Você está na página 1de 11

Cinema e Design Gráfico: Correlações

- Inglaterra nos anos 70

por Josette Monzani*

Resumo Através da análise comparativa do cartaz e do filme Laranja Mecânica, de


Stanley Kubrick, esse artigo aborda a inversão dos valores culturais positivos em
negativos.

Palavras-chave Stanley Kubrick; anos 70; design gráfico; design de produção;


Laranja Mecânica

Abstract This article treats the inversion of positive cultural values into negative
ones by the comparative analysis of both Clockwork Orange poster and film.

Key words Stanley Kubrick; the 70´es; graphic design; production design;
Clockwork Orange

“O design gráfico é um processo técnico e criativo que utiliza imagens e textos


para comunicar mensagens, idéias e conceitos. Batizado e amadurecido no século
20, é hoje a atividade projetual mais disseminada no planeta. Com objetivos
comerciais ou de fundo social, o design gráfico é utilizado para informar,
identificar, sinalizar, organizar, estimular, persuadir e entreter, resultando na
melhoria da qualidade de vida das pessoas.
O trabalho dos designers gráficos está inserido no cotidiano da sociedade através
de pôsteres, logotipos, embalagens, livros, jornais, revistas, placas e sistemas de
sinalização, camisetas, aberturas e vinhetas de cinema e televisão, websites,
softwares, jogos, sistemas de identidade visual de empresas, produtos e eventos,
exposições, anúncios etc” 1.

Quando o filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick 2, apareceu nos cinemas,


chocou por sua violência temática. De modo incomum, porém, a agressão nas
formas visual e auditiva assustou as platéias, com ou sem consciência de que dali,
de alguma forma, estava irradiando uma realidade já um tanto nossa conhecida e
um futuro sombrio para a humanidade. Ver os chapéus coco típicos dos ingleses,
usados por personagens com aparência de ingleses, em seus trajes
imaculadamente brancos, praticando toda sorte de selvageria contra velhos e
mendigos e famílias “de bem”; drogados, desiludidos, habitantes do centro de uma
cidade suja, em prédios quase totalmente destruídos, abandonados, sem qualquer
tipo de controle ou conservação; e principalmente, presenciar aqueles jovens sem
ideais, incomodou. A música eletrônica, de Wendy Carlos, preconizando a
linguagem, o canto, a voz das máquinas assumindo o lugar das orquestrais
Sinfonias de Beethoven tão amadas pelo protagonista também desassossegou.

Até a seqüência amorosa da personagem, editada em velocidade rápida,


apontando a fugacidade, uma certa mecanicidade e frieza na atitude dos
envolvidos - que também fogem do tradicional “par” amoroso - gerou risos nos
espectadores, eu diria, risos nervosos, assustados e/ou de identificação.

Um dos cartazes do filme já trazia iconicamente representado o teor do filme.


Nele aparecia o metrônomo, peça indicial da música, traço fundamental no enredo,
com Alex empunhando o pêndulo como se fosse um punhal – indicador da violência
também presente. O metrônomo forma ainda um A de fôrma de Alex, e faz pensar
em máquina e relógio, devido ao termo ‘clockwork’ escrito logo abaixo dele.
Relógio e Tempo estancados pela ação furiosa e desiludida da personagem.

Mas há mais do que essas


informações no cartaz. O ‘A’ em
preto, se olhado com atenção, é
contornado nas laterais pela cor
amarela (no A maior e no menor),
acentuando as pontas triangulares a
ferir o branco do papel e a destacar a
bola / olho e os termos “ultra-
violence”, assim como a ponta do
punhal perfura o nome do compositor
‘Beethoven’ acima. Ainda, o amarelo
forma duas janelas triangulares,
numa das quais irrompe o
protagonista, salta sua mão com o
punhal, como se estivesse vindo de
uma outra dimensão até a nossa. A
bola / olho é outra arma bem
destacada, enquanto desenho, e nas
letras do título (note-se o ‘O’, o ‘R’, o
‘C’).

O nome do diretor e do filme parecem ter sido cuspidos pela janela menor; o título
sombreado, com volume, dando idéia de que o mesmo está próximo de nós,
prestes a nos alcançar.

A letra ‘A’ de Orange (à menor distância de nós visualmente) repete os triângulos


acima, numa reafirmação de que a sociedade desintegrada por detrás daqueles
triângulos está mesmo chegando.

A mensagem de ameaça vizinha, fantasiada, travestida do filme encontra-se toda


ali, no cartaz – sintetizada pelo designer gráfico, num diagrama ) 3.

