Você está na página 1de 15

Os dragões

Murilo Rubião

CONTOS Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram


com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e

FANTÁSTICOS sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas


absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.
Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com
que, antes de iniciada sua educação, nos perdêssemos em contraditórias
suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer. A controvérsia
inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que, apesar da
aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me
permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha,
previamente exorcismada, onde ninguém podia penetrar. Ao se
arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático
negava-lhes a qualidade de dragões, “coisa asiática, de importação
européia”. Um leitor de jornais, com vagas idéias científicas e um curso
ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo
benzia-se, mencionando mulas-sem-cabeça, lobisomens.
Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos
hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões.
Entretanto, elas não foram ouvidas.
O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo
mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.
Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto
uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A
idéia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se
tratou da partilha dos animais. O número destes era inferior ao dos
pretendentes.
Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a
objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os dragões receberiam relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.
nomes na pia batismal e seriam alfabetizados. Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades.
Até aquele instante, eu agira com habilidade, evitando contribuir Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença
para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me a calma, o de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem
respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. inata, fugia às aulas. As mulheres o achavam engraçado e houve uma
Irritadíssimo, expandi o meu desagrado: que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele.
- São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo! Tudo fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-
Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das decisões los.Enfrentavam-me com uma resistência surda e impenetrável. As
aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu mão minhas palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para
do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência dos nomes. Raquel e esta, tranqüilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que
Quando, subtraídos ao abandono em que se encontravam, me lavava.
foram entregues para serem educados, compreendi a extensão da minha Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo
responsabilidade. do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito, provavelmente de um
Na maioria, tinham contraído moléstias desconhecidas e, em caçador de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.
conseqüência, diversos vieram a falecer. Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher
Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Melhor transferimos o nosso carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos
dotados em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se na sua recuperação e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da
embriagar no botequim. O dono do bar se divertia vendo-os bêbados, bebida. Nenhum filho talvez compensasse tanto o que conseguimos com
nada cobrava pela bebida que lhes oferecia. A cena, com o decorrer dos amorosa persistência. Ameno no trato, João aplicava-se aos estudos,
meses, perdeu a graça e o botequineiro passou a negar-lhes álcool. Para ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas
satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos. no mercado.
No entanto, eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e Findo o jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria,
superar a descrença de todos quanto ao sucesso de minha missão. Valia- brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas, dava
me da amizade com o delegado para retirar-los da cadeia, onde eram cambalhotas.
recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem. Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais dos
Como jamais tivesse ensinado a dragões, consumia a maior parte alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara de vomitar
do tempo indagando pelo passado deles, família e métodos pedagógicos fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade.
seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava
interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para nossa entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora, demorava-se pouco
cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse
que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. fogo. A admiração de uns, os presentes e convites de outros, acendiam-
Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos lhe a vaidade. Nenhuma festa alcaçava êxito sem sua presença. Mesmo o
meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites mal padre não dispensava seu comparecimento às barraquinhas do padroeiro
dormidas e ressacas alcoólicas. da cidade.
O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos ***
contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal. Do
Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o O homem do boné cinzento
município, um circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos Murilo Rubião
deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões
amestrados e um homem que engolia brasas. Numa das derradeira
O culpado foi o homem do boné cinzento. Antes da sua vinda, a
exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam o espetáculo aos
nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade. Tinha um largo
gritos e palmas rimadas:
passeio, onde brincavam crianças. Travessas crianças. Enchiam de doce
- Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!
alarido as enevoadas noites de inverno, cantando de mãos dadas ou
Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o
correndo de uma árvore a outra.
desafio:
A nossa intranqüilidade começou na madrugada em que fomos
- Que venha essa coisa melhor!
despertados por desusado movimento de caminhões, a despejarem
Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos
pesados caixotes no prédio do antigo hotel. Disseram-nos,
dos espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou sua costumeira
posteriormente, tratar-se de mobília de rico celibatário, que passaria a
proeza de vomitar fogo.
residir ali. Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande
Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no
para uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de
circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o prestígio que
volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia
desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger
suposições menos inverossímeis. Possivelmente a casa havia sido
prefeito municipal.
alugada para depósito de algum estabelecimento comercial.
Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos,
Meu irmão Artur, sempre ao sabor de
verificou-se a fuga de João.
exagerada sensibilidade, contestava enérgico
Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento.
as minhas conclusões. Nervoso, afirmava que
Contavam que ele se tomara de amores por uma das trapezistas,
as casas começavam a tremer e apontava-me
especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de
o céu, onde se revesava o branco e o cinzento.
cartas e retomara o vício da bebida.
(Pontos brancos, pontos cinzentos,
Seja qual a razão, depois disso muitos dragões têm passado por
quadradinhos perfeitos das duas cores, a
nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada
substituírem-se rápidos, lépidos, saltitantes.)
da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta
Daquela vez, a mania de contradição arrastara-me a um erro
recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares,
grosseiro, pois antes de decorrida uma semana, chegava o novo vizinho.
indiferentes aos nossos apelos.
Cobria-lhe a cabeça um boné xadrez (cinzento e branco) e entre os
dentes escuros trazia um cachimbo curvo. Os olhos fundos, a roupa
