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CARTA AOS ANFÍBIOS Ricardo Domeneck

edição revista pelo autor


carta aos anfibios
Ricardo Domeneck

CARTA AOS ANFÍBIOS


edição revista pelo autor

modo de usar & co.


2005, 2012 © Ricardo Domeneck

foto de capa projeto gráfico


Heinz Peter Knes Marília Garcia

Livraria Berinjela a Érico Nogueira


Av. Rio Branco, 185 / loja 10 | subsolo
Centro | Rio de Janeiro RJ
tel. 55-21-2215-3528
1.
“Penser l’origine, n’est-ce pas, d’abord, mettre à l’épreuve l’origine?
Désir d’un commencement.”
edmond jabès
eu digo sim até dizer não

as circunvoluções
e caprichos
da atenção:
erguer a cabeça
e perder o sono

sopro
vento
em que
uma primeira esfera
de ar impele
outra ao movimento

ou em alto-mar
temendo menos a ausência
de resgate na superfície
que a povoação alheia
e por isso informe, abaixo
n’água, invisível, mas parte
integrante das estruturas
do dia real

só a lucidez abre caminho


para o imaginário

mas a carne insiste


no contínuo

onde as pedras são comestíveis


e exige-se a fome;
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durante a transfiguração mas foi Isaque a carregar a lenha
em que anjos e bandejas nas costas, tomar o fogo e o cutelo
circulam seu jardim na mão; e caminhou junto de seu pai
é fácil salmodiar
providências e entregas; mas todo sacrifício é aparente e inútil,
é com o linho enfaixando toda a
pele e a pedra nenhuma
árvore camufla
separando esta caverna
suas frutas:
da saúde do ar
as expõe
que se espera um Lázaro! ao pássaro, ao
Lázaro! e um segundo chão, ao suco
antes da asfixia na garganta, à recusa
crer ainda do estômago
que seja este o meu
nome, seja este o meu por
nome tanto

se cada folha parece percorro os andaimes


percutir o sol hoje de equilíbrio precário
e não se debruça do estame :
para o vazio ferro oxidável
saudoso
o mundo de água
é tão simpático
e a alegria de quem, na
obrigação de abater um novilho,
da montanha que fala resta espera que seu corpo, de repente
a mímica, da presença forte, sobreviva ao sacrifício,
o ventríloquo, de sua boca
o mapa que reconduz à porta como uma garganta
enrijece-se rápida
mão em mão com passos lentos
para resistir à faca

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tecido de quaisquer sementes
se eu sou mais que o meu sangue
O campo é contínuo,
contido e
e erode;
caminhante.
o sulco não o separa
de si na água
que ali corre A água desce
e desce. até que encontra
uma veia
Corte sob a pele, de pedra
como arado
enterrado no solo em resistência:
(sonhando brotos
de lavoura) a ravina entre árvores,
único trecho
e o copo da ceia fértil do terreno;
vazio sob a terra a água enfim visível, correndo
imagina-se na pedra, e o som que preenche
nas cercanias o espaço do choque
duma vinha; destes elementos –

a erosão pressupõe
fé na água mas nem árvores
debruçadas, nem flores
(ou o corpo ergueria na sombra,
as barricadas que não nem ponte preenchem a fenda.
há)
A cura
e flecha, suporte e arco é um salto da pele.

faço Este ferimento


deste corte sempre reaberto
a espera
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(semente e sulco inaugurando um país novo,
são entregas onde a ética
da chuva) dita que os mortos
espécie mantenham-se expostos
que roça a um céu
a pele e que não pode
demonstra repudiar seu cheiro;
o cicatrizado
(no qual pode-se
o barro sobre os olhos;
ou não crer) tal
qual pecado o toque à borda
dos pecados: das vestes, entre
a multitude
abismo que se dói e o sangue
e nega a ponte
e foge que se estanca;
de sua manta –
mas presenciamos o profeta
onde fluiu e correu o uno que percorre a terra
e indiviso, e
nas valas e sulcos abertos
restam em poças afastamos dele os olhos
nostalgias de enchentes e mãos e rostos
e pernas e vestes e peles
(o ferido o susto
do avulso)
e mortos
e cada lençol de linho de pele
estende-se nele e ventres
como se adentrasse
o local santificado e
por um passado
bélico: (cascos de mula sobre a areia)

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fugimos da cura; a tentação do homogêneo
“an era
meu anátema
any time
é meu:
of year”
louis zukofsky
basta que dele um único a Ettore Finazzi-Agrò
dia tenha emanado júbilo.
Tudo o que queremos é o único.

Nossa carne
tantas vezes
a caminho
da fornalha
ainda sofre

a tentação do homogêneo

assediando
os fragmentos, ou a compulsão
do silêncio
em sitiar
o múltiplo,

datas por um punhado do fértil;

quanto
tempo
um corpo
submerso
na piscina
aquartela
a ilha
vivo?

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A busca atinge de esporas na terra
a revelação da história escapa
através de figuras à efígie na moeda
concretas para a abstração
e resiste-se e a montanha
à história mesmo um momento
fazendo-a. esquece de
erodir-se.
bombardeia-se a montanha —
e os flancos das encostas
varridas estimulam a réplica
a rarear engajados na ação
imóvel: um revés.