No filme esse conceito de travestido, mascarado, disfarçado parece ser o


mote principal do design de produção de John Barry. Assim, por ex, trata-se e não
se trata de um retrato do mundo (europeu) nos anos 70: há sinais evidentes
(como os tipos físicos, os chapéus, os sintetizadores), mas a abordagem é de um
mundo futurista, sem localização precisa, afinal trata-se de uma obra de ficção
científica. Alex usa uma “saqueira” por cima da calça, com um falso falo
acentuado, evidenciando a presença do verdadeiro, com a intenção explícita de
chocar o espectador com aquela demonstração de machismo – já que, na diegese
ninguém parece se incomodar com o detalhe – no filme ele se autodenomina “Alex
the Large”.

Há outro cartaz do filme, bastante


semelhante ao mostrado
anteriormente. O detalhe interessante é
a pequena figura feminina sentada no
vértice do triângulo menor, como se
estivesse sendo sexualmente possuída
por ele: o cimo, um falo ou um punhal,
contra sua vontade, já que seus braços
estão amarrados para trás, a exemplo
do que fez Alex com a esposa na
invasão da casa burguesa.

O protagonista usa também, no olho direito, cílios postiços, evocando o


visual da manequim Twiggy, lançada em 1966 4, na Inglaterra, e que dominou o
mundo da moda por quatro anos. Mas seu olhar é frio, sádico, determinado. O
oposto do da manequim, lânguido e displicente.

Malcolm McDowell como Alex, em Laranja Mecânica e a modelo Twiggy

O recurso tão marcante dos cílios 5, numa retórica outra, a inverter o significado
primeiro, talvez queira evidenciar a presença da ironia como princípio construtor /
norteador da estética de Laranja Mecânica.

Alex era uma máquina de


destruição; porém, depois de
condicionado a não praticar mais
violência contra seus semelhantes
– ou seja, depois de transformado
em outro tipo de máquina - a
princípio não tem como sobreviver
naquele mundo.
Twiggy não significaria, portanto,
um alerta ‘suave’ contra a
robotização humana?
Ela era indefinida: não era uma
mulher adulta, também não era
uma criança; parecia-se com um
menino e com uma menina.

Era andrógina e frágil. Uma


imagem viva da
descaracterização do que se
concebia por ser humano,
com seus gêneros feminino e
masculino. A humanidade
“secando”.

Twiggy exprimia tristeza, melancolia, pedido de ajuda.

A que remetiam esses caracteres visuais e auditivos (não nos esqueçamos aqui da
fala utilizada por Alex e gang 6 e da música), tão bem utilizados pelo designer de
produção do filme e o fotógrafo que fabricou a modelo 7 ? Afinal, “design gráfico
(creio poder estender essa definição aos designers de produção também) é
utilizado para informar, identificar, sinalizar, organizar, estimular, persuadir e
entreter, resultando na melhoria da qualidade de vida das pessoas”. Quais seriam
os fatores sociais determinantes da criação destas mensagens?

Em 1969, dois anos antes de Laranja Mecânica 8, o homem chega à Lua, depois de
anos de pesquisa. Além da conquista espacial, nesse período os computadores
estavam sendo desenvolvidos a todo vapor. Mente artificial, robôs e seres
extraterrestres foram ocupando o imaginário humano. Seres e máquinas eficazes
e super eficientes. Logo depois da conquista da Lua, David Bowie lança o álbum
Space Oddity (1969) e, em seguida, Hunky Dory (1971) e The rise and fall of Ziggy
Stardust and the spiders from Mars (1972) que trouxeram, principalmente este
último, Bowie numa personagem vinda do espaço, de imagem dúbia. Andrógina
também; adorada pelos seus inúmeros fãs.

Capa de Hunky Dory, a androginia


como traço gráfico, meigo e
delicado: note-se o olhar, a boca,
as sobrancelhas, todos com
indefinição de traços nas
extremidades, a posição da mão e
a luz dirigida à face indiciando
uma ‘visão’ da personagem. A cor
amarela viva e o movimento dos
cabelos, o desenho da roupa,
geométrica e esfumaçada
transmite um clima de sonho e de
fragilidade ao espectador.

O oposto do design idealizado para Laranja Mecânica, como se nota. A relação de


Bowie com Twiggy aqui também não é gratuita. Em 1973, ambos aparecem juntos
– mascarados e ‘quebradiços’ - na capa do disco Pin Ups, do cantor, com
expressões que remetem à desesperança e desconsolo dela, e ao espanto dele -
frente a uma ‘máquina’, provavelmente. As três capas de Bowie desta fase
guardam uma unidade e foram realizadas pelo designer, e amigo do cantor,
George Underwood que, notadamente, enfatiza as figuras humanas (maquiagem,
pele, cabelos e expressões) em detrimento do fundo e de objetos.

