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UM RETRATO A BICO DE PENA

"A grandeza de Barth é que ele corrige-se a si mesmo, continuamente à luz da


'situação', buscando cuidadosamente não se tornar seguidor de si mesmo".
(Paul Tillich, Sistematic Theology, The University of Chicago Press, 1951, p. 5).

O contexto histórico das duas primeiras décadas dos novecentos constitui o


pano de fundo da teologia de Karl Barth. A efervescência da Europa, envolvida
numa primeira grande guerra e em violentos choques ideológicos, assim como a
expansão do pensamento científico e a timidez do liberalismo teológico são, sem
dúvida, agentes causadores da reflexão crítica que contribuiu para pesquisa e
construção do pensamento de Barth. Depressão social, miséria, tragédia e
bestialidade marcaram indelevelmente sua reflexão sobre o cristianismo e as
necessidades do homem moderno.
Até o caos e a destruição da I Guerra Mundial envolverem a Europa, a teologia
estava emaranhada em discussões como a imanência de Deus e o ser humano
como agente moral e livre, a centralidade de Deus, a religião ética, a fé racional e
experimental, o criticismo bíblico e a escatologia, sendo esta última sempre
otimista e progressista.
É importante observar que a teologia liberal, como qualquer reflexão, traduzia
preocupações de época, assim dava ênfase ao racionalismo do século 18, época
em que nasceu, cresceu e amadureceu. A teologia liberal afirmava, entre outras
coisas, que o homem pode chegar ao conhecimento de Deus por meio da
revelação geral, ou seja, através da revelação de Deus na criação/natureza, ou
ainda, que o homem é capaz de chegar ao conhecimento de Deus por meio da
razão. Tal compreensão do fazer teológico é característico da teologia natural,
segundo a qual a base da fé é a revelação comprovada pela razão. Assim, a
teologia liberal procurou sempre estabelecer teorias acerca do conhecimento de
Deus, partindo de fontes como as ciências e as filosofias. Se teorias podiam levar
ao conhecimento de Deus, práticas e/ou processos que expressassem essas
teorias poderiam levar à salvação. E aqui entram, por exemplo, a ética e justiça
social.
Ora, o contraste entre o panorama histórico desses anos de guerra e
destruição e o que propunha a teologia liberal era difícil de engolir. Como conciliar
a tragédia da maldade humana e o racionalismo evolucionista, detentor das
chaves para um mundo melhor?
Cresce para Barth a importância dos reformadores do século 16: de Lutero
com as teologias do Sola Gratia, Sola Fide, Sola Scriptura, Coram Deo, Christus
per Me, Anfechtung, e, logicamente, de Calvino.
[Clory T. de Oliveira, A Teologia de Karl Barth e a missão da igreja, Revista
Teológica da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, Simpósio 3, p.
235, dez. 1979].
A partir dessas realidades Barth foi construindo sua reflexão teológica,
enquanto reação ao naturalismo da teologia liberal do século 19 e enquanto
redescoberta da catedral teológica levantada pelos gênios da reforma protestante.