sobrando no corpo esquelético e pequeno, puxava pela mão um ridículo
cão perdigueiro. Ao invés da atitude zombeteira que assumi ante aquela
figura grotesca, Artur ficou completamente transtornado:
- Esse homem trouxe os quadradinhos, mas não tardará a
desaparecer.
Não foram poucos os que se impressionaram com o procedimento
do solteirão. Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os moradores
da rua. Nunca era visto saindo de casa e, diariamente, às cinco horas da recusava a aceitar a hipótese de que ela tivesse ido embora e se negava
tarde, com absoluta pontualidade, aparecia no alpendre, acompanhado a discutir o problema comigo:
pelo cachorro. Sem se separar do boné que, possivelmente, escondia uma - Curioso, o homem se definha e é a mulher que desaparece!
calvície adiantada, tirava baforadas do cachimbo e se recolhia novamente. Três meses mais tarde, de novo abriu-se a porta do casarão para
O tempo restante, conservava-se invisível. dar passagem à moça. Sozinha, como viera, carregou as malas consigo.
Artur passava o dia espreitando-o, animado por uma tola - Por que segue a pé? Será que o miserável lhe negou dinheiro
esperança de vê-lo surgir antes da hora predeterminada. Não esmorecia para o taxi?
vendo burlados os seus propósitos. A sua excitação crescia à medida que Com a partida da jovem, Artur retornou ao primitivo interesse pelo
se aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do magro Anatólio. E, rangendo os dentes, repetia:
prédio vizinho. Quando seus olhos o divisavam, abandonava-se a uma - Continua emagrecendo.
alegria despropositada: Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus
- Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem! nervos decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto
Eu me agastava e dizia que não me aborrecesse, nem se pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas
preocupasse tanto com a vida dos outros. preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe
Fazia-se de desentendido e, no dia seguinte, encontrava-se provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o nosso
novamente no seu posto, a repetir-me que o homenzinho continuava enigmático vizinho.
definhando. Surgia à hora marcada. O olhar vago, o boné enterrado na
- Impossível – eu retrucava –, o diabo do magrela não tem mais cabeça, às vezes mostrava um sorriso escarninho.
onde emagrecer! Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava.
- Pois está emagrecendo. Contudo, foi Artur que me chamou a atenção para um detalhe:
Ainda encontrava-me na cama, quando Artur entrou no meu quarto - Ele está ficando transparente.
sacudindo os braços, gritando: Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que
- Chama-se Anatólio! estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com
Respondi irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da
Nabucodonosor! porta, cerrada somente de um dos lados.
Repentinamente emudeceu. Da janela, surpreso e quieto, fez um Também Artur emagrecia e, nem por isso, fiquei apreensivo.
gesto para que eu me aproximasse. Em frente ao antigo hotel, acabara de Anatólio tornara-se a minha única preocupação. As suas carnes se
parar um automóvel e dele desceu uma bonita moça. Ela mesma retirou a desfaziam rapidamente, enquanto o meu irmão bufava, pleno de gozo:
bagagem do carro. Com uma chave, que trazia na bolsa, abriu a porta da - Olha! De tão magro só tem perfil. Amanhã desaparecerá.
casa, sem que ninguém aparecesse para recebê-la.
Impelido pela curiosidade, meu irmão não me dava folga: Às cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na
- Por que ela não apareceu antes? Ele não é solteiro? varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para
- Ora, que importância tem uma jovem residir com um celibatário? emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça,
Por mais que me desdobrasse, procurando afastá-lo da obsessão, escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse sobre
Artur arranjava outros motivos para inquietar-se. Agora era a moça que se si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu a rua.
ocultava, não dava sinal da sua permanência na casa. Ele, porém, se Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu, recuava atemorizado.
Por instantes, Anatólio se encolheu para, depois, tornar a vomitar. A mulher examinou-nos com indiferença. Devia estar pensando em
Menos do que da primeira vez. Em seguida, cuspiu. No fim, já ansiado, outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a
deixou escorrer uma baba incandescente pelo tórax abaixo e incendiou- cara. [...]
se. Restou a cabeça, coberta pelo boné. O cachimbo se apagava no chão. Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso
- Não falei! – gritava Artur, exultante. de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de
A sua voz foi ficando fina, longínqua. Olhando para o lugar onde vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que
ele se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espantosamente. Ficara esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles. [...]
reduzido a alguns centímetros e, numa vozinha quase imperceptível, O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado
murmurava: que nesse trecho teríamos de entrar de gatinhas. Duas camas, dois
- Não falei, não falei. armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde
Peguei-o com as pontas o teto quase encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto
dos dedos antes que com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de
desaparecesse completamente. joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico.
Retive-o por instantes. Logo se Parecia fascinada.
transformou numa bolinha negra, – Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
a rolar na minha mão. – Ele disse que era de adulto. De um anão.
– De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados...
Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha
aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de
uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
AS FORMIGAS – Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele.
Lygia Fagundes Telles O banheiro é aqui do lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá
embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove,
Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a
Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a garrafa – recomendou coçando a cabeça. [...]
dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. [...] – De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho,
Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio
pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona ardido?
avisara-nos por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a – É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o
condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, caixotinho para debaixo da cama.
cheirando a creolina. No sonho, um anão louco de colete xadrez e cabelo repartido no meio
– Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima. entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima,
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar,
graúna. [...] tem um anão no quarto! Mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada
– É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do
minha direção. assoalho.
– Estudo Direito. Medicina é ela. – Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
– Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão – Eu?! Quando acordei não tinha nem sinal de formiga nesse chão,
decididas, está vendo? estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se
trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, preocupava. [...]
subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o
disciplinadas como um exército em marcha exemplar. sonho da prova oral. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha
– São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo… O
volta, só de ida – estranhei. segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco do silêncio e
– Só de ida. sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. [...] Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama,
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou de pijama e completamente estrábica.
os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando – Elas voltaram.
firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. [...] – Quem?
– Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até – As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas
calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está ai no chão aí de novo.
