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João de Carvalho
É comum dizer que o momento atual é de profundas transformações. O mundo passa por um
período conturbado no qual a trama social é varrida pela velocidade das mudanças. Se por um
lado existe otimismo diante dos progressos científico, tecnológico e econômico, existe
também um grande pessimismo diante da perda dos referenciais e da falta de sentido da vida.
Embora nos séculos anteriores o progresso da civilização européia despertasse entusiasmo,
esse sonho se dissipou ao longo do século XX. Uma época assolada por guerras em escala
jamais vista, ditaduras, explosão populacional, vastas áreas de pobreza, entre outros
problemas, questionaram a idéia de progresso que tanto marcou as gerações anteriores. As
utopias praticamente desapareceram e em seu lugar surgiram distopias como as de Aldous
Huxley e George Orwell, que vislumbravam um futuro sombrio. No início do século XX, o
sociólogo Oswald Spengler dizia que o ocidente já havia há muito atingido o seu apogeu,
portanto, só lhe restava o declínio.
Este clima pessimista não se limitou ao que o historiador Eric Hobsbawm chamou de Era da
Catástrofe — a primeira metade do século XX —, se estendendo também para o período
posterior à Segunda Guerra Mundial. Embora neste período tenha havido momentos de
grande otimismo, eles logo tenderam a se dissipar. O sonho da década de 1960 acabou em
meio às sombrias décadas de 1970 e 1980, e o otimismo do período pós-Guerra Fria deu lugar
a conflitos raciais e religiosos e ao fantasma do terrorismo internacional. Um estudo concluiu
que “a esperança de um mundo mais sensato, propiciada pelo fim da Guerra Fria, em grande
parte evaporou.”1
Este clima produziu efeitos significativos em praticamente toda a sociedade. Neste ensaio
iremos abordar seus efeitos sobre o pensamento de nossa época. Para compreendermos este
fenômeno, porém, devemos olhar para sua gênese histórica, que se encontra há séculos no
passado.
A partir do século XVII, inspirados pela revolução científica que tomava forma na Europa, os
pensadores elaboraram idéias sobre como organizar a sociedade de forma científica,
contestando, assim, toda a ordem tradicional. Essas idéias prometiam uma nova era de luz,
liberdade e igualdade, na qual a razão, e não mais a superstição, governaria a sociedade.
Este movimento — o iluminismo — apresentava uma visão otimista e confiante do progresso
do conhecimento e da civilização. Com o tempo, no entanto, problemas começaram a
contestá-lo. Jean-Jacques Rousseau, em meados do século XVIII, não era contra o
iluminismo, mas tampouco estava satisfeito com o homem que era produto deste projeto (que
ele chamou de burguês). Este homem estava satisfeito com sua vida racional e civilizada, mas
faltava-lhe grandeza e profundidade. No sistema anterior — feudal — existia um lugar para o
sagrado, mas o novo sistema tinha muito pouco a dizer sobre os anseios espirituais do
homem.2 O pensamento de Rousseau, portanto, revela um conflito entre a ordem social
racional que ele reconhecia e apoiava, e os anseios profundos do homem, necessários para
uma vida espiritual plena. Como estes anseios não podiam ser satisfeitos dentro do sistema, o
homem buscava união com o sagrado através da introspecção solitária e da comunhão com a
natureza.
Assim, enquanto no período anterior sociedade e espiritualidade estavam integrados em um
único sistema, no período moderno esses dois aspectos da vida tenderam a se separar.
Enquanto a ciência procurava elaborar modelos racionais de como organizar a sociedade, a
espiritualidade era privatizada, se afastando da ordem social em um movimento que iria
caracterizar o romantismo do século XIX, em sua busca pela grandeza humana em meio a um
mundo cada vez mais frio.
