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MADE ÍN Af~íCA

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

MADE ÍN Af~íCA
(Pesquisas e notas)

"Unser Afrika ... nossa África ."


L EO fROBENI U
© Anna Maria Cascudo Barreto e
Fernando Luís da Câmara Cascudo, 1999
2• Edição, Global Editora, 2002
2• Reimpressão, 2018

Jefferson L . Alves - diretor editorial


Flávio Samuel - gerente de produção SOB~E A ~EEDÍÇÂO DE MADE ÍN Áf~íCA
Dulce S. Seabra - gerente editorial
Oaliana Cascudo Robertl Leite -
• • • • • • •• •• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
estabelecimento do texto e revisão final
Letras e Ideias Assessoria em Textos,
Maria Aparecida Salmeron e Tatlana Tanaka - revisão
Marcelo Azevedo - capa
Gisleine de carvalho Samuel - editoração eletrônica

Obra atualizada conforme o


NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA
A reedição da obra de Câmara Cascudo tem sido um privilégio e
um grande desafio para a equipe da Global Editora. A começar pelo
nome do autor. Com a anuência ela família, fo ram acrescidos os acen-
tos em Luís e em Câmara, por razões ele normatização bibliográfica.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINOICATO NACIONAL OOS EDITORES DE UVROS, RJ
Foi feita também a atua lização ortográfica, conforme o ovo Acordo
Ortográfi co da Língua Po1tuguesa; no e ntanto, existem muitos termos
Cascudo, Luis da Câmara, 1898- 1986.
Made in Africa : (pesquisas e notas) I Luis da Câmara
Cascudo. - s. ed. - São Paulo : Global, 2001.
utilizados no nosso idioma que ainda não foram corroborados pelos
JSSN 85·260·0687·8
grandes d icionários d e língua portuguesa nem pelo Volp (Vocabulário
1. África - Civilizaçao - Influências bras il eiras O rtográfico ela Língua Portuguesa)- nestes casos, mantivemos a grafia
2 . Angola - Usos e costumes 3. Brasil - Civilização - Influências
afncanas 4 . Folclore negro S. Moçambique - Usos e costumes 6.
Negros - Brasil I. Tít ulo.
utilizada por Câma ra Cascudo.
00·5426 CD D-981 O autor usava forma peculiar de registrar fontes. Como não seria
Índice para catálogo sistemático :
adequado utilizar critérios mais recentes ele referenciação, optamos
1. Brasil : Influências africanas : Clvl11zaç3o 981 por respeitar a forma ela última edição e m viela elo autor. Nas notas
foram corrigidos apenas erros ele digitação, já que n ão existem ori-
ginais ela obra.
Mas, acima ele deta lhes de edição, nossa alegria é compartilhar
essas "co nversas" cheias ele erudição e sabor.
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N• de Catálogo: 2139

J
SuNA~ío
•••••• •

O mais popular africanismo no Brasil ................ .. .... .............. ... .. .. .. .. ... ..... 11
Sereias de Angola ....................... ........................ ... .................. .... .. ............. . 18
O reino do Congo na terra do Brasil ........................................................ 25
A rainha J inga no Brasil. .... .. ......................... .. ..... .. .... ................................. 33
O papagaio-cinzento de Cabinda .............................................................. 41
Do Negro e do Preto .. .. .............. .. ..... .. ......... .............................................. 45
O luminoso companheiro .............. .......................................... .. ...... .......... 54
Lundu ........................... ... .................................................................... ......... 57
Guerras elo Ananás e elo Abacaxi ........................ ...................................... 61
Cafuné ....... .. ................. ..................................... ......... .... .............................. 67
Maxila, Tipoia e Rede ............................. .................................................... 73
Nilotenstellung e a posição elo socó ..... ............................ .......... .. .... .... .. .... 80
A saudação africana .......................... ............. ............................................. 86
Luanda! Luanda! .............. ............ .... .. ... .. ... ............ .. .................................... 93
Quem perde o corpo é a língua ................................................................ 99
Farofa, Farófia ....... .... .. ... .. ... ......... ....... .. .... .. ............................................... 101
Démeter bebeu gongoenhar... .... ... ............................................. .............. 104
Ausê ncia do Diabo africano ..................................................... ................ 106
Notícia do Zumbi ......................................................... ................. ....... .. .... 113
Recado ao m orto ...... .. .... ....................................... ...... .. ... ........ ...... ... .... .... 119
Cabinda Velha ....... ................................ .......... .......................... ... .............. 122
Uinbigada ........................................................... ................ ...................... .. 130
A pata do coelho ...................... ....... ...... ... ............ ..................................... 142
A cor branca ........................... .. .......... ............ .. .... ... .. .... ..... ......... .............. 146
Piranji expo1ta jimbo ............ ....................... ... ........................................... 149
Do anelar rebolado ..... ..... ................... .... .... ..... .................................. ........ 154
Interlúdio nominativo .... ..... ... .. ... ... ... ... .. ....... .................................... ...... .. 160
Maka ma Ngola ................ .. ......................................................... ... ........... 165
I - Santo preto ........................................................... ............ .............. 165
li - Representação elo "bra nco" ............................ ...... .. ...... .... .. ........ . 166
III - Pirão e fúnji ....................................... .. ..... ................................... 167
IV- Rosa Aluanda qui renda, te nda ................................................. 169
V - A importância da desatenção ............................................... ....... 171
VI - Beber fumo ........................................................ .......................... 171
VII - Um testo de panela fiote ............... .... .................... .................... 174
VIII - A milo nga no Brasil... .............. ..... ........... ..... ........ ......... ........... 176
IX- Publius Syrus e m Fo rtaleza e Luanda ...... .................................. 177
X- O nome bonito ...... ..................... ....................... ........................... 178
"Com o todas as causas têm fim ,
convém que lenham princípio. "

