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Verbetes.
PARÓDIA E PASTICHE
É frequente a confusão, quase natural, entre o conceito de paródia e outros que vivem
nas suas proximidades, sobretudo: a sátira, o pastiche, a paráfrase, a alusão, a citação e o
plágio. Se conseguirmos estabelecer uma diferenciação lógica entre estes conceitos, já
teremos dado um passo importante para a definição da paródia como paradigma de uma
certa forma de fazer arte, que a seu tempo circunscreveremos à arte pós-moderna.
Arrisquemos as seguintes proposições iniciais, sem a pretensão de as transformarmos
em fórmulas científicas:
b) A sátira censura e referencia, mas não imita, não deforma e não desenvolve um texto
preexistente.
d) O plágio imita ilegitimamente e transcreve, mas não deforma, não censura, não
desenvolve e não referencia um texto preexistente.
e) A paráfrase desenvolve, referencia, mas não deforma, não censura, não imita e não
transcreve (antes reescreve) um texto preexistente.
f) A alusão referencia, mas não deforma, não censura, não imita, não desenvolve e não
transcreve um texto preexistente.
g) A citação transcreve, imita e referencia, mas não deforma, não censura e não
desenvolve um texto preexistente.
iv) O pastiche, o plágio, a alusão, a paráfrase e a citação não usam a ironia como
estratégia retórica.
O pastiche não é corrosivo para o texto que imita, ao passo que a paródia não pode
dispensar esse efeito, se quiser funcionar como tal. Seja o texto de Alexandre O’Neill
“Sá de Miranda Carneiro” (Poesias Completas, IN-CM, Lisboa, 1990, p. 373):
comigo me desavim
O que a paródia partilha com o pastiche é a mesma tolerância para com o conceito de
intertextualidade. Esta é identificável na paródia e no pastiche, porque se trata, a níveis
diferentes, de sobreposição de textos em relação a outros. Linda Hutcheon não aceita
qualquer sinonímia entre paródia e intertextualidade (A Theory of Parody, p. 23),
porque as associações que se produzem no intertexto não são controladas (pelo leitor ou
pelo ouvinte ou pelo espectador), o que é exclusivo da paródia. Diria antes que são as
associações textuais, arbitrárias ou construídas, que constituem o fenómeno da
intertextualidade. Quando tais associações são feitas com o objectivo de produzir o
cómico ou um efeito de ridicularização ou quando pretendem sobre-(im)por-se a um
texto precedente, chegamos ao limiar da paródia. A intertextualidade pode ser vista,
deste modo, como a condição de partida da formação da paródia e não um seu
sinónimo, ou seja, por outras palavras, a intertextualidade é uma condição necessária da
paródia mas não a sua definição estrutural.
Uma arte como o do cartaz publicitário recorre ao pastiche criativo quase como uma
necessidade, para além das obrigações comerciais e informativas. Os cartazes de João
Machado, que produzem elaboradas e cuidadosas associações cromáticas ao serviço das
colagens de objectos para produzir as várias metáforas visuais, são um bom exemplo do
pastiche criativo sem ironia, sem intenção parodística. Insisto que esta possibilidade do
pastiche é também pós-moderna. O que os cartazes de João Machado conseguem, por
exemplo, os que tem produzido para o Cinanima, festival de cinema de animação
organizado há 21 anos em Espinho, ultrapassam em muito a mera lógica comercial ou
informativa que dita a criação de qualquer cartaz publicitário: roubam-nos a atenção
para além da mensagem utilitária que têm necessariamente que conter e é nesse
momento que podemos começar a falar de arte gráfica. Em entrevista ao Expresso (18-
1-1997), João Machado diz: “O cartaz tem de ser lido à primeira vez. Se quem o olha
tiver um choque, atingiram-se os objectivos desejados. Porém, pretendo assegurar uma
segunda leitura, de forma a que seja observado e captado de forma diferente. Nesse
segundo momento, tem de haver como que um convite à releitura que leve a uma nova
abordagem.” Situo neste segundo momento a inauguração da arte gráfica. E, ao
contrário do contrato estético que a dança de Billy T. Jones procura estabelecer com a
textualidade literária, o design de João Machado tende a anular qualquer relação
intertextual que se queira relevar do cartaz, porque o que lhe interessa é, sobretudo,
dizer a virtualidade do visual (“A minha preocupação com a imagem tem
preponderância sobre o texto. Depois são os códigos visuais que cada um tem que se
sobrepõem sempre aos códigos linguísticos.”, diz ainda na referida entrevista).