UM JOVEM EM BUSCA DE RESPOSTAS

Karl Barth nasceu em Basel, Suíça, no dia 10 de maio de 1886, e faleceu em


dezembro de 1969. Filho de pais religiosos, foi educado em meio a pastores
conservadores. Suas influências acadêmicas foram Kant, Hegel, Kierkegaard e
teólogos como Calvino, Baur, Harnack e Hermann.
Em 1911 começou a pastorear uma pequena igreja do interior da Suíça e aí
ficou até 1925. Durante esses anos conheceu Eduard Thuneysen, amigo que
acompanhou e contribuiu em suas reflexões teológicas. Nessa época seu grande
desafio era o que pregar a cada domingo. Em 1914, ele e Thuneysen resolveram
buscar uma resposta ao desafio da pregação. Durante quatro anos, Thuneysen
estudou Schleiermacher e Barth estudou Paulo. Como fruto desses estudos, em
1919, Barth publicou seu Comentário sobre Romanos.
A teologia de Barth recebe muitos nomes: teologia da crise, teologia dialética,
teologia kerigmática, teologia da Palavra.
O que pregar? Qual a proclamação? O que falar à congregação? O desafio
pastoral foi o ponto inicial do desenvolvimento de seu pensamento teológico,
quando passou a sistematizar estudos e observações, produzindo uma obra
notoriamente marcada pelo interesse social e político.
Em 1922, foi preletor de teologia reformada na Universidade de Gottingen,
onde desenvolve a teologia dialética junto com Thuneysen, Bultmann, Gogarten e
Brunner. Entre 1926 e 1930 foi professor e dedicou-se a pesquisa teológica e à
produção científica. Iniciou a Dogmática da Igreja, obra que não chegou a
terminar.
Nos anos de 1933 e 1934, envolveu-se no movimento de resistência à
presença da ideologia nacional-socialista dentro da igreja luterana. Dessa
resistência originou-se a Igreja Confessante. Em conseqüência de suas idéias e
pregações, foi expulso da Alemanha. Passou então a lecionar na Suíça, onde
abriu sua casa para refugiados e opositores do nazismo. Auxiliou estudantes e
forneceu literatura teológica para os pastores alemães. Sua influência teológica
cresceu mundialmente entre todas as igrejas cristãs. Depois da Segunda Guerra
Mundial, levanta-se contra o estalinismo e pela paz na Europa, e afirma que "neste
momento, a vocação da igreja é dizer: punhais à parte, é a hora da palavra".
Dentre a produção teológica de Barth, devemos destacar: Busque Deus e
Você Viverá (1917); Comentário à Epístola aos Romanos (1918-1919); Não
(1934); Esboço de Dogmática (1947); Cristo e Adão, segundo Romanos 5 (1952);
A Humanidade de Deus (1956); Church Dogmatics, de 1932 até a sua morte.
A ASCENSÃO DO III REICH

Em 1933, o presidente Hindenburg confiou a Hitler a chancelaria do Reich.


Assim, os nacionais socialistas subiram ao poder, mas não o detinham. Até aquele
momento, apenas Hermann Goering, nomeado ministro do Interior da Prússia,
ocupava um cargo de destaque. Os conservadores, por isso, acreditavam que
detinham o controle da situação política na Alemanha.
Hitler, então, decide dissolver a Assembléia e convocar novas eleições para 5
de março, a fim de obter maioria no Reichstag. A campanha política começa no
fim de fevereiro. Muitos são os entraves entre o Partido Nacional Socialista, o
Partido Nacional Democrata e o Partido Centrista Católico. Reuniões e comícios
são desfeitos. Goering passa a liderar a polícia e depois de algumas 'visitas' a Karl
Liebknecht, dirigente do Partido Comunista, descobre documentos que denunciam
a intenção dos comunistas de realizar uma revolução no país.
Dias depois o Reichstag é incendiado e Hitler consegue junto ao presidente
Hindenburg autorização para suspender as sete seções da Constituição de
Weimer. "Para a proteção do povo e do Estado", afirma Hitler. Assim estavam
suspensas a liberdade de reunião, a liberdade de opinião e a liberdade de
imprensa, e o chanceler nacional socialista passava a ter autorização para legislar
nos casos em que houvesse recusa quanto ao cumprimento das medidas de
segurança pública.
Iniciou-se dessa forma um período de terror nazista: todos os que não
estivessem ligados ao Partido Nacional Socialista eram, em potencial,
considerados perigo para a ordem social.
As reuniões foram proibidas e os caminhões da polícia S.A. (Sturn-Abteilung)
transitavam pelas ruas espalhando o medo e o terror. Apesar da propaganda feita
pelos nazistas, as eleições não foram ganhas como Hitler esperava. Consegue,
então, que o Reichstag aprove um "decreto de habilitação" que lhe confere quatro
anos de poder sobre o Legislativo, o que lhe possibilita governar como desejava.
Para conseguir tal aprovação, impediu os comunistas e alguns democratas de
votarem.
Hitler dissolve os partidos políticos e os coloca na ilegalidade. O Partido
Nacional Socialista passa a ser considerado Estado.

