que seja reconhecida socialmente.
· Definição do tema – indicação clara da temática a abordar na entrevista e
sua relação com o entrevistado (“O que é que o entrevistado pode dizer
com interesse significativo para o público?”);
· Recolha de informação – documentação tão completa quanto possível
sobre o tema ou sobre o entrevistado de forma a permitir a formulação
de perguntas pertinentes e que permitam ao entrevistador acompanhar
as respostas do entrevistado.
· Elaboração das perguntas – Considerando os seguintes aspectos:
o As perguntas podem ser “abertas” (permitindo respostas mais ou
menos longas e discursivas) ou “fechadas” (obrigando a respostas curtas,
do género Sim/Não).

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o As perguntas devem ser organizadas sequencialmente respeitando


uma ordem lógica e pertinente na entrevista.
o As perguntas devem ser claras, breves e significativas para o tema
em questão na entrevista.
o O registo linguístico deve ser adaptado ao entrevistado ou à situação
da entrevista.
o Devem estar previstas as estratégias para repor a entrevista no tema
central (se esta se desviar para questões acessórias).
o Número total de perguntas ou tempo de duração da entrevista.

1.4. Registo escrito da entrevista

A entrevista impressa pode ser registada em suporte áudio (gravador) mas deve
posteriormente ser passada para um registo escrito. Nesse momento é importante que o texto
escrito esteja correcto do ponto de vista:
· Do conteúdo (respeitando integralmente o proferido pelo entrevistado)
· Da forma (ortografia, pontuação, organização dos blocos textuais)
· Da apresentação (com recurso a fotografias ou documentos complementares).
Depois da entrevista estar passada a escrito é muito importante que o entrevistado
possa rever o texto final de forma a ser possível corrigir pequenos erros, esclarecer
ambiguidades e receber a autorização final de publicação da entrevista. Se não for possível o
entrevistado rever o texto antes da sua publicação, deverá obter-se deste, logo após a
realização da entrevista, a autorização expressa para a publicação.

Para saberes mais:


http://www.prof2000.pt/users/folhalcino/ideias/comunica/entrevista.htm
http://www.cienciaviva.pt/projectos/genoma2003/apoio3.asp
http://www01.madeira-
edu.pt/projectos/vemaprenderportugues/Saber%20Mais/Escrita/Modelos/Docs/modelos_var.htm#entrv
http://turma.sapo.pt/Xz485/723081.html

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EXEMPLO DE UMA ENTREVISTA


Lídia Jorge
Aos 61 anos aventura-se na literatura infantil com O Grande Voo do Pardal: «Imaginei-me pequena, à
altura dos meus afilhados.» É uma história real de amor, amizade e solidariedade entre um homem e um pardal
só com uma pata. Ou não fosse a solidariedade uma preocupação constante da autora: «É uma regra biológica,
antes de ser regra ética, política ou moral, às vezes esquecemo-nos disso.» É em Boliqueime que se isola para
escrever. É lá que encontra espaço para se evadir e salpicar de «harmonia e correcção» o mundo que a rodeia.
ENTREVISTA: Elisabete Pato – FOTOGRAFIA: Bruno Portela