É necessário agora proceder a uma distinção mais difícil entre a paródia e a sátira. Seja
o seguinte texto de Nicolau Tolentino, uma sátira sobre “A Guerra”, que tem a precedê-
la uma interpelação “ao visconde de Vila Nova da Cerveira, depois marquês de Ponte de
Lima, no ano de 1778”, feita nestes termos: “Não me acovarda o nome de sátira, só
odioso ao vulgo ignorante: V. Exª sabe que, quando ela fere nos costumes, sem assinalar
os homens, é a espécie de poesia em que mais vezes se dão as mãos os seus dois fins, a
utilidade e o recreio.” (Memórias e Sátiras, Apresentação, fixação do texto e notas de
José Colaço Barreiros, Felício & Cabral, Porto, 1995, p.87). “Utilidade e recreio” são
categorias que servem a sátira e a paródia ao mesmo tempo, não servindo como critério
de diferenciação; porém, o acto de “ferir os costumes” está mais próximo da sátira do
que da paródia. A melhor forma de as distinguirmos a partir daqui será atentar no tipo
de ulceração produzida no objecto parodiado/satirizado: o ataque parodístico é quase
sempre feito de forma travestida ou simulada, protegido pelo véu da ironia; o ataque
satírico é desvelado e não precisa de nenhuma protecção retórica, porque de alguma
forma se concretiza por uma atitude de desprezo completo em relação ao objecto
satirizado. Ao deformar, a paródia quer mostrar a falência de um modelo original
deixando em aberto uma possibilidade de regeneração pelo próprio exemplo parodiado;
ao censurar, a sátira não admite qualquer possibilidade de regeneração do objecto
satirizado, interessando-lhe apenas a destruição como modelo desse objecto.
O que distinguirá a paródia como estilização modernista da paródia dos discursos pós-
modernos é o facto de nestes se entender toda a relação de dissemelhança de um estilo
em relação a um outro preexistente como uma contra-estilização e não como simples
sobreposição de modos discursivos que convergem em tema mas divergem em sentido.
Não é suficiente estilizar um discurso preexistente para denunciar o seu
convencionalismo, porque é possível levar essa estilização a um ponto de ebulição tal
que o estatuto epistemológico do discurso parodiado seja totalmente negado. A contra-
estilização não só perverte o sentido original mas também destrói qualquer possibilidade
de ele poder voltar a ter valor epistemológico.
Toda a repetição ou retoma de um texto a ser objecto de paródia tem que pressupor uma
diferenciação. O texto A que parodia o texto B tem que resultar diferente pelo sentido,
pela ideologia (como sistema de ideias do texto) e/ou pela forma. Não se trata de uma
duplicatio de estilos ou de textos, mas de um efeito metalinguístico que se obtém
sempre por meio de uma diferença subentendida. Se aquilo que separa os dois textos
(A- parodiante e B-parodiado) não ficar subentendido, o leitor não reconhecerá o efeito
pretendido, assumindo tratar-se de mera paráfrase. Portanto, a paródia não pode ser
reafirmadora do sentido mas desafiadora de tudo o que num texto preexistente suportar
ser desconstruído.
A paródia nunca se pode constituir como suplemento do objecto sobre que incide. Se o
objectivo do texto-paródia é o de se dar pela diferença em relação ao texto-parodiado,
então nunca poderá conter nenhum elemento de continuidade daquilo que representa o
objecto parodiado. É sobretudo com descontinuidades que se constrói o discurso
parodístico. O romance de Mário de Carvalho Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias
sobre o Assunto (1995) escolhe uma estratégia narrativa que recorre a estes tipo de
descontinuidades. Variada é a galeria de figuras e temas que são objecto de paródia,
com esta singularidade: tudo está ligado de uma forma ou de outra à literatura e às suas
formas de produção e criação. Eis a paródia do autor compadre (João de Melo): “Mas
isto de gostos e de cores, parece que não é para discutir. Já foi, mas agora não é outra
vez. Se o meu amigo João de Melo, num dos seus livros, me assevera, com uma
convicção firmemente reiterada, que “o mar é branco”, seria de um mau gosto prosaico
e burgesso ir dizer-lhe, contrariando-o, embora com afabilidade: «olha que não, João, o
mar não é branco, isso são as espumas; o mar é…». “ (2ªed., Caminho, Lisboa, 1995,
p.17); as teses académicas feitas no estrangeiro por indivíduos que foram rejeitados pelo
sistema português aparentemente por este não lhes reconhecer idoneidade ou capacidade
intelectual para tanto, o que vem a dar teses do tipo “As Disposições das Alminhas nas
Encruzilhadas do Alto da Beira” (p.19); a forma de construção do enredo que não se
compadece com divagações (“E porque já vamos na página dezoito, em atraso sobre o
momento em que os teóricos da escrita criativa obrigam ao início da acção, vejo-me
obrigado a deixar para depois estas desinteressantes e algo eruditas considerações sobre
cores e arquitecturas, para passar de chofre ao movimento, ao enredo. Na página três já
deveria haver alguém surpreendido, amado, ou morto. Falhei a ocasião de ‘fazer
progredir’ o romance. Daqui por diante, eu mortes e amores não prometo, mas
comprometo-me a tentear algumas surpresas.”, p.18); o recurso a mecanismos temporais