Tiros ecoam na estrada,


estocada onde há muito
venceu-se a batalha;

casais separados por séculos


repetem por segundos
uma sequência de gestos;

não fale em superposição de planos


temporais — é o mesmo chão,
não a mesma
manhã:

no bocejo da terra,
sonho penetra
as filigranas do real
como
nem este galo

20 21
os materiais, a lição: cinco variações iii.
escalar-se em chamas,
i. deitar no próprio corpo
como na última cama.
pés úmidos em terra seca:
montar um cavalo morto
(prefiro o consumo do outro)
enregela-nos o movimento.
nosso palpável
(beijo ao caminho, à poeira)
peito unido
lambe o milagre
o fértil
da carne única:
revolve os olhos
e mal contém-se
a trindade
em coice:
opera-se grávida.
pata impressa
em ervas.
iv.
ii. fala e água: ao chocarem-se
em continentes de carência,
conglomerado sem esforço,
o conteúdo dita a forma.
o corpo reunido vinga-se
do ar, dispersão contínua.
(o líquido modela o copo)
(e despenca-me em chuva)
o sangue
procura deter-se
o úmido
num trecho de pele
opõe ao vento
um instante:
o núcleo
do seu aposento:
toque do anátema,
farol, ex-amante.
o corpo persevera
no extenso.

22 23
v. a pele medrosa cicatriza-se: e recomeça
consciência purgada na falta a Philipp Naujoks
que ama: enfim, só se é cauto
em sins de olhos fechados.
1.
(fé do absurdo no obstáculo) esta perturbação inicial, garfo
que não encaixa na boca
o cavaleiro e a comida cai, num prato
executa assustado; o copo
no escuro d’água vai de encontro
o movimento. ao dente. A garganta
estende as palmas
sem aposta de páscoa: de vontade.
um cavalo, um moinho, um vento.
2.
O algodão úmido
na testa eriça-me
o quebranto; o soluço
acelera o ritmo.

Visto o casaco alheio


e me perco no cheiro,
um instante,
um instante.

O flagrante
do dono
perturba-me
o sono.

24 25
3. olaria
a Celso Prado
Timidez
de pés
Eu chamo de
em casa saudade do sopro,
estranha, querença de brisa
sobre a água,
como a terra, disforme,
que ao
esses materiais
ensaio
nas mãos do vivo
único, e único
da distribuição
nova do peso o filho vence em dias
o que tememos a cada
descobrem rua, avião e cama;
a levitação.
é o fôlego do século,
o fôlego
4. do século,
e convém aceitá-lo,
O chão é um convite
dizem
recorrente, constante; algo em nós espera
(e arfam)
o reencontro. Até que o vento.
a máscara rápida
à boca,

e pedras remanescentes
das peneiras ferem
as mãos do oleiro

onde remodelados
às vezes
despertamos

26 27
e quando o vaso nas mãos o dono do corpo
sangra
a Verônica Veloso
– abrimos os olhos –
entre veia e espinho
e quando a pedra nas mãos o diálogo é explícito
singra
mesmo o cadafalso exige
– abrimos os olhos – da minha perna
a perfeição,
(certas dores não é lícito do meu passo
fingir) e no forno o preciso
aguarda-nos
a paciência do que, sólido, à iminência do penhasco
mantém características é mais atento
de seu passado líquido, o metacarpo
e o rosto encolhe
mas não o indivisível. perante a navalha

a terra
não se furta a cobrir-me

nem hesitaria em esmagar


-me usando meu próprio

peso

o refúgio
de ao menos uma única

relação justa
entre dois corpos

28 29
e entre os pés e o solo chão
não há espaço para dúvidas.
a Lígia Borges
minha mão toca meu peito:
1.
eu passo, então, a existir em dois Cada cavalo
pontos, como se um rio fosse a soma montado a campo
de uma superfície e duas margens? carrega em si a possível
quebra dos meus ossos;
meus ossos não são inquebráveis
todo touro
e o júbilo investido na arena
é um improviso contém em si uma iminente
difícil fratura do meu crânio;
mas nem

todo peixe
está sujeito
à minha isca,

tão pouca pele


alheia estremece
ao meu toque;

entre nutrição e boca


erguem-se o úmido
e o medo.

30 31
2. a gravidade como hábito

Quando a terra treme, Quero dormir à beira da cama.


os joelhos
acompanham seu ritmo Como o galho ao estame
ao menos um minuto. e este ao fruto,
as raízes
Quanta luz os olhos exigem agarram-se e a copa
à confiança abre-se com potências
do avanço no escuro? paralelas;
Há no passado o mínimo.
O dia
3. presente as férias
do que germina,
Sem chão como se a árvore existisse
e os para separar
pés livres do solo a semente?

cautela do que Tronco: sucesso, dilaceração e


em asas crescimento, o tato e o real
atenta nostálgico, a pupa
à direção do vento com os mesmos
temor e receio
e ouve que a fruta
onde dedica ao chão:

o pouso. eu meço
a queda
pela origem.

32 33
o pêndulo, a represa sempre o exílio
“... wo die Glocke das grosse Entsetzen drittelt a Roberto Borges
zum dreifachen Laut deines Namens”
christine lavant
a.
a Pablo Martins surpreso a quanta terra
não me pertence, que
engraçado descobrir (mais
Entre o
anúncio do dilúvio uma vez) que trocar de país
eo não significa trocar de corpo
deserto vermelho, e a mudança
de língua
nosso tempo e nosso peito; é acompanhada pela permanência
da produção da
entre o mesma saliva.
temor e o terror,
o corredor estreito,
mas nossos pés são pequenos b.
esta ilegalidade do meu corpo
“once human always an acrobat” desaloja-me a comida no
estômago
o fardo leve que permanece em ângulo
e o jugo suave suspeito, a boca
dos ciclistas no parque da redenção: arqueia-se, tesa –
e o barbante frouxo dos braços
a oeste do meio-dia a nenhum peito estreita-me,
existir segue denotando esta pele estrangeira,
e pressupondo movimento
este cheiro novo.
e o descanso é eterno
e condicional.

