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Bibliologia: Revelação, Inspiração e Cânon

João Alves dos Santos

Aula 9: A Formação do Cânon do Antigo Testamento

Introdução

Já que o reconhecimento da canonicidade de um livro é tarefa da Igreja, é preciso


estudar como se deu esse reconhecimento ao longo da história. Quando dizemos que o
autor tinha consciência de estar escrevendo a revelação de Deus (consciência profética),
não estamos dizendo que tivesse ao mesmo tempo consciência de que estava
produzindo algo que mais tarde faria parte de um todo, que agora chamamos de Bíblia.
O reconhecimento da inspiração era imediato, por parte dos que primeiro entravam em
contato com o texto, mas a reunião desse texto a outros igualmente reconhecidos e a sua
compilação demorou algum tempo. A esse processo podemos chamar de canonização,
desde que pelo termo entendamos não a determinação do que hoje chamamos de
canonicidade, mas o seu reconhecimento e compilação. Como se deu a formação do
cânon do AT? É o que veremos nesta aula.

1. Passos no processo da canonização

Três são os passos geralmente apresentados como as partes desse processo: a inspiração
divina, o reconhecimento dessa inspiração por parte do povo de Deus e a compilação e
preservação por esse povo.

1.1. A inspiração: Estritamente falando, este passo não faz parte do processo de
canonização. É a razão de ser do processo e não parte dele. É porque o livro é inspirado
por Deus que existe o seu reconhecimento e compilação (a canonização). A inspiração
confere ao livro a canonicidade que leva a Igreja a canonizá-lo (declará-lo canônico).
Não é atividade humana e, por conseguinte, não é parte do processo, a menos que a
consideremos como a parte de Deus, como o fazem Geisler e Nix.[1]

1.2. O reconhecimento: O processo da canonização começa com o reconhecimento da


inspiração, ou para dizer de modo mais claro, da autoridade do livro. Esse
reconhecimento ocorria imediatamente, por parte da comunidade que recebia o
documento. As palavras de Moisés foram reconhecidas imediatamente pelos seus
contemporâneos como sendo palavra do Senhor (Êx 24.3,7), assim como as de Josué
(Js 24.24-27) e de Samuel (1Sm 10.25). O mesmo aconteceu quando o livro da lei,
achado por Hilquias, foi lido perante o rei e depois, a todo o povo (2Rs 22-23), quando
Esdras leu o livro da lei diante do povo (Ne 8, 10 e 13).

1.3. A compilação e preservação: Este passo completa o processo da canonização. À


medida que os livros iam sendo escritos e reconhecidos, eram guardados e juntados aos
outros já existentes, formando uma coleção de escritos sagrados. Como este processo se
deu não está muito claro nos registros bíblicos, mas há alguns textos que sugerem que
essa era a prática. O livro da lei de Moisés (que poderia compreender todo o Pentateuco

[1] Introdução Bíblica, p. 74


2

ou grande parte dele) foi posto na arca para testemunho (preservação – Dt 31.26). Nos
dias de Josias, “a lei de Moisés”, também chamada de “livro da aliança” foi achada na
Casa do Senhor (templo - 2Rs 22.8; 23.2). Daniel tinha uma coleção de livros, que
incluía a “lei de Moisés” e “os profetas” (a profecia de Jeremias é mencionada (Dn
9.2,6,13). Esdras teve à sua disposição cópia do livro da lei para ler ao povo (Ed 7.6; Ne
8.9,14-17). Em Pv 25.1 lemos que os homens do rei Ezequias transcreveram os
provérbios de Salomão, mencionados no capítulo. Na época do Novo Testamento “toda
a Escritura” (do AT) era conhecida (Mt 5.17; Lc 24.44; 2Tm 3.16). Esses elementos
mostram que houve o cuidado de se coligir e preservar o texto reconhecido como
autoritativo, para servir de testemunho às gerações posteriores, conforme o
entendimento de Paulo em Rm 15.4: “Pois tudo quanto, outrora, foi escrito para o
nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras,
tenhamos esperança