Ade ndo Gabriel Soares de Sousa (1584)

O cafuné em Ango la - ÓSCAR RIBAS.. ................................................... 182

~e úno aqui observações africanas com reminiscências de livros . Tudo


quanto vi na Africa Oriental e Ocidental testei com as velhas leituras silen-
ciosas em quarenta anos de simpatia.
Pe rcorrendo a África não procurava endosso e aval às minhas conclu-
sões ante riores, mas informação que legitimasse, pela evidência imediata,
continuidade ou modificação às verdades iniciais. Assim, Made in Africa,
feito na África , constitui elaboração obstinada de material brasileiro e local ,
demo nstrando influê ncias recíprocas, prolongamentos, inte rde pe ndências,
contemporaneidade mo tivadora nos dois lados do Atlântico o u do Índico.
O meu longo e total contacto com o povo brasileiro, na investigação
de sua cultura , capacitava-me para ver e o uvir sudaneses e bantos na sua
pátria, como privara com seus descendentes na minha.
Seguia, de perto, o conselho de Roquette-Pinto: - Não discuto. Verifico.
Quando não compreendia bem um aspecto d o homem africano,
recordava Machado de Assis e perguntava a mim mesmo o que diriam de
nós os gaviões, se Bujfo n tivesse nascido gavião.
O assunto dessas indagações será um processo autenticado r de ele-
mentos africanos que permanecem no Brasil e motivos brasileiros que
vivem n'África, modificados, ampliados, assimilados mas ainda identificá-
veis e autênticos. ão é livro-de-livro nem caderno de viagem. Em todos
os temas há uma nota de pesquisa direta e pessoal, comprovadora da
exatidão analisada. Quase todos esses estudos fo ram iniciados nas cidades,
aldeias, acampamentos africanos, sob a po derosa sugestão temática ao
alcance dos o lhos.

9
O maior esforço fo i limitar a imaginação. Ne m d o instinto confide ncial
elas impressões itine rárias admiti a cola boração sedutora. Como Volney,
voltando do Egito , i/ me paraít important d 'économiser !e temps des lec-
teurs.
Viaje i com a missão restrita de estudar alime ntação popular na África OMAis fopuLA~ Af~icA NisMo NOB~Asil
• •• •• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • ••
do Atlântico e do Índico, preferencia lme nte nos povos bantos po rque os
sudaneses o rgulham-se ele predileções e ruditas, registrado ras, minuciosas,
indo até os c imos ela inte rpretação orie ntado ra. Fui um ho me m curioso
p e la no rmalidade africa na.
Gra ças à admiráve l colaboração e ncontrada, todos os me us p ro ble mas B anana é o mais popular elos vocábulos africanos no Brasil.
foram resolvidos no p lano da serena continuidade. Posso resumir a minha À po pula ridade verbal corresp o nde o consumo d iário. Banana é a
recordação g rata afirma ndo que jamais um único deveu a tantos. Não cito fruta preferida, indispe nsável para o paladar brasileiro, ina rredável sua
nomes pe lo pavor ela inconscie nte o missão irre p arável. presença cotid iana na alime ntação trivial. Fruta elos ricos e dos pobres,
Este livro tem uma unidade: Brasil n 'África e ÁJrica no Brasil. refeição, sobremesa, merenda, engana-fome. Tod os a conhecem . Sua
Como não há bufa rinheiro que não lo uve suas agu lhas, direi que ausência é inconcebível. Ku 'xi iâ kueniê mahonjo, na terra dele s n ão há
esses ass untos vividos no Brasil fo ram, pela prime ira vez, estudad os e ntre bananas?, perguntavam , surpresos, os pretos de Luanda , sabendo d o car-
os bantos com os olhos limpos da sedução dou trinária. Os mo tivos pes- dápio inglês. A frase seria tipicamente brasile ira, como os indígenas elo alto
quisados tinham a d upla nacio na lid ade sentime ntal. Rio egro perguntavam, em 1850, a Alfred Russell Wallace.
Vendo-os e m nossa terra, reconhecidos, id e ntificados nas raízes imó- Na linguagem vulgar te m significações incontáveis, ápodos, gestos,
veis, é possível o grito ga iato de Luanda:- Tala on n 'bunda/ O lha o negro! obscenidades. Representa o h o me m apático, moleirão, despersona lizado.
Um banana .
Cidade do Natal, Há , realmente , um Fo lclore da Banana.
julho de 1964. Possuímos duas, ele uso secular. A brasileira , nativa , panicipando do
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO p assacl io a meraba , e a o utra, trazida pelos p ortugueses, meados elo século
XVI. A p rime ira, Pacova. A segund a, Bana na .
Pacova, p acoba, pac-oba, a folha de enrolar ou que se enrola. ome
comum das Musáceas. Alteração para Pacó: Pará, Amazonas, segundo
Teodoro Sampaio.
]. M. Dalzie l ( The Useful Plants qf West T1'0picai .Aji-ica, Londres, 1937)
crê banana o riginar-se nos idio mas elo oeste a fricano; a bana, plural ele e
bana, do timé; bana, plural mbana, do sherbro. Timé fala-se no Estado
d e Samori, Costa elo Marfim , compreende ndo também man dingas e bam-
baras. Sherbro, c he rbro, diz-se na ilha do mesmo n ome, adjacente à Serra
Leoa. Ambas n a África O cide ntal. A bana na não é nativa do continente
negro e s im recebida da Índia através da África Oriental o u pelo Sudão,
descida do Egito e vinda pelos caminhos do iger e do Zaire para as
de mais regiões elo poente, do Camerum à União Africana . E passando ela
Contracosta ao Atlâ ntico, pelas Rodésias pa ra Angola, quando a G ui né a
teria pelas vias elas populações ao longo dos g randes rio elo oeste negro.

