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O meu envolvimento com a questão ambiental eu acho que dá para localizar em

1970, setenta e poucos. Eu lembro que em 1972, 1973, saiu essa cartinha. Eu
nasci em 1957, tinha uns 15 anos então. Escrevi uma cartinha em defesa das
baleias que saiu no Diário Popular. Aí acho que por vaidade escrevi outra, para
a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, a FBCN. Se não me
engano, foi o Almirante Ibsen Gusmão ou algum daqueles outros senhores que
me respondeu mandando um monte de livros da FBCN e perguntando se eu
queria contribuir com a proteção da natureza e se eu poderia criar uma
associação de proteção ambiental, alguma coisa do tipo.

A Fundação Brasileira para Conservação da Natureza (FBCN), citada no relato


desse educador ambiental como parte de seus primeiros passos no campo ambiental, é
uma das primeiras instituições conservacionistas brasileiras e certamente a mais
estruturada, ativa até os dias de hoje no Rio de Janeiro. Antes dela, há apenas a
Associação de Defesa da Flora e da Fauna, de 1956, em São Paulo, considerada a mais
antiga do Brasil, da qual saiu o primeiro secretário de meio ambiente, o doutor Paulo
Nogueira Neto, um de seus fundadores. Como se pode depreender de seu próprio
depoimento, essa era uma iniciativa institucionalmente mais frágil do que o
empreendimento FBCN:

Naquela época (1956), Jânio Quadros, então governador de São Paulo, queria
transformar o Pontal do Paranapanema em reserva florestal, mas tinha pouco
apoio. Eu e dois amigos, José Carlos Reis de Magalhães e Lauro Travassos
Filho, pensamos em dar alguma ajuda ao projeto. Cada um resolveu fundar uma
associação, que eram três blocos impressos, com o nome de uma associação.
Começamos a enviar carta pra todo mundo, até que um deputado fez um
discurso contra uma instituição que na verdade era um bloco de cartas.
Fundamos então uma instituição de verdade e surgiu a Associação de Defesa da
Flora e da Fauna. Éramos três gatos pingados e mais alguns amigos que nos
ajudavam a procurar jornais e autoridades. (Nogueira Neto, em Ecologia e
Desenvolvimento, 1995, p.29)

A FBCN, por sua vez, fundada em 1958 no Rio de Janeiro por cientistas
renomados, conquistou visibilidade com sua atuação em nível nacional, num período
em que predominavam as ações conservacionistas e quando o meio ambiente era
eminentemente um tema científico, como nos lembra Antuniasi (1988, p.23), em sua
análise sobre o movimento ecológico em São Paulo:

O meio ambiente começa a aparecer com mais freqüência nos noticiários de


jornais a partir do anos 70. Grande parte dos artigos e notícias sobre problemas
ambientais vinha da sucursal do Rio de Janeiro e tinha como referência a
atuação e o pronunciamento da FBCN. Até 1970, a maior parte dos artigos e
pronunciamentos sobre problemas ambientais era de especialistas, sobretudo
estrangeiros, em geral professores em visita às universidades e institutos de
pesquisa.
A FBCN esteve presente em Estocolmo, na I Conferência da ONU para o Meio
Ambiente, em 1972, famosa pela posição da Comissão Governamental Brasileira que
defendeu o binômio desenvolvimento-poluição,38 como lembra Magda Renner:

Em 1972 começava a primeira conferência, a de Estocolmo, onde o Brasil


declarou solenemente que os países mandassem poluição do desenvolvimento
para cá porque nós temos a poluição da miséria que é a pior de todas as
poluições.

