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All content following this page was uploaded by Junia Vilhena on 15 December 2014.
Junia de Vilhenai
I-INTRODUÇÃO
O que faz com que em um país aonde ainda existem tantas pessoas passando
fome a obesidade já seja um problema de saúde pública? Qual a relação que podemos
estabelecer entre comida, sofrimento psíquico e memórias da fome?
Este trabalho parte de duas origens distintas -, fruto dos diferentes interesses das
autoras e que, como nas experiências bem sucedidas dos diálogos entre campos de
investigação, convergiram para uma proposta de dialogar acerca da fome e do comer.
Foi a partir das inúmeras pesquisas feitas por Joana Novaes (Novaes 2011,2010,
2006, 2005) acerca das regulações sociais que incidem sobre o corpo e suas diferentes
formas de vivê-las que surgiu a ideia deste trabalho.
A estética nos dias de hoje assume um papel distinto de outros tempos. Com o
arsenal de técnicas corporais disponíveis acessíveis a todas as classes sociais, gerou-se a
crença de que “só é feio quem quer”; e no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, a
forma mais representativa de feiura é a gordura. Um observador atento pode,
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Como então entender a questão da obesidade, cada vez mais presente nas
camadas populares? Longe de desconsiderar o custo de alimentos saudáveis e menos
calóricos o que buscamos investigar foi a relação entre comida e sofrimento psíquico
bem como entre estética e memória da fome.
Concordando ambas que a fome é uma das experiências mais devastadoras que
existe para o ser humano, pudemos perguntar quais seriam algumas das formas de lidar
com ela bem como com sua memória.
É na clínica com pacientes obesas que vamos buscar os subsídios para investigar
a relação entre comida e sofrimento psíquico. Para ilustrar, vamos recorrer a alguns
relatos feitos por pacientes obesas em dois serviços de atendimento psicológico a
transtornos alimentares: um hospital da rede pública e uma clínica universitária.
Buscamos, neste momento, ilustrar a dinâmica do trauma que opera de diferentes
formas nestas mulheres.
O silêncio em torno da fome, seu tabu, interdita a sua nomeação. A partir deste
ponto, ou seja, frente à privação de um objeto que não pode tornar-se simbólico, pode-
se pensar sobre os possíveis efeitos para a estruturação psíquica do bebê desde suas
relações mais primitivas.
A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua
carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu
espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade
pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo
quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Excitados pela
imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o
homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode
parecer das mais desconcertantes (Castro, 1957 p.43).
Vê-los agir, falar, lutar, viver e morrer, era ver a própria fome modelando com
suas despóticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da humanidade - o drama da
fome (1957 p.12).
Mas vejamos como podemos entender esta operação em sua dimensão psíquica
mais profunda.
Comendo cada vez mais, cada vez mais cheias, embora nunca cheias o
suficiente, comem mais, buscam ficar sem espaços a serem preenchidos, sem faltas;
talvez horror às hiâncias que apontam ao que estamos condenados por sermos seres de
fala. Para o desejo do sujeito não existe objeto, é um vazio constitutivo, irredutível. O
sujeito constitui-se numa alteridade, mas quando busca constituir-se e definir-se não
encontra nada que o definiria definitivamente, só o que acha é essa falta. Falta radical e
fundamental que doravante o constitui.
É daí que partimos para pensar que real se configura na obesidade? Não parece
tratar-se de um real que abre essa relação. Parece mais se dar um curto-circuito direto
corpo/linguagem: de um lado um corpo partido entre o sentido invariável, a imagem que
sofre distorção gradativa, e um não-sentido, um real impossível e violento, de outro lado
uma linguagem que não alcança esse corpo, linguagem impotente, sempre correndo
atrás de domar algo violento. (Rocha, Vilhena & Novaes 2009).
inserida nesse contexto, mas causa extremo sofrimento ao sujeito, ao qual não resta
outros modos de protestar que não adoecendo (Vilhena, Novaes & Rosa prelo).
Nestes casos, algo do trauma vivido parece insistir e como sabemos, a partir dos
achados de Freud, que identificou tal mecanismo com aguda precisão, aquilo que não é
elaborado, repete.