Mas ao invés desta busca ser satisfeita, a situação tendeu a piorar. Se o mundo que Rousseau
criticava despertava angústia, o que dizer do mundo com o qual Friedrich Nietzsche se
deparou no fim do século XIX? A modernidade havia se instaurado plena e um mal-estar
geral pairava sobre a civilização. Já não era possível encontrar na cultura qualquer resposta
para os anseios profundos do homem. A razão e a ciência haviam exaurido os recursos
espirituais do ocidente fazendo-o entrar em crise espiritual. No início de sua última obra, A
Vontade de Potência, de 1888, Nietzsche anuncia o novo clima que estava se formando: “O
que relato é a história dos próximos dois séculos. Descrevo o que está vindo, o que não mais
pode vir de forma diferente: o advento do niilismo.”
Nietzsche partiu de uma abordagem relativista. Valores não podem ser explicados e tornados
evidentes através da razão — não são algo que se demonstra, mas algo que se afirma. A
grandeza do homem não está em sua razão, e sim em sua capacidade de se comprometer e
lutar por valores, quaisquer que sejam eles. Para Nietzsche, a decadência havia começado
com Sócrates, com seu método de questionar tudo e sua negação da espontaneidade dos
instintos, desprovida de reflexão. A solução para a crise, portanto, estava na rejeição da razão
e no retorno dos profetas, que deveriam, não através da razão, mas da determinação, fundar
novos valores que iriam guiar os povos e erguer novas civilizações.
Se pudéssemos classificar Nietzsche em alguma vertente política, ele estaria na direita. Como
os valores não podem ser demonstrados, o único critério para defini-los é a convicção com
que eles são afirmados. Os valores entram em conflito, através da guerra se necessário, e os
que são afirmados com maior convicção prevalecem. Essas idéias fundamentaram
movimentos como o nazismo e o fascismo, que representam reações ao clima burguês que
prevalecia nos países desenvolvidos. É, portanto, um fenômeno notável que na segunda
metade do século XX o pensamento de Nietzsche tenha sido adotado entusiasticamente pela
esquerda, e praticamente esquecido pela direita.
A esquerda clássica era iluminista, isto é, acreditava que através da razão poderíamos
conhecer as sociedades, nos colocar acima de ideologias e tomar as medidas necessárias para
resolver seus problemas. Mas ao longo do século XX esta visão mudou radicalmente. O
projeto iluminista havia fracassado, mas o espírito esquerdista não morreu; ele passou por
intensa reformulação. A ciência deixou de ser sua principal aliada e passou a ser vista como
uma inimiga, uma aliada da burguesia e conservadora do status quo. Assim, se passou a
buscar na espontaneidade da vontade a solução para as angústias da sociedade, e o marxismo
passou a ser visto mais como uma causa espiritual que um produto de reflexão racional. É
verdade que a ciência nunca pôde ser completamente desprezada, pois grande parte das coisas
que as pessoas usavam era produto desta disciplina, mas ela perdeu muito do crédito que tinha
e um clima anticientífico e irracionalista tomou conta da sociedade.3
Para esta reviravolta ocorrer foram necessários alguns ajustes no pensamento de Nietzsche.
Enquanto este pensador dizia que apenas alguns se tornariam profetas, construindo novos
valores que seriam seguidos pelas massas, a nova esquerda defendia que todos podiam ser
profetas de si mesmos, escolhendo os valores com os quais viveriam suas vidas. Ao invés da
luta pela imposição de valores, que Nietzsche via como inevitável em um mundo relativista,
adquiria-se tolerância a todos os valores e modos de vida, pois todos eram igualmente válidos
e não sujeitos ao questionamento racional. Desta forma, o irracionalismo nietzscheano
penetrou na científica sociedade burguesa.
Esta nova interpretação de Nietzsche está nas bases do pensamento do século XX. Na
antropologia, o relativismo cultural de Franz Boas prosperou se tornando a principal corrente
antropológica do século. De acordo com esta corrente, cada cultura é única em seu próprio
caminho e não existem bases para se estabelecer juízos de valor entre elas. Na psicologia, o
behaviorismo via a mente como uma tela em branco na qual o conteúdo era inserido de fora.