À SOMBRA DE HITLER

Nessa época, a igreja evangélica alemã estava a procura de sua identidade.


Durante anos existira à sombra do monarquia, quando seu bispo era também líder
político. Agora, encontrava-se perdida na democracia criada pela Constituição de
Weimar. Os católicos centristas e os socialistas formavam a base de sustentação
da democracia, por isso os conservadores viam no nacional socialismo o alicerce
para uma igreja forte e para a possibilidade de uma nova união com o Estado.
Assim, em 1933 a igreja alemã protestante estava predisposta a aceitar as
idéias do nacional socialismo como proposta política segura para a formação de
uma igreja forte.
No dia 23 de março de 1933, Hitler prometeu: "Os direitos das igrejas não
serão atingidos. Suas relações com o Estado não serão modificadas".
Em 27 de agosto de 1933, Hitler declara: "A unidade dos alemães deve ser
garantida por uma nova concepção do mundo, pois o cristianismo, sob a forma
atual, não está à altura das exigências que é preciso impor aos elementos que
asseguram a unidade alemã." [Daniel Cornu, Karl Barth: Teólogo da liberdade, RJ,
1971, p. 17].
A igreja evangélica alemã adapta-se ao ideário nacional socialista através do
Movimento dos Cristãos Alemães e passa a fazer oposição cerrada ao marxismo,
ao comunismo e ao judaísmo. O Movimento dos Cristãos Alemães pensa,
inclusive, em criar a Igreja do Reich nacional-socialista.
É formado um triunvirato constituído por líderes eclesiásticos, que representa o
conselho superior da Igreja Evangélica, os luteranos e os reformados. Elaboram
um projeto de constituição que expressa a "alegria da igreja alemã em participar
da formação de uma nação e do renascimento do sentimento patriótico". Vão mais
longe e declaram:
"Um poderoso movimento nacional dominou e levantou nosso curso no seio da
nação alemã despertada de seu sono. Dizemos um 'sim' agradecido a essa
reviravolta da história. Foi Deus que nô-la deu. Glória a Ele! Ligados à Palavra de
Deus, reconhecemos nesse grande evento de nosso tempo uma nova ordem do
Senhor à sua Igreja..." [Daniel Cornu, idem, op. cit., p. 22].
De acordo com a constituição elaborada pelo triunvirato, um bispo designado
pela maioria da liderança seria o representante da nova igreja alemã e teria poder
de decisão correspondente ao Führer no Reich. Há então um desentendimento
quanto as indicações. Friedrich von Bodelschwingh representa os moderados, e
Ludwig Müller é o "protetor" dos cristãos alemães.
Apesar de Bodelschwingh ter sido nomeado, a discussão cresce na medida
em que os cristãos alemães alegam que a decisão teria sido tomada sem que o
homem de confiança do chanceler, Müller, tivesse sido consultado e, portanto, a
nomeação seria ilegal. O bispo vê-se pressionado a renunciar ao cargo e escreve
mensagens a respeito da grave situação. Não pode publicá-las em nenhum jornal
e é forçado a enviá-las privadamente.
UM PASTOR E SUAS OVELHAS