lO li
Na Índia começa a sua História real e as estó rias lendárias. avelaneira, trocando o V pelo B. Ficalho supõe seme ntes trazidas ela índia
Dizia m-na quelli, kela, kala, kayla, kaíl em canarim e outras línguas, e pla ntadas na ilha pelos po rtug ueses. Viessem da costa africana, Congo,
deriva das do sânscrito. Kela e m hind i, varaipparam em tamil. Falam, pala, Guiné, certa me nte tra riam o nome d e bananas, como a conheciam naq ue-
vala, e ntre os malaba res. Píçam, píssang, na Malaia. Musa, amusa, la região.
al-mauz, e ntre os á rabes, Síria , Egito, bacia do Mediterrâneo, e fo i esse o No quimbundo, e m Angola, banana é mahonjo. O no me nos veio da
no me que Linne u escolhe u para deno minar o gênero Musa, musáceas. Guiné. A presença de o utros idio mas africanos não predomino u pa ra a
Ga rcia da Orta (Colóquios dos simples e drogas da Índia , Goa , 1563, ado- po pula ridade cle nominaclo ra. Ficou sendo "Banana", essencialme nte no
tad a pelo conde de Ficalho, Lisboa, 1891) d escreve, "Coló quio XXII", os Brasil. Daqui é que o nome se espalhou e não da África elo século XVI.
Figos da Índia, no me d a banana entre os não nativos da região . Ainda e m Gabriel Soares de Sousa, chegando à Bahia em 1569, encontra bana-
1797 o governador Lacerd a e Alme ida depa rava na Za mbézia as bananas neiras idas da ilha ele São To mé competindo com as pacovas nativas: "As
a que chamamfigos. Garcia da O tta sabia da expansão desse f igo no utras bana neiras tê m árvores, folhas e criação como as pacobeiras, e não há nas
paragens ela Ásia, África e América do Sul, bem antes de 1563. Escrevia: árvores ele umas às o utras ne nhuma dife re nça, as quais foram ao Brasil ele
tambem ha estes f iguos em Guiné, cha mamlhe BANANAS. A Guiné de São To mé, aonde ao seu fruto chama m bananas e na Índia chama m a
Garcia da Orta valia dizer q uase toda a África Ocide ntal, simbo lizando o estes figos de horta, as quais são mais curtas q ue as pacobas, mas m ais
país d os negros, a te rra dos pre tos, e não fixando o que conhecemos p re- grossas e de três quinas; têm a casca da mesma cor e grossura ela d as
sentemente pela Guiné . Bem sey que f igos há na Nova Espanha e em o pacobas, e o mio lo mais mo le e cheira m melhor como são ele vez, as q uais
arregoa a casca como vão maclurecenclo e fazendo algumas fe ndas ao alto,
Peru, e nós temos no Brasil. E antes: tambem os há na costa do Ahexin e
o que fazem na árvore; e não são tão sadias como as pacobas. Os negros
no Cabo Verde. O capitão André Álvares d'Almacla, descrevendo a Guiné
d a Guiné são mais afe iço ad os a estas bananas que às pacobas, e d e las
elos últimos lustros elo século XVI, informava: Há bananas que é muito hoa
usam nas suas roças; e umas e o utras se querem plantadas em vales pe rto
fruta . O nome "banana" só aparece na África ele oeste.
d 'água , o u ao me nos e m te rra que seja muito úmida para se dare m bem e
Interessa-me o itine rário no rumo do Brasil e não a geografia expan-
ta mbém se d ão em te rras secas e d e a reia; que m corta r atravessadas as
sio nista ela musácea q ue é vasta e antiquíssima.
pacovas o u bananas, ver-lhes-á no meio uma feição ele c rucifixo, sobre o
Em 1563 essas musáceas e ra m conhecidas na Guiné com o no me de
q ue conte mplativos têm muito que dizer. "
bananas, de nominação que ficou restrita à o rla ocidental africa na. Na sua
Os escravos negros preferiam na turalmente as bana nas ele sua terra e
Relação do Reino do Congo e das tenus circunviz inhas (Lisboa, 1591) ,
não as pacovas, ácidas pelo ta nino. Pla ntavam regularme nte bananais.
Duarte Lopes, a notado pelo italia no Filippo Pigafetta (Relazione de/ reame Pero de Magalhães Gandavo, nessa épo ca, informava: "Tambem ha
di C'ongo, Ro ma, 1591), info rma: "o utros frutos há q ue se nomeiam huma fruita q ue lhe cha mão Bananas, e pela lingua elos índios Pacovas: ha
Bananas, os quais julgamos sere m as Musas d o Egito e de Síria. " O conde na terra muita abundancia dellas .. .
ele Ficalho acredita q ue a alusão às Musas seja ele Pigafetta mas a me nção E assadas maduras são muito sadias e mandão-se dar aos e nfe rmos.
elas bananas legitimame nte de Duarte Lopes. As no tícias do português ao Com esta fruita se mante m a maior parte dos escravos desta terra, porque
italiano ocorreram e ntre 1588-1589. O informador estivera no Congo dez assad as verdes passão por mantime ntos. " Refe ria-se às Pacovas q ue eram
a nos antes. comidas assadas o u cozinhadas, comume nte, e não cruas como as bananas
O grande e ntreposto e ntre Congo e Po rtugal era a ilha ele São Tomé, po ste riorme nte vindas. Aquelas, cozidas, podem "sup rir a falta do p ão",
ele o nde governo e socorro mu itos anos depende ra m. O ma rinheiro escrevia Lacerda e Alme ida e m 1788 no Mato Grosso.
Gonçalo Pires, que estivera em São Tomé, dezembro de 1506, descreveu O nome banana só pode ria ter ido d 'África Ocidental o nde assim a
a Valentim Ferna ndes uma árvore o riginal: E he assi amarella como codea denominavam. Noutras paragens os nomes e ram diversos e esses não a tin-
de melão e assi daquella .feyção de talhada de melão, e he tã doce como giram o Brasil. À ma rgem d ireita do rio Zaire (Congo), no antigo Congo
assucar e h a detro maciço e como co usa coalhada. Chamou-a Aualaneyras, Belga, está a vila BANANA, tão citada nos tra balhos de Hemy Stanley.