2. O conceito liberal de cânon

Acima, fizemos distinção entre canonicidade e canonização. A canonicidade é intrínseca


ao livro, devido à sua autoridade divina, ao passo que a canonização é o processo de
reconhecimento da canonicidade, feito pelo povo de Deus. A canonicidade foi imediata
e logo reconhecida, tanto pelo autor como pelos que receberam o livro. A canonização
foi gradual e progressiva, pois os livros não foram todos escritos ao mesmo tempo. Os
do AT foram produzidos num espaço de cerca de mil anos e os do NT, em cerca de
meio século. Isto sem falar no tempo que, especialmente no caso do NT, a Igreja, como
um todo, precisou para distinguir entre aquilo que realmente tinha autoridade divina e
aquilo que apenas pretendia ter ou foi recebido como se tivesse, em alguns dos seus
segmentos. O processo da canonização, portanto, se desenvolveu durante um período
razoavelmente longo.

Não é assim, todavia, que os críticos liberais veem o assunto. Eles não fazem distinção
entre canonicidade e canonização. Para eles, a canonicidade é apenas o resultado da
canonização feita pela Igreja, através do reconhecimento do valor espiritual e religioso
do livro. Os críticos liberais não creem na autoridade divina do livro e, por conseguinte,
não creem em inspiração. Portanto, para ele, cânon e canonicidade são a mesma coisa.
A canonicidade, para eles, é atribuída ao livro pela Igreja, através de um longo processo
e a canonização não é a coleção de livros inspirados que cresce, por adição de outros
que vão sendo escritos e reconhecidos imediatamente, como cremos. O próprio conceito
de canonicidade, para eles, é formado ao longo dos anos, pela veneração que o livro
recebe. Consideram a Bíblia como um livro apenas humano, que vem a ser considerado
como divino pela Igreja, ao longo dos anos, devido à sua influência e efeito sobre os
que o leem. Estudar o cânon, segundo esse ponto de vista, é estudar como, quando e por
que esses livros vieram a ser considerados autoritativos pela Igreja. Para a maioria dos
críticos, o cânon do AT foi formado em três estágios distintos, todos após o tempo de
Esdras: o Pentateuco, cerca de 400 a.C; os Profetas, cerca de 200 a.C e os Escritos ,
cerca de 100 d.C.

3. A divisão do Cânon do AT

O AT hebraico, de longa data, é dividido em três partes: A Lei (Torah), Os Profetas


(Nebhim) e os Escritos (Kethubhim). A Lei compreendia os cinco livros de Moisés (o
Pentateuco). Os Profetas incluíam tanto os quatro que chamamos de históricos: Josué,
3

Juizes, 1 e 2 Samuel, e 1 e 2 Reis (cada um desses dois grupos é contado como um só


livro), como também mais quatro - três dos que chamamos de Profetas Maiores: Isaías,
Jeremias e Ezequiel e os doze Profetas Menores, que eram contados como um só livro.
Os Escritos, em número de onze, incluíam Salmos, Provérbios e Jó, mais os cinco que
eram chamados de “rolos” (Meghilloth): Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações,
Eclesiastes e Ester, mais Daniel e Esdras-Neemias, estes dois contados como um só
livro, e 1 e 2 Crônicas, também contados como um só livro, totalizando 24 livros.[2]

A Bíblia Hebraica traz essa divisão até hoje, a qual remonta ao quinto século a.D. (vem
da Mishnah - seção Baba Bathra). Outros testemunhos históricos têm sido invocados
em seu benefício. O prólogo do livro apócrifo de Siraque (c. 132 a.C), Filo (época de
Cristo) e Josefo (século I, pouco depois de Cristo) trazem menções que dão a entender a
divisão tríplice. Como vimos acima, os críticos têm usado essa tríplice divisão para
afirmar que os livros do AT foram canonizados em diferentes estágios: primeiro a Lei,
depois os Profetas e, finalmente, os Escritos, já que não aceitam a canonicidade como
uma decorrência da inspiração, com imediato reconhecimento. Segundo eles, essa
divisão tripartida do AT representa seus estágios de canonização.

