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coleção
KRAFT

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KRAFT. Sf, Kräfte 1 força, vigor, energia. 2 potência. aus
eigener Kraft pelo próprio esforço. außer Kraft sein estar
revogado, sem efeito. in Kraft sein estar em vigor.

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Paulo
Braz

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Paulo
Braz

Rio de Janeiro
2016

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Uma Vida Exaltada
por Luis Maffei
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Vinagre Imparcial - 23
Questões Existenciais - 27
Coisas Mundanas - 29
Quando Acordei de Manhã - 31
Rua dos Andrajos - 36
O Sol é o Sol - 38
Eu Danço com os Hamsters na Floresta- 43
Poema Redundante - 49
Amor Profunda - 52
Ejaculando - 54

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Uma Vida Exaltada
por Luiz Maffei

Se há um deus que rege os poemas de Pau-


lo Braz, é Eros. Se há poetas, Camões, Herberto
Helder (este nomeado), António Franco Alexan-
dre, portugueses que não impedem um humor à
brasileira que se insere com hábil discrição. Há,
nomeado, também um Manoel de Barros, que re-
side, não obstante, numa prateleira de mais tan-
gência que interferência. Preciso, agora, dizer que
este texto será curto, pois os poemas têm pressa
e não são muitos, o que demanda brevidade de
qualquer preâmbulo. E, como estes poemas são
muito, mais uma razão para o texto ser modesto
e não citar qualquer verso, a fim de que se incite
o adiamento, mais ou menos como quando segu-
ramos o rosto da amada (ou vice-versa) para adiar
o beijo (ou adiamos somos) que já virá.

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O AFA de Paulo está nos decassílabos camo-
nianos; Camões, no erro e na morte; Herberto,
na metamorfose terrena, telúrica. Acima de tudo,
uma grande vontade de alegria nos versos que
aqui irrompem. Irrupção suave — assalto com
fitinha —, erótica num sentido que posso intuir
com o sintagma metafísica do corpo: não uma
vontade de abolimento dos limites (especulados,
especulativos) corpóreos, com sua pele e as peles
que sobre a pele pousam — as palavras, inclusi-
ve, as palavras, em primeiro lugar, pois este Eros
gosta (de) beijos com língua —, mas uma trans-
cendência transitiva. Ou seja, uma vontade de su-
perar limites no jogo de os mover, transcendendo
-os com a despercebida ousadia das crianças ou o
cansaço sage de alguns velhos.
Essa potência é um movimento que posso
chamar de radical, pois procura uma radix, fun-
damento, base, lugar onde faz sentido estar e a
partir de onde faz sentido errar. É mais tópica que
utópica esta erótica de Paulo, que, quando for-
ja a utopia, forja-a enquanto procura localizá-la.

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Onde? No corpo, é claro, que, desconhecendo a
impossibilidade de uma metafísica só sua, investe
nela com serena ignorância, atravessando muros
com terna violência, doçura impiedosa. Mas, sim,
doce, aberta à alegria e a um sorriso que nada tem
de clemente, muito tem de solidário.
Se há um arcano que rege os poemas de
Paulo Braz, é o Eremita. O velho, errante,
procura, e procura conhecer-se, mas só procura
enquanto caminha, sem pressa, sem paralisia.
Estas construções poemáticas de uma metafísica
do corpo transcendem também o contrário da
irrupção, do assalto, ainda que não transcendam
a variedade de direção e algumas palavras um
pouco perigosas — coração, destino, dor, amor,
desejo. Paulo as aprendeu, entre outros, com
aqueles poetas que citei, mas, como conheço as
leituras do autor, companheiro meu de aventuras
com poetas, citar aqueles nomes é quase estragar
a brincadeira.
Então, direi outra coisa: Paulo aprendeu um
monte de palavras perigosas e as acolhe em seus