Assim, toda a estrutura mental dos humanos — suas motivações, valores e desejos — passou
a ser vista como resultado do condicionamento cultural. Na filosofia, o existencialismo de
Jean-Paul Sartre dizia que, na ausência de Deus ou de qualquer outro determinante para
afirmar o que é certo e errado, o homem deveria simplesmente escolher, de acordo com sabe-
se lá o que, os valores pelos quais lutar.4
Este clima foi reforçado por novas teorias da física, que no início do século XX abalaram a
mecânica clássica mostrando que o modelo newtoniano não era a verdade final sobre o
mundo. Por debaixo dos estáveis e previsíveis corpos newtonianos escondia-se um mar de
partículas que desafiavam alguns dos mais sólidos fundamentos da física. A ciência que se
desenvolveu neste novo mundo era governada por probabilidades e incertezas. Outra teoria,
elaborada na mesma época por Albert Einstein, reinterpretava as forças newtonianas e
relativisava o tempo, que até então era tido como absoluto.
Esta tendência do pensamento culminou no fim do século XX com o pós-modernismo.
Segundo essa corrente, que domina os meios intelectuais de hoje, nada pode ser realmente
conhecido, pois todo conhecimento é erguido em bases ideológicas que ele não pode
questionar. Mesmo a ciência seria apenas uma entre várias formas de se conhecer a realidade,
sem nada dizer respeito à verdade. Não existem verdades, dizem eles, apenas interpretações
impostas e disseminadas por certos grupos. Muitos se concentram na linguagem e no texto, as
únicas coisas que restaram após tudo mais ter sido demolido. Mesmo o texto está sujeito à
crítica e à análise, pois nunca se pode realmente saber o que o autor queria dizer. Como
observou Edward Wilson, o paradoxo do pós-modernismo é semelhante ao paradoxo cretense,
no qual um cretense diz: “Todos os cretenses são mentirosos.” Após constatar que todos os
sistemas anteriores estavam errados, o pós-modernismo chegou à trágica conclusão de que
nada pode ser conhecido. O paradoxo reside no fato de que para eles esta constatação é uma
verdade.
Os pós-modernistas fazem uso de narrativas confusas e difíceis que podem apresentar a
incoerência dos sonhos e da poesia. Muitos desprezam a coerência como algo opressivo. “A
existência de coerência”, escreve uma teórica feminista, “impõe a exclusão de quaisquer
elementos — como a ambigüidade, o conflito e a contradição — que ameacem a coerência”,5
como se não pudéssemos escrever sobre conflito e contradição de forma coerente. Quando
conseguimos entender o que estão dizendo, os textos muitas vezes revelam circunlóquios
inúteis em torno das questões que estão sendo analisadas, ou apresentam discussões triviais
disfarçadas de textos profundos por uma linguagem rebuscada. Os pós-modernistas não
acreditam na razão e desenvolvem um gosto pelo que não pode ser conhecido. Por negar
qualquer base sólida para se apoiar, esta corrente se precipita sobre um abismo sem fundo
resultando em pensamentos obscuros e vazios. Este caráter vertiginoso do pós-modernismo
foi exposto pelo físico Alan Sokal:
Há alguns anos, venho me preocupando com um declínio aparente nos critérios de rigor intelectual
vigorantes em determinados rincões das humanidades acadêmicas norte-americanas. (...) Para testar
esses critérios, decidi fazer um experimento modesto (embora admitidamente incontrolado): será
que uma revista de primeira linha na área dos “estudos culturais” — cujo coletivo editorial inclui
luminares como Fredric Jameson e Andrew Ross — publicaria um artigo abundantemente
preenchido com absurdidades, caso (a) soasse bem e (b) alimentasse os preconceitos ideológicos de
seus editores? Infelizmente, a resposta é afirmativa.6
Existe entre a Psicologia e a Sociologia a mesma quebra de continuidade que observamos entre a
Biologia e as Ciências Fisico-Químicas. Conseqüentemente, toda vez que um fenômeno social é
explicado diretamente por um fenômeno psicológico, podemos estar certos que a explicação é
falsa.9
A importância dos fenômenos mentais na sociologia foi percebida no início do século XX por
Max Weber, mas ao fazer isto concluiu que esta disciplina jamais poderia se tornar uma