Em relação ao cinema, o norte-americano havia apresentado a belga Audrey


Hepburn, bastante magra, porém elegante, bonita, charmosa e feminina. Em 1966
Hepburn estava no auge quando filmou Como roubar um milhão de dólares. Vinha
dos inesquecíveis Sabrina, Guerra e Paz, Charada e My fair lady. De certa maneira
ela já havia contrariado o tipo físico de atrizes queridas como Anna Magnani, Gina
Lollobrigida, Sophia Loren e Brigitte Bardot. Mesmo assim, Twiggy extrapolara.
Sua mensagem era outra.

Em compensação, outros filmes ingleses surgem, ainda na década de 70,


preocupados com o destino da sociedade, frente à desumanização dos indivíduos.
Entre outros, O homem que caiu na Terra (de Nicolas Roeg, 1975), estrelado
exatamente por Bowie no papel principal, vivendo um alienígena que está na Terra
em busca de água, não mais existente em seu planeta, e que transmite a
mensagem de que é preciso zelar pela Terra, pela Natureza e, por extensão, pelos
humanos; Zardoz (de John Boorman, 1974), que mostra os humanos como seres
frágeis, porém sensíveis, e que merecem ser preservados em função dos valores
que carregam; e Tommy (de Ken Russell, 1975), a saga de um anti-herói, sem
família, cego, surdo e mudo desde que presenciou o assassinato de seu pai pela
mãe e o amante, que se torna famoso por jogar pin-ball como ninguém, filme que
já apontava para a extensão das relações homem / máquina.

Note-se que Bowie, em cena do filme citado, no papel de um alienígena,


tem o visual do rosto bastante semelhante ao apresentado por ele na capa de
Hunky Dory; a expressão facial - em especial o olhar - de Sean Connery, no cartaz
de Zardoz, faz lembrar o de Bowie em Pin Ups, à diferença que o cantor vê a
máquina à sua frente, Connery olha para algo que não vemos, mas que o
assombra, além de sua face estar alocada no céu; e, finalmente, o cartaz de
Tommy mostra o protagonista transformado em jogo, dentro da máquina, e as
demais personagens ao seu redor, feitas botões.
II

Esse momento também foi marcado como sendo a “era psicodélica”,


caracterizada pelo uso de drogas alucinógenas (em especial o LSD), pela liberdade
sexual, graças, principalmente, à descoberta das pílulas anti concepcionais, enfim,
pela valorização dos sentidos de todas as maneiras possíveis 9. Valorizava-se o
corpo com carne, não um amontoado de ossos.

As letras dos cartazes de Clockwork Orange, se olhadas rapidamente,


fazem lembrar o tipo psicodélico, aquele que foi empregado na capa do LP Rubber
Soul (1966), no cartaz da animação Yellow Submarine (1968), ambos de The
Beatles, entre tantos outros exemplos da época.

Parece o mesmo tipo, mas não é. O título, conforme empregado no filme e


nos cartazes, incorpora o tipo psicodélico para destruí-lo, arruinar sua mensagem,
portanto, para negá-lo. Cada letra foi esculpida geometricamente e em proporção
10. Tem-se ali uma construção premeditada e fria.

III

No final de Laranja Mecânica percebe-se a ampliação do problema da


violência contra o sujeito, originado no interesse egoísta de alguns contra a
maioria. O Estado faz parte desse jogo, tanto quanto a polícia. Assim também, o
punhal usado por Alex - com ponta em triângulo isóscele, símbolo da violência, do
corte fino e profundo que atinge as entranhas - encontra-se ampliado no triângulo
que compõe o cartaz, numa indicação gráfica bastante eficaz da expansão dessa
questão, do nível pessoal até o alto poder. Levando ao extremo a idéia de
‘inversão’ de valores que vinha sendo aventada, esse triângulo do poder evoca a
Santíssima Trindade Cristã - poder da igualdade, da solidariedade, da justiça - só
que aqui com valores totalmente invertidos, ou até pervertidos, contra a
sociedade.

No cartaz, então, Alex irrompe pelo triângulo maior, sob as “asas” dele. Já
a mulher tem as entranhas estraçalhadas pelo vértice do triângulo menor – numa
referência à dominação masculina na sociedade também.

O design gráfico do(s) cartaz (es), de maneira sintética e ideogramática, e


o filme, de maneira explícita, denunciam a deglutição das culturas alternativas e
seus signos pela indústria cultural dominante e repressora, validando seu emprego
e pervertendo suas mensagens, a favor do totalitarismo violento e supressor da
liberdade e das identidades pessoais 11, bens maiores do ser humano, desde
sempre.