1.2 13

L
Banana fica a 60 quilô metros de Cabinda, e m Angola, o utrora o porto do de Aveiro, romeiro d a Terra Santa e m 1563, a testou concord ante me nte
Congo pott ug uês . (Itinerário de Terra Santa, Lisboa, 1593).
Fe rnão Cardim , vindo pa ra a Bahia e m maio de 1583, estuda a No Brasil há o registro de Gandavo, à volta d e 1570: "... a qual he que
Pacoba, denominação no idio ma da terra. Cita-a como "figue ira de Adão": q uando as cortão pelo meio com huma faca o u po r q ualq ue r parte que
"... Assadas são gostosas e sadias. He fruta ordina ria de que as hortas estão seja acha-se nellas hum signal à maneira de Crucifixo, e assi to talme nte o
cheias, e são tantas que he huma fartura , e d ão -se to do o ano" . pa recem." Gabriel Soares de Sousa escrevera, igualmente afirmante. Frei
Não a tino com o utro roteiro pa ra a viagem d a banana. Índia-África- Antô nio d o Rosário (Frutas do Brasil n uma nova e ascética monarquia,
-Brasil. Na Índia acreditavam q ue alimentasse o s letrados como nutrição Lisboa, 1702) não esquecera: "As frutas d os carpinteiros serão as bananas,
suficiente, e daí o Musa sapientum, que os franceses dizem banan ier des po r4ue cunadas com uma faca mostram no mio lo a efígie d e um crucifixo,
sages. É a q ue se divulgou pela Polinésia, Melanésia, tod a a poeira insular para le mb rança d a simpatia de Cristo com o le nho d a c ruz, no ofício de
dos mares d o sul, como base alime ntar. carpinteiro. "
A outra espécie, ambas com enxertias e variedades incontáveis, é a John Luccock, no Rio de Janeiro de 1808, ainda mencio na: "Não há
Musa p aradisíaca, Linne u, bananier du Paradis o u Figuier de Adam , por- bom católico, neste país, que corte uma banana transversalme nte, porque
que fo ra o verdade iro pomo visto por Eva, constituindo o motivo ten tado r, seu mio lo apresenta a figura de uma cruz" (Notas sobre o Rio de janeiro). A
ouvida a serpe nte. A le nda, de texto e rudito, comum na Europa, viajou gene ralização corria por conta da fatuidade britânica e luterana do tempo .
para o Brasil onde a d e paramos, vez po r outra, nos velhos carta pácios A convergência te mática da banana ao me mbro viril é outra presença
vene randos. várias vezes centenária e que o conde de Ficalho ano to u. Ve ndo-a, Eva
A pacova, pacoba, "ba nana-da-terra", na tiva do Brasil pa ra von seria seduzida pela seme lhança fálica: "quum.fructus rf!fert membrum viri-
Martius e Saint-Hilaire, é a Musa paradisíaca. A que recebe mos no século le, cujus adspectu Eva in f![frenam i/Iam cupiditatem instigata fuit "
XVI é a Musa sapientu m . Em volta d essa classificação há uma biblioteca (Rumphius).
concordante e discordante . Nesses assuntos, ni quilo ni p ongo rei. A imagem continua popular no Brasil.
Jo hann Gregor Alcle nburgk, na Bahia ele 1624, informava e distinguia: Há o gesto o bsceno ele dar bananas. É tradicio nal em Pottugal, Espanha,
"Um cacho ele bananas é carga basta nte pa ra uma pessoa; pa recem com Itália, França, com significação idê ntica, inte ncio nalme nte itifálica. Num qua-
pepinos, são de cor ama rela, doces e ele agrad ável sabor; as curtas e gros- dro ele Vie n, La Marchande d'Amours, um deles dá, galanteme nte, bananas.
sas são chamadas bananas, e as cu rvas, comp ridas e po ntudas, pacovas ." Bate-se com a mão no sangrad o u ro do outro braço, cu rva ndo e ele-
Zacha rias Wagener, vivendo no Recife, de 1634 a 1641, descreveu "bana- vando este, com a mão fechad a. O antebraço, oscila nte, figura o falos.
nas", dizendo-as "pacobas" (Zoobihlion, São Paulo, 1964). Noutra modalidad e , põem o antebraço na curva interna elo o utro. O
O conde de Ficalho, cita ndo Maçucli, o historiado r do século X , e nu- gesto nos veio ele Portugal onde o d e no minam manguito, dar manguitos,
me ra as trinta frutas q ue Ad ão levou d o Paraíso q uando o expulsaram: 10 ajJ1'esentar as armas de São Francisco. Na Itália é o far manichetto e na
com cascas, 10 com caroço e 10 sem cascas e sem caroços. Entre as dez Espa nha hacer u m corte de mangas (Herma nn Urte l, Beitrdge zur p ortu-
p rimeiras estava a banana, al-mauz, a musa, m usa, pa radisíaca, evide nte- giesischen Volkskunde, Hamb urgo, 1928). No Brasil é q ue to mo u o no me
mente, po is elo Éde n saíra. ele "bananas". Nenh uma o utra fruta pe rmitiria a inevitável associação
Dizia-se no Orie nte figo à banana porque a tradição fizera da bananeira mo rfológica .
árvo re fornecedora das folhas para o p rimeiro traje de Adão e Eva, no inicial Garcia ela Orta elogiava os figos "deitados e m vinho com canela per
assomo de pudor, provocado pela degustação da árvore do Bem e do Mal. cima ... frege os e m açucare até q ue estejam bem torrados, e com canela
Fruta do Paraíso, primeiro manto ao primeiro casal, a banana mereceu pe r cima sabe m muyto bem ... Levam os pera Po rtugal pe r matalotagem ; e
a lenda e mocio nal de apresentar, qua ndo cortada tra nsversalmente, o cru- come m os com açucare, e pera o mar he bo m come r. "
cifixo e mesmo o crucificad o. Frei João d e Marig no lli atestava no O rie nte: No Brasil houve semp re gabos. Jean ele Léry dizia a p acoere mais
Et istud vidimus oculis nostris... i mago hominis crucifixi, que frei Pantaleão doce e saborosa q ue os melhores figos ele Marselha . "Deve portanto a