É nesse clima de controvérsias e respostas às pressões internacionais que se cria uma


estrutura institucional para a gestão do meio ambiente, como desdobramento direto da
integração do Brasil numa ordem internacional impulsionada pelas conferências do
chamado Ciclo Social da ONU.39 A Conferência de Estocolmo abre esse ciclo em 1972,
sob o forte impacto da divulgação, no mesmo ano, do relatório do Clube de Roma e das
propostas de Crescimento Zero (Meadows, 1973), que acabaram transformando essa
Conferência num acirramento das disputas entre países pobres e ricos. A história das
agências governamentais40 responsáveis pela política de meio ambiente resulta dos
compromissos assumidos na Conferência de Estocolmo.41
A criação da Sema, primeira agência de meio ambiente, no final de 1973, mais
respondia a pressões externas do que a uma demanda interna. Contudo, apesar dessa
espécie de nascimento forçado, as instituições governamentais de meio ambiente no
Brasil terminaram sendo, em alguns casos, espaços de referência, nos quais militantes,
ambientalistas e educadores ambientais se formaram. Paulo Nogueira Neto, que cursou
direito e história natural, esteve à frente da Sema desde seu início efetivo em 1974 até
1986. Lembra como foi escolhido para o cargo de primeiro secretário de Meio
Ambiente do Brasil e qual sua postura na condução da Sema:

38 Nessa conferência, o Brasil foi representado pelo embaixador Miguel Osório Almeida,
nomeado oficialmente pelo governo militar da época (general Emílio G. Médici) como o
porta-voz do Brasil para políticas ambientais, tendo também participado em 1974, em
missão oficial, da conferência sobre população (Bucareste, Romênia). Participou ainda da
representação oficial da Conferência de Estocolmo o então ministro Costa Cavalcanti —
repudiado pela Agapan por suas posições antiecológicas e seu envolvimento posterior na
construção da hidrelétrica de Itaipu (conforme Noal, 1999, p.69).
39 O Ciclo Social da ONU compreende as diferentes conferências internacionais sobre
temas sociais promovidas pelas Nações Unidas entre os anos 70 e 90. No campo ambiental,
as principais são: a Conferência para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo,
1972, e a Conferência sobre Educação Ambiental em Tiblisi (Ex-URSS), 1977, e suas
novas edições vinte anos depois: A Conferência para o Meio Ambiente e Desenvolvimento
no Rio de Janeiro, em 1992 (a Rio-92), e a Conferência sobre Educação Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável em Tessalonik, em 1997.
40 As agências governamentais ambientais compreendem os órgãos e instâncias do Estado
brasileiro que intervêm diretamente na formulação, regulamentação e execução de planos
relativos à proteção, à conservação e à exploração do patrimônio natural do País.
41 Em 1973 é criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), em nível federal.
Também datam da década de 1970 a criação dos primeiros Organismos Estaduais de Meio
Ambiente (Oemas): a Cetesb (São Paulo) Feema (Rio de Janeiro) e Surehma (Paraná).
Fui escolhido porque era presidente da Associação de Defesa da Flora e da
Fauna. A Sema tinha duas salas, três funcionários, que depois aumentaram para
cinco. Sua criação foi resultado direto da Conferência de Estocolmo. Pensei que
para fazer crescer essa estrutura o melhor era me manter politicamente neutro.
Era uma época difícil os anos 70, mas sempre fiz questão de me dar bem com
todo mundo, pois acho que se pode defender as opiniões sem ofender os outros.
Mas, para fazer crescer a preocupação ambiental, eu precisava levantar os
problemas. (Ecologia e Desenvolvimento, 1995, p.30)

A partir dessa postura pessoal, que se afinava com certa aura apolítica que cercava o
tema ambiental nesse período, Paulo Nogueira Neto optou por uma estratégia que
associava neutralidade política dentro do governo com a publicização dos problemas
ambientais através da imprensa:

Todos tinham medo de dar entrevistas, dar uma declaração errada, o funcionário
público tinha pânico da imprensa, pois se dissesse algo que desagradasse
poderia ser o fim da sua carreira. Mas eu não tinha nada a perder: o pior que
podia acontecer era voltar pra São Paulo, já que eu e minha esposa havíamos
nos mudado para Brasília, onde moramos quinze anos. Minha estratégia foi
levantar questões pela imprensa. Eu falava quais eram os problemas, os
jornalistas publicavam e nós éramos chamados para resolvê-los. Os governos
partiam do princípio de que se ninguém está reclamando é porque está tudo
bem. Mas não é assim: às vezes ninguém reclama por ignorância, e naquela
época a ignorância era total. (Nogueira Neto, em Ecologia e Desenvolvimento,
1995, p.30)

Esse depoimento revela a presença de uma lógica ativista dentro da agência


governamental. E isso é representativo da conduta de várias outras lideranças que
atuaram como técnicos ou dirigentes nas agências ambientais num período que se
caracterizava pelo clima de repressão política, pela frágil organização da sociedade civil
e pela baixa percepção dos problemas ambientais.
Contudo, é importante ressaltar que o baixo gradiente de politização inicialmente
associado aos problemas e às manifestações ambientais é efeito de uma percepção da
época, não correspondendo necessariamente a uma condição intrínseca. Trata-se
justamente de um período de transição no qual se inicia a organização da sociedade civil
em torno da questão ambiental. No entanto, essa dinâmica incipiente, contrastada com
os movimentos altamente organizados de corte socialista-marxista — então principal
alvo do governo militar —, não foi de saída decodificada como política, no sentido de
tornar-se imediatamente um objeto da repressão. Assim, alguns processos de
organização popular em torno do ambiental podiam passar quase despercebidos.
Nogueira Neto resgata a força dessas organizações no contexto de criação da Cetesb e
da Feema, as primeiras agências estaduais de controle da poluição em São Paulo e Rio
de Janeiro, respectivamente:
Todo mundo se queixava que não havia a menor organização. Mas as cidades
da periferia da capital paulista, caracterizadas pela grande industrialização e
força do movimento operário, se organizaram. Os municípios do ABC foram os
precursores da Cetesb. Assessorados por engenheiros que estudavam o assunto,
formaram uma entidade que depois deu origem à Susam, que tratava da
poluição do ar. No Rio havia o Instituto de Engenharia Sanitária que depois deu
origem à Feema. (Ecologia e Desenvolvimento, 1995, p.30)

O grupo que participou da Sema com Paulo Nogueira Neto, Maria Regina Gualda,
Maria José Gualda e outros, é mencionado por José Silva Quintas, atual diretor da
divisão de EA do Ibama, como fonte de uma experiência em EA que pôde ser
incorporada uma vez mais, quase três décadas depois, ao órgão executivo da política
ambiental no Brasil, o Instituto Brasileiro para o Meio Ambiente (Ibama):

Quando chegamos [1991], o Ibama não trabalhava com educação ambiental,


sequer tinha recursos, era uma coisa muito incipiente. Na história do Ibama
quem trazia a experiência da EA era o pessoal da Sema, o grupo de base que
sabia, que discutia Tiblisi, que preparou o documento para Tiblisi, que era a
Maria José e a Regina Gualda. Com a constituição do Ibama, esse grupo teve
que se refazer. Os outros órgãos não tinham experiência, tinham experiência na
área de pesquisa, extensão florestal, mas isso era outra coisa, não pensavam na
educação. A educação ambiental era vista como um ou outro folder, uma
cartilha.