Em tempo 1: “o cartaz de Laranja Mecânica foi eleito o melhor de sempre por


funcionários de cinemas do Reino Unido” 12.

Em tempo 2: não consegui descobrir o nome do designer gráfico do cartaz.

Referências Bibliográficas

1) BRINGHURST, R. Elementos do estilo tipográfico. São Paulo: Cosac Naify,


2005.

2) CAMPOS, H. Ideograma, Anagrama, Diagrama: Uma leitura de Fenollosa In:


Ideograma. São Paulo: Perspectiva, 1977.

3) HORKHEIMER, M. Crítica de la razón instrumental. Buenos Aires: Sur, 1969.

4) HORKHEIMER, M. E ADORNO, T. Dialéctica del iluminismo. Buenos Aires:


Sur, 1970.

5) MANRIQUE, M. Stanley Kubrick y la pintura del siglo XVIII In: Cinemais. Rio
de Janeiro, Ed. Cinemais, no. 38, jan / mar 2005.

6) PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1977.

7) PERRONE, C. Psicodélicas. Um tipo muito louco. São Paulo: Rosari, 2003.


8) PIGNATARI, D. Semiótica e literatura. São Paulo: Perspectiva, 1974.

9) SONTAG, S. A imaginação da catástrofe In: Contra a Interpretação. Porto


Alegre: L&PM, 1987.

Referências Cinematográficas

- Charada de Stanley DONEN, USA, 1963, 113’.

- Como roubar um milhão de dólares de William WILLER, 1966, USA,


123’.

- Guerra e Paz de King VIDOR, USA / Itália, 1956, 208’.

- Laranja Mecânica de Stanley KUBRICK, 1971, UK, 136’.

- My Fair Lady de George CUKOR, USA, 1964, 170’.

- O homem que caiu na Terra de Nicolas ROEG, 1975, UK, 138’.

- Sabrina de Billy WILDER, 1954, USA, 113’.

- Submarino Amarelo de George DUNNING, 1968, UK /USA, 90’ (UK);


85’ (USA).

- Tommy de Ken RUSSELL, 1975, UK, 111’.

- Zardoz de John BOORMAN, 1974, UK, 105’.

* Josette Monzani é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC /SP, com pós-
doutoramento em realização na ECA /USP, sob a supervisão do Prof. Ismail Xavier. É profa. de
cinema do Bacharelado em Imagem e Som da UFSCar. Tem vários artigos sobre cinema
publicados em livros e periódicos nacionais e está lançando o livro Gênese de Deus e o Diabo
na Terra do Sol (São Paulo, AnnaBlume / Fapesp).

1 Definição retirada do site da ADG: www.adg.org.br (30/09/2005). Grifo nosso.

2 Americano radicado na Inglaterra, onde rodou esta película em 1971.

3 Cf. em PEIRCE, C.S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.


4 Twiggy foi lançada pelo fotógrafo Justin de Villeneuve.

5 Cílios da Twiggy, da marca Yardley, que fizeram grande sucesso.

6 O roteiro foi baseado no romance homônimo de Anthony Burguess, no qual as gangs fazem uso de um
idioleto próprio.

7 Como bem afirmou POUND (ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1979): “os artistas são as antenas da
raça”.

8 Cabe lembrar que 2001: uma Odisséia no Espaço, do mesmo Kubrick, é de 1969.

9 “Acho que eu selecionava minhas cores a partir da experiência visual com LSD, acrescentada àquilo que
havia aprendido como impressor, confessa Wes Wilson (...)” In: PERRONE, C. Psicodélicas. Um tipo muito
louco.São Paulo: Rosari, 2003, p.9.

10 “Toda letra psicodélica é freak, convivendo em um espaço freak. Em vez de construção tem-se
comportamento (...). E o comportamento desses tipos, que parecem muito loucos, é na verdade orgânico,
biológico. Sim, em tempos de revolução sexual, o corpo está na berlinda, mas não se trata do corpo
esculpido, mecanicamente construído para ser visto, como acontece nos anos 2000”. In: PERRONE, C.
Psicodélicas. Um tipo muito louco. São Paulo: Rosari, 2003, p.14.

11Cf. HORKHEIMER, M. e ADORNO, T. Dialéctica del iluminismo. Buenos Aires: Sur, 1970 (em especial p.146
a 200); e HORKHEIMER, M. Crítica de la razón instrumental. Buenos Aires: Sur, 1969.

12 In: sintragare.weblog.com.pt/ (30/09/2005)

Você também pode gostar