É assunto de controvérsia se tal divisão pode ser sustentada. Ela é bastante questionada
hoje e é mais provável que o cânon do AT se constituísse de apenas duas seções: a lei de
Moisés e os Profetas, que surgiram após ele.[3]

O NT oferece apenas uma referência ao que pode ser reconhecido como uma tríplice
divisão, em Lc 24.44. Ali Jesus se refere à lei de Moisés, aos Profetas e aos Salmos, este
último (livro) supostamente representando os Escritos, por ser o primeiro e o mais
volumoso da lista. Porém, a forma mais comum do NT referir-se ao AT é empregar um
ou dois desses nomes para todo o AT. É o que temos em Jo 10.34 (Lei); Mt 2.23 e Lc
1.70 (Profetas) e Mt 5.17; 7.12 e Lc 16.16 (Lei e os Profetas). O texto de Jo 10.34 é
interessante porque nele Jesus refere-Se à Lei, mas cita um texto de Salmos (82.6).
Como observa Morton Smith, "os três termos são igualmente apropriados para o todo
da Escritura. Primeiro, o termo lei fala da autoridade e do caráter impositivo que a
Escritura mantém, porque é a própria palavra de Deus. O termo 'profetas' sugere a
origem divina, porque os que são designados 'profetas' são os mensageiros oficiais de
Deus, que receberam sua mensagem diretamente dele. O termo 'Escrituras' (Escritos)
sugere que estes são escritos que estão acima de todos os outros. Eles são 'Os Escritos'.
Assim, é inteiramente apropriado o intercâmbio destes termos para se referir a todo o
Antigo Testamento. Todos eles falam do caráter divino do Antigo Testamento”. [4]

Ma ainda que a ideia da divisão tripartite seja aceita, não há evidências de que ela
corresponda a períodos de formação do cânon e, muito menos, que pertençam às datas
atribuídas pelos críticos. Como dizem Geisler e Nix, “os livros das Escrituras judaicas

[2] Ver “Canon of the Old Testament” in The International Standard Bible Encyclopaedia, James Orr, ed.
(Grand Rapids: W. B. Eerdmans Publishing Co., sem data), vol. I, p. 555. O Cânon de Josefo também
continha os mesmos 24 livros, mas com arranjo ou divisão diferente, totalizando 22 (cf. Ibid, p. 560).

[3] Ver discussão do assunto em Norman Geisler & William Nix, Interpretação Bíblica (São Paulo:
Editora Vida, 1997), pp. 76-78.

[4] Morton H. Smith, op. cit., edição eletrônica.


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foram reagrupados várias vezes desde que foram redigidos. Alguns deles, de modo
especial os que fazem parte dos escritos, foram redigidos e aceitos pela comunidade
judaica séculos antes das datas que os teóricos da crítica lhes atribuem”.[5] Segundo
os críticos, os livros de Daniel, Crônicas, Esdras e Neemias teriam sido escritos depois
da época desses personagens e só canonizados em cerca de 100. d.C. Acontece que
tanto Jesus (Lc 24.44) como Josefo[6] aludem a uma tríplice divisão das Escrituras (que
incluiria esses livros) já antes do ano 100 d.C. e o prólogo de Eclesiástico (o livro em
grego era chamado de “Sabedoria de Jesus, filho de Siraque”), c. 132 a.C., dá a entender
que ela já era conhecida e usada por volta do ano 200 a.C. (época do avô do autor do
prólogo).[7]

A hipótese de que o cânon hebraico era composto de apenas duas partes nos parece mais
provável. O próprio AT faz menção de duas divisões, “a lei” e “os profetas” em Dn
9.2,6,11;Zc 7.12 e Ne 9.14,29,30. É verdade que essas menções são feitas em livros que,
segundo os críticos, pertencem ao terceiro estágio da canonização, com exceção de
Zacarias. Mas já no período interbíblico, portanto antes do século I a.D., ela é
encontrada em 2 Macabeus 15.9 e no Manual de Disciplina da comunidade de Qumran
(1.3;8.15;9.11). Ambos se referem ao AT como “a lei e os profetas”. No NT, como
vimos anteriormente, só encontramos uma referência que favorece a divisão tripartite
(Lc 24.44). Todas as demais falam do AT como” a lei e os profetas”. Em Lc
16.16,29,31 Jesus se refere a toda a Escritura do AT dizendo que “a lei e os profetas
duraram até João”. Em Lc 24.27 lemos que “começando por Moisés, e por todos os
profetas, explicou-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras”. Outras passagens
que se referem à lei e aos profetas como sendo todas as Escrituras são: At 13.15; Lc
24.14 e Mt 5.17,18. Essas passagens mostram que Jesus aceitava um cânon bipartido,
que incluía todos os 24 livros (ou 22, conforme outra divisão) do cânon hebraico,
reconhecidos pelos judeus da sua época (século I a.D.). Não há qualquer base para a
ideia de um cânon judaico que ainda se desenvolvia nos dias de Cristo, e muito menos
depois dele.