A incorporação da experiência da Sema no Ibama e a “falta de experiência dos outros


órgãos” a que se refere Quintas estão relacionadas ao contexto da fusão institucional dos
diferentes órgãos públicos que originaram o Ibama em 1989. A fusão que origina o
Ibama é parte dos desdobramentos da trajetória da Sema e, neste sentido, emblemática
dos caminhos e descaminhos da política ambiental brasileira.42 O atributo meio
ambiente entra no organograma do aparelho governamental como uma espécie de
apêndice sem endereço certo, que transita ao sabor dos interesses conjunturais e
pressões externas. Inicialmente, a Sema foi ligada ao Ministério do Interior e depois
passou para o Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, no qual ficou
até 1987, quando volta para o Ministério do Interior. Aí permanece até 1989, quando é

42 O Ibama, principal órgão executivo do setor ambiental, criado em 1989, tinha passado
por oito presidentes até agosto de 1994, no governo Collor/Itamar. A história da legislação
ambiental é parte do processo de institucionalização na esfera do Estado da gestão
ambiental. Até 1981, o Brasil possuía apenas legislações setoriais sobre o uso de recursos
específicos, como o Código de Águas (1934), o Código Florestal (1934 e 1965), o Código
de Pesca (1937 e 1967) etc. É apenas com a Lei 6932/81 que se institui um Sistema
Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), projetando um conjunto articulado de secretarias e
conselhos de meio ambiente nos níveis federal, estadual e municipal, unificando a
legislação ambiental. A Constituinte em 1988 é outro marco importante nesse sentido, pois
consolida um avançado capítulo de meio ambiente baseado na concepção de meio
ambiente como um bem público. Institui-se aí o instrumento jurídico da ação popular como
recurso baseado no direito coletivo e contra atos lesivos ao patrimônio ambiental, histórico
e cultural. Assegura ainda novos direitos ambientais, como o direito do cidadão à
informação ambiental diante dos órgãos públicos de meio ambiente.
fusionada com os então IDBF, Sudhevea, Sudepe, na constituição do atual Ibama. Em
1990, no contexto dos preparativos e expectativas para a Conferência de Meio
Ambiente e Desenvolvimento da ONU que se realizaria no Rio de Janeiro em 1992, é
criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Semam), ligada diretamente à
Presidência da República. A Semam é ocupada por José Lutzemberger, numa ação
performática do governo Collor. Nos dois anos que precederam a realização da
conferência, a Semam teve duas mudanças de secretário e foi extinta em outubro de
1992 em virtude da criação do atual Ministério de Meio Ambiente.43
Apesar da política ambiental ter uma história de dispersão e descontinuidade na
estrutura administrativa governamental, é desde os órgãos públicos de meio ambiente
que vão se dar várias contribuições significativas ao avanço do debate ambiental no
País. Nesse caso, o que se passa em termos da macropolítica não coincide
necessariamente com a atuação, em certas conjunturas, de organismos e/ou instâncias
governamentais sob a responsabilidade de técnicos ambientalizados comprometidos
com uma militância ecológica, como vimos no caso de Paulo Nogueira Neto, na Sema.
Pádua (1991, p.151) chega a falar de um “ambientalismo de Estado” no Brasil,
referindo-se à importância da atuação de técnicos dos órgãos ambientais na luta
ambientalista. Tendo a concordar com Pádua sobre o fato de que talvez tenha sido
justamente a condição de marginalidade e menor importância dos organismos de meio
ambiente no aparato governamental que fez com que técnicos desses órgãos pudessem
exercer aí uma performance ecologista, ocupando, algumas vezes, o espaço da crítica
ambiental onde o movimento ecológico era fraco. Alguns desses técnicos acabaram
posteriormente se filiando ao Partido Verde, integrando setores ambientalistas em
partidos políticos progressistas, ou mesmo fazendo carreira política no legislativo.

A militância como sinal diacrítico

Muitos desses técnicos do Estado no aparato público de meio ambiente se destacaram


no campo ambiental como referência para os educadores ambientais. Há vários
exemplos desses profissionais e do papel formador por eles exercido, como o caso de
Kazue Matsushima, técnica da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb),
uma influência decisiva na formação de Reigota:

43 O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, até hoje já teve seu nome alterado duas
vezes em função da conjuntura política e ambiental. Em 1993, por ocasião do massacre dos
ianomâmis, evento que alcançou grande repercussão na mídia nacional e internacional,
exigindo uma tomada de posição do governo, passou a chamar-se Ministério do Meio
Ambiente e da Amazônia Legal. A outra mudança ocorreu em 1995, quando, após as
eleições de 1994, toma posse no Ministério de Meio Ambiente Gustavo Krause, do PFL
nordestino. Nessa ocasião, acrescenta-se a expressão “Recursos Hídricos” ao nome do
Ministério, passando esse a chamar-se oficialmente: Ministério do Meio Ambiente, da
Amazônia Legal e dos Recursos Hídricos.
Logo que Kazue Matsushima chegou do exílio político na Bélgica, ela passou a
ser uma presença marcante entre os professores da rede pública de São Paulo.
Dava cursos, fazia conferências, sempre divulgando a perspectiva
interdisciplinar da educação ambiental. Pelo que sei, Kazue Matsushima é
autora do primeiro livro de educação ambiental no Brasil, editado pela Cetesb,
empresa onde ela trabalhou por muitos anos. Após uma de suas conferências na
Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, fui falar com ela e, depois disso,
passamos a nos encontrar com freqüência. Foi graças a uma informação sobre
os estudos sobre meio ambiente nas universidades belgas que Kazue
Matsushima me passou, que pude ir fazer o meu doutorado na centenária e
prestigiosa Universidade Católica de Louvain. (Reigota, 1998, p.19)

O que vamos encontrar, seja nos técnicos que se destacaram dentro e fora da estrutura
administrativa do Estado, seja nos fundadores, ou ainda em muitas das trajetórias dos
educadores ambientais das gerações subseqüentes, é o valor da militância como sinal
distintivo e positivo. Kazue, como outros, integra essa categoria que poderia ser
chamada de profissional militante. Nesse caso, o ser militante não remete
necessariamente ao vínculo orgânico partidário ou a uma grande narrativa ideológica,
como se dá em outros modelos de militância. No campo ambiental, atravessado pelas
mudanças na cultura política contemporânea, o ser militante refere-se a uma experiência
menos atrelada a organizações partidário-ideológicas e mais voltada a uma militância de
idéias e princípios. Representa sobretudo um compromisso pessoal com um amplo
ideário político-existencial que reúne sensibilidades políticas emancipatórias, estéticas e
afetivas, além de redes de contatos, eventos e organizações. A postura militante, que faz
com que Kazue não permaneça no fazer burocrático da agência de meio ambiente, mas
circule entre os educadores, escreva livros, é uma performance profissional e existencial
que vai-se firmar como um sinal diacrítico do sujeito ecológico de um modo geral e
particularmente para os educadores ambientais.
A militância como um valor que se soma ao espaço profissional é um traço que se
delineia a partir da convergência de múltiplos atravessamentos no campo ambiental,
apontando para o entrecruzamento do ativismo ecológico, da militância política, das
lutas em movimentos sociais e também do mundo da ação política profissionalizada que
cresceu a partir das ONGs de desenvolvimento social. Esses diferentes pertencimentos
constituem a bagagem de experiências constitutivas do sujeito ecológico. O conceito de
profissional militante e os tensionamentos que atravessam essa condição são claramente
formulados no relato de um dos entrevistados, que conta com uma longa trajetória em
ONG e é uma reconhecida liderança articuladora no campo ambiental:
A profissionalização, quando é uma profissionalização de ONGs do nosso tipo,
acho que primeiro tem que ter uma boa dose de militantismo. Esse tipo de
profissionalização é uma profissionalização como cidadão, não é ligada a um
compromisso técnico tão estreito que não pode ajudar e pode até impedir de
entrar em certas questões. Contudo, hoje a profissionalização que existe em
muitas ONGs é de consultoria e aí não é a mesma lógica. Executar um projeto
por encomenda exige um produto que às vezes tem pouco a ver com uma ONG
cidadã militante. Eu acho que ainda temos a chance de colocar este aspecto
militante a serviço da sociedade, somar e servir a ela nesse aspecto. O que mais
me preocupa hoje é essa dificuldade das ONGs que se voltam para a consultoria
e a terceirização. Isso pode ser realmente um problema e pode gerar até mesmo
um corte mais radical entre as ONGs militantes e as ONGs profissionais.