Em 1911, Barth iniciara o pastoreado em Safenwill, no cantão da Argóvia,


onde depara-se com a realidade rural e com os conflitos entre operários e patrões,
que ocorriam na única fábrica existente na região e da qual dependia toda a
comunidade. Barth passa, então, a envolver-se com as questões sociais e com os
conflitos.
Por essa época torna-se socialista cristão e recebe influências de Herrmann
Kutter e Léonard Ragaz. Participa de ações políticas e ajuda a organizar um
sindicato. Em 1915, filia-se ao Partido Social Democrata.
Mas, com o início da Primeira Guerra Mundial, Barth vê sua fé liberal abalada,
assim como seus ideais socialistas. Volta-se, então, para a esperança
escatológica e através dos dois comentários teológicos que escreve a respeito da
Epístola aos Romanos elabora a teologia da crise.
"Essa teologia, com efeito, proclama a crise do tempo pela eternidade: Deus
proclama um julgamento sobre o homem, sua cultura e civilização. A existência
humana é ligada à temporalidade, ao pecado e à morte. O conjunto de suas
atividades religiosas, são aquelas de uma criatura pecadora. Entre o homem e
Deus, a diferença qualitativa é infinita. O homem não pode atingir Deus por si
mesmo. A relação não se estabelece senão pela revelação de Deus em Jesus
Cristo, e esta toca o mundo sem penetrá-lo... Mesmo comunicado, Deus não é
jamais possuído: sempre objeto de esperança, sempre a vir, sua presença é a
cada instante um futuro eterno. Escatologia e transcendência fundem-se
inteiramente. É tão somente na linha da morte, do ponto em que nossa existência
se curva diante do não divino, que esse não se revela como sim, o juízo como
uma graça. É no rigor de seu juízo que atingimos a realidade de Deus. Mas aí, no
milagre da ressurreição e da fé, nós a atingimos verdadeiramente". [Idem, op. cit.,
p. 18].
Com o passar do tempo Barth elabora a teologia da Palavra, que significa um
rompimento com seus amigos Emil Brunner, Friedrich Gogarten e Rudolf
Bultmann. Nesse momento Barth deixa as questões de tempo e eternidade na
ressurreição e passa a refletir sobre "o evento que os liga na encarnação", ou
seja, a revelação, Palavra de Deus em Jesus Cristo encarnado. Quem o recebe,
recebe a Palavra de Deus e se reveste de uma nova dignidade que pode ser
reconhecida nos seus semelhantes e que dá base à ética. Portanto, a teologia da
Palavra é uma cristologia.
Por estar comprometido com a realidade social, Barth (1933) reage ao
nazismo, mas sua reflexão sobre as questões políticas é teológica, pois está
preocupado com a fé cristã e com a igreja evangélica na Alemanha.
Escreve estão um manifesto -- A existência teológica hoje (Teologische
Existenz heute) -- na noite de 24 para 25 de junho, quando Bodelschwingh se
demite. O centro da discussão do manifesto de Barth é a questão da Palavra de
Deus e sua importância no caráter e na vida do cristão. A teologia de Barth é
cristológica e chama a atenção dos cristãos para o papel da igreja enquanto
proclamadora da Palavra de Deus no mundo.
Esse manifesto teológico configurava-se como reação política, contrariando a
proposição dos Cristãos Alemães de apoio e incorporação aos princípios do
Reich.
"Parece-nos que o povo alemão, buscando voltar às fontes profundas de sua
vida e de sua força, quer também reencontrar o caminho da igreja. As Igrejas
Alemãs devem fazer tudo para que isso ocorra..."
"A igreja deve provar que é a Igreja do povo alemão ajudando esse último a
reconhecer e a realizar a missão de que foi encarregado por Deus, e que é
também objetivo supremo do atual governo".
"Para os Cristãos Alemães, a grandeza do Estado nacional socialista, não é
apenas uma questão de civismo ou de convicção política, mas um objeto de fé.
Reclamam uma igreja que compartilhe de seus pontos de vista e respeito. O
Evangelho não deve ser anunciado no futuro senão segundo Evangelho do
Terceiro Reich. A confissão de fé deve ser mantida, mas deve se desenvolver no
sentido de uma defesa incondicional contra o mamonismo, bolchevismo e o
pacifismo não cristão. A nova igreja será a igreja dos cristãos alemães, ou seja,
dos cristãos de raça ariana..." [Trechos citados por Barth em Theologische
Existenz heute, p.22-23].
O discurso de Barth estava dirigido aos líderes da igreja evangélica alemã,
com o fim de chamar a atenção deles para a mensagem que estavam pregando.
Não é uma resposta que procura refutar diretamente os Cristãos Alemães, mas,
um alerta geral quanto a quem deve ser o centro da pregação cristã: Jesus Cristo.
Eram notórias as mudanças no cenário político, por isso seu manifesto analisa
três questões preocupantes: "a questão da reforma eclesiástica, a da nomeação
de um bispo do Reich e a existência do movimento dos Cristãos Alemães".
Para Barth não era possível que se visualizasse num evento da história uma
"nova ordem para a igreja", isso só era possível por meio da revelação de Deus, a
Palavra. Com relação a figura do bispo, um Führer dentro da igreja, mostra a clara
associação do cargo com o Führer nacional socialista e para o modelo de onde foi
tirado, o episcopado católico romano.