14 15
pacova figurar entre as frutas melhores e mais lindas do Brasil " (1557- Quando, e m 1858, chegou ao Rio de Janeiro o poeta pottuguês
-1558). O Dr. Piso , nos anos de 1637-44 que viveu e m Pernambuco, Faustino Xavie r de Novais (1820-1869), Casemiro de Abreu saudou-o, eufó-
estudou a "Pacoeira e Bananeira" (História Natural e Médica da Índia rico , citando as bananeiras como ornamento tradicional brasileiro, não
Ocidental, XXI, Amsterdã, 1658), d eliciando-se em saboreá-las "fritas com palmeira , caju ou pau-brasil.
ovos e açúcar, ou cozidas em bolos como tortas". "Secas ao sol e ao fogo, Bem-vindo, bem-vindo sejas
conservam-se por muito te mpo e são importadas pela Europa, onde são a estas praias brasileiras!
vendidas ." Os indíge nas fa ziam um vinho fermentado , embriagador. As Na pátria das bananeiras
pacovas e ram assadas ou cozidas e as bananas prestavam-se ao nenhum as glórias não são de mais;
trabalho porque comiam-nas logo na colheita quando maduras. Max bem-vindo, ó filho do Douro 1
Sc hmidt (1900-1901) considerava superior uma sopa de bananas feita à terra das harmonias;
pelos Guatós no Alto Paraguai, Mato Grosso. Otto Ze rries cita uma sopa que tem Magalhães e Dias,
de bananas, contemporânea, na aldeia de Mahekodotedi, Waika do alto bem pode saudar Novais!
Orinoco, grupo de cultura primária, e que usa a sopa de bananas, tam-
bé m veículo para a absorção das cinzas dos parentes defuntos, no curso
d e cerimônias noturnas e tenebrosas.
Para o povo a bananeira é cercada de mistérios e poderosa e m supers-
tições. Ensina-me o Prof. Cândido de Melo Leitão, anotando Henry Walte r
Bates, tratar-se realmente de gigantesca erva. Não é árvore nem parece
com outra qualque r espécie.
Frei João Pacheco (Divertimento erudito, Lisboa, 1734) informa:
"quando o cacho quer brotar a fruta (e tem cada uma delas 40, 50 e mais
bananas) dá gemidos, como mulhe r que que r parir. Na Bahia há opinião
que é fruta proibida por Deus a Adão." Essa ciência circulava também nos
países d o Prata. Na Arge ntina, Juan B. Ambrosetti (Supersticiones y
Leyendas, Buenos Aires, 1947) semelhante me nte registro u: "La higuera y el
ba na no tienen póra, es decir, se cree que e n e li os hay como incrustada una
especie d e alma o fantasma , que de vez em cuando produce quejidos; para
os oírlos se prefiere tener estas especies lejos de las casas. "
A bananeira que não dá frutos deve ser a braçad a por um homem .
Enterrando-se uma faca virgem na bananeira, na véspe ra da no ite de São
João, 23 para 24 de junho, pela ma nhã o tanino desenhará na lâmina o
nome do futuro esposo ou esposa.
A bananeira, na sua presença nas aldeias indígenas, determinou um
índice de aculturação e prox imidade no plano da inte rdepe ndê ncia social.
Os grupos huma nos sem ba na neiras d enuncia m isolamento, primarismo,
marcha inicial. Nem mesmo os técnicos falam nas pacovas mas citam se m-
pre as bananeiras vindas da África, dire tas ou via São To mé, favoritas do
apetite escravo que não supo rtava suficientemente as paradisíacas ame-
ra bas. Demonstram um adia ntamento aquisitivo na cultura ambie nte .