4. O desenvolvimento do Cânon do AT

O fato de a revelação divina ser registrada servia a diversos propósitos: a) enviá-la a


outros lugares e pessoas (Jr 29.1;36.1-8;51.60-61; 2Cr 21.12;), b) preservar a sua
integridade para os dias futuros (Is 30.8) e c) usá-la como um memorial ou testemunho
contra o povo (Êx 17.14; Dt 31.24-26). Quando o livro da lei foi perdido, durante os
reinados de Manassés e Amom, o povo afastou-se do Senhor. Ao ser descoberto por
Hilquias, sua leitura causou grande impacto, mostrando a necessidade e serventia da lei
escrita. Este fato comprova a necessidade de um cânon. Foi a mensagem de Deus, na
sua forma escrita, que ele usou para a grande reforma nos dias de Josias. E assim tem

[5] Introdução Bíblica, p. 75

[6] Josefo dividiu os livros do AT em três seções que somavam o total de 22, dizendo que eles
“continham o registro de todo o passado ...cinco pertencem a Moisés, ...os profetas, que vieram após
Moisés, escreveram o que foi feito em seu tempo em treze livros. Os quatro livros restantes contêm hinos
a Deus e preceitos para a conduta da vida humana” (Contra Ápion, I,8)

[7] Nele se lê: “O meu avô Jesus, depois de dedicar-se intensamente à leitura da Lei, dos Profetas e dos
outros livros dos antepassados” (v.7). No v.1 ele mencina “a Lei, os Profetas e os outros escritores que
se seguiram a eles”
5

sido em todas as épocas. Foi a leitura da Bíblia (especialmente do livro de Romanos)


que levou Lutero à Reforma do Século XVI.

Mas como foi formado o cânon do AT? Não temos todas as informações para traçar
uma história completa do desenvolvimento do cânon do AT. Não sabemos quanto
tempo o Pentateuco levou para alcançar a sua forma final. Em alguns casos, é possível
que os próprios livros, e não apenas a coleção deles, tenham sido formados por partes,
gradualmente. O “livro da aliança” (referido em Ex 24.3-7) pode inicialmente ter sido
formado apenas pelos capítulos 20-23 de Êxodo e, mais tarde, incorporado ao volumoso
livro de Êxodo, do qual faz parte hoje. Alguns entendem que Gn 5.1 faz menção a um
documento antigo (aqui chamado de livro) que foi incorporado ao livro maior chamado
Gênesis[8]. Tudo isso, porém, ainda nos dias de Moisés e feito por ele mesmo.
Deuteronômio, cuja autoria mosaica é negada pelos críticos, e ao qual atribuem uma
data tardia de canonização, foi colocado ao lado da arca da aliança no tabernáculo (Dt
31.24-26 ) - o que evidencia que já era considerado como autoritativo mesmo nos dias
de Moisés - e, mais tarde, no templo (2Rs 2.8), embora a última parte (cap. 34) deva ter
sido escrita depois da morte de Moisés. O mesmo aconteceu com o livro de Josué. A
última parte do cap. 24. (29-33), que relata a morte de Josué, certamente foi
acrescentada ao livro mais tarde, após a morte do autor. Mas nem por isso o livro
deixou de ser reconhecido como autoritativo. Em Js 24.26 lemos que “Josué escreveu
estas palavras no livro da lei de Deus”, o que pode ser entendido como referindo-se às
palavras do cap. 24 ou a todo o livro. Acréscimos e edições posteriores à escrita não
invalidaram o caráter autoritativo dos livros do AT, nem representaram quebra do
mandamento que encontramos nesses próprios livros de não acrescentar à palavra do
Senhor, nem diminuir dela (Dt 4.2;12.32; Pv 30.6). Não foram acréscimos nem edições
que, de alguma forma, acrescentassem, diminuíssem ou modificassem a revelação do
Senhor.