de desenvolvimento da narrativa como a analepse (“Abra-se aqui uma analepse, que é a
figura de estilo mais antiga da literatura (…). Não me ocorre agora nenhum escritor que
abomine as analepses, mas deve haver algum. Esse não será, com mágoa minha, leitor
deste livro, o que lhe restringe perigosamente o alcance.”, p.21); o encaixe de sonhos,
como é prática habitual em muitos escritores que os utilizam quase como categorias
literárias (“Vinha a calhar agora um sonho, com multidões, cânticos e bandeiras e umas
irrupções disparatadas, com luares surrealistas sobre descomunais tabuleiros de xadrez
de que as pedras fossem rinocerontes bailarinos, para dar verosimilhança ao sonho que,
por definição, é inverosímil e portanto só com inverosimilhanças é que se aceita,
embora as verosimilhanças que vão de par com as inverosimilhanças estejam carregadas
de sentido e de piscadelas de olhos, quando não são as inverosimilhanças que batem
certo com os dicionários de símbolos de que, por acaso, não tenho nenhum exemplar à
mão.”, p.33); a própria ansiedade de influência que naturalmente tem que afectar o
romancista (“Eu gostava de ter escrito ‘mede a sala a grandes passadas’, mas
francamente, receio que o leitor já tenha lido isso em qualquer lado. A quem escreve,
faz sombra esta barreira constante, eriçada de farpas, daquilo que outros mais expeditos
ou temporãos escreveram antes. Custa-me estar vedado o uso de ‘Por uma noite escura e
tempestuosa…’, por exemplo. Alguém se apropriou da frase e dela se fez dono, de
maneira que me vejo obrigado a criar os meus próprios lugares-comuns e Deus sabe
como eles são inspirações do génio que me falta.”, p.50); as cómodas soluções deus ex
machina (“Quer-me parecer que o leitor, neste ponto, ávido de conhecimentos sobre o
futuro de Joel Strosse manifesta alguma impaciência, que lha vejo na cara. (…) A
literatura é coisa muito séria, onde não entra o zapping. Eduarda tem um destino a
cumprir e eu arranjarei maneira de a integrar na história, nem que tenha de fazer sair um
deus duma máquina.”, p.59); e ainda as costumeiras adaptações cinematográficas de
romances (“Se fizerem um filme deste romance quero-o, nesta passagem, muito
expressionista, de estúdio, cheio de efeitos, com muito papel pintado, e habilitado a
palavras sagazes dos Cahiers du Cinéma, ou de quem quer que os substitua.”, p.184).
Assumindo que a paródia como categoria literária foi identificada por Bakhtin em
épocas tão distantes como a Idade Média e o século XX, aceitemos que o paradigma da
paródia carnavalesca não pode servir como paradigma pós-moderno, quanto mais não
seja por esta razão histórica, não tão frágil como possa parecer. Assim, se aceitarmos
que o modelo parodístico carnavalesco se orienta sobretudo para o social e admitirmos
outro(s) tipo(s) de discurso(s) parodístico(s) que se oriente(m) noutra direcção, podemos
inaugurar outros modos de representação (ou contra-representação, se quisermos já
avançar com elementos de subversão sempre necessários à fundação de uma estética)
que sirvam melhor aquilo a condição da paródia como paradigma pós-moderno. Neste
caso, deve ser orientada não objectivamente para o social mas ideologicamente para 1)
os conceitos (paródia conceptual); 2) os intertextos (paródia intertextual); 3) os
intratextos (paródia intratextual). Em qualquer caso, a paródia há-de servir-se sempre
dos mesmos recursos: a máscara, o grotesco, o burlesco, o riso, o equívoco, o ridículo, a
paronomásia, a ironia, a paronímia, etc. É o objecto da estratégia parodística que pode
ajudar a distingui-la historicamente e não propriamente a sua definição primária.
Sendo a paródia um discurso com voz, o que se diz tem que remeter sempre para o já
dito - o sujeito do discurso parodístico jamais se desvia da influência que o outro-
parodiado exerce sobre si. Um texto que pode dizer com propriedade esta lógica é o
romance bicéfalo O Defundo Elegante (1996), de Luísa Costa Gomes e Abel Barros
Baptista. Da incerteza inicial sobre a possibilidade de o romance sequer chegar a ser
escrito até à forma epistolar dada à narrativa e passando pela incerteza de haver sequer
uma história para contar à medida que o texto vai crescendo, tudo concorre para uma
ideia de paródia das convenções literárias como feitiço que acaba por se virar contra os
feiticeiros da escrita. A obsessão central deste romance bicéfalo é a construção de uma
“história bem contada”, no pressuposto de, à medida que tal “história” vai sendo
contada, jamais os escritores terem qualquer certeza sobre a possibilidade de chegar
sequer a ser uma história. A ironia concretiza-se apenas no momento em que a essência
filosófica da história, que qualquer romance deve ser/contar, acaba por triunfar sobre a
incerteza mais ou menos gozada pelos escritores durante o tempo de escrita. À
ansiedade pela ausência de uma história que possa constituir um romance sobrevém
agora a ansiedade por não haver mais história para contar, uma vez chegados à
conclusão de que afinal não há incerteza nem indeterminação que possam constituir
impedimento à criação literária.
Bibliografia
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