UM TEÓLOGO E SEU DEUS

Os tópicos apresentados a seguir estão escritos à maneira de roteiro. Optou-


se por seguir a sistemática de Clory T. de Oliveira, autora do artigo A teologia de
Karl Barth e a missão da igreja, fonte supracitada da pesquisa, por considerá-la
coerente. Contudo, o conteúdo dos tópicos não segue o artigo, já que a eles foram
acrescentados comentários.
I. Deus é o Inteiramente Outro -- Deus é absolutamente diferente. Não está
relacionado a nenhum processo de aperfeiçoamento de algo que seja bom. Tudo
que o ser humano pense a respeito das qualidades de Deus serão sempre
projeções humanas.
II. A Palavra de Deus é Soberana --Para Barth a Bíblia é uma produção
humana que pode tornar-se objetivável se for "revelada", "escrita" e "pregada" sob
a ação do Espírito Santo, caso contrário, não é uma revelação de Deus. Portanto,
é o Espírito Santo que legitima a palavra humana sobre Deus, do próprio Deus,
sempre de modo contemporâneo. A mensagem só é considerada como vontade
de Deus se for cristocêntrica.
III. O Inteiramente Outro torna-se o Irmão Humano -- Em Jesus Cristo tem-se o
humano e o divino, sem contudo, manchar a transcendência de Deus. "Em Jesus
Cristo, Deus coexiste com o homem", logo, há uma relação entre o homem e Deus
que fundamenta a relação social da necessidade comunitária (relação
homem/mulher). Mas não há possibilidade de que o homem tenha acesso a Deus.
É sempre Deus que se dirige ao homem. "Deus é livre, a iniciativa é sempre Sua".
O homem não pode ser salvo por meio de seus feitos e esforços, a salvação é
obtida pelo favor de Deus, isto é, através da graça.
IV. Cristologia -- Para Barth tudo principia e finda na pessoa de Cristo,
portanto, Cristo deve ser o centro da teologia. Basicamente a teologia é
cristológica e a razão de existir da igreja é Cristo. Logo, entende-se que é sua
tarefa a obra missionária e, para os que seguem a Cristo, o caráter e modo de
vida de Cristo devem ser padrão, em Cristo e através do poder do Espírito Santo.
V. Graça, pecado e salvação -- Graça é o favor da parte de Deus que torna
possível ao ser humano ser salvo, é uma iniciativa de Deus que favorece a
humanidade. Por conseguinte, "crer na graça de Deus é ser agradecido; ser
agradecido é receber a dádiva da graça e querer reparti-la com os outros..."
Pecado não é parte da natureza do ser humano, mas, aconteceu na
desobediência do homem ao seu Criador, portanto, houve a quebra de comunhão
e separação de Deus. Salvação é uma obra da graça divina que expressa na obra
de Jesus Cristo a verdadeira vida. O homem nada pode fazer para obtê-la, a não
ser recebê-la por meio da fé.
Diz-se então que, segundo Barth, deve-se adorar somente a Deus, a Escritura
basta para guiar a Igreja no sentido da verdade e a graça de Cristo basta para
regular nossa vida.
Sem dúvida alguma a teologia de Barth deve causar impacto na igreja
contemporânea. Se não for assim, perde-se a oportunidade de se
viver/testemunhar/comunicar o evangelho de modo sério e coerente. Há de se
fazer observações ao pensamento teológico de Barth, principalmente quando é
radical e submete a razão humana a uma posição de completo desprezo, contudo,
mediante os fatos históricos e a análise de como se deram alguns acontecimentos