Outra evidência de desenvolvimento na produção dos livros, até a sua forma final,
encontra-se em 1 Samuel 8.11-18 e 10.25. Um primeiro texto sobre o “direito do reino”
foi escrito como um livro antes que fosse incorporado ao primeiro livro de Samuel, em
sua forma final. E esse livro foi posto “perante o Senhor”, como aconteceu com a Lei e
com o livro de Josué. Também vários outros livros são citados nos livros canônicos,
como o Livro da História de Salomão, o Livro das Crônicas dos Reis de Israel e o Livro
das Crônicas dos Reis de Judá (1Rs 11.41;14.29,30; 2Rs 1.18;8.23) e o Livro da
História dos Reis de Israel e de Judá (provavelmente uma combinação das duas
anteriores), citado nos livros canônicos das Crônicas (2Cr 16.11;25.26;27.7;
28.26;35.27;36.8; e, em forma abreviada, em 1Cr 9.1; 2Cr 24.27).Todavia, não há
evidência de que esses livros fossem tidos como canônicos. É melhor considerá-los
como fontes usadas pelos autores dos livros canônicos, já que grande parte de suas
narrativas foi incluída nos livros canônicos dos Reis e das Crônicas.

4.1. O Reconhecimento da lei

Dissemos que, ainda nos dias de Moisés, a lei foi reconhecida como autoritativa,
qualidade que hoje chamamos de “canônica”. Depois dele, praticamente todos os
demais livros demonstram que a lei não só foi reconhecida como autoritativa, mas

[8] Ver R. T. Beckwit, “O Cânon do Antigo Testamento” in A Origem da Bíblia, editado por Philip
Wesley Comfort (Rio de janeiro: CPAD, 1998), p. 81.
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serviu de base para a revelação posterior. O apelo e referência à lei de Moisés estão
presentes em todo o AT. De Josué a Malaquias, encontramos frequentes referências à lei
de Moisés, ou à lei do Senhor, ou ao Livro de Moisés, etc ((Js 1.7-8; 1Rs 2.3; 8.61; 2Rs
14.6; 21.8;23.25; 2Cr 14.4; 17.9; Jr 8.8; Dn 9.11; Ed 6.18; Ne 13.1; Ml 4.4)).

Essas referências testemunham a favor do reconhecimento de que uma das partes do


cânon, como hoje é dividido, já estava fechada, embora o restante ainda estivesse sendo
escrito. Não foi preciso esperar até que o último livro fosse escrito para que se tivesse
um cânon aceito. Esse cânon cresceu por adição, à medida que os demais livros foram
sendo escritos, mas em cada estágio foi um cânon de livros aceitos como divinos
(inspirados).

4.2. O reconhecimento dos profetas

Mais progressiva ainda do que a Lei foi a canonização dos livros proféticos, visto que
foram muitos os seus autores e diferentes as suas épocas. Já mencionamos Josué e
Samuel, que colocaram seus escritos junto ao santuário do Senhor (Js 24.26; 1Sm
10.25). Com Samuel iniciou-se o período chamado “dos profetas”. Iniciou-se a “escola
de profetas”, com seus alunos conhecidos como “filhos de profetas” (1Sm 19.20). O
fato de profetas que vieram mais tarde ter usado os escritos de profetas anteriores, como
já demonstramos nos casos de Ezequiel e Daniel (Ez 13.9; Dn 9.2,6,11), comprova que
esses escritos eram preservados e colecionados como revelação divina autoritativa.
Nesses escritos, a história do trato de Deus para com Israel, principalmente através dos
seus profetas, juízes e reis, é registrada de modo contínuo e progressivo. O livro de
Josué menciona a lei (Js 1.8), Juizes menciona Josué e acontecimentos narrados em seu
livro (1.1,20,21; 2.8). Os livros dos Reis relatam a vida de Davi, conforme narrada nos
livros de Samuel (1Rs 3.14; 5.7; 8.16; 9.5). Os livros das Crônicas fazem uma revisão
de toda a história judaica, desde Gênesis até o período dos reis. Salmos inteiros ou
porções deles são citados em outros livros (o Salmo 18 é repetido em 2 Samuel 22;
Jonas recita partes de vários salmos, Jn 2). Todos esses fatos evidenciam que existia
uma coleção de livros reconhecidos como de autoridade divina, que ia sendo acrescida e
que era usada para a edificação do povo. Era o cânon que ia sendo formado.