verdadeira ciência. Assim, a sociologia se separou das ciências naturais e se aproximou da
filosofia, campo com o qual ela viu muito mais afinidade. Nas palavras de Weber,
mesmo que um otimismo ingênuo tenha visto na ciência — isto é, a técnica de manipulação da
vida baseada na ciência — o caminho que levaria à felicidade, acredito que posso deixar esta
questão de lado sob a luz da devastadora crítica de Nietzsche sobre o “último homem” [o burguês]
que “descobriu a felicidade.” Quem hoje em dia acreditaria neste tipo de coisa, com exceção de
alguns bebezões nas cátedras universitárias ou em escritórios editoriais?10
Reações humanistas
Nada disso é visto com bons olhos pelos acadêmicos humanistas, que têm grande influência
nos meios intelectuais e reagem de forma hostil à integração do conhecimento, insistindo em
estabelecer uma fronteira separando o homem da natureza. Desde Darwin, passando por
Konrad Lorenz e os sociobiólogos, os trabalhos que lançaram as bases desta nova abordagem
nunca foram muito divulgados. Esta oposição, no entanto, não se deve a reflexões
descomprometidas sobre a condição humana; ela é produto do divórcio rousseauniano de que
já tratamos. O pensamento social já provou da ciência e, com razão, não gostou; assim,
qualquer novo empreendimento nesta direção é comparado com as desastrosas experiências
dos séculos anteriores.
De acordo com a visão humanista, o mundo implementado pela ciência é frio. Nós queremos
grandeza de espírito, e isto a ciência não pode nos dar. Assim, quando os intelectuais atacam a
ciência e dizem (desejam) ser o cérebro, ou a sociedade, complicados demais para serem
entendidos, eles são vistos como paladinos do espírito, e não como pessoas que desejam
permanecer para sempre na ignorância. Como observou o agente literário John Brockman,
Os intelectuais tradicionais são cada vez mais reacionários, no sentido de que muitas vezes se
orgulham (perversamente) de sua ignorância acerca das mais significativas realizações científicas
do nosso tempo. Sua cultura, que despreza a ciência, é muitas vezes não-empírica. Ela usa seu
próprio jargão e é caracterizada tipicamente por comentários sobre comentários sobre comentários,
em uma espiral crescente que atinge um ponto tal, que toda a perspectiva em relação ao mundo real
se perde.11
Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento na escala da vida
animal, a linguagem só pode ter nascido de uma vez. As coisas não puderam passar a significar
progressivamente. Em seguida de uma transformação cujo estudo não compete às ciências sociais,
mas à biologia e à psicologia, efetuou-se uma passagem de um estágio em que nada tinha, a um
outro em que tudo tinha sentido.16
De acordo com essa visão, cultura, linguagem e simbolismo requerem métodos únicos que
não são acessíveis através da metodologia das ciências naturais — metodologia esta voltada
para estudar bestas biológicas, e não semideuses. Assim, o humanismo se torna o último
bastião da espiritualidade ocidental, que uma vez foi cristã, depois se tornou romântica, e
agora se encontra ameaçada pela corrosiva abordagem científica. Ninguém costuma atacar as
idéias de Newton ou Einstein, que são aceitas sem muita resistência; porém, praticamente em
todas as épocas desde que Darwin publicou suas idéias, humanistas têm se dedicado a
combatê-las. Nós podemos acreditar em Deus e mesmo assim aceitar as teorias da física e da
cosmologia, mas não podemos acreditar em Deus e no darwinismo ao mesmo tempo.
Embora a aversão dos humanistas e religiosos seja compreensível, não poderemos lidar com o
problema simplesmente negando-o cegamente. Se quisermos construir uma nova
espiritualidade, teremos que olhar o monstro de frente, e não nos refugiar em uma visão
ultrapassada de ser humano. Até porque, acredito, grande parte do problema não está em uma
visão neuronal ou darwinista do homem, muito embora se pense que sim. Estes modelos são
apenas usados como justificativas para angústias que mais dizem respeito à estrutura social
implementada com a modernidade do que a concepções abstratas de como a mente funciona.
A mente e a sociedade não podem ser separadas como fez o iluminismo; esses dois sistemas
estão integrados e o que acontece com um afeta diretamente o outro. É possível que, uma vez
que um modelo social que esteja em sintonia com a mente seja implementado, as angustias
espirituais sejam resolvidas, não importando muito que concepção de mente esteja sendo
adotada.
Mas a visão de um homem pairando acima da natureza ainda domina a sociedade. Existe no
senso comum, de forma não muito consciente, a idéia de que a abordagem científica do
homem deva ser combatida e derrotada. Os humanistas não irão ceder seu espaço sem
oposição. Com a ciência de Newton eles recuaram para os seres vivos. Com Darwin eles
cederam o corpo e se concentraram na mente. Agora não há mais para onde recuar. Eles irão
se entrincheirar e lutar até o último sobrevivente.
Na verdade, a cruzada contra a ciência não se limitou à mente. Como vimos, desde o
romantismo, porém mais intensamente com a pós-modernidade, ocorreu uma oposição da
sociedade à abordagem científica e racional em geral. “Paradoxalmente”, observou Eric
Hobsbawm em seu livro sobre o século XX, “uma era cuja única pretensão de benefícios para
a humanidade se assentava nos enormes triunfos de um progresso material apoiado na ciência
e tecnologia encerrou-se numa rejeição destas por grupos substanciais da opinião pública e
pessoas que se pretendiam pensadoras do ocidente.”17 Movimentos irracionalistas e
subjetivistas parecem emergir nos momentos de crise social, mas esta oposição não deixa de
ter algum sentido, pois em alguns aspectos o mundo tem piorado sensivelmente, e a ciência e
o iluminismo devem assumir parte da responsabilidade por isso.
Mas nós simplesmente não temos opção. Não podemos achar que através da
“conscientização”, sendo todos amigos, meditando, tendo orgasmos e cantando de mãos dadas
iremos resolver os problemas do mundo. Opções irracionalistas que tiveram algum sucesso
foram o nazismo e o fundamentalismo islâmico, que a maior parte das pessoas irá concordar
não serem bons modelos para nos inspirar. O fato é que se formos ouvir nosso coração ou voz
interior não iremos criar uma sociedade melhor, e sim daremos origem às maiores
atrocidades. Nossa única chance é entender.
Embora muitos digam que a ciência esteja em função da economia e interesses de grupos
restritos, isso não é verdade. Muitas pesquisas científicas ocorrem em áreas que têm pouca ou
nenhuma aplicação econômica. Pesquisas em filogenia, espécies extintas, origem e destino do
universo, estrutura das galáxias, entre outras, apresentam pouquíssimas possibilidades de
aplicação prática. Na verdade, foram as pesquisas em ecologia que levaram à consciência
ecológica, que tanto atrapalha a economia de hoje, e as evidências do aquecimento global são
em grande parte sustentadas pela pesquisa científica. Mesmo que eventualmente alguma
dessas áreas apresente resultados econômicos, sustentar que o interesse dos pesquisadores
esteja ligado à economia é, penso eu, insultá-los. Um cientista não passa grande parte de sua
vida estudando formigas porque isso pode trazer benefícios econômicos. Ele as estuda porque
gosta de formigas.
Ocorre é que a ciência funciona, e por isso ela pode ser usada pelos interesses econômicos,
como também militares. Se grande parte do progresso científico trouxe benefícios para essas
áreas, mas pouco contribuiu para o bem-estar humano, isso se deve ao fato de que até agora as
maiores descobertas eram feitas em áreas como física, química e biologia, que nada dizem
respeito ao espírito humano. Apesar dos amplos progressos científicos, tecnológicos e
econômicos do século XX, o conhecimento do que faz o homem feliz evoluiu muito pouco.
Mas felizmente as coisas estão mudando à medida que nos aproximamos da mente. Ao que
tudo indica, no momento em que escrevo essas linhas a resistência humanista está finalmente
sendo vencida, e nos próximos anos veremos uma progressiva integração dos estudos sociais
com as neurociências cognitivas (neurologia e psicologia). Isso significa que pela primeira
vez poderemos cogitar levar o grandioso e otimista sonho iluminista a sério. Embora a
intelectualidade ainda não tenha acordado para este fato e as trevas do relativismo ainda
dominem grande parte do pensamento, tenho esperanças de que nos próximos anos as coisas
irão mudar e uma nova era de luz poderá nascer. As conseqüências desses conhecimentos
poderão produzir um profundo impacto sobre a cultura e abrirão caminho para uma nova
visão de homem.