34 35
c. articulações
a certeza finalmente a Luzia Carion
de que a mão é incapaz
da linha reta,
os ouvidos mais atentos, Talvez
as pontas dos dedos seja necessário
mais ativas, despertas, o exílio, como quem acorda
os ombros caídos, menos no meio
por cansaço que por pesos da noite na cama
acumulados ao longo de um estranho e sente
de outros sonos; a cabeça girar de forma
quando as noções diferente, todos os músculos
de segurança atentos, dores
e cidadania novas no corpo, ângulos
desaparecem e resta-nos variegados
a condição. no pescoço: e escuta,
os arcos
dos pés mais tesos,
talvez,
e toda uma outra
estrutura estabelece-se
no corpo, bicho
de Lygia Clark de
repente
manipulado por mãos
inéditas, gerando
tensões, torsões
impensadas
em músculos esquecidos,
compensando
distribuições de equilíbrio

36 37
precário, mas presente, de madrugada, de manhã
e apontando para linhas
no espaço ignoradas
04:48 am
contudo ígneas

acordar no meio da noite


com a cabeça do outro
sobre o peito,
travesseiro,

maré e barco;

permanecer desperto, à deriva


o resto da noite, dormentes
e doloridos os membros,
a circulação cindida,

sem desejo de resgate –

e sussurrar-lhe ao ouvido:
unsere knochenknospen
– nossos brotos d’ossos –
schnurren und schnorren,
– ronronam e imploram,

como em qualquer hino,


meu querido.

38 39
09:56 am de acariciá-lo
logo de manhã,
eu
desconheço ele, envolto em lã,
quanto que ignora o abalo

deserto custa sísmico


uma epístola em mim:
aos coríntios;
um bocejo
se a cegueira seu.
no caminho
precede sempre

(e vale)
a cidade,
Damasco;

se na garganta
um novo cântico
dos cânticos aguarda

ou se quatorze anos
de fôlego preso
hidratariam sonetos;

eu falo baixo
porque deixá-lo

dormir meia-hora
a mais é a forma

40 41
ação e cicatriz b.
o crescimento
a. dos seres brutos
por acumulação,
morder-me os braços
e eu a calamidade
não os desprende
dos recursos:
das mãos, o trânsito
caule como esforço
nos pulsos e o círculo
da temperatura anexando
(moeda sob a língua,
membros que perseveram
resista a dissolver-se)
e resistem à metamorfose,
para acordarem toda manhã
e quando os cantos
incólumes do sono, ou quase;
da boca ressecam
e, no dicionário, “tudo”
e racham, é com alegria
conspira com “uno”.
que os cântaros
tocam com barro o barro

(e a água preenche as fendas)

42 43
falta; desejo terra ao redor do poço
querendo a água e dela
separada pelas paredes
poço
do próprio poço
hipnotizado
querença, desejo
pela água que
tal falta sem trânsito
contém
a água esta culpada
acreditando piamente
que é ela que o mantém
vertical,
ela que o
mantém uno, e não
ele dando-lhe forma,

nunca,

ele jamais creria


que lhe dá forma

poço hipnotizado pelo que contém,


água do vertical, do possível

terra circundante
às pedras do poço,
desejo em círculo,
necessidade que cinge,

44 45
estudo figurativo incorpora-se o mundo,
algo necessário e oculto
reside num meajudamaria.
Quando o primogênito
do meu tio
Paulo foi assassinado
em São Paulo,
a noiva e ele
haviam acabado
de sair do curso
para noivos
da igreja
e passaram pela feira.
Ele carregava frutas, ela
os frutos
que não teriam futuro.
Policial, ele; ela atendia
por Maria.
Cinco homens desceram
de um carro, renderam
um e outro
e com a arma
do próprio noivo
alojaram em seu corpo
sete balas.
Ele defendeu-se dizendo
“me ajuda, Maria”,
ainda estendeu-se no tempo,
permanecendo por
algumas horas
e morreu.
Se em todo fato

46 47
em comum pois

entre os dois
para sustar
a possível infelicidade
há a respiração
das coisas in-
e a relação mais próxima
visíveis,
do ar comum
porque invisíveis
que irresistivelmente nos inclui
como o ar,
e que, no entanto,
nos tocam

mesmo que esta pedra


num esforço de concentração
e resistência
três vezes negue-me:

sim

com sorte, ar
que passou pelos
pulmões alheios

(sim, aqueles, inteiros,


específicos)

que o tornaram
inútil
mas reciclável
48 49
ressaca que o
nunca
“Há fortes iluminações sem permanência”
vos supra:
murilo mendes
eis o meu! espanto
as mãos erguidas,
palmas voltadas ao alto: se
o alto acima eu ousar
que
sopro duas vezes
que tenta (mais)
permanecer
eu peça
quando os lábios o
já se fecharam milagre

a corola aquele raio


túrgida duas vezes
na memória (mais)
pouse
eo sobre
resto
seco o mesmo lugar:

hoje meu peito


este acidente
que não aquele barro
ocorre
(não saber se santa
no entanto a terra ou a saliva)

50 51
depositado barro: o abraço / primordial já /
previa o anfíbio
sobre os olhos
“Und dies ist ihre Verbindung mit der Welt”
som
ludwig wittgenstein
que soe
sim
mesmo que um pássaro
aponte o centro
mesmo com a
ou uma pedra
contínua
seja pedra e sinal
dispersão do calor
a densidade em quaisquer hierofanias
jamais excede
a que meu corpo apresenta
imerso na banheira,
água, carne: praia

e a troca de calor é explícita.

se o concreto evola-se em conceito


e eu vejo
o corpo do mito
feito carne
(de novo)

neste fluxo e refluxo


respira o mundo.