No setting, são pacientes que demandam um tempo maior para refazer esse luto,
através da rememoração de conteúdos bastante primitivos. Após relatarem o que
identificam como deflagrador/motivo para terem engordado, quer seja: abandono,
morte, perda ou simplesmente a rejeição sofrida por suas mães que as deixaram, na
maioria das vezes, aos cuidados de outrem, passam grandes períodos nos quais apenas
choram.
“Desde que perdi meu filho sinto um nervoso Dra. E daí desando a comer feito
uma louca desesperada” (M.- 34 diarista)
Para outras, vítimas de toda a sorte de abusos praticados por pais, padrastos,
irmãos ou namorados, nas quais comparece, em meio a este show de horrores, até
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Desde o estupro notei que venho engordando, sempre tive tendência para
engordar, mas dali em diante nunca mais consegui parar. É como se um monstro
tomasse conta de mim e controlasse a minha boca (R. – 28, auxiliar de enfermagem)
Resta a constatação e a indagação de como isso tudo pode ser ainda mais
facilmente superado, digerido e elaborado do que a ausência da mãe.
Não sei praticamente o que é ter prazer sexual, aliás, há muito tempo abdiquei
disso Dra. Sirvo ao senhor que é o meu pastor e nunca me faltará, pois com os homens
só tive decepção, primeiro com meu pai: um homem mal, ignorante e perverso que
judiava de mim e dos meus irmãos e depois com o Genilson, meu primeiro namorado,
de quem fiquei noiva e perdi a virgindade quando ele me estuprou aos vinte e dois anos
e depois ainda descobri que me traía com outra. Depois disso, nunca mais quis saber
de sexo, até namorei alguns rapazes da igreja, mas sem ter relações, pois passou a me
embrulhar o estômago, além do mais, segundo as leis do senhor, não é direito antes do
casamento. À noite, a maioria das pessoas vai pra cama, já eu, de madrugada, assalto
a geladeira! Bate um desespero mesmo Dra., uma aflição que sobe pelo corpo e só
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acalma depois que me sinto bem cheia e dá aquela moleza – aí então posso me deitar”.
(R.- 38, empregada doméstica).
Minha maior conquista na terapia Dra, depois de ter sofrido o estupro, foi
voltar a amar e acreditar que posso ter um filho, pois mesmo antes do estupro
desconhecia o que era atenção e carinho. Somente quando fui buscar tratamento
psicológico pude perceber o que é ter alguém que me ouve e se preocupa comigo. Não
que eu não pensasse em engravidar, tanto é assim que sempre procurei emprego como
babá, mas confesso sempre me deu medo de sufocar a criança, pois se com os meus
sobrinhos e afilhados já sufoco de tanto zelo e preocupação – imagine com o meu
próprio filho?! (E.-40, diarista)
A mulher “que na verdade queria” ou aquela que “fez por onde” permite
trivializar o estupro, considerá-lo excitante para o imaginário, não apenas pornográfico,
como também legal, quando a vítima é, frequentemente, transformada em ré. É neste
sentido que autora define o estupro como um crime do patriarcado – um ato que não
apenas subordina brutalmente as mulheres à vontade dos homens, como limita sua
liberdade e alimenta a ideologia de que as mulheres precisam de proteção. (Vilhena &
Zamora 2005)
É também na área penal que vamos nos defrontar com uma das maiores
dificuldades. A exigência de que a vítima do estupro implique-se, retrospectivamente,
na experiência. Para o tribunal, a vítima é a testemunha-chave de acusação: ao precisar
dar provas do ato é colocada como testemunha do mesmo.
Com tudo isto, o que tais casos suscitam pensar é que algo característico ao
trauma consegue ser transposto e a capacidade de ligação não é completamente perdida,
logo, pode ser restabelecida. Esta parece ser a pista deixada até o presente momento.
Tenho vergonha de trocar de roupa na frente do meu marido, e sei que ele tem
amantes fora de casa, embora diga que gosta do meu corpo e me procure, mas a
verdade é que depois da minha segunda gravidez engordei muito e não consegui
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retomar, nem tenho vontade de mais nada, nem ter relações...(J- 37, empregada
doméstica)
Como até sentir uma tontura, até ficar zonza Dra, depois da comilança me sinto
perdida e normalmente durmo, então quando acordo choro, pois me sinto culpada, mas
na hora só penso que a comida é a minha grande companheira, embora saiba que é
também a minha grande inimiga (E. 39 – faxineira).