É BASTANTE PROVÁVEL QUE O LEITOR, como a maior parte das pessoas cultas de
hoje, apresente simpatia pelo paradigma relativista dominante. Como forma de tentar
convencê-lo a levar em consideração as idéias aqui apresentadas utilizo os argumentos dos
próprios relativistas: O relativismo acredita que a visão de mundo de um determinado período
é uma interpretação ideológica que reflete o momento histórico em questão, e não uma
verdade. Pois bem; para eles esta constatação é uma verdade e pode ser claramente entendida
quando colocada no contexto histórico do século XX — uma era de crise espiritual e
esgotamento de valores.
Em outras palavras, o relativista tem que aplicar sua própria afirmação ao que está dizendo,
levando-o a cair no paradoxo da autoreferência. Se ele acredita ser uma verdade um reflexo de
uma época, e não algo absoluto, sua própria afirmação é reflexo de sua época, portanto, ela
não pode ser tomada como algo absoluto. Mas o fato é que ele realmente acredita que as
verdades são reflexos de suas épocas; desta forma, ele acredita estar proclamando uma
verdade absoluta. É um paradoxo. Para contorná-lo ele tem que admitir que todas as verdades
são relativas, com exceção daquela que ele está afirmando. A única verdade absoluta é aquela
em que ele acredita.
Também ocorreu o grande impacto do colapso das fundações newtonianas da realidade — o
que questionou a posição da ciência como reveladora da verdade. Os humanistas viram nesta
ocorrência uma brecha na sólida visão científica e a exploraram com ênfase numa tentativa de
retirar um pouco do enorme poder desta disciplina. Assim como o pensamento moderno teve
sua origem com o impacto do sistema copernicano sobre o ptolomaico, o pensamento pós-
moderno se alimentou do impacto da mecânica quântica sobre a física newtoniana. É um
passo precipitado, no entanto, dizer que pelo fato do mundo subatômico exibir incertezas e
indeterminismo, esses princípios devam ser aplicados ao homem e à sociedade. Percebendo
isso os intelectuais buscaram novas fontes de incerteza nas ciências da complexidade, que
estudam sistemas complicados demais para ser entendidos. Mas embora os sistemas
biológicos, culturais e econômicos sejam sistemas deste tipo, isso não quer dizer que não
possamos entender várias coisas sobre eles. O clima, por exemplo — um típico exemplo de
sistema complexo —, já é bastante entendido; podemos identificar tempestades dias antes
delas se formarem.
Por fim, existe a crítica que diz que o homem não é uma máquina. Reconheço que a
espiritualidade é importante para o bem-estar das pessoas, mas não devemos fazer de nossas
necessidades emocionais um obstáculo ao progresso do conhecimento. O que devemos fazer,
penso eu, é reinventar o sagrado. Essa é de fato a busca que vêm sendo feita desde os gregos,
mas ela sempre deixou muito a desejar em termos de satisfação das angústias do ser humano.
Acredito que a investigação científica, ao abrir portas que nunca antes foram abertas, irá
iluminar essa questão de uma nova maneira resolvendo alguns problemas que atormentam a
filosofia há séculos.
A oposição humanista se baseia em uma visão do que é o homem, em uma visão do que é
uma máquina, e na constatação de que essas duas visões não são compatíveis. O problema
desta postura, desconfio, não está tanto em uma visão errônea de homem, e sim em uma visão
limitada de máquina. Houve uma época em que o homem era visto como um sistema de
engrenagens mecânicas simplesmente porque esse era o modelo de máquina que se conhecia.