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versos pois, tal eremita aparentemente solitário
mas amigo servil de Eros (se tão contrário a si...)
e de uma parca candeia (GPS rudimentar para
erótica de busca), está em constante estado de
preparação para o encontro e exercitou um duro
desaprendimento. As rugas do velho é a veloz im-
puberdade do menino que já se deixa ver qual na
inteira idade, quando subido irá não sei aonde —
a preparação para o encontro não pode ser pre-
paração para a morte? O homem vira especial se-
mideia, criança-estrela, no delírio de 2001- uma
odisseia no espaço, poema-sinfonia em forma de
romance que Arhur C. Clarke permitiu que não
fosse apenas uma obra-prima cinematográfica
kubrickiana. Num espaço-tempo assim subversi-
vo, distante como Saturno, o homem, solitário, é
posto de volta ao mundo, qualquer mundo (este
mundo), violentado e sábio.
Assim (mas não só) se podem ler estes poemas.

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Assalto à mão amada

Rendo-te às voltas de um laço


e o fulgor de teus dedos dobra-me
como um abraço apartado

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a Liz

Pousaste sobre a manta o dia com o corpo ao redor


do enigma ou seriam teus olhos
dispondo as cores da paisagem através
Nada, contudo, me privou do discreto prazer
de mirar a distribuição de teus afetos
pela ordem dos objetos
o livro as lentes o litoral
e a tua inapelável demanda pela leveza
de uma presença líquida
Versaste ainda sobre a natureza dos movimentos
ferozes que te habitam as vísceras
junto à delicada inclinação do gesto
de resto uma memória
talvez da pele
contra a lágrima cenográfica que imprimiste
ao instante da tua face estendida ao ar marinho
de outras

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recordações
O sinal sob a boca lia-me
às tuas zonas mais obscuras
às múltiplas possibilidades do beijo
desencontrado
e que em outras vidas (suponho)
porventura infinitas seria
o vértice ardente de desagregação das substâncias ou
somente palavras ditas a postergar o fim

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É belo ver como te despes para o olhar
o poderes estar nua ainda
que vestida ou não
Cada palavra tua aproxima e
destrói o que dentro do desejo
é quimera para versos insuportáveis
quando ouço do suspiro úmido as velozes
circunvoluções da voz ainda informe
É através do teu corpo que te erro e suspendo
e consagro a turvação
de luzes sobre o ventre até a nuca
até o íntimo da respiração pausada
Submersa em lençóis é como te vejo agora -
nômade de espasmos entre
a morte e o que vem
E és um corpo fotografado contra a memória
súbito revelado no que dizes e retenho
nos sulcos ásperos da pele
para a exaltação da vida

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Mas da minha cabeça uma flor brota
delicada
súbita sobre a terra ávida
de espanto
e pólen

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À maneira de Herberto Helder

Persevera na tua língua uma criança madura


fruto doce entre os dentes
e a criação vem depois na dura prática
do tormento e ternura de não haver dias
Uma criança nasce violentamente
dos teus dedos
quando a fala é a condição última
e o medo te arrebata o sangue na superfície
Concentras toda tua atenção no centro
do som e ouve
já nada aqui te diz ou espera
são bocados
restituídos à esfera do tempo como
uma colher na boca de Herberto Helder

Mas haveremos de dar as mãos


Tu me conduzirias e

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lentamente
serias eu um homem tu uma mulher
com o mundo inteiro a atravessar-te
o corpo e ver nascer incessantemente
o espírito extremo do amor e da beleza como um sopro
no coração

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Na morte de Manoel de Barros

A morte soube hoje com o poeta


Manoel de Barros quando em seu leito vazio ex-
perimentou
as últimas consequências da vida
no seio do mundo
Veio entretanto tarde para versos
vastos com veios cheios de sangue
para a manhã
quando do sonho renascia todo o tempo
para uma existência sem pecado
Nesse dia a menos com a pedra
contra o peito
trazia flores novas a morte
e o poeta as recebia no regaço junto a palavras
tristes
como campos devastados pelo sono

