Você está na página 1de 2

ENSAIOS DE GÊNERO

Meritocracia: críticas e dificuldades


Adriano Senkevics

No texto introdutório sobre a meritocracia, definimos este conceito que é largamente aplicado nas
sociedades democráticas ocidentais. A justiça meritocrática, baseada na capacidade e esforço de cada
um, é um princípio que orienta o sistema educacional dessas sociedades, incluindo a brasileira.
Dissemos que a meritocracia na educação depende da igualdade de oportunidades. Oportunidades
iguais, por sua vez, supõem igualdade de acesso, segundo análise do sociólogo francês François
Dubet (2004). No Brasil, a universalização do acesso ao ensino caminhou a largos passos a partir da
década de 40 do século passado. Hoje, quase 100% das crianças em idade escolar acessam ao ensino
fundamental. Em etapas posteriores, como o ensino médio e principalmente o ensino superior, a realidade
é outra.

A universalização do acesso ao ensino não elimina a meritocracia da educação.

É evidente que a ampliação do acesso ao ensino deve ser comemorada, mas ainda é uma meta limitada
se estamos procurando uma educação justa – isto é, que não perpetue injustiças e desigualdades – e de
qualidade. Pois, em resposta à escola que se expandiu, Dubet afirma que “essa escola não se tornou
mais justa porque reduziu a diferença quanto aos resultados favoráveis entre as categorias sociais e sim
porque permitiu que todos os alunos entrassem na mesma competição”(2004, p. 541).
Há de se pensar que uma concepção puramente meritocrática da justiça escolar traz imensas
dificuldades. Antes de procurarmos modificar esse princípio, é necessário entender que dificuldades são
essas. Dubet (2004) destaca cinco:

– Os alunos apresentam base e formação distintas, decorrentes das condições sociais dos pais e
das suas possibilidades e capacidades em acompanhar a educação dos filhos. Aqui há dois problemas:
as desigualdades entre pessoas, pois mesmo nos alunos de camadas sociais semelhantes o
desempenho escolar pode variar bastante; e as desigualdades entre as classes, pois as desigualdades
sociais pesam muito nas desigualdades escolares. As “bagagens” distintas desses alunos fazem com que
uns tenham vantagens sobre os outros na escola. Valorizar essa diferença significa reproduzir
desigualdades;
– A oferta do ensino é desigual, pois não só as famílias e os alunos são diferentes, como ainda o
sistema educacional não é homogêneo entre si, sobretudo em países de dimensões continentais como o
Brasil. Escolas de bairros periféricos geralmente sofrem mais dos problemas existentes naquela
comunidade. Tem-se uma menor estabilidade do corpo docente, maiores entraves etc; tampouco as
famílias são escolarizadas a ponto de engajarem-se em mudanças na escola. Logo, a competição que
serve de pressuposto à meritocracia não é perfeitamente justa e tende a valorizar estudantes e escolas
de meios mais favorecidos;

– O modelo meritocrático apresenta certa crueldade , à medida que os “vencidos”, os alunos que
fracassam, não são mais vistos como vítimas de uma injustiça social e sim como responsáveis pelo seu
fracasso, uma vez que a escola lhes deu, a priori, todas as chances de obter sucesso. A justiça
meritocrática, dessa forma, reduz a escola a uma competição na qual boa parte do alunado é excluída.
Alunos responsabilizados pelo seu fracasso tendem a construir uma imagem de “maus alunos”, sofrerem
de baixa autoestima, desmotivação e violência. Quando o fracasso é visto não mais como um produto da
condição social e sim como fruto de uma competição justa entre os indivíduos, estamos diante da
legitimação das desigualdades sociais.

– O modelo de igualdade de oportunidades acarreta sérios problemas pedagógicos . Se for


pressuposto que todos os alunos estejam envolvidos na mesma competição e sejam submetidos às
mesmas provas, as diferenças se aprofundam rapidamente. Em pouco tempo, nota-se que alguns alunos
são incapazes de competir. Mas a competição continua. Gradativamente cria-se um abismo entre os
“alunos bons” e os “alunos ruins”. Ao assumirmos que essa desigualdade é produto de toda e qualquer
competição – que se deu sob as mesmas condições, logo, justa –, admitimos a falência da escola na
educação de todos.

Não se pode pensar mais a educação nos moldes das escolas tradicionais, onde o ideal de um ensino de
qualidade para as elites perpetuava a meritocracia em todos os níveis escolares.

– Finalmente, podemos questionar a própria noção do mérito. Ao darmos relevo àqueles poucos
alunos de melhor desempenho, visto que há a necessidade de se premiar os melhores, justificamos a
maior produção de “vencidos” que de “vencedores”. É válido pensar: o que é o mérito? Mérito é
transformar herança em virtude? Mérito é legitimar desigualdades e o poder dos dirigentes? Mérito existe
e pode ser medido? Se não somos responsáveis por nosso nascimento, como sê-lo por nossas aptidões?
As dificuldades de uma noção de justiça pautada pelo mérito são tantas que fica evidente a importância
de se procurar outros conceitos de justiça. Enquanto as sociedades democráticas liberais fazem uso da
meritocracia como um pilar fundamental, vemos que uma escola puramente meritocrática atua na
contramão de um sistema justo e democrático. É um impasse sobre o qual deve ser refletido, afinal, qual
seria o papel da escola em uma sociedade desigual como a nossa? Reproduzir e legitimar a realidade?
Ou transformá-la?

https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2011/11/25/meritocracia-criticas-e-dificuldades/

Você também pode gostar