52 53
* *

de encontro à pele, minha coluna, uma torre de inclinações


a temperatura contínuas,
aumenta, a febre a garganta sobrevive ilesa
acelera-me o pulso, às inflamações
periódicas.
o rosto incha,
o corpo ilha-se durmo e sonho o prometido
corpo incorruptível;
numa cama
encharcada, acordo com dores nos músculos.

mar que retorna *


das origens a um corpo
estes brincos necessários perfuram e pendem,
em júbilo servem de prova de consistência; úmidos,
similar à cicatrização de um corte; os pés tateiam, ajeitam-se,

luxações aumentam-me a posse calcam mais fortes


e presença no mundo, no concreto
a sua crença de apoio
mas não a brecha entre pele e pouso;
(o mundo responde-lhes
nada é invisível com tremores)
além do que reside
em minha memória, o sangue escorrendo
das narinas no momento
e eu sei que não há quem profetize do aperto de mão do estranho,
a sua volta. (toda apresentação
deveria consistir numa troca
de secreções)

54 55
expondo ambos
à recusa 2.
herdada, esquecida, prenhe.

os joelhos falham, dobram-se,


saliva e sangue às vezes unem-se,
desaguam na boca,

cabelos engastam-se nas unhas


do mesmo e próprio dono.

(braços exaustos tremem com um copo)

denso,

denso.

algo mais que mão externa


consterna-me o diafragma.

enquanto alguns

flertam

com pedras

eo

silêncio

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“But anxiety is a password which does not require
a special tone of voice. Rather than to immersion in
mysteries I was only leading you to common ground.”
rosmarie waldrop
breviário de secreções

A um canto do quarto, meu corpo


operava sua fábrica
de relações
Decisões não são autoexplicativas,
resistem ao questionário
do prazer
e são
obrigadas a ignorar
consequências de causas,
como movimento e encontro
As mãos em concha erguem-se
ao rosto ao mesmo tempo
que este dirige-se a elas
sem que se percam
no caminho

Respirando pela boca, sem


tempo a perder entre a
oxigenação do próprio
cérebro e a
do ambiente
em geral, ele
falou alto e preciso:
o teso súbito que percorre
a linha da boca
do peixe à mão
do pescador, anzol:
isca, peixe

61
Mas esta imagem não Não há transição mais
encontra equivalência sutil que a esquecida
em meu organismo e à meia-noite
volto a olhar
meus pés e entre epiderme
derme músculo
Sozinho e vazio osso esperam
como quem acaba todos
de parir como quem uma gradação
acaba de ejacular dos espetáculos
vazio e sozinho do mundo
e só me acalmei apague a luz cavaleiro digo cavalheiro
ao repetir duração duração
duração movimento Breviário das secreções
da manhã:
passe as cartas por baixo
§ salivação comum mesmo
da porta se as há
em meio à
desidratação recente
Infelizmente não
§ ejaculação de hábito
poderei ir a São Paulo
por enquanto antes do desjejum
mas com certeza § sangramento normal
nos veremos antes à pia do banheiro
da sua partida beijos colore-me a boca
sensação de frescor e medo
em vigas de partir
nas vias do por vir

O esvaziamento progressivo
dos pulmões e recomeçar
em seguida

62 63
o pão partido de um oceano
e seu condiloma
imaginado.
Houvesse um telefonema,
É 1654 e cavalos
haveria uma voz; eu
(oito) tentam separar
emagreço, que prazer
as duas metades de
ajustar-se melhor
uma esfera unidas
aos ossos. Levitar
pelo vácuo; em apenas
até o teto; basta mover-se
dois por cento das caças
na direção certa
um urso polar
para viver de inverno
tem sucesso mas
em inverno. Meu corpo
seu pelo é branco! e oco
seu estrado, o colchão
para conduzir melhor o sol;
a falta, em concha
brilhar e desaparecer:
peito e costas
camuflagem perfeita e o único
aconchegam-se
predador a fome.
em útero: e a falta
A hóstia sempre
redobrada.
um prelúdio,
O cordão umbilical uma
não uma rememoração.
ausência explícita, que
digestão suporta
uma hóstia?
A boca abre-se à
expectativa,
saliva
produzida nas glândulas
da anunciação.
Pão partido, corpo prurido
every single time.
Mas separam-nos
o jejum e as
orações de minha mãe,
a possibilidade
64 65
como um caule / exausto / a promessa de estar
sob copa teme- / rosa sempre. As exigências
nascem da expectativa,
a Jorge Wakabara da minha falta de direitos.
O asfalto na Augusta
Novembro cansa. O calendário encharcado
é o início nesta primavera estranha
de todo cansaço. de 07 de novembro
As obrigações de 2003 (em anos ímpares
de natal por vir, me convenço de que
o ano novo o a morte existe) as fronteiras
tópico favorito fechadas, as invasões
como se fosse ainda bárbaras às portas,
moeda corrente as disfunções do clima vêm
a regeneração. unir-se à sua intermitência.
O jogo Quando
da transição o único tudo em mim conspira
restante e isenta pela constância?
-nos do definitivo. Seu rosto que
“Só toca em mim diz “se eu ficasse não
casando”, vontade faria mais sentido
de expor (as mãos o sufrágio universal.”
batendo contra o peito) como Atende-se ao telefone
Darlene Glória em Toda nunca a única
Nudez Será Castigada, voz,
mas o medo. Desde cedo parte-se o pão e
aprendemos é sempre a primeira
sobre investimentos. vez.
Nunca desnudar-se
antes da isenção de
responsabilidade.
Você está aqui, é implícita