terríveis, pode-se compreender o radicalismo de Barth em face dos colapsos
sociais.
A teologia dialética pretende ser uma reação a teologia naturalista que se
veiculava no século 19 tornando a igreja conformada e alienada dos princípios
básicos revelados por Deus em Jesus Cristo. Deve-se louvar a preocupação de
Barth em relacionar a teologia cristocêntrica de maneira prática à realidade sócio
política sem, contudo, alienar-se dos princípios revelados por Deus. A questão do
radicalismo de Barth deve ser compreendida à luz do liberalismo da teologia
naturalista, que tornava cada vez mais banal o relacionamento genuíno com Deus
e a salvação, favorecendo outros caminhos para se chegar ao conhecimento de
Deus.
O fideísmo de Barth resgata os princípios teológicos conservadores ignorados
pelo momento histórico que tratava o homem como centro do universo e força
suficiente e capaz em si mesmo, mas, que em contrapartida, desencadeava uma
série de distúrbios e colapsos sociais nas diferentes nações.
A implicação dessa teologia na atualidade é a exigência de ponderação e
equilíbrio entre fé e razão, possibilitando um repensar das bases eclesiásticas e
suas implicações para as comunidade cristãs inseridas no contexto sócio, político,
econômico e cultural. Através da teologia de Karl Barth é possível vislumbrar uma
igreja que seja comprometida com a soberana Palavra de Deus e seus princípios
norteadores e agente transformador da realidade do mundo, por causa do amor de
Cristo e em Cristo, no poder do Espírito Santo.
A conseqüência disso, é uma igreja missionária que entende a relevância de
compartilhar com o mundo a boa nova, sendo consciente de suas limitações e
dependente de Deus. Nesse sentido, cabe comentar que a realização dessa obra
não se condicionará aos feitos, propósitos e estratégias humanas, a fim de que
não se configure uma obra ativista e religiosamente vazia; antes, essa igreja será
impulsionada pelo amor e constantemente alimentada pelo Espírito Santo de
Deus, sem contudo, desprezar os potenciais humanos.
O pensamento teológico de Barth é rico e objetivo e demonstra claramente
uma reflexão teológica preocupada em, de acordo com a Escritura, efetuar o
kerigma de Deus para o homem.
É interessante notar que na atualidade, a teologia parece ignorar a reflexão
quanto ao favor de Deus ao homem; à questão de Deus ter a iniciativa, por amor,
de aproximar-se. O pensamento em voga evoca exatamente a idéia oposta
quando afirma que o homem deve exigir de Deus o favor, colocando o ser humano
e a divindade no mesmo patamar e tornando a comunicação imperativa. Deus é
portanto, comunicável, o que torna-O também manipulável.
O conceito teológico da graça de Deus para com a humanidade deve ser
retomado. A igreja deve reconhecer que por si não é capaz de realizar qualquer
obra. Deus é que tem o querer e o efetuar e segundo o beneplácito de sua
vontade, opera através dos que estão em Cristo, a fim de que o próprio nome de
Cristo seja engrandecido. A implicação desse conceito é que uma igreja
constituída por pessoas comprometidas com a Palavra de Deus, em Cristo, atuará
no mundo sempre na dependência de Deus e reconhecerá a necessidade de que
todos sejam dignificados em Cristo, por meio da proclamação das boas novas.