Porque é que decidiu escrever Acho que quando não se é solidário é Quando está a escrever isola-se?
agora para crianças? porque a solidariedade está corrom- Sim. Preciso de muito isolamento.
Neste caso o impulso veio da pida. Os seres humanos existem em Enquanto estou a ler e a escrever
editora. Tinha esta história para rede, em cachos, em grupos. Quando textos pequenos e breves consigo
crianças e tenho outras. É preciso a solidariedade não é praticada isso estar no meu lugar comum, aqui em
uma espécie de predisposição para se significa que há uma corrupção Lisboa. Mas para escrever preciso de
escrever sobre crianças. Escrever daquilo que é o nosso princípio de ir para longe. Gosto de estar no
para crianças necessita que a pessoa coexistência e até de sobrevivência. campo.
deixe que viva e passe a assumir a É uma regra biológica, antes de ser
memória da criança que tem dentro regra ética, política ou moral, às Em Boliqueime...
de si. Devo dizer que foi fácil. vezes esquecemo-nos disso. Alguém Sim. É lá que consigo concentrar-
Imaginei-me pequena, à altura dos que é absolutamente egocêntrico me e fazer aquilo que é necessário
meus afilhados. está a pôr em perigo todo um sistema para escrever.
e a sua própria sobrevivência.
Foi fácil e desafiante? Como se fosse um exílio?
Foi um desafio pelo olhar das Foi professora do ensino Um exílio dourado, escolhido.
crianças como personagem... Em secundário na Beira. Depois viveu e Aqui, o exílio não tem o sentido de
geral perpassam pelos meus livros deu aulas em África... sofrimento. Mas também não é o
crianças, por exemplo. Tenho muitos Na altura as raparigas, em geral, paraíso porque não acontece tudo
contos com crianças. Mas escrever acompanhavam os rapazes. E foi o bem, digamos que é o lugar da
para elas nunca o tinha feito. Quando que aconteceu. O meu primeiro evasão. O sítio onde o mundo se
o levei à editora não sabia se iriam casamento foi com um oficial da reconstrói doutra maneira. Quando
interessar-se pela história. Força Aérea. África foi uma experi- me isolo tenho a noção de que vou
ência intensa porque estive muito medir o meu poder. […] Ora tenho a
Quando é que a escreveu? próxima da guerra. Foi muito duro e ideia de que escrevi uma página
Há dois anos. agressivo, mas ao mesmo tempo de maravilhosa, ora faço um balanço
uma riqueza humana muito grande. absolutamente depreciativo, pen-
É uma história que se baseia em Talvez tenha aprendido, se é que sando que nunca escrevi aquilo que
factos verídicos. Foi buscá-la à sua aprendi, e sublinho isto, a colocar o eu própria sonhei que seria capaz.
Infância? meu ombro a lado dos ombros dos
Não, esta história foi vivida há outros. Passei pela experiência de E reescreve essas páginas?
cinco anos por um amigo meu. O morte que foi África e ao mesmo Há páginas que reescrevo muitís-
Henrique Gaspar não é uma figura tempo de traição das pessoas. E foi simas vezes. Quando volto a abrir um
inventada. É real. Se fosse vivo teria lá que aprendi que as mulheres livro descubro quais são as páginas
a minha idade. Era vizinho da minha podem ser tão agressivas quanto os reescritas. Há outras que, feliz-
mãe e conheci-o rodeado de pássa- homens. Vi muitas mulheres discu- mente, não é preciso reescrever.
ros, de bichos. Os animais conviviam tirem a valentia dos seus maridos Parece que a vida as dá. Parece que
com ele em casa. Um dia, fui encon- com muito mais cegueira do que eles tudo se encaixa e as palavras chegam
trá-lo com um pardal nesta situação próprios. já de forma definitiva. Essas também
que descrevo. as descubro quando abro um livro.
Esteve lá quanto tempo? Sei como é que se iniciaram e
Na vida real o pardal também só Estive entre 1969 e 71 e 73 e 74. terminaram as frases, foi um fio que
tinha uma pata? se desenrolou sem haver interrupção.
Sim. Voltou para cá e continuou a dar
aulas... Em absoluto silêncio?
Neste livro fala de amizade, de Em Tomar, enquanto estava a Sim. Ouço música nos intervalos:
solidariedade. São preocupações do acabar a tese de licenciatura sobre Tchaikovsky, Mozart, etc. Gosto
seu dia-a-dia? Peregrinação, de Fernão Mendes muito de música brasileira, africana
São o ingrediente vivo da minha Pinto. Ao mesmo tempo escrevia e argentina. O Piazzolla é uma refe-
vida. Nem vejo outra forma de viver. histórias, diários. rência para mim. A única irmã que