“A gente não pode emagrecer demais senão os vizinhos acham que estamos
passando fome, endividados ou na rua da amargura” (V. 48, empregada doméstica).
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Observamos que enquanto as mulheres das classes médias e altas, não iam à
praia, (Novaes, 2005), não saíam de casa, malhavam compulsivamente e negavam
qualquer referência a uma sexualidade mais ativa, um simples olhar nos trajes femininos
nas comunidades da Rocinha, Chapéu Mangueira, Parque da Cidade e Rio das Pedras
ou mesmo nas ruas das cidades, mostrou-nos mini saias, decotes, roupas justíssimas que
parecem em nada querer ocultar as “gorduras” que estas mesmas mulheres buscam
eliminar nas academias de ginástica destas comunidades ou na compra dos inúmeros
aparelhos vendidos através do shoptime ou programas similares. Haveria assim um lidar
de forma bastante distinta com a sexualidade, com o próprio corpo o que determinaria
sociabilidades bem distintas. (Novaes 2010)
Os resultados apontam para o que supomos ser uma relação mais liberta, menos
persecutória e de menos vergonha na forma de lidar com a própria gordura. Ao
contrário de uma hipótese inicial, de que talvez não houvesse por parte dessa população
a percepção da gordura para que ela comparecesse exposta sem pudores e não
correspondendo ao que a literatura tradicional utilizada nos informava, qual seja, de que
as camadas menos favorecidas esperam da figura do médico dizer o que é melhor para o
seu corpo.
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Pelo menos no que diz respeito à estética corporal, as mulheres das comunidades
carentes entrevistadas, estão longe de ter uma relação de alienação com o próprio corpo
ou tampouco esperam do saber médico dizer que corpo devem ter. Mostraram-se, como
veremos abaixo, com uma percepção precisa e bastante acurada da própria imagem
corporal.
Sei que estou gorda. É o que eu digo para o médico lá do posto, na cesta básica
por acaso vem queijo cottage, pollenguinho light, maçã da Mônica e pão integral light?
Claro que não! Vem fubá, maisena, leite integral, macarrão, etc. Aí é o que eu digo,
saber o que comer eu sei, mas ser magra é caro. (L, 36, manicure)
“Se ficar muito magrinha, igual madame, vão dizer que falta comida...”
“Filho meu não vai fazer regime. Já chega o regime que a vida impõe”
Jogo de cintura, criatividade, uma relação mais lúdica e menos persecutória com
o corpo, gordura associada à prosperidade e seu inverso: magreza excessiva à vergonha,
miséria e privação. Tudo isso, mencionado para descrever as representações e os usos
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que o corpo assume nas chamadas camadas menos favorecidas da população sem jamais
deixar de sublinhar que em nenhum momento negam a sua gordura ou deixam de se
importar com ela.
Foi isto que buscamos aqui demonstrar. Enquanto o médico busca curar a
doença da obesidade, de nosso lugar procuramos entender a dor, aqui compreendida
como a tristeza que precisa ser partilhada, para que estas mulheres consigam legitimar
o lugar do seu sofrimento e nos digam do que falam seus corpos.
Não há como não ouvir estas mulheres dentro do espaço social onde constroem
suas vidas. É a partir do entendimento do que significa a vida em espaços marcados pela
carência que é possível pensar o viver, o trabalhar, formar os laços sociais e identificar-
se com os semelhantes. É a partir de um lugar que falamos e que somos ouvidos; que
respeitamos e somos respeitados, que nos sentimos incluídos ou à margem.
Por isto, este corpo que é tantas vezes maltratado, torturado e explorado, não se
deixa reduzir a ser apenas isto; é também um corpo do prazer negado em quase todas as
outras esferas da vida, do lúdico e do político. Nas sábias palavras de uma entrevistada:
...Portanto, você não pode subir aqui o morro esperando encontrar o mesmo
corpo. Nosso corpo é esperto, temos que improvisar desde cedo. Pobre que não
improvisa não vive, se lasca todo. E você sabe como é: viver não é só comer e
trabalhar, como diz aquela música dos Titãs, - a gente não quer só comida, a gente
quer comida, diversão e arte.
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i
JUNIA DE VILHENA