do caixote, com um omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui? A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da
– Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão. porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de – E os ossos?
formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma – Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia – Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais
esmagá-la quando vi que ela levava as mãos à cabeça, como uma nada! Acordei para fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti
pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho. [...] às seis que no quarto tinha algo mais, está me entendo? Olhei pro chão e vi a fila
horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha dura de formiga, você lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui
prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para ver o caixotinho, todas traçando lá dentro, lógico, mas não foi isso que me
as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo
Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a
O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão; pouco eles estão... estão se organizando.
desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da – Como, organizando? [...]
cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto. – Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no Agora é a coluna vertebral que está quase formada, uma vértebra atrás da
quarto. [...] outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o
– E as formigas? esqueleto, mais um pouco e....venha ver!
– Até agora nenhuma. – Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
– Você varreu as mortas? [...] Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí
Ela ficou me olhando. para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas,
– Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde da noite, um colega tinha casado e teve festa. [...]
– Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
– Estou com medo. [...]
– Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não
apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa.
Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de
onde brotam?
– Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o
anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda,
acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos
cotovelos. Estava lívida. E vesga.
– Voltaram – ela disse. [...]
– Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O
esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda,
fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
– Você está falando sério?
– Vamos embora, já arrumei as malas.
– A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
– Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
– Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos,
levanta.
– E para onde a gente vai?
– Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos de sair
antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha; nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei
os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona
e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro quem
vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido
ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a
casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.
A página 13, aqui suprimida, continha uma imagem.
O ARQUIVO reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia
necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira,
pensão.
Victor Giudice
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada.
Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.
No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por
A vida foi passando, com novos prêmios. Aos sessenta anos, o ordenado
cento em seus vencimentos.
equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou
ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos.
orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se.
Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre
Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe. No
árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito
dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o
tempo.
salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
O corpo era um monte de rugas sorridentes. Todos os dias, um caminhão
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto,
anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de
estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.
serviço, foi convocado pela chefia:
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa. O chefe chamou-o e lhe comunicou
— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá
o segundo corte salarial.
mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos
Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi
sanitários.
um pouco maior: dezessete por cento. Novos sorrisos, novos agradecimentos,
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido
nova mudança.
tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos
Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em
os objetivos. Tentou sorrir:
compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos
— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer
rosada. O contentamento aumentou. Prosseguiu a luta.
minha aposentadoria.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
O chefe não compreendeu:
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas
— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê?
invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não
Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso
desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.
quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório
forte. Que acha? A emoção impediu qualquer resposta.
principal. Respirou descompassado.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa.
— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se,
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma
João transformou-se num arquivo de metal.
prova substancial de nosso reconhecimento. O coração parava.
— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado,
resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto. A revelação deslumbrou-o. GIUDICE, Victor.
Todos sorriam. Setecontos setencantos.
— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com São Paulo: FTD, 1986. v. 2.
menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a
diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do
subúrbio. Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço
DIANTE DA LEI estudar o porteiro aos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola
de pele, pede a estas que o ajude a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente
Franz Kafka
sua vista enfraquece e ele não sabe de fato se está ficando mais escuro
Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece
porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas
permitir-lhe a entrada. O homem do campo então reflete e depois já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as
pergunta se então não pode entrar mais tarde. experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma
– É possível – diz o porteiro. – Mas agora não. pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para
Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O
porteiro se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de
da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: altura mudou muito em detrimento do homem:
– Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja – O que você ainda quer saber? – pergunta o porteiro. – Você é
bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para insaciável.
sala porém existem porteiros cada uma mais poderoso que o outro. Nem – Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em
mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro. tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?
O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda
acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao alcançar sua audição em declínio ele berra:
examinar mais de perto o porteiro, com seu casado de pele, o grande – Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava
nariz pontudo, a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.
aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um Tradução de Modesto Carone
banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado dias e
anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e canso o porteiro com
os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos
interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra natal e de muitas
outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes
senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode
deixá-lo entrar. O homem que havia se equipado com muitas coisas para
a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o
porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:
– Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma
coisa.
Durante todos esses anos o homem observa o porteiro quase sem
interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o
único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa em
voz alta e desconsiderada o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece,
apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por
O homem de cabeça de papelão que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar,
sorriam.
João do Rio Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a
mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário.
No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela,
semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar
Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou
social. provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de
mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os trâmitas
avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público
dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os
mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram
mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia
capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar
proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor,
não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de diante da evidência, negou-se.
automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, — Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude.
cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao
conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado,
Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma ministro.
grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava — Mas não quero ser nada disso.
julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom — Então quer ser vagabundo?
senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do — Quero trabalhar.
Bom Senso! — Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem
Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as
alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos — Eu não acho.
seus concidadãos. — É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois,
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.
defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade
útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar
tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe
comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de
dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses,
consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha
francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro,
tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a
conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros
revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em
pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro,
intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a — Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer
norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros mal...
e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por quê? É tão difícil saber a — É da tua má cabeça, meu filho.
verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem! Qual?
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez: — A tua cabeça não regula.
— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a — Quem sabe?
norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu
depois com ares... coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar
respondeu à mãe de Antenor: com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo
— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria
próprias. Antônia foi condicional.
— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes? — Só caso se o senhor tomar juízo.
Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, — Mas que chama você juízo?
mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu. — Ser como os mais.
No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama — Então você gosta de mim?
de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter — E por isso é que só caso depois.
emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos
eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava
aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do convencido.
erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da
compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e
ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um
tinham explorado. cavalheiro grave veio servi-lo.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram — Traz algum relógio?
para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. — Trago a minha cabeça.
Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com — Ah! Desarranjada?
interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as — Dizem-no, pelo menos.
hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas — Em todo o caso, há tempo?
mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, — Desde que nasci.
juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o — Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer
ainda. nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças
— É doido, mas bom. como os relógios para regular bem...
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor Antenor atalhou:
exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara — E o senhor fica com a minha cabeça?
geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa — Se a deixar.
fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; — Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar
oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as sem cabeça...
profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros — Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia — Regula?
outra coisa diversa. — É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu
o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o — Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um
pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão.
vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa
Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O
Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição,
recordar o tempo em que Antenor era maluco. uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de — Faça o obséquio de embrulhá-la.
contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, — Não a coloca?
desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. — Não.
Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só — V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa
tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos todos os dias. Fatalmente dá na vista.
patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da — Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma,
República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente talvez prejudique.
seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões.
Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da — Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.
felicidade. Regulava admiravelmente. Antenor ficou seco.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol — Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para
estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e
o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a
Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.
pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que
lhe veio a memória. não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos
— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo
Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não com uma cabeça de papelão.
posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos deixei aqui uma cabeça. ANTOLOGIA DE HUMORISMO E SÁTIRA. Organizada por R. Magalhães
— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua Júnior. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1957, p. 196.
ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.
— Ah! fez Antenor.
— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...
— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por
séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha cabeça?
— Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
Música com estrutura narrativa fantástica