66 67
refrigerador surgem dominam-me eu
os afasto olhando
o chão repetindo
o que recende e
sou uma folha amarela o
ascende deste lençol
contato com o chão
encharcado no suor
me basta sou uma folha
de um único
amarela o contato
dono não mais
com o chão me basta
condensa-se ou
e fico na chuva quero
mistura-se
induzir-me à febre à gripe
à extensão de
à cama necessária
outro corpo
imitá-lo mesmo na doença
e deixa-me a tarefa
lembrar-me dele espirrando
de carregar e conter
o corpo todo
meus órgãos internos
que se ama tanto tremendo
com minha própria
tremendo
pele tão-somente
não colaboro
passeio no parque caminho
com a insônia alheia faço
pelo parque convencendo-me
sexo com outro e
de estar engajado apenas
outro e o corpo
em uma atividade
estende faixas obrigado
bonitinha seja
obrigado
outono ou inverno visto
pela graça
a expressão “tenho
alcançada
um amante
a cama enfim ocupada
mas ele está longe”
viro-me finjo que
e todos a percebem
durmo lembrando-me
e o perigo
que é apenas uma
dá-se vejo um casal
hipótese que o sol
e logo os versos “two lovers
amanhã levante-se
entwined pass
o toldo estenda-se
me by & heaven
que o balão suba
knows I’m miserable now”
68 69
meu focinho colado separatismo
ao chão, cão à caça;
Seu olho fisga-me dentre
e a insaciabilidade
os outros repuxa a pele
e reabre o corte faz-me
acreditar num anzol
dedicado
à minha boca enquanto a
expectativa infecciona
sob minha língua repetindo é hoje
é hoje e eu não
queria voltar a existir
como se à entrada
de uma estação de
metrô tocando xilofone
para os transeuntes à espera
da moeda a certa a desejada você
cantarola Crush
with eyeliner ele
caminha até o som Too drunk
to fuck soa
no quarto poemas não
o impressionam inútil
citar aquela poetisa
polonesa de que você gosta
tanto discorrer sobre a palavra yes
nos poemas
de e.e. cummings narrar
a morte estúpida
de Ingeborg Bachmann aduzir
como ele adoraria Yehuda
Amichai ou chiar améns não ele
70 71
folheia panfletos ao ver adriano costa atravessar a augusta
anarquistas mimeografados
textos de escritores
em algum lugar entre
judeus cheios de sarcasmo e ri
boca e estômago perdeu-se
sozinho na cama você
o sono a ejeção
se olha no espelho e sabe
de material inexistente
de antemão que não
dá-se de forma
adianta tentar
dificultosa o pão
um moicano você nasceu
conhece
para usar
a convulsão do seu
óculos sua visão perfeita
destino
20/20 sempre
os elementos da equação
foi na verdade um insulto mas como
muito insuficientes
é bom ouvi-lo sobre a infância
pela manhã para determinar
na Berlim dividida os pais
o desconhecido prefiro dormir
anarquistas o erro
com alguém no cômodo
a reunificação (der Anschluss
meu lençol vazio como
como ele diz) as dificuldades
um filme recomenda-se
de ser possuído por pai
construir orações
alemão e mãe
com sujeito oculto
judia passar o sábado
a seus contemporâneos
todo assistindo-
em meio à minha agitação
o vê-lo observar o sábado pedir
estamos todos calmos
o que é kosher sim querido começa
curando a faca
em alguns dias a Chanukka
que abriu o corte
quando num cerco inimigo
e no hino à possibilidade
ao templo o óleo
escrevo “dois dados querem
suficiente para apenas um dia queimou
sempre ocupar o
durante oito a perseverança do óleo me
mesmo lugar no espaço”
cai bem
sabendo que contexto é o risco
que a alegria corre e aceita

72 73
quando vejo Jean-Paul conversa com duas estranhas
Belmondo cruzando a Augusta
contendo mãos e pernas
só eu paro de respirar prestes
eé a deixar o país retirei
um único na Biblioteca Municipal
segundo de Munique
na Alemanha o Perto
do Coração Selvagem
de Clarice
Lispector
uma edição brasileira
de 1984 em
que encontrei pequenas
anotações em alemão a lápis
nos cantos de algumas
páginas numa caligrafia
que julguei feminina
delicada algumas apenas
traduções
para o alemão de palavras
que ela não entendia
como no alto
à página 34
em que ela não
conhecia a palavra “vergada”
e anotou sua tradução
para sua língua alguns pontos
de interrogação períodos
inteiros e vários “é isto!”
e “é
isto!” ou “ela
entendeu!”
74 75
todas em alemão E de súbito a morte
estou traduzindo era a cessação apenas... Não!
muitos pontos de exclamação gritou-se assustada, não
um “compreensível” a morte.”
é estranho
que as anotações cessam
de repente e só
voltam na página
168 um “ódio” anotado
na página 201 às margens do
trecho “É verdade
que o silêncio entre eles
fora assim mais perfeito”
quando na página
202 as anotações explodem
em pontos
de exclamação interrogação
números 1-2-3 que não
compreendo
escrita ilegível
nervosa a última à página
203 diz “História da
Humanidade” precedida
pelos números 1-1-2-3-4-1
quando na página
seguinte já sem
anotações da
estranha Clarice Lispector
escreveu “... desde
que ela era mulher... A morte...