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moeda dentro d 'água ainda recorda o rito mile nar. As escavações tê m reve-
lado que os rios e nascentes europe ias foram lugares de devoção. Ainda
la nçamos hoje moedas de prata nas fontes de Roma como no tempo de
SE~EÍAS DE ANGOLA Augusto atiravam no lago Curtius moedas, stipem jaciebant, pela saúde elo
Impe rad or (Suetônio, Augustus, LVII). Os barqueiros do rio São Francisco
• •• •• • • • • • • • • • • •
cumprem esse rito que é romano e não africano. Vem de Netuno, elos Rios-
-Deuses personificad os, e não de Ie manjá ou Quianda.
Para evidenciar o aculturame nto dos water genius com as sereias,
le mbro a existê ncia em Angola litorânea ele um deus que é senhor elos
"Quiancla mutu, mutu Quiancla.
A Sereia é gente, gente é Sereia."
a nimais aquáticos e que se chama Mutacalombo. Esse Mutacalombo é
casado com Caiongo e tão amoroso da mulhe r que a cavalga quando nas
Angola possui suas sereias, encantadas, poderosas, influindo para o manifestações provocadas pelos xinguiladores, médiuns, a parelhos, "cava-
be m e o mal, com a respeitosa ambivalência popular de amor e medo . lo do santo", como dizem na Bahia.
Quianda é a sereia marítima. Vive nas águas salgadas ao redor de Depois ele muita leitura e conversa comprida na ilha de Luanda e nos
Luanda e po r toda a orla do Atlântico angolano. Sua velha morada era nos Musseques, os ba irros po bres circ unjacentes da cidade, fiq uei sem enten-
rochedos que circundam a fortaleza de São Miguel, e ntre a Marginal e a der as fro nteiras da compe tê ncia funcional e a exte nsão jurisdicio nal e ntre
Praia do Bispo. as sereias e Mutacalombo.
Diante da cidade está a ilha de Lua nda, Muazanga para os axiluandas, Mutacalombo parece ficar mais reservado para as atuações libe rtado-
seus nativos, ligados ao contine nte por uma la rga ponte. Quianda é aí c ulto ras e te rapêuticas, agindo pela voz e gesto d as x inguiladoras e m possessão.
antigo para os axiluanclas. Tem uma inté rprete, sacerdo tisa, devota profis- Não há para ele oblação pública, exterior, coletiva, como Quiancla e
sional, a Quilamba, açafata em suas festas, como as "mães ele te rreiro" na Q uituta recebem e m Luanda e Quiximbi e m A.mbaca, Lucala e Cuan za .
Bah ia para o presente ele Iemanjá , a sere ia jeje-nagô. Quilamba, home m Esse Mutaca lombo tem uma histó ria atordoadora. Não é pre to mas
o u mulhe r. No tempo ele Chatelain a vassal chief is ca!led a KILAMBA of branco. Português e não angolano. Católico e não pagão. Foi cônego em
bis suzerain. Portugal! Morreu bem velho num mo nte ele sa lalé (fo rmigas brancas), nos
A o utra sereia angolana é Q uituta, mo rando no s rios e lagoas, montes Musseq ues ao arredo r ele Luanda. A xinguilado ra que o representa
e matas, Iemanjá terrestre, com os mesmos poderes assombrosos. Talvez o en volve-se num manto esÇarlate quando devia ser azul, e decide para
Mituta, ele Ambriz, elos rios, lagos e mar, para o norte . restabelecer a justiça, libera ndo obsessões. Aparece com a esposa
Q uiancla faz plural e m Janda, e Quituta em Ituta, no id ioma quimbunclo. Caiongo.
Há uma te rceira, vivendo e m Mbaka , Ambaca, com o no me ele A sua PEDRA, seção, grupo subordinado, manifestando-se subsequente-
Quiximbi, podendo ser masculina ou feminina e tendo domínio nos rios e mente, não compreende nenhuma sereia. Menciona Oscar Ribas (Ilundo,
lagoas ela região . Luanda, 1958), Dinhanga de Quitúxi, Úii ele Gongo, Uheto Xoioio, Suco,
Quiancla, Quituta , Quiximbi são realmente water genius, antiq uíssimas Muxima, Samba Zundo. Dinhanga de Quitúxi foi um caçado r assassinado . Úii
entidades locais valendo como força materializa<.lura <.lo próprio ele me nto. ele Gongo, deus da caça. Uhero Xoioio, antigo serviçal da Serra Leoa. Suco e
Depois, muito depois, é que foram reduzidas e m forma física e aculturaclas Muxima, mulheres de Quissama. Samba Zundo é outra esposa de
com o mito das sereias d o Medite rrâneo. Cada rio te ria seu nume particu- Mutacalombo. Nenhum animal que viva n'água. E até onde rasteja o meu
lar, recebendo as o fe rtas q ue seria m pagamentos ela travessia, um direito quimbunclo, Mutacalombo, etimologicamente, nada tem d e comum com
de pedágio, e também ele pesca. Assim fo ram todos os rios históricos da água. MUTU é gente, o ser, a pessoa, e CALOMBO, deusa da Esterilidade.
Ásia e da Europa. Antes ela construção dos templos e ram reverenciados no Segredos do panteão negro. Chatelain diz Muta-Kalomho, rei da floresta,
e le mento continente, atirando-se moed as, vasos, ex-votos. Sacudir a· Woodland.