Com o posterior progresso tecnológico passou-se a ver o homem como uma central telefônica,
e hoje em dia muitos o descrevem como um computador. Mas evidentemente o homem é uma
máquina diferente de todas essas, e embora existam semelhanças entre ele e, digamos, uma
central telefônica (os dois possuem conexões elétricas que se fazem e desfazem), devemos
tomar cuidado para não levar a comparação muito a sério. Quem no século XIX poderia
imaginar máquinas como os computadores de hoje? O mesmo podemos dizer de nossa
situação em relação às novas máquinas que serão desenvolvidas ao longo do século XXI.
Ninguém evidentemente acha agradável ser comparado a uma central telefônica ou a um
computador, mas chegará um momento em que as máquinas se tornarão tão belas que não
será mais um insulto ao homem ser considerado como parte desta ampla família que são os
artefatos tecnológicos. A questão, portanto, não é reduzir o homem à máquina, e sim elevar a
máquina a uma categoria tão avançada que dê conta da complexidade humana.
Infelizmente essas otimistas conjecturas despertam forte aversão. Não é essa de forma alguma
a intenção. O que devemos procurar é uma nova fundamentação para o sagrado, tão boa ou
melhor que a anterior. O fato é que a espiritualidade está sendo visivelmente corroída, e a
cruzada humanista não está tendo um bom desempenho. Seria melhor buscarmos novas
formas de abordar a questão.
_____________________
Este texto é uma adaptação do primeiro capítulo do livro Em busca de uma nova ordem: A crise social da
modernidade e novas alternativas para o sistema atual, disponível no site http://www.ponto-omega.com.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1. Carnegie Commission on Preventing Deadly Conflict (1997), retirado de Jacoby, R. (2001). O Fim da
Utopia: Política e Cultura na Era da Apatia. Rio de Janeiro: Record, p. 206.
2. O antigo sistema não era isento de problemas, mas estes eram vistos como decorrentes dos conflitos
entre corpo e alma, e não entre indivíduo e sociedade. Os problemas, portanto, estavam nos indivíduos,
e não na ordem social.
3. A guinada irracionalista da esquerda é discutida por Bloom, A. (1987). The Closing of the American
Mind. New York: Touchstone.
4. Sartre escolheu o marxismo, o que mostra que a essas alturas esta corrente já estava muito distante das
bases científicas que Marx almejava.
5. Jacoby, R. (2001). O Fim da Utopia: Política e Cultura na Era da Apatia. Rio de Janeiro: Record, p.
187.
6. Abramo, C. W. (1996). O telhado de vidro do relativismo. Folha de São Paulo, 15-09-1996.
7. Goldberg, S. (1994). Feminism against Science. National Review, v43 n21, 30-3.
8. “Encontros virtuais: Uma nova forma de amar”, Ciência Hoje. Agosto de 2000.
9. Citado em Ruse, M. (1983). Sociobiologia: Senso ou Contra-Senso? São Paulo: USP, p. 221.
10. Bloom, A. (1987). The Closing of the American Mind. New York: Touchstone, p. 194.
11. Brockman, J. The Third Culture, extraído de Sabbatini, R. (1999). A terceira cultura, Correio Popular,
21-05-1999.
12. “Por uma releitura criativa de Marx.” Entrevista com Leandro Konder, O Globo, caderno Prosa &
Verso, (29/01/2011), p. 3.
13. Dennett, D. C. (1998). A Perigosa Idéia de Darwin: A Evolução e os Significados da Vida. Rio de
Janeiro: Rocco, p. 400-10. (Ao que parece, nesses últimos anos Chomsky finalmente aceitou que os
módulos cognitivos da mente foram programados pela evolução darwinista.)
14. O darwinismo não deixa de ser uma teoria da experiência de vidas passadas, porem não da forma como
pensava Sócrates.
15. Entre outras coisas, Chomsky declarou que dizer que a função do olho é captar luz é o mesmo que dizer
que a função dos objetos serem densos é fazer com que eles não flutuem no ar.
16. Citado em Werner, D. (1999). Sexo, Símbolo e Solidariedade: Ensaios de Psicologia Evolucionista.
Florianópolis: EDEME, p. 98.
17. Hobsbawm, E. (1994). Era dos Extremos: O breve Século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, p. 20.