Na aula 4 apresentamos um quadro demonstrativo da sucessão de profetas, apresentado


nos livros das Crônicas. É o que se costuma chamar de continuidade profética: uma
sequência de narrativas que cobrem toda a história dos reis de Israel e de Judá.[9]] É
verdade que Jeremias, que foi profeta canônico, não é mencionado nessa lista de
sucessão profética, mas ele próprio se reconhece como profeta escritor, como afirma em
Jr 30.2; 36.1,2; 45.1,2; 51.60,63). Pouco tempo depois, Daniel, no exílio, menciona a
profecia de Jeremias como parte dos escritos proféticos (Dn 9.2,6,11, cf. Jr 25).
Ezequiel também escreveu no exílio, assim como Daniel. Depois do exílio temos ainda
Esdras (que levou consigo da Babilônia os livros de Moisés e dos profetas (Ed 6.18; Ne
9.14,26-30) e Neemias. Os livros de Esdras e Neemias, que agora temos como volumes
separados, formavam um só livro no cânon hebraico e estavam intimamente ligados a
Crônicas, como se observa do último versículo de 2 Crônicas e do primeiro de Esdras,
que são praticamente uma repetição um do outro. Com Neemias, então, completa-se a
sequência profética. Sobre o assunto dizem Geisler e Nix: “Cada profeta, desde Moisés
até Neemias, contribuiu para a coleção sempre crescente de livros, que fora preservada

[9] Ver também a discussão do assuto apresentada por Geisler e Nix em Introdução Bíblica, pp. 80-81.
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pela comunidade dos profetas a partir de Samuel. Os 22 (24) livros das Escrituras
hebraicas foram escritos por profetas, preservados pela comunidade dos profetas e
reconhecidos pelo povo de Deus. Até agora não existem evidências de que outros livros,
chamados ´escritos´, houvessem alcançado canonização depois dessa época (c. 400
a.C)”.[10] Já dissemos que o livro das Crônicas era o último do cânon hebraico, vindo
logo depois de Esdras-Neemias. Em Lc 11.50-51 Jesus faz referência ao sangue dos
profetas, desde Abel até Zacarias. Embora a identificação desse Zacarias seja objeto de
debate entre os estudiosos, geralmente ele tem sido identificado como o Zacarias
mencionado em 2Cr 24.20-22, o qual não seria o último mártir do AT mencionado em
ordem cronológica (cf. Jr 26.20-23), mas o último em ordem canônica. Se esta for a
interpretação correta, o que parece provável, Jesus estaria fazendo, então, uma
referência ao cânon fechado do AT, tal como ele e os seus ouvintes entendiam.

No item anterior mencionamos que, embora haja algumas referências históricas a um


cânon hebraico tripartite (Talmude – Baba Bathra, livro de Siraque e o próprio texto de
Lc 24.44), essa divisão não é hoje aceita como a mais provável. As evidências em favor
de um cânon bipartido (Lei e Profetas) são mais numerosas e mais convincentes. Assim,
pode-se concluir que, com o encerramento da sucessão profética, se concluiu também o
cânon do AT. Com Neemias (c. 400 a.C.) encerrou-se a coleção dos 22 (ou 24) livros do
cânon hebraico.