76 77
na contingência de suas mãos que escreveu “esta mão
que beijei alumia-se
às bocas” e murmurar
a quem mais
para mim mesmo na
importaria que as mãos
escuridão da gengiva
de Philipp Naujoks
a semelhança de unhas
pareçam-se
dedos carpos oito
com as de Paul Celan
ossos
em uma foto aos 18 anos
dispostos
senão a mim que as
em duas fileiras
amo feitas em sua forma
e fechar os olhos e cerrar
corporal de coisas
os dentes e pensar quando
naturais busco dar-lhes
novamente se contingências
um significado para
excedem sua escala de
que passem a existir
permanência e atrevem-se
e digo: “eu
a querer mais como todos
vejo nelas o partir
nós dizemos mais cedo
do pão de minhas
ou mais tarde não
expectativas” e quando
queria que acabasse
elas em acidentes
mas o tempo
deliberados tocam-me
todo a água entornando
sei do sangue correndo
de um copo para
para irrigar obediente
o rio e o braço
minha pele
levando o copo de
sob o jugo destas
volta à água provam que
mesmas
continente e conteúdo
mãos
em certos momentos
cujas feições e textura
confundem-se
reconheço entre as
(o prazer descarta-os)
centenas já vividas
para nossa vitória
a ponto de revê-las
nas mãos deste
morto
78 79
(sem título) e Tsvetáieva citada e traduzida
por Hejinian citada e traduzida
por Domeneck diz que a oferta
onde está o quieto
excede tragicamente a procura
no seu canto se
não importa em
(ou este último mente)
que margem do
Atlântico sempre
todos entregues a
imóvel ao telefone
instituir este regime
do poupar-se mas a
e o passo no vazio é sempre
que custo?
o penúltimo,
instauração
pés machucados
de armazéns para o
de parúsia, tanta compaixão
por perversidades em especial
fogo e uma árvore
as minhas,
brota e cresce anos antes
não há taças inquebráveis, a não
para fazer-se disponível
ser na língua,
ao raio que a parta
diz-se: como
ao meio ou num único
se relações
galho, o arco descrito
fossem higiênicas
pela madeira em queda
e a lógica sempre entre
dois ouvidos, língua
e eu apenas o
sempre entre martelos
condutor mais eficiente
e dentes alheios, ele
riu que
entre céu e solo
wollt ihr
den totalen Dorn?

deleite em desordem

80 81
(sem título) (sem título)

“Then practice losing further, losing faster” quando finjo que me afogo
elizabeth bishop na banheira
ou a um metro
acordar manco, da praia
a cabeça frequente
inclinada, o peito louça e areia
no queixo, o telefone seguras sob os ísquios
temporariamente
fora de serviço, os pulmões dizem mais
você não precisa de
um guarda-chuva não um pouco
só de um cigarro aceso,
cabisbaixa caça basta e os dedos de mãos
recitar “One Art” três e pés enrugam-se
vezes pela manhã alívio
imediato, corpulência num preparo à dissolução
sobre os vincos do lençol
cresce o lago na montanha última
com a chuva para fora
de si obstrução ao fluir água: solvente universal
uma poça meus queridos
uma poça, a luz coberto de escamas
da manhã pela janela
o galo reconfortante e os pulmões dizem
mas a coberta sobre mais um pouco
a cabeça conserta
tais impertinências e a cabeça
emerge
como uma ilha
ou aquela
82 83
primeira célula (sem título)
eu finjo tão bem
que meus lábios rachem com
que a técnica
o frio e a pronúncia,
tomou o lugar
não são
da prática
higiênicos
estes sentimentos coexistindo
enxugue enxugue as mãos
à espera
os pés os cabelos de todo
de um extremo pelo outro,
desejo alinhe-se ao chão
tristeza e tal, alegria e afins
entre cão e gato e repita
alternando-se
senhor quem me dera
na expectativa
ser coberto de pelos
da substituição,
meus pés empedram, cansam-se
da consciência
dos caminhos abandonados e
de cada passo não
viabilizado,
cada soleira, trinco e porta
solitários, a saliva
quente aguardando
um deserto
e o deserto
tem nome, eu não
sou o que está sob a
areia, quente, expectativa
dos resultados do
teste da beleza
na espera da alegria
pela tristeza na espera
da tristeza pela alegria,
assim:
84 85
às portas de um deserto, (sem título)
a boca úmida
de um homem;
Erguer-se, esforço
a saliva quente
conjunto, único
perante um deserto
O arco
por atravessar, supurar
distendido entre pés
para suprir, prostrar
e crânio estabelece
para prover, esperando
a medida
a ameaça de não
na construção
sobreviver
O impulso de uma árvore
a dois dias
para o alto e para baixo
de deserto, com que disposições
se o sangue for o
e medidas,
parâmetro de toda pressa
as madeixas
Ao ser requisitada uma analogia
por guarda-sol, os quirodáctilos
entre uma torre e um
por dromedários, derme:
cavalo, respondi: “patas
cerne da ração, caravana
fincadas no chão para
dos meus pelos pela areia,
lançar a cabeça acima”
préstito de minhas glândulas
e sorri
pelo cenário glabro do deserto,
satisfeito
com que suprimentos:
Eu sei
a saliva, quente, esperando
Eu digo “sei”
até dizer “chega”
Que bom saber que posso
contar com você. Estou
escutando “How Soon
Is Now” neste exato
momento e lembrei
-me de você. Volto logo
o mais breve possível
Difícil manter-me
ao seu lado sem
86 87
a sua escolha (sem título)
O resultado dos dados
já está contido
há coisas incertas o bastante
no movimento dos punhos
na esfera da minha atenção
ao susto do vento
Precipita a mudança requisições empilham-se diante
algo não equacionável da porta
Sempre de relance mas é difícil tornar-se o
tenho a impressão que se é, requer
de ver em cada esquina escolhas e
um rosto expectante sorte
em pé
O pulso meu incentivo à falta em meio à perda
de repouso sempre ouvem-se os
gemidos siameses
da areia adorante
sob os cascos
dos cavalos

não é suficiente o tempo de espera

não é fácil bastar-se

o mundo não espera o parecer


da minha vontade
para precipitar os
acontecimentos

veja bem: quanto da experiência


e da dor mudam se eu exponho
o mesmo
(o mesmo sempre uma tentativa,
como a quase equivalência)
88 89
em três outras línguas: minha atenção é divertida
the adoring sand e os limites do meu júbilo
under the hooves of horses são os limites da minha privação
le sable
adorateur sous
entre o término e
les sabots des chevaux
a descoberta de que
der anbetende
algo jamais começou dá-se
Sand unter den Hufen
não o fim
des Pferdes
do mundo,
mas apenas o fim
quanto do martírio
de um mundo, o fim
denota prazer e desejo
de apenas um mundo, ora o fim
ao mesmo tempo
de aniquilação de um mundo apenas