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Junto ao chão que o corpo de um homem encerra
hoje planta alturas inventadas
com que renasça a terra

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a Érika

E as fontes de luz e calor


como ondas ao sabor do sal
que em milhões de partículas cristalinas reproduz
o sol seriam apenas o verão ou
o engano de uma vontade pretérita
O dia arrefece aquando
das revoluções,
dos movimentos descendentes dos astros
a lembrar um tempo cujo declínio
dos grãos pudesse nos ensinar
a virtude do adeus – não
mais
A miúde contamos os pontos
cardeais, pequenas esferas luminescentes
acordos para trás deixados ou perdido
um perfume a desdobrar a memória
de antepassados

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como se correntes de sangue inclinassem
colunas, o dorso dos animais peregrinos em oração
até romperem as cores, ao mais profundo das
[imagens
em rotundos horizontes
contra os limites da paisagem para o coração

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a Naiana

Interrompo-te a meio da leitura


[e] ao meio da vida, o que sabemos
quando da morte chegam lentamente
indícios de que o tempo nos é pouco?
Havíamos contudo com os astros
mas contra o destino; e a vontade
dentro era despertar ao desatino,
ao temor de terríveis decassílabos
Quem, a distância, lesse-nos os gestos,
nos adivinharia a dor, o gosto
estranho por imagens nebulosas,
constelações, sistemas com a língua
contorcida em sentidos para o verso
Ou o excesso do amor, d’alta ternura

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a Bethina

para a morte de um gato


ou do quanto ao redor nos finda se
porventura partem os nomes ou deles se afastam
a matéria
o ruído o rumor de
movimentos negros pelos
tecidos que amarrariam tuas garras
ao em torno da carícia e da cisão
ambíguas cicatrizes que depois serás tu a
[contemplar sobre as ruínas
a esquecer a obra a cultura o tempo o homem
tão alheios
ao indiferente entendimento do fim
presente
e se talvez pressentes à aguda audição felina
esta voz calarás o importuno detentor
do vocábulo

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e explorarás outra vez as sendas deste
ou de outros mundos

enigmática visão
através dos teus olhos trarás o silêncio
e dentro o segredo
ou mistério
de que nem sequer dás parte
quando me ensinas o laborioso exercício da morte

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ao Kigenes

Que só há um modo de estar


no mundo:
dentro, atravessando-lhe as formas mais íntimas
especulando
o avesso das matérias sensíveis
Regressa ao útero que te expele
com violência e sabedoria

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coleção
KRAFT
Novíssimos poetas em sua primeira
recolha impressa.

1 - Fernanda Morse
2 - João Gabriel Ascenso
3 - Liv Lagerblad
4 - Heyk Pimenta
5 - Sarah Valle
6 - Mariana Campos
7 - Rita Barros
8 - Rafael Zacca
9 - Paulo Braz
10 - Rafael Sperling

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Cozinha Experimental
editoracozinhaexperimental.blogspot.com.br

editores responsáveis:
Manolo Santacruz e Barateza Duran

coleção
KRAFT
conselho editorial:
Marcelo Reis de Mello, Diana Klinger,
Aline Rocha e Germano Weiss

padrão das guardas:


Ana Rocha

diagramação:
Barateza Duran

revisão:
Marcelo Reis de Mello

contato
brazpr@hotmail.com

B827p

Braz, Paulo
Paulo Braz: poemas / Paulo Braz. – Rio de Janeiro:
Cozinha Experimental, 2016.
36 p. ; 18 cm. – (Kraft; v.9)

ISBN 978-85-919089-3-6

1. Poesia brasileira. 2. Poesia: século 21. I. Título. II. Série

CDD: 869.1

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Impresso e encadernado na Oficina do
Prelo para Editora Cozinha Experi-
mental no inverno de 2016.
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