18 19
Na PEDRA DE CAZOLA, "ou da Afeição", comparece uma sereia, silen- Heli Chatelain, que viveu na velha Luanda (a partir ele 1885), informa:
ciosa, sentada, imóvel, quase inoperante, com seu turbante de quatro búzios. Jt is the water genius, and it contrais the finny ·tribe on which the native
Culto exterior vive ainda e m Angola, notadame nte na ilha ele Luanda, population qf Loanda chiefl.y depend.for their sustenance. Hence its popu-
para as sereias. lari~y. The water-locked rocks beyond Fort St. Michael, at Loanda, are con-
A etnógrafa Ana de Sousa Santos fixa, excelente mente, a festa essen- secrated to Kianda and serve as altars, on which the natives still deposit
cial de Quianda e ntre os pescadores ilhé us: q[ferings qf.food. The Axi-Luanda (inhabitants of Loanda Jsland) celehrate
"De tempos a tempos, a vida piscatória sofria uma pequena alte ração a yearly holiday, with elaborate rifes, in honor qf Kianda.
na sua rotina , devida a umas cerimônias ritualistas a prestar à sereia, As sereias podem influir na concepção dos filhos gêmeos quando um
Kianda. Toda a ilha se movimentava de ponta a ponta , pois ne nhuma dos cônjuges passa junto à po usada de uma d elas e esta pode entranhar-se
aldeia se eximia a presta r home nagem à e ntidade que não só lhes clava o nele, como informa o sr. Borges do Canto, do Instituto ele Investigação
sustento durante o a no mas també m lhes trazia apreensões. Então, pa ra a Cie ntífica d e Angola. A m.uvalesa (parteira) ajudando a parturiente entoa
celebração dessas práticas, convidavam-se imbanda (sing. kimbanda) que cantigas propiciatórias, antes e d e pois do puerpério.
tinham por ofício dirigir a cele bração de toda a liturg ia, em colaboração Ngana tu judale!
com o kilamba, intérprete do sentir das sereias. Para esses cultos existia O Senhor nos ajude!
uma casa própria, o dilombo. Em cad a sanzala duas mulhe res encarregavam- Se iximbi se ituta,
-se ele faze r a coleta dos óbulos, para o que concorriam todos os morado- Se são pessoas ou sereias,
res, generosamente. Recolhida a totalidade elo dinheiro, procedia-se à con- Ize bukanga twitambulule.
tagem e, com a soma obtida, compravam pratos, canecas, chávenas, Venham para q ue nós as recebamos.
toalhas, vinhos finíssimos (elos melhores e elos mais caros, inclusivame nte
Verificado o parto duplo, canta a muvalesa:
champagne e whisky) e todas as iguarias, tanto africanas como europeias,
também das melhores e com muita abundância, pois ningué m devia ser Meu Senhor, nós agradecemos pelos gêmeos
mesquinho e m ho nra r a kianda . !Vgana iami, tua tondo tua sakidila na ku.a ndu.mba,
"À noite, este ndiam luandos sobre a praia e o kilamba, com todo o Pe los gêmeos elo mato.
Na kua ngongo a mbadi
requinte de que e ra capaz, este ndia a toalha sobre aqueles e p unha a mesa
Etc.
para o festim.
"Po r outro lado, durante o dia, e m todas as sanzalas não cessavam os O verso Se iximhi se ituta parece-me referir-se às duas espeCles de
toques de jingoma (sing. ngoma, espécie de ta mbor), para assim avisare m sereias, Quiximbi e Quituta, esta no plural e aquela igualmente, ambas do
a sereia do q ue, e m sua ho nra e elo seu séquito, se lhe estava preparando. mato, égides aquáticas e m terras ele lavradores e não pescadores, como
"Estas cerimônias duravam quinze dias a um mês e, muitas vezes, seria Quia ncla para os axilua nclas da ilha. Há mesmo uma alusão aos gême-
mais tempo ainda , pois, e m todas as sanzalas, sucessivamente , se repetia os do mato, inteligíveis nessa acepção.
o cerimonial. Entretanto ningué m podia ir à pesca, e só com a autorização É tradicional oferecer-se uma refeição, a mesa, quando as crianças
elo kimbanda o podiam fazer, com o fim exclusivo de que não faltasse crescem o u se aproximam da puberdade. Um rito ele passagem.
comida ao povo. " Comparece indispensavelmente o quimhanda , adivinho-médico-
A sere ia, segundo afirmações duma octogenária, pode ser visionada -conselheiro, superinte nclenclo a festa , fiscalizando a ortodoxia cerimo-
sob várias fo rmas: umas vezes de peixe, outras ele porco, o utras d e boi, nial. Te rminando o ága pe, iniciando-se a parte elo ritual , o quimbanda
o utras ainda de um sacerdote com os há bitos ralares. Enfim, ela pode apa- "abre o terreiro", kujukula o dikanga, invocando as sereias: "Venho abrir
recer sob múltiplos e variadíssimos aspectos. Nestes tem pos, dizem eles, o te rreiro, por isso vos suplico, ó respeitáveis, pois a sereia é ser sobre-
"com tantas confusões dos brancos" (e isto se refe re ao progresso, à vida natural, a pessoa é ser sobre natural; a sereia é parente, a pessoa é paren-
agitada elos nossos dias), as sereias deixaram totalme nte de aparecer. te; a sere ia é pessoa, a pessoa é sereia" (Jlundo) . Fórmula mágica ela