“você finge que não sabe de nada sim


mas na verdade está
sempre dez passos na frente talvez seja natural
de todo mundo” a transição de alguém à “figuração
eletrônica das coisas” após
você quer dizer perder-se diante da máquina
como a linguagem?
na luz
isso não me impediu intuir
a perda do predileto pelo ranger das roldanas
o intuito
& que direito da máquina
eu tenho
de contaminar a esfera e acalmar-se ao fim de tudo
pública
com as intervenções ao fim e enfim
da minha confusão
privada?

90 91
seis canções óbvias 2.
a Carol Hungria
1.
a Timothy Ryan Mendenhall Entra-se com violência onde
o prazer arrasta-se
Sair da cama, disse, pelas paredes e
foi simplesmente diz-se “aqui”
uma ideia incrível À pretensão de acreditar que
e deliberada desconhecia a própria
De invernos frutíferos capacidade para a
construíram-se devastação ela
muitos infernos chorou pensando
na primavera em aviões e
A cama é um inferno pessoal prédios
e intransferível A inocência não se perde mas
E a pele vestida à noite se ajusta
desprega-se para acompanhar Horror horror é irrepetível
outra calçada pela manhã Paraísos são destinos
A transferência de corpo pratico-a populares para férias
com diligência E uma grávida gargalhando
É tudo tão simples, dizem enche-nos de sensações
Hilda Hilst havia medo da morte misturadas e transferíveis
e morreu Enrodilhados com os joelhos no
assim como o masp queixo esperamos pela
é ao mesmo tempo saída
museu e mirante
Ergue-se o deliberado sobre
simples patas

92 93
3. 4.
a Dimitri Rebello a Fritz Streiff

As paredes do quarto não resistem O presente o passado mais recente


à adstringência Correr em público é deselegante por
A cama recebe e despacha expor o repúdio
desejos de ejeção público à consciência
e a ânsia na dos limites?
garganta típica da Ofegante, ele escondeu o suor
manhã não impede O presente é possível, mas cansa
a ereção e resseca
Febre aloja-se na boca Há um limite para a elasticidade
Mas a cama nem sempre da memória
serve de grade Fogos periódicos asseguram
para o corpo a sobrevivência se
como a rua não deste arbusto,
apressa-se para da mata como
sustentar-me os pés um todo
A temperatura queima os cabelos
O medo de uma porta aberta mesmo
atinge o diafragma
na menor e mais quieta
e arma a paliçada
cidade
contra a crista-ilíaca
Tiro e pássaro são possíveis como
Toda transação entre amantes
qualquer dádiva
é bulímica
A sensação de queda É papel das dádivas e do acaso
à cama é contato encurtarem o presente
provisório com minha O espaço virtual não é infinito
atual situação ou Nem meu cansaço
com minha condição
perene?
Uma cama ou mesa no espaço
é um local para
discussão

94 95
5. 6.
a Tobias Bittmann a Julian Wuermser

Reabasteço meu corpo de chá e As relações de uma ilha


de orgasmos e escolho com um cataclismo
não pensar nele são claras
Basta formular o problema central, As águas cercam e a areia
ou seja, o problema adstringe
Não se pode estar presente a toda Mas o excesso gera a possibilidade
fruta em amadurecimento de cobrir mais campo
e queda e percorrer maiores
O chão não é distante espaços
Quando se morre se morre Vide o maremoto
e a manhã seguinte não Cubro meu corpo de água
traz notícias do duas vezes ao dia
engano Você está respirando?
Estamos ausentes a nosso nascimento Algo deve estar doendo
e morte Os pulmões têm uma caixa
E estou pensando nele para restringi-los
Isso faz dele alguém presente e isso torna o ar
A perda ocorre aos que possuíam palpável e concreto
e não mais e aos que A dor nega abstrações
estavam ausentes como, por exemplo,
A ausência é estatisticamente maior meu baço
que a presença e pâncreas
Se houve um dilúvio, as
formas sobreviveram
a ele e um monte
roçou o umbigo
da arca
Roce o meu mais uma vez
É costume no interior que as

96 97
mães enterrem o lembrete
cordão umbilical
que se desprende
Cruz e Sousa
A dor é um excesso, e existe
em vagões de
em anexo sem transporte
pudores de gado.
O acaso atesta o deliberado
E perdemos dias preciosos Paul Celan
nas águas
do Sena.

Frank O’Hara
estirado n’areia.

Christine Lavant
crivada de camas
e escamas.

Alejandra Pizarnik,
intolerância
a secobarbital.

Carlos Drummond de Andrade,


doze dias após a filha.

Pier Paolo
a pau e pedra.

João Cabral de Melo Neto


cego.

Orides Fontela
à beira da indigência.

98 99
nota do autor

Carta aos anfíbios foi publicado originalmente em


2005, pela editora carioca Bem-Te-Vi, meu livro de
estreia. Nesta reedição, corrigi e revisei alguns dos
poemas, incluindo ainda, ao volume, o inédito “Arti-
culações”, que ficara esquecido em um manuscrito à
época em que preparava o livro. Meu agradecimento
e respeito à poeta e crítica de arte Lélia Coelho Frota
(in memoriam), minha primeira editora, pela genero-
sidade com que sempre tratou meu trabalho. Agrade-
ço ainda a Marília Garcia pela bela diagramação nova
do volume, e a Heinz Peter Knes pela linda foto de
capa. Que sejamos leves sobre a terra e, mais tarde,
leve a terra sobre nós.