Alguns argumentos em favor dessa conclusão, além dos já apresentados na aula 4, são
os seguintes:

a) O chamado Concílio de Jâmnia (c. 90 d.C.) não se reuniu para decidir que livros
deveriam ou não fazer parte do cânon judaico, como acreditavam os críticos. Hoje se
tem como certo que o que aconteceu em Jâmnia não foi um concílio oficial, com
autoridade para decidir questões tão importantes como definir os limites do cânon.
Sobre isso diz Laird Harris: “Antigamente, os estudiosos argumentavam que o cânon foi
fechado no concílio de Jâmnia, em 90 a.D. Hoje, desde o estudo feito por Jack P. Lewis
(´What do we mean by Jabneh?´, JBR 32 (1932): 125-32) é geralmente aceito que as
discussões de Jâmnia, relatadas no Talmude, não constituíram um concílio e nem tinha
autoridade. Certos livros foram questionados (Eclesiastes e Cantares). Outras
discussões rabínicas questionaram Ester, Provérbios e Ezequiel, mas a dúvida era se
eles deveriam ou não ser mantidos com os outros livros, e não se eles deveriam ser
adicionados, e a questão foi resolvida a favor de sua manutenção.”[11]

b) O livro de Daniel, que é apresentado pelos críticos como fazendo parte dessa terceira
seção, que supostamente teria sido canonizada apenas no primeiro século a.D., já era
aceito pelos judeus como parte do cânon muito antes disso, como atestam os rolos do
Mar Morto (havia entre os livros descobertos um fragmento do livro de Daniel) e as
próprias palavras de Cristo, que se referiu a ele como profeta.(Mt 24.15).

[10] Introdução Bíblica, p. 81

[11] Inspiration and Canonicity of the Scriptures, p. 134


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c) Quase todos os livros do AT, mesmo os que estão entre os chamados “escritos”, são
citados no NT como “escritura”, o que atesta o seu reconhecimento por parte dos
autores bíblicos neotestamentários. E todos eles, com exceção de Lc 24.44, figuram
como pertencendo à “lei” ou aos “profetas” (Mt 5.17; Mc 13.11; Lc 24.27).

d) O livro de Salmos, que era contado como parte da terceira seção por aqueles que
assim dividiam o cânon (Josefo, por exemplo), é considerado no NT como parte da lei
(Jo 10.34,35) ou dos profetas (Lc 24.27). Alguns entendem a expressão “na Lei de
Moisés, nos Profetas e nos Salmos”, de Lc 24.44, como um paralelismo à expressão
“Moisés e todos profetas” do v. 27. O fato dos Salmos serem citados em grande
abundância como “Escritura” no NT (especialmente em Hebreus) comprova que já
eram tidos como canônicos antes de 90 a.D (Jâmnia).

e) Tanto o 1º livro de Macabeus, quanto o Talmude, o Manual de Disciplina de Qunram


e Josefo falam de uma sucessão de profetas, que se encerrou com os últimos profetas
Ageu, Zacarias e Malaquias, nos dias de Neemias, como vimos na aula 4.

Conclusão: As evidências são a favor de um cânon do AT encerrado por volta de 400


a.C., e composto de duas partes: A Lei e os Profetas. À medida que os 22 (ou 24) livros
iam sendo escritos, eram imediatamente reconhecidos como autoritativos e colecionados
pelo povo de Deus, formando um cânon que tomou o nome de “ a Lei e os Profetas”.

Implicações Práticas

Um cânon fechado do AT e reconhecido como autoritativo pelos judeus, assim como


pelos autores do NT e, principalmente, pelo próprio Senhor Jesus, é a garantia de que a
revelação progressiva, dada ao longo de muitos séculos, não se perdeu nem foi
corrompida. Assim, pôde constituir-se na base para a revelação posterior, dada por
Cristo através dos apóstolos e dos outros autores do NT. Sua importância e valor não
podem ser subestimados. A revelação escrita era o apelo final de Jesus, mesmo antes de
estar toda ela concluída. Na parábola do rico e Lázaro, ele Se refere a Moisés e aos
Profetas (Escritura do AT) como autoridade final para se conhecer a vontade de Deus:
“Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos... Se não ouvem a Moisés e aos Profetas,
tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (Lc
16.29,31).

Leitura obrigatória:

O Cânon Bíblico, de Paulo Anglada.

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