.2<> .21
identidade unificadora, o brigando, pe la contiguiclade , a proteção elo Heli Chatelain ainda as fazia governar over lhe water and fs jond of
mortal pela continuidade divina. great trees and qf hilltops.
A info rmação ele uma oferta incli viclual, isolada elo gru po, às caladas Não há rastro ele Mutacalombo no rumo desses júbilos ou desventuras.
da nOite, fo i-me dada contradito riamente, afirmando-a o u negando-a, de As sereias angolanas não p ossuem a característica ele suas irmãs medi-
maneira fo rmal. Nos Musseques, não. Na ilha, sim. Quer dizer: para terrâneas, seiren, a sedução maviosa, atração pelo canto irresistível. Não se
Quia ncta um devoto solitário e g rato poderá jogar uma oferta ao mar. a paixonam e casam com os mo1tais como as ondinas do Reno ou Mães-
Qu ituta e Q uiximbi só receberão pre entes trazidos por um gru po familiar -d'Água elo Brasil. Surgem para receber festas e remergulham, desde-
ou mo rado res da mesma sanzala, bloco residencial, em é poca marcada nhosas, reto mando a soberania nos seus distantes reinos encantados.
pelo Onipo tente quimhanda. Na ilha , ninguém pode empatar devoção, Antipatizando com um elos cônjuges, as crianças geradas sob seu
d iria un1 muxiluanda, sing ular ele axiluanda. influxo serão defeituosas o u anormais, determinando lo ngo e paciente
Os recursos transformistas elas sereias estão confusos em Angola. As processo mágico de ho me nagens ajustado ras ele proteção o u ind ifere nça
notícias são variadas e, dadas a estrangeiro, vez por vez, pé rfidas e inten- salvadora.
cionalmente falsas. ão vou esquecer-me ela sentença ele José Reclinha, um a Bahia o "presente ele Iemanjá" é uma instituição co ntemporânea
mestre ela etnografia ele Angola : -Investigar é, para o indígena, p rofa nar. q ue va i provoca ndo imitações no Rio ele Janeiro e no Recife. Edison
Daí minha fervorosa admiração pelos viajantes antropologistas que tudo Carne iro (Religiões Negras, Rio ele Janeiro, 1936) informa, ágil , como sem-
o btiveram elos pretos no plano mais secreto ele suas crenças e exercícios pre: " a Bahia, Iemanjá mo ra no Diq ue, lago existe nte no Caminho elo Rio
religiosos. E o mais surpreende nte , as respostas africanas era m concordan- Vermelho. Todos os anos , no dia 2 de fevere iro, os cando mblés elas circun-
tes com as conclusões anterio res desses antro pologistas. Tudo segundo vizinhanças leva m-lhe presentes, q uase sempre constituídos por leques,
mo delo pré-fixado ... pós ele arroz, fitas, sabonetes, pentes, frascos ele perfume e , às vezes -
Quianda é vista como pessoa humana , pe ixe grande e brilhante, som- conforme o testemunho ele uma f eita-, brilhantes e anéis ele ouro. Manuel
bra , o u unica mente a presença sensível mas invisível. Jama is como fig uram Querino dá ainda, como comum nos presentes à mãe-d'água, favas-
Iemanjá no pêji elos cando mblés ela Ba hia; mulher até a cintura, peixe ela -brancas. Os negros emba rcam em pequenos saveiros e vão joga r o pre-
ci nta para baixo, o desinat in piscenz mulierformosa superne, ele Ho rácio. sente no po nto em que as águas se encontram . Antiga me nte , para que
As sereias angolanas são sempre pretas e as da Bahia sempre brancas, Yemanjá aceitasse o presente, fazia-se necessário mergulhar. Ainda assim,
lo uras, olho azul, espantosa reversão inexplicável para os descendentes ele se Yemanjá não aceitar o presente, ele não submerg irá ... "
africanos escravos q ue pintavam ele escuro as imagens elos Santos católicos Ana ele Sousa Santos explica-me o "banquete a Kianda " e m carta
preferidos. amável (Luanda, 10-VI-1964): " o banquete oferesim , Yêmanjá não acei-
a ilha afirma ram-me que Quiancla não aparece com fo rma de ani- ta r o presente, e le não sumbergirá ... " "axiluanda não participam d o
mal ela terra. As sereias elo mato , Q uituta e Quix imb i, podem assumir o ágape. Os alime ntos são colocados na mesa pela kimbanda , ou mais
aspecto de qualquer espécime da fa una regio nal, mas há um po rmenor corretamente pela man~y ia u mbanda (mãe elo tratamento), e ficam inte i-
denunciando o sobre natural. Será um animal morfo logica me nte igual aos rame nte à clis pos i ç~to da Kianda . As sobras são lançadas ao mar o u então
ele sua espécie mas existe uma irrad iação miste riosa indica ndo a divinda- no local o nde ela aparece com mais freq uência. A parte q ue ficou nas
de selvagem. panelas c q ue não fo i utilizada , essa sim é que pode ser utilizada pelos
As sereias facilitam a pescaria, levando os peixes às redes elos fiéis, ofertantes. Quero dizer, podem comer à vontade. Ainda há bem poucos
ou afugentam o pescado , fazendo os pescadores regressarem com o barco anos os nossos ax iluandas tinham o costume de te mpos em tempos faze-
vazio e famintos. Podem mantê-los com a produção no rmal o u enriquecê- re m g randes oferendas a Kiancla , de comidas e bebidas, as q uais eram
-los subitamente , g uiando cardumes para as proximidades elos favo ritos. lançadas ao mar, bastante distante da costa. Era um ritual muito curioso
O u dar-lhes nevoeiros desno rtea ntes e chu vas perturbadoras. E também cujo fim era propiciar a Kiancla, de mod o q ue ela tornasse o mar mais'
tonturas, ca lafