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Revista de Cultura do
Diário Oficial do Espírito Santo
Ano VI - n.º 33 • Vitória-ES • Maio de 2016 • Bimestral
cortinas
A trajetória de luta do teatro capixaba para
continuar a criar público e para garantir
espaço para quem produz arte no Estado.
Foto: Divulgação/Diego Sá
Páginas 3 a 9
Editorial
O
s encantos, as dificul- Duílio Henrique Kuster Cid, J. Nunes fala um pouco dessa
dades e a trajetória do que resultou na dissertação história.
teatro produzido no de mestrado em História, na O uso de projetos culturais
Espírito Santo são o mote prin- Ufes, e, finalmente, no livro no apoio a terapia de pacientes
cipal desta edição do Caderno “Revolução dos Caranguejos do HEAC, como o Cineclube
D. A maior efervescência da – o Teatro no Espírito Santo Lanterna Mágica, e a gestão
produção local, que coincide durante a Ditadura Militar”, compartilhada do Patrimônio
exatamente com o período da recentemente lançado. Cultural, também compõem esta
Ditadura Militar, é a inquieta- O estudo de Cid nos fez edição.
ção do ator, professor e escritor ampliar a discussão, ouvir ato- Boa leitura! n
Caderno
Revista de Cultura do
DIO
MIRIAN SCÁRDUA
Diretora-presidente
Coordenação de produção
Sérgio Egito e Stephanie Oliveira
A
constatação do livro “Re- Santo (FCES) e, depois da extin-
volução dos Caranguejos ção da FCES, do Departamento
– o Teatro no Espírito Estadual de Cultura (DEC), que
Santo durante a Ditadura Mili- tinham políticas definidas para
tar”, de Duílio Henrique Kuster o teatro por quem conhecia bem
Cid, de que o segmento teve um o meio e suas necessidades.
dos seus períodos de maior efer- A reforma do Carlos Gomes
vescência no Estado nos tempos ganhou força durante a passagem
duros da Ditadura Militar pode da peça “Liberdade, liberdade”,
surpreender muita gente, mas que tinha o ator Paulo Autran à
não chega a impressionar um frente do elenco. As péssimas
dos precursores do teatro nessas condições do local obrigaram o
terras, o ator, diretor e jornalista grupo a limpar canto por canto,
Luiz Tadeu Teixeira. poltrona por poltrona. A peça
Mais do que a criativida- foi apresentada e ao final o ator
de ou a inquietação dos artistas chamou a atenção da plateia para
nesses momentos de crise, que a situação do teatro e cobrou
poderiam motivar quem produzia dos estudantes capixabas uma
teatro por aqui, a coincidência, postura de defesa daquele bem
na visão de Teixeira e reforçada público.
por Cid, que é também histo- A situação, conforme Cid,
riador e ator, tem uma relação gerou constrangimento para o
Foto: Divulgação/Juçara Batista
Os obstáculos ao
artista local
Apesar da falta de dinheiro
e de um certo preconceito que
se tem com a produção artística
desenvolvida fora dos principais
eixos do país, o diretor, ator,
dançarino, coreógrafo e profes-
sor Marcelo Ferreira, que come-
çou a aparecer na cena capixaba
na década de 1980, destaca que
as pessoas continuam a produzir
teatro de qualidade no Estado.
O poder da crítica
Alguns dos obstáculos ao
desenvolvimento ou acelera-
mento da produção de teatro
local, segundo a atriz e diretora
Margareth Galvão, começa pela
falta de uma análise crítica do
Foto: Divulgação/Victor Zorzal
em todos os setores, o teatro e a sível viver só como atriz. “Eu há como viver só de bilhete-
dança ainda prosperam, “já que misturo tudo, a atriz, a profes- ria”, confirma Cid. Os grupos
é da crise que vive o artista, um sora, para poder viver de forma locais, mesmo quando aprovam
inconformado por excelência”. absurdamente modesta.” projetos em leis de incentivo,
Margareth, que é de São O exemplo da atriz é segui- como a Rouanet, ainda acabam
Paulo, radicada no Espírito San- do pelo ator e historiador Duílio patinando na hora de conseguir
to, vê um outro fator importante Henrique Kuster Cid, um dos “vender” o patrocínio.
que atrapalha o desenvolvimento membros do Grupo Folgazões
artístico local, que ela comparti- Cia. de Artes Cênica e autor do
[
lha como um sentimento comum livro “Revolução dos Caran- Margareth
a muitas pessoas que vêm de guejos – o Teatro no Espírito Galvão
fora do Estado, que seria um Santo durante a Ditadura Mi-
certo complexo de inferioridade litar”. Mesmo com uma ativi- É atriz, diretora, drama-
do capixaba. Ela reclama, por dade frequente, especialmente turga e professora de Teatro,
exemplo, do valor que se dá aos considerando o mercado local, nasceu e viveu 29 anos em
espetáculos que vêm de fora, Cid disse que todos do seu grupo São Paulo. Estudou teatro na
Fundação das Artes de São
quando eles são de baixa quali- precisam recorrer a outras ocu-
Caetano do Sul, em São Pau-
dade e superestimados. “O cara pações. Quem mais se aproxima
lo, na década de 1970, tendo
vai a algumas coisas horríveis, dessa sobrevivência, hoje, acaba
professores como Eugenio
que vêm de fora, e não paga R$ derivando para o conceito de Kusnet e Jonas Bloch. Radi-
10,00, R$ 20,00 para ver um teatro-empresa, que atua, tam- cada em Vitória, formou-se
trabalho bem legal aqui.” bém, por encomenda, fazendo, em Artes Visuais pela Ufes.
por exemplo, peças com conte- Ganhou três prêmios: Sated,
Trabalhadores da arte údo relacionado à necessidade como melhor atriz; Marlim
Para o artista local acomo- de um patrocinador ou de uma Azul, como destaque no
dado, Margareth manda recado: organização. cinema capixaba e como
“Dei aula 16 anos na Fafi. A arte Essa realidade não é uma diretora; e melhor espetá-
não cai do céu. Não tem essa exclusividade local. Até gru- culo de Rua no Festival de
história de talento, de genialida- pos considerados entre os mais São Mateus e no Festival de
de. Somos, hoje, trabalhadores bem-sucedidos do país, como o Juiz de Fora. Atualmente dá
da arte. Como artista, é preciso Galpão, de Minas Gerais, acaba cursos de interpretação para
estudar muito, trabalhar duro”. precisando das leis de incenti- câmera de cinema e vídeo,
Apesar do longo período de tea- vo ou de patrocínios diretos de prepara cantores líricos e
tro, Margareth diz que é impos- empresa para sobreviver. “Não elenco de filmes.
[
no Arquivo Público, no Grupo
Marcelo Ferreira de Teatro da Barra, no Instituto
Jones dos Santos Neves, nos do-
Iniciou a carreira no teatro na década de 1980. Entre 1986 a 2000, cumentos oficiais da FCES, do
foi produtor e bailarino da Cia. Neo-Iaô de Dança, em parceria com
DEC e da Funarte, bem como nos
Magno Godoy. Em 2003, criou a Cia. de Teatro Urgente, que tem no
jornais locais mais influentes na
seu repertório os espetáculos “Back to Beckett”, apesentada naquele
época.
ano; “Godot” (deu a Marcelo e ao Teatro Urgente os prêmios de me-
lhor espetáculo, diretor e ator do Festival Nacional de Teatro de São
Entrevistas com atores e
Mateus), em 2005; “Nosferatu”, apresentado em Vitória, São Paulo e
autores teatrais capixabas como
Rio de Janeiro, na temporada de 2006; “Metropolis” (deu a Marcelo
Luiz Tadeu Teixeira, Renato Sau-
o Prêmio Klaus Viana de Dança Funarte/Minc), encenada no Rio de dino, Paulo De Paula, Sebastião
Janeiro, em São Paulo e em Vitória (durante o Festival Nacional de Xoxô, José Augusto Loureiro
Teatro de Vitória), em 2007; “Fahrenheit 451” (que ganhou o prêmio e Rômulo Musiello ajudaram a
de Trilha Original no Festival Nacional de Teatro de Guaçuí), em 2008; fechar a história. Entre as poucas
“Via Sacra”, um vídeo-dança, apresentado em Tiwanaku, La Paz, na obras que encontrou, a “História
Bolívia, em 2009; “Playbeckett”, em 2011; “Mefisto”, apresentado em do Teatro Capixaba, 395 anos”,
2012, no Espírito Santo e dentro do Projeto ES em Cena, em Salvador, do psicólogo Oscar Gama (ele
São Luís, Curitiba, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, em 2013 e 2014; vai de José de Anchieta até 1980,
“Ópera Pobre”, em 2013, que também passou pelo projeto Circulação quando o livro foi publicado) é
Cultural por seis cidades do Espírito Santo; e “Crash, ensaio sobre a a mais relevante, embora tenha
falência”, em 2015. Além da carreira no teatro, é jornalista e professor um perfil mais descritivo.
e está cursando o mestrado em Artes, na Ufes. Duílio Kuster Cid explica
que o seu objetivo foi estudar as
políticas públicas de incentivo ao
teatro no Estado nesse período.
Foto: Arquivo pessoal
A importância da gestão
compartilhada do Patrimônio Cultural
N
o Brasil, o reconheci- “A Gerência No Espírito Santo, a pro-
mento da necessidade teção do Patrimônio Cultural
de proteção do patrimô- de Memória e tem por base legal a Lei nº
nio histórico e artístico teve seu Patrimônio 2.947, de 16 de dezembro de
embrião nos anos 1920, época 1974, inspirada nos moldes do
em que o grupo conhecido por da Secult ES, Decreto-lei nº 25/1937 e que
“Caravana Paulista”, compos- é regulamentada pelo Decre-
to, entre outros, por Mário de intensificou to 626-N/1975. Na prática, em
Andrade, Oswald de Andrade, a presença nos relação ao decreto-lei é feita
Tarsila do Amaral, D. Olívia uma transposição da estrutura
Guedes Penteado, Paulo Prado, sítios, com o do Sphan para o Conselho Es-
partiu em viagem ao interior objetivo de se tadual de Cultura, praticamente
de Minas Gerais, na certeza de repetindo os mesmos preceitos
que a construção de uma arte e aproximar das da legislação federal.
uma cultura nacional passava, A Constituição Federal
necessariamente, pelo resgate gestões municipais de 1988 expande o conceito de
do passado como referência. e da população” patrimônio cultural, de modo
A partir das discussões con- a abarcar os bens de natureza
duzidas por Mário de Andrade to jurídico do tombamento no material e imaterial, nos quais
sobre a necessidade da criação Brasil como forma de proteção se incluem: as formas de expres-
de um órgão federal que pudesse do patrimônio cultural, e que são; os modos de criar, fazer e
zelar pelo patrimônio histórico e também criou o Serviço do Pa- viver; as criações científicas,
artístico nacional, é que foi pro- trimônio Histórico e Artístico artísticas e tecnológicas; as
mulgado o Decreto-Lei nº 25 de Nacional (Sphan), atual Insti- obras, objetos, documentos,
30 de novembro de 1937, marco tuto do Patrimônio Histórico e edificações e demais espaços
legal que instituiu o instrumen- Artístico Nacional (Iphan). destinados às manifestações
O
apoio lúdico à te-
rapia dos pacien- Luz e arte
tes do Hospital
Estadual de Atenção Clíni-
A longa experiência Clínica (HEAC)?
ca (HEAC), antigo Adauto de Marcos Valério no mo- Sim. Os equipamentos
Botelho, e do seu vizinho vimento cineclubista o de projeção permanecerão
Centro de Atenção Psicos- credenciou para a realiza- nas instalações do HEAC.
social (Caps) Moxuara, em ção do Cineclube Lanterna A ideia é que as atividades
Cariacica, é o objetivo do Mágica. Ele está encantado permaneçam, com a oficina
Cineclube Lanterna Má- com o trabalho, acredita na final de formação cineclu-
função social e terapêuti- bista, que será realizada
gica, do cineasta e cine-
ca do que vem ajudando nas últimas três semanas
clubista Marcos Valério. a construir no HEAC e no do projeto, incluindo a Moxuara, assim como uma
A iniciativa faz parte do Caps Moxuara e se apressa a capacitação de formata- ferramenta possível para
projeto “Cultura na Saúde dizer que sua função, neste ção de projetos, visando, os terapeutas e psicólogos
Mental”, um trabalho que caso, é de oficineiro, o que principalmente, os editais envolvidos.
reúne as secretarias de Es- garante um contato muito da Secretaria de Estado da
tado da Cultura (Secult) e próximo com o paciente. Cultura (Secult). Que filmes foram exibidos
Valério fala da sua experiên- até agora? Que atividades
a da Saúde (Sesa).
cia no projeto e da impor- Qual é a proposta central são propostas após a exibi-
O lançamento oficial tância do audiovisual como do projeto? ção dos filmes e qual a re-
foi no dia 1.º de março, elemento de socialização Exibir filmes, realizar ceptividade dos pacientes?
na sede do hospital, com a de pacientes, terapeutas e debates e conversas sobre É uma lista muito longa
exibição do filme “Melodi- psicólogos envolvidos. conteúdos dos filmes e pro- de filmes, mas é uma mes-
ário”, de Marcos Valério. cedimentos dos cineastas cla de filmes de animação,
A previsão é de, com o Ci- O C ine cl ube Lanterna em seus filmes, assim como documentários e ficção, a
Mágica existe desde de- exercitar a prática audio- maioria curtametragens,
neclube, realizar semanal-
zembro e o convênio se visual, com exercícios de com uma cesta de autores
mente a exibição de filmes, encerra em agosto. Após câmera e corpo, animações, e produções capixabas. A
além de fornecer oficinas este prazo, serão doados pinturas e, iniciando agora seleção leva em conta os
de formação e debates. equipamentos adquiridos em maio, um ensaio de TV, exercícios. Assim, em al-
Uma sala de projeção pelo projeto para o Hos- utilizando a sua dinâmica guns momentos, os filmes
foi preparada para abrigar pital Estadual de Atenção para exercícios de texto e exibidos demonstram mais
expressão de voz e corpo, elementos sensórios e per-
assim como a produção ceptivos, com tempos lon-
de imagens-síntese. Além gos ou ritmos demarcados
disso, apostamos no au- com elementos gráficos
diovisual como ativador de e campos de cor; outros
sensorialidades, de percep- exploram e questionam
ções e expressões, e como a necessidade de objeti-
um elemento que se soma vidades nas narrativas (o
ao processo de terapia ao non-sense); outros trazem
qual estão inseridos os pa- questões conceituais, como
cientes do HEAC e do Caps o cinema direto, questões
N
a noite de 13 de abril que faz a lucidez e o delírio da viu o mundo pela primeira vez,
de 2016, em que se prosa de José Carlos Oliveira, “nu, com vermes, com perebas
completaram 30 anos nascido entre nós, falecido en- e com fome”, como narrado
do falecimento de José Carlos tre nós, mas com um hiato em em seu romance-confissão “O
Oliveira, a Biblioteca Pública que, em terra estranha à de sua pavão desiludido”, aliás jus-
do Espírito Santo fez uma justa origem, construiu uma repu- tamente considerado por Luiz
homenagem a esse grande es- tação literária extraordinária Guilherme Santos Neves como
critor capixaba. Reunidos em que talvez não alcançasse na “o primeiro grande romance da
torno do evento intitulado “A aldeia original. literatura brasileira”.
crônica brasileira de José Car- José Carlos Oliveira nas- José Carlos Oliveira con-
los Oliveira - 30 anos depois”, ceu entre nós, ali no Morro do tinuaria a residir no Centro de
compuseram a mesa José Irmo São Francisco, na Cidade Alta. Vitória parte de sua meninice,
Gonring, Regina Egito e Rei- Para quem não está entre nós, vivida no perímetro da Praça
naldo Santos Neves, expositores a Cidade Alta é um dos bairros Costa Pereira numa época em
ligados ao homenageado por de Vitória, no Espírito Santo, que a cidade era um arremedo
reconhecimento e fascínio de localizado na região dentro dos do que chegou a ser, antes de
sua poderosa produção literá- limites daquilo que se conven- mudar-se com a família para
ria ou por laço de parentesco, cionou chamar Centro Histó- Jucutuquara, onde passaria
como é o caso de Regina Egito, rico de Vitória, pois que nessa seus últimos dias de adoles-
sobrinha em primeiro grau e circunscrição nasceu a cidade cência e juventude. O escritor
herdeira dos direitos de sua em seus cambiantes primeiros Ivan Borgo o conheceu nessa
obra. passos. Se estivesse vivo, em época, e dele traça um retrato
As efemérides são incô- agosto comemoraríamos com admirado, quase paternal, “um
modas, mas eventualmente ele, certamente em grande fes- menino vivaz, interessado, in-
esse receio é injusto. É o caso ta, seus 82 anos de idade, já que quieto, perscrutador, pediu-me
aqui, caso de lembrar um es- ele nasceu nesse mês, no dia 18, logo emprestados alguns livros
critor com um texto poderoso, no ano de 1934. O Morro do do Jorge Amado e foi pegá-los
um homem que viveu para a São Francisco é esse lugar de afobado no dia seguinte àquele
literatura, um leitor dedicado, suas tristes lembranças, “roído em que o conheci”, um menino
um observador atento de seu de mato bravo e pontilhado de que, já na cidade longínqua, lhe
tempo. Caso de lembrar a falta bananeiras e mamoeiros”, onde escreveria, como se escreve a
um tutor literário, “descobri
Balzac!”.
“É indispensável ler Mas – ai, triste cidade que
desmerece os seus! –, José Car-
José Carlos Oliveira. Para los Oliveira não caberia nesse
perímetro original. Incômodo
que usufruamos de sua lucidez, e brilhante, atrevido e pers-
de sua perspicácia, de sua picaz, características que lhe
arranjaram o dom de rebelde
grandeza literária...” precoce, daí reduzido a mera-
Santos Neves, “mas certamente é autor dos romances “Aninhanha” e “Menino” e dos volumes de contos
também retornou para estar en- “Vilarejo e outras histórias” e “A última noite”, entre outros