O ser militante parece ser amplamente aceito no campo, de modo que mesmo os que
não se vêem plenamente identificados com essa condição situam-se em relação a ela.
Quando questionada sobre como iniciara seu envolvimento profissional com EA, uma
entrevistada relata:

Olha, vai ser meio frustrante para você ouvir o meu relato. Porque não tem
nada de muito nobre, não. Eu fazia biologia, e então o porquê disto ter
começado. A paixão veio depois. Aí tinha um congresso de zoologia no
Nordeste, e eu estava indo e pagando as minhas próprias despesas. Eu já estava
formada e dava aula num cursinho. A minha irmã é jornalista, e comentou onde
ela trabalhava sobre as pessoas serem apaixonadas pela profissão, fazerem
sacrifícios, aí ela citou o meu caso e nessa época uma pessoa da família
Mesquita do Estado de São Paulo ouviu isso e falou que a irmã dela o
procurasse numa tal de Fundação SOS Mata Atlântica que estava começando e
ele era o presidente. E aí eu fui e comecei a trabalhar lá como voluntária.

Apesar dos sinais de paixão — como ir a um congresso pagando as próprias despesas e


ser citada como exemplo de alguém que faz sacrifícios pela profissão —, essa
entrevistada considera que seus motivos para iniciar-se como educadora ambiental “não
são nobres”. Em sua entrevista, descreve o grande envolvimento com o trabalho que se
seguiu após ter sido contratada pela instituição na qual iniciara como voluntária. Um
trabalho que a levou a morar e atuar em tempo integral, durante oito anos, num campo
avançado de EA dessa instituição no vale do Ribeira. Contudo, quando perguntada
sobre se via uma dimensão militante no seu envolvimento profissional, responde:
Não tanto. Porque eu acho que militância tem uma coisa mais apaixonada. Tem
uma coisa dentro do movimento ambientalista que eu sou contra. Eu acho que tá
certo, que tem a sua importância você ir para rua e chamar a atenção das
pessoas para uma determinada coisa, mas se não tiver pesquisa em cima você
perde a credibilidade, eu acho que tem que saber o que se está falando, então
muitas vezes eu me calo porque as pessoas são mais apaixonadas, os
ecologistas, e eles vão lá, defendem a questão de uma forma mais apaixonada
mesmo, e eu não sei fazer isso. Não é que eu não sei, eu discordo dessa
posição, acho que o movimento ambientalista é pouco profissional. Eu não
tenho esse lado de militância tão forte, não tenho mesmo, mas tem coisas que
eu acredito, eu acho que esse tempo que eu fiquei lá [vale do Ribeira], deu para
mostrar algumas coisas para as pessoas, deu para eu aprender muitas coisas.

O balanço entre paixão e profissionalização faz com que essa educadora, por exemplo,
veja os “ecologistas” como apaixonados e pouco profissionais em contraposição a um
outro modelo, subentendido nessa comparação, de profissional competente e isento,
mais próximo do cientista ou pesquisador. A credibilidade, para ela, estaria do lado da
pesquisa e não da ação apaixonada. Como vimos, ela mesma oscila entre corresponder e
discriminar-se dessa figura do profissional militante. A militância associa-se também a
uma ação política, seja ela uma ação direta, bastante utilizada pelos movimentos
ecológicos, ou outras formas mais clássicas de engajamento político. Para essa
educadora, esse tipo de ação aparece como contramodelo, apesar do seu alto grau de
inserção pessoal no trabalho.
Já no caso de outra entrevistada, quando questionada sobre o tema da participação
política na sua trajetória pessoal e profissional, o fato de não ter tido nenhuma
experiência de engajamento político é percebido como um déficit em sua formação
como educadora ambiental:

Eu nunca tive uma militância política, eu nasci em 1964, e sempre tive uma
inquietação. Na universidade eu cheguei a participar das CUBs, que eram as
Comunidades Universitárias de Base, mas não fiquei pela questão religiosa, eu
discordava de muitas coisas, achava que era muito enquadrado por algumas
coisas, não gostei. Mas eu buscava essa coisa do social nesse lugar, de uma
atuação pelo social. É engraçado como isso me persegue, talvez seja um dos
elementos que eu precise engatar melhor para continuar essa trajetória
profissional mesmo.

Para essa educadora, a participação política é um dos ingredientes para a formação do


cidadão e, nesse sentido, deveria estar prevista tanto na formação do aluno quanto, por
coerência, na experiência pessoal do educador, de quem se espera que seja um cidadão
modelo:
Num dos capítulos da minha dissertação, eu fui procurar me aprofundar sobre o
que é isso de participação política e que habilidades o cidadão precisaria para
poder participar politicamente na sua sociedade. Então é um trabalho teórico,
porque se a gente quer fazer educação ambiental, formar esse tal cidadão
ambientalmente educado, que ingredientes tem que por nesse cidadão, assim
bem simplificadamente falando? Um deles é essa questão da atuação política.
Então aí eu destacaria duas coisas, uma sou eu pessoalmente, um ser com
alguma atuação política, e outra é isso dentro do trabalho de educadora
ambiental. Nesse momento uma coisa que eu estou precisando fazer é ter uma
atuação, eu estou querendo procurar uma deputada estadual em quem já votei
duas vezes, gostaria de conhecê-la pessoalmente, conhecer seu trabalho e ver se
existe uma interface aí, como cidadã.

A militância, como um bem, inclui sua associação a uma atuação política mas também a
outras dimensões da vida individual e coletiva — como, por exemplo, as práticas
materiais cotidianas e as condutas morais — coerentes com um sujeito ideal ecológico.
A coerência entre a experiência pessoal e as idéias defendidas faz parte do ideário
contracultural que orienta o sujeito ecológico. Como apontou Roszak (1972, p.68), ao
falar sobre o personalismo que caracteriza essa orientação: “para o intelectual radical, a
verdade deve ter um contexto biográfico e não meramente ideológico”. Na maioria das
vezes a correspondência com esse sujeito ideal é vivida como uma contradição pelos
indivíduos reais, pois, tratando-se de um sujeito utópico, que se constitui como contra-
exemplo do modelo dominante, nunca é plenamente realizável. Essa condição
contraditória aparece em muitos relatos, como no caso de uma liderança ambiental cuja
família é proprietária de uma rede de lojas de departamentos:

Eu cresci numa casa que minha mãe não sabia mas ela era ecológica até a raiz
dos cabelos. Mas o que dizer no caso das lojas? Eu estou te falando isso porque,
para mim, durante muitos anos foi uma grande contradição, isso me deixava
angustiada, se as lojas não vendem mais, eu também não poderia fazer o
trabalho que eu fiz, então como é que se consegue lidar com isso e viver com
mais calma, com mais sossego. Eu acho que em alguma parte é que
pessoalmente eu nunca fui uma consumista e faço o que posso para mostrar os
absurdos dessa civilização que vivemos hoje e os limites que nos são impostos.

O que parece estar no centro dessa postura militante é a coerência entre o ser e o fazer.
Essa correspondência, postulada em termos ideais, poderia ser compreendida como
parte de um habitus em que o imperativo da coerência entre a conduta individual e a
responsabilidade ético-política distingue o sujeito ecológico. Como vimos, o
engajamento em ações políticas não é a única dimensão da militância ecológica, mas
esta se estende a todas as esferas da vida. Particularmente àquelas que dizem respeito
aos comportamentos cotidianos e às decisões de consumo, e que, por isso, ganham
visibilidade como campo de ação exemplar e espaços político-existenciais a um só
tempo íntimos, pessoais e coletivos de transformação. Nesse sentido, como voltaremos
a discutir no capítulo 6, o próprio entendimento do que seja a esfera política é alargado,
tendo como conseqüência uma grande exigência sobre os indivíduos, de quem se espera
uma adesão integral e a antecipação da sociedade utópica desde sua experiência íntima e
suas ações cotidianas.
A contracultura como solo político-existencial

Ser militante, em sua tradução ecológica, tem como cenário o ativismo contracultural.
Como discutimos no capítulo 2, a contracultura constitui uma visão de mundo político-
existencial que integra o que Carozzi (1999, p.184) chama de um “macromovimento
sociocultural” cuja direção de mudança aponta para a autonomia como valor central.
Nesse sentido, a contracultura, tomada aqui no sentido de uma referência orientadora e
organizadora da experiência (Carozzi, 1999, e Goffman, 1974), poderia ser vista como o
solo nativo do qual brota a concepção de militância que vimos descrevendo em conjunto
com outros traços do habitus ecológico. Assim, o ideário contracultural parece
predominar, tendendo a traduzir, desde sua grade de contravalores, outros projetos de
transformação da sociedade e sentidos de militância — como, por exemplo, aqueles
associados à ação política de uma esquerda marxista-socialista, também disponíveis no
ambiente sócio-histórico em que se forma o sujeito ecológico — como tradicionais.
Esta análise vai em outra direção daquela feita por Crespo e Leitão (1992) quando, ao
perguntarem-se sobre as tradições da problemática ambiental, destacam a contracultura
como uma referência que, nominalmente, aparece como citação pontual nos relatos dos
seus entrevistados, raramente sendo mencionada de forma direta como motivação
principal para a militância ecológica. Os autores vêem como mais recorrentes que a
contracultura, nas memórias dos anos 60 e 70, a chegada do homem à Lua, a
Conferência de Estocolmo, os intercâmbios com pensadores e a literatura ecológica
internacional. Isso faz com que se referiram a pitadas de contracultura na composição
da problemática ambiental.
Em que pesem as diferenças teórico-metodológicas entre o estudo de Crespo e Leitão e
o nosso — com conseqüências tanto na orientação dos depoimentos obtidos quanto na
sua posterior interpretação —, creio que aqui se trata menos de uma disputa pela
verdade do campo e mais de uma eleição por diferentes pontos de partida conceituais e
interpretativos. Tomo um caminho diferente. Ao ter como base da análise o
entrecruzamento das trajetórias de vida e da tradição ambiental, adoto o ethos
contracultural como parte da atualização contemporânea de um horizonte ambiental.
Nesse, a contracultura aparece como matriz simbólica de grande recorrência na
formação de um tipo ideal que descrevo, aqui, como sujeito ecológico.
Assim, a análise que faço tende a filiar-se àquelas que destacam as conexões entre a
cultura ecológica e o movimento contracultural pós-sessentista (Carozzi, 1999; Amaral,
1999; Russo, 1993; Salem, 1991; Landim, 1988). Dentro desse quadro, o ecologismo
contracultural parece tornar-se uma referência do habitus ecológico, seja como idéia-
força para os sujeitos entrevistados, seja como um valor presente nas observações de
campo.
A partir dos relatos dos entrevistados, pode-se dizer que o acesso a esse significante
contracultural se dá tanto pela via de uma memória histórica do movimento ecológico
— que tem seu momento de emergência no contexto da onda contracultural — quanto
pela memória pessoal de uma experiência direta ou indiretamente partilhada com esse
contexto.
Pela característica geracional daqueles que hoje estão entre os 40 e os 60 anos e
constituem a geração pós-fundadores no campo ambiental, momentos importantes de
sua juventude e socialização — graduação universitária, primeiras experiências de ação

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