UM ROTEIRO DE ESTUDO

A. Sua teologia parte da crise e da negação


1- toda a produção humana está sob crise e juízo de Deus
2- e se resolve num processo dialético:
3- o Não de Deus à salvação própria (à religião Babel) vs. o Sim de Deus ao
homem.

B. Sua teologia é cristológica e cristologia é


1- a doutrina da pessoa de Cristo
2- a compreensão da dogmática à luz da pessoa de Cristo
3- reflexão cristã: Deus-em-carne, Deus-feito-homem

C. Sua teologia é kerigmática


1- a mensagem se torna a palavra de Deus
2- a palavra do homem se torna a palavra de Deus, se assim for a vontade de
Deus
3- não há apologética, porque defender a fé é pretender que Deus precisa ser
defendido.

D. A dialética do kerigma leva a duas conclusões


1- a Bíblia é uma produção humana -- lida na presença de Jesus Cristo, se
assim for da vontade de Deus, torna-se a palavra de Deus para nós
2- a Igreja não é uma instituição que possa ser descrita por sua continuidade
histórica -- mas, se assim for da vontade de Jesus Cristo, torna-se comunidade
com os irmãos na fé através do milagre da Sua presença.

E. Sua teologia é crítica em relação ao,

1- Protestantismo liberal - Aceitou fontes de conhecimento fora da revelação.


Tentou apresentar uma teoria do conhecimento fora da revelação. Colocou a
consciência moral e a experiência como fonte de revelação.
2- Catolicismo romano e à
3- Teologia natural - O homem não pode chegar à compreensão de Deus
meramente através da contemplação dos elementos naturais. Terá sempre uma
idéia a priori de Deus, fabricação de sua própria mente.
UM TEXTO DE BARTH

Comunidade Civil e Comunidade Cristã Karl Barth, Montevidéu, Ediciones


Tauro, 1973
[Esta obra de Karl Barth discute as relações entre a Igreja e o Estado. Não
enquanto problema jurídico de relações institucionais, mas encontro dialético entre
comunidades que se sobrepõem, que têm um mesmo centro de autoridade. No
texto sentimos como pano de fundo as reflexões do Agostinho de As Duas
Cidades. Aqui, Barth apresenta seu pensamento social numa exposição teológica
brilhante e faz um chamado à "presença da comunidade cristã no exercício de sua
corresponsabilidade política". Num século de guerras, o texto de Barth é altamente
inspirativo. Por isso, traduzimos e apresentamos na seqüência o capítulo XIV do
livro Comunidade Civil e Comunidade Cristã.]

Capítulo XIV

A orientação da ação política cristã, de uma ação que se compõe de


discernimento, juízo e eleição de uma vontade e de um compromisso, está
relacionada com o caráter duplo do Estado, que possui ao mesmo tempo a
possibilidade de oferecer e a necessidade de receber a imagem analógica do
Reino de Deus que a Igreja anuncia.
Como já mostramos, o Estado não pode ser uma réplica da Igreja, nem uma
antecipação do Reino de Deus. Em sua relação com a Igreja tem realidade própria
e necessária e em sua relação com Deus representa - da mesma maneira que a
Igreja - um fenômeno puramente humano, acompanhado de todas as
características deste mundo temporal. Não se pode pensar em identificá-lo nem
com a Igreja, nem com o Reino de Deus. Mas, por outra parte, desde o momento
em que está fundado sobre uma disposição particular da vontade divina, e porque
pertence na realidade ao Reino de Cristo, não se pode dizer que seja autônomo.
Não poderia existir independentemente da Igreja e do Reino de Deus.
Por esta razão não se poderia falar de uma diferença absoluta entre a Cidade
e a Igreja por um lado, e a Cidade e o Reino, por outro. Logo, fica uma
possibilidade: desde o ponto de vista cristão, o Estado e sua justiça são uma
parábola, uma analogia, uma correspondência do Reino de Deus que é o objeto
da fé e da prédica da Igreja. Como a comunidade civil constitui o círculo exterior
em cujo interior se inscreve a comunidade cristã, com o mistério da fé que ela
confessa e proclama, as duas, tanto uma como outra têm o mesmo centro do qual
resulta a primeira, distinta pelo princípio no qual está fundada e pela tarefa que lhe
corresponde, se encontra forçosamente na relação analógica com a verdade e
realidade da segunda; analogia no sentido de que a Cidade é capaz de refletir
indiretamente, como por um espelho, a verdade e a realidade do Reino que a
Igreja anuncia.
Mas como está condenado a continuar a ser o que é e a atuar dentro de seus
próprios limites, o Estado, como reflexo da verdade e da realidade cristã não
possui justiça e consequentemente não possui também existência intrínseca e
definitiva. Ao contrário, sua justiça e sua existência estão sempre gravemente
ameaçadas e sempre deve se perguntar se, e até que ponto, está cumprindo com
suas tarefas de justiça.
Para preservar a comunidade civil da decadência e da ruína é necessário
recordá-la de quais são as exigências desta justiça que deve representar. A
comunidade civil, pois, precisa desta analogia tanto quanto é capaz de criá-la. Por
esta razão necessita uma e outra vez um quadro histórico cujo fim e conteúdo
possam ajudá-la a chegar a ser uma analogia, uma parábola do Reino de Deus,
permitindo a ela cumprir as tarefas da justiça civil. Mas, nesses assuntos, a
iniciativa humana não pode orientar-se somente por si mesma. A comunidade civil,
como tal, não conhece nem o mistério do Reino de Deus, nem o centro escondido
do qual depende e diante do testemunho e mensagem da comunidade cristã é
neutra. Por tanto, tem que se limitar a buscar sua água nas "cisternas rachadas"
do chamado direito natural. Por si mesma não pode lembrar-se do critério
verdadeiro de sua justiça, nem colocar-se em movimento para cumprir com as
tarefas desta justiça. Justamente por esta razão é que precisa da presença às
vezes incômoda e saudável da atividade que se desenvolve ao redor do centro
comum dos dois domínios: a presença da comunidade cristã no exercício de sua
corresponsabilidade política.
Sem ser o Reino de Deus, a comunidade cristã sabe algo dele, crê, espera e
ora no nome de Jesus Cristo e anuncia a excelência deste nome sobre todos os
outros. Nesse ponto não é nem neutra nem impotente. Quando passa ao plano
político para tomar sua parte de responsabilidade não abandona sua atitude
"comprometida", esta atitude de fidelidade ao único Senhor.
Para a Igreja, aceitar a parte de responsabilidade que lhe corresponde
significa uma única coisa: tomar uma iniciativa humana que a comunidade civil por
sua parte não pode tomar, dar a comunidade civil um impulso que ela não pode
dar a si própria, fazê-la lembrar das coisas que a comunidade civil não sabe
lembrar por si mesma. Discernir, julgar, eleger no plano político implica sempre
para a Igreja ter que aclarar as relações que existem entre a ordem política e a
ordem da graça, para azar de todo aquele que possa obscurecer esta relação.
Entre as diversas possibilidades políticas do momento, os cristãos saberão
discernir e eleger aquelas cuja realização leve a uma analogia, a um conteúdo de
sua fé e de sua mensagem. Os cristãos se encontrarão ali onde a soberania de
Jesus Cristo, acima de todas as coisas de ordem política ou de outras ordens, não
é obscurecida, mas evidente. A comunidade cristã exige que a forma e substância
do Estado, neste mundo caduco, orientem os homens em direção ao Reino de
Deus e não os distanciem. Não pede que a política humana coincida com a de
Deus, mas sim, que na imensa distância que a separa daquela, seja paralela.
Pede que a graça de Deus, revelada de cima e atuando aqui em baixo, se reflita
na totalidade das medidas exteriores, relativas e provisórias assumidas pela
comunidade dentro dos limites das possibilidades que este mundo oferece.
É, pois, em primeiro e último lugar, diante de Deus - este Deus que em Jesus
Cristo revelou sua misericórdia aos homens - que ela exerce sua responsabilidade
política. Todas suas decisões políticas (discernir, eleger, julgar, querer) têm por
isso valor como testemunho, que não é menos real por ser um testemunho
implícito e indireto. Sua ação política é pois, também, uma forma de confessar sua
fé. Exorta à comunidade civil para que saia de sua atitude de neutralidade, de
ignorância espiritual, de seu paganismo natural, para comprometer-se junto com
ela, diante de Deus, em uma política de responsabilidade compartida.
Desencadeia, além disso, o movimento histórico cujo fim e conteúdo são fazer da
cidade terrestre uma parábola, um sinal analógico do Reino de Deus, permitindo a
esta cumprir com as tarefas da justiça civil.

Elisa Rodrigues, graduanda em Educação Religiosa, sob orientação do professor Jorge Pinheiro, da cadeira
de Teologia Contemporânea na Faculdade Teológica Batista de São Paulo.

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