Hotel California (Eagles) Hotel Califórina

On a dark desert highway, cool wind in my hair Numa estrada escura e abandonada, vento fresco em meus cabelos,
Warm smell of colitas, rising up through the air Cheiro morno de baseado se erguendo pelo ar.
Up ahead in the distance, I saw a shimmering light Logo a frente a distância eu vi uma luz trêmula.
My head grew heavy and my sight grew dim Minha cabeça ficou pesada e minha visão embaçou,
I had to stop for the night Eu tive que parar para dormir.

There she stood in the doorway; Lá estava ela na entrada da porta;


I heard the mission bell Eu ouvi o sino da recepção
And I was thinking to myself, e estava pensando comigo mesmo:
'This could be Heaven or this could be Hell' "Isso poderia ser o Céu ou o Inferno".
Then she lit up a candle and she showed me the way Então ela acendeu um candelabro e me mostrou o caminho.
There were voices down the corridor, Havia vozes pelo corredor,
I thought I heard them say... Eu acho que ouvi elas dizerem...

Welcome to the Hotel California Bem-vindo ao Hotel Califórnia,


Such a lovely place Que lugar encantador,
Such a lovely face Que rosto encantador.
Plenty of room at the Hotel California Vários quartos no Hotel Califórnia,
Any time of year, you can find us here Qualquer época do ano, você pode encontrar aqui.

Her mind is tiffany-twisted, she got the mercedes-benz Sua mente é depravada, ela tem um Mercedes-Benz,
Ela tem uma porção de lindos, lindos rapazes, que chama de amigos.
She got a lot of pretty, pretty boys, that she calls friends
Como eles dançam no jardim, doce suor de verão,
How they dance in the courtyard, sweet summer sweat.
Alguns dançam para lembrar, alguns para esquecer.
Some dance to remember, some dance to forget
Então eu chamei o Capitão,
So I called up the captain,
"Por favor, traga-me meu vinho".
'Please bring me my wine'
Ele disse: "Nós não temos este espírito aqui desde 1969.
He said, 'We haven't had that spirit here since 1969'
E aquelas vozes continuavam a chamar, de bem distante,
And still those voices are calling from far away,
Te acordando no meio da noite
Wake you up in the middle of the night
Só para ouví-las dizerem...
Just to hear them say...
Bem-vindo ao Hotel Califórnia,
Welcome to the Hotel California
Que encantador,
Such a lovely place
Que rosto encantador.
Such a lovely face
Eles estão vivendo no Hotel Califórnia,
They livin' it up at the Hotel California
Que surpresa agradável, traga seus pretextos.
What a nice surprise, bring your alibis
Espelhos no teto,
Mirrors on the ceiling,
"Champagne Rosê no gelo,
The pink champagne on ice
E ela disse: "Nós somos todos apenas prisioneiros aqui
And she said 'We are all just prisoners here, of our own
Por nossa própria conta".
device'
E no aposento do mestre,
And in the master's chambers,
Eles reunidos para a grande festa.
They gathered for the feast
Eles apunhalavam aquilo com seus punhais de aço,
The stab it with their steely knives,
Mas simplesmente não podiam matar a besta.
But they just can't kill the beast
A última coisa que me lembro, eu estava
Last thing I remember, I was
Fugindo pela porta.
Running for the door
Eu tinha de encontrar a passagem de volta
I had to find the passage back
Para o lugar onde estava antes.
To the place I was before
"Relaxe", disse o porteiro da noite,
'Relax,' said the night man,
"Nós somos programados para receber
We are programmed to receive.
Você pode assinar a saída quantas vezes quiser,
You can check out any time you like,
Mas você nunca poderá sair!"
But you can never leave!

Você também pode gostar