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tenho é argentina. O meu pai está acontece comigo, vive muito qual- Irrita-me quando as mulheres
sepultado na Argentina. Ele viveu em quer alegria que eu tenha, e também acham que são superiores aos
vários países, constituiu uma segunda tem medo do que me pode acon- homens, que são transportadoras de
família. tecer. Muitas vezes falo com ela uma mensagem de libertação mais
sobre as histórias que estou a elevada do que a dos homens. Acho
A sua mãe está em Boliqueime. escrever. Mas ultimamente o meu que o problema das mulheres é
Sim. Vive no nosso «Monte dos filho é de facto o meu grande leitor, terem dificuldade em perceber que
Vendavais». É a curadora da nossa ajuda-me muito porque é um bom são parceiras e não mestres. É bom
casa, que é o único bem material. A crítico do ponto de vista do texto em que percebamos aquilo que é a nossa
minha mãe empurrou-me para a si. A minha filha, Ana Clara Bárbara, configuração feminina. Os homens
modernidade, quebrou todos os é escultora, e o meu filho, Duarte perante a natureza e a divindade têm
tabus. E a minha avó deu-me o Bárbara, é editor. Estão ligados às mais revolta, mais sentido de
sentido ético da vida. artes, de facto. individualidade. As mulheres para se
afirmarem não precisam de se
É a segunda vez que fala da sua A sua obra fala também sobre o travestir de gestos masculinos.
avó. Como é que ela era? papel da mulher na sociedade.
Era uma pessoa de um grande Ficou contente com a entrega do Em Portugal tratamos bem as
rigor, uma camponesa admirável. Prémio Nobel da Literatura a Doris mulheres?
Tínhamos uma casa de lavoura. Os Lessing? Não. Mas as mulheres têm a culpa
animais, com o arado, traçavam Acho que foi extraordinário. Toda Revejo-me na frase: «Ninguém se
regos na terra e ela andava o dobro a gente pensava que ninguém mais liberta se não quiser ser libertado.»
do caminho percorrido pelos animais. iria dar o prémio à Doris. Corria a Escrevi-a no livro O Dia dos Prodígios
Sozinha para lá ia pondo mãozinhas ideia de que ela era demasiado [1980]. As mulheres acomodaram-se.
de guano. Dava um passo, lançava comprometida para ser uma escritora Como a Agustina Bessa-Luís diz: «A
uma mãozinha de guano. A minha avó de natureza estética. Têm até falado obediência é uma economia do com-
levantava-se ao bater do relógio, que muito dela, sobretudo os países aqui portamento.» Existe em obedecer
ainda temos. Dava umas horas que do Sul, onde não há muitas uma espécie de gratificação para as
acordava toda a gente em casa e nos traduções, sobretudo em Portugal, mulheres, que é bom porque desobe-
arredores. Ela levantava-se às cinco sem a terem lido. Lendo percebe-se decer ou fazer o seu próprio caminho
ou seis horas da manhã. Ainda hoje, que além do lado fraterno com o exige uma luta, um trabalho de luta
quando sou atacada de preguiça, mundo e do comprometimento com a contra a cobardia. Em geral as
porque eu sou muito preguiçosa, mudança social, Doris Lessing é uma religiões, não são só as nossas mas as
lembro-me da forma como ela se criadora, é uma artista de imensa que fundam as grandes civilizações,
erguia. Hoje pergunto: porquê? Qual dimensão. É um erro menosprezá-la. puseram como dogma a inferioridade
foi o suco que ela deixou na vida? das mulheres. E a mulher consentiu.
Algum deve ter deixado. E o Nobel é suficiente para que
se construa outra imagem de Doris Mas em Portugal as mulheres
Que relação têm os seus filhos Lessing? estão a libertar-se.
consigo enquanto escritora? O Nobel é um prémio impossível, Sim. Nos últimos trinta anos, e de
Enquanto eram pequenos procurei sempre que é dado a alguém fica forma acelerada, as mulheres têm
não os envolver. Eles não liam os uma centena de escritores no mundo vindo a ganhar um estatuto assina-
meus livros. Os meus filhos tinham o por premiar. Foi simbólico porque lável. Aquilo que mais sublinho é o
problema da ausência do pai e deram a uma mulher velha, cheia de facto de terem tido acesso à
procurei que eles tivessem a sua mãe cabelos brancos, empenhada e uma magistratura e de a estarem a exer-
por inteiro. Eu tinha esse grande grande escritora. A forma como ela cer com tanta dignidade como os
vício da escrita e ao mesmo tempo recebeu o prémio, aliás corre no homens. A decisão de dizer quem é
tinha uma profissão. Hoje acho que youtube, a saída dela do táxi, acho criminoso ou inocente é apanágio do
não fui uma mãe exemplar, mas na que é de uma comoção imensa. Ela nível mais elevado da sociedade.
altura julguei que as opções que fiz com o filho, com o braço doente,
foram sempre as melhores. Conheci tendo ele numa das mãos uma Acredita em Deus?
filhos de escritores que viveram com alcachofra e na outra uma réstia de Era bom existir um princípio que
a sensação de que os pais eram cebolas... E a surpresa dela, justificasse a nossa vida obscura.
pessoas com importância. Os filhos desgrenhada como qualquer mulher Vimos de um escuro e vamos para
têm de saber que eles é que são velha que vai às compras. Acho que uma interrogação. E a maior parte
importantes. foi um presente para todas as das vidas não tem sentido. A nossa
mulheres, que nunca terão reconhe- vida é procurar esse sentido, e é
E agora como é que é? cimento pela sua própria vida. pouco. Imaginar essa busca pode ser
São grandes companheiros. A a razão. É uma traição enorme à
minha filha, que vive em Inglaterra, O que é que a irrita na vivência natureza humana se não houver uma
interessa-se bastante com o que da mulher na sociedade? divindade.

Entrevista publicada na revista Notícias Magazine, de 04 de Novembro de 2007.


Texto reproduzido com cortes.

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