Ricardo Domeneck, 21 de junho de 2012.


sobre o autor
Ricardo Domeneck nasceu em Bebedouro, município
do estado de São Paulo, em 1977. Lançou os livros Carta
aos anfíbios (Bem-Te-Vi, 2005), a cadela sem Logos (Co-
sac Naify/7Letras, 2007), Sons: Arranjo: Garganta (Cosac
Naify/7Letras, 2009), Cigarros na cama (Berinjela/Modo de
Usar & Co., 2011) e Ciclo do amante substituível (7Letras,
2012). É coeditor das revistas Modo de Usar & Co. e Hilda.
Colaborou com revistas literárias brasileiras e estrangeiras,
como Cacto (SP), Inimigo Rumor (RJ), Entretanto (Recife),
Quimera (Espanha), Green Integer Review (Estados Uni-
dos), Belletristik (Alemanha), entre outras, e seus poemas
foram traduzidos para o alemão, inglês, castelhano, catalão,
francês, holandês, esloveno, sueco e árabe. Apresentou lei-
turas e performances em Buenos Aires, Cidade do México,
Bruxelas, Barcelona, Liubliana e Dubai. Trabalha com vídeo
e a fronteira textual entre o oral e o escrito, apresentando
este trabalho em espaços como o Museu de Arte Moderna
(Rio de Janeiro), Museo Reina Sofía (Madri), Espai d’Art
Contemporani (Castelló-Valéncia), deSingel International
Arts Campus (Antuérpia) e Akademie der Künste (Berlim).
Traduziu para o português poemas de Hans Arp, Friederi-
ke Mayröcker, Frank O’Hara, Jack Spicer, Harryette Mullen,
Rosmarie Waldrop e Ezequiel Zaidenwerg. Vive e trabalha
desde 2002 em Berlim, na Alemanha, onde uma antologia
de seus poemas está no prelo, traduzidos para o alemão por
Odile Kennel, a sair no segundo semestre de 2012 pela edi-
tora Verlagshaus J. Frank | Berlin.

103
bibliografia | (exibido no SESC Pompeia e Rede de transporte público
de São Paulo, em 2008)
Poesia § Portraits/Retratos, 16:38 min, loop, dv pal, Berlim, 2007.
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§ a cadela sem Logos. SP/RJ: Cosac Naify/7 Letras, 2007. de 2007)
§ Sons: Arranjo: Garganta. SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009. § Hap, 1:13, dv pal, Berlim, 2008.
§ Cigarros na cama. Rio de Janeiro: Berinjela, 2011. § Date of manufacture (com Uli Buder e Julian Greif), 1:00,
§ Ciclo do amante substituível. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. dv pal, Berlim, 2009.
§ The Gräfenberg Spot of Language Art, 0:37 min, Berlim, 2010.
Editoria § Eustachian Tube in Staccato (com Joseph Ashworth), 4:53
min, dv pal, Berlim, 2010.
§ Modo de Usar & Co. 1. Rio de Janeiro: Berinjela, 2007. § The poor poet (after Carl Spitzweg), 3:03 min, dv pal,
§ Modo de Usar & Co. 2. Rio de Janeiro: Berinjela, 2009. Berlim, 2010.
§ Modo de Usar & Co. 3. Rio de Janeiro: Berinjela, 2011.
Antologias
Crítica
Argentina
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CosacNaify/7Letras, 2006 Nápoli. Buenos Aires: Black & Vermelho, 2006.
§ “Tradução, contexto e migrações possíveis”. In Germina –
Revista de Literatura n. 21, novembro de 2006. Alemanha
§ “Tropical Punk or Banana Dada”. In Tropical Punk Fanzi- § Überland und Leuchtende Städte – 12 Dichterinnen und Di-
ne, ed. Bruno Verner e Eliete Mejorado. Londres: Whitecha- chter aus Lateinamerika. Tradução de Odile Kennel. Berlim:
pel Gallery, julho de 2007. SuKulTur, 2006.
§ De figurinos possíveis em um cenário em construção. RJ: § Versschmuggel / Contrabando de versos. Tradução de Sabine
Berinjela/Modo de Usar & Co., 2007 Scho. Heidelberg: Wunderhorn, 2009.
Videografia
Bélgica
§ Garganta com texto, 3:20 min, dv pal, Berlim, 2006. § La poésie brésilienne aujourd’hui. Organização de Flora
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§ epic glottis, 4:16 min, dv pal, Berlim, 2006. 2011.
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chkeit”. Lateinamerika Nachrichten n. 390, Berlim, dezembro Ação e cicatriz 42
de 2006. Falta; desejo 44
Estudo figurativo 46
Em comum 48
Ressaca 50
Barro: o abraço / primordial já /
previa o anfíbio 53

2.
Breviário de secreções 61
O pão partido 64
Como um caule / exausto /
sob copa teme- / rosa 66
Refrigerador 68
Separatismo 71

108
Ao ver Adriano Costa atravessar a Augusta 73
Conversa com duas estranhas 75
Na contingência de suas mãos 78
(Sem título) 80
(Sem título) 82
(Sem título) 83
(Sem título) 85
(Sem título) 87
(Sem título) 89
Seis canções óbvias 92
Lembrete 99

Nota do autor 101


Bibliografia 104

carta aos anfíbios


foi diagramado em fonte minion em
julho de 2012 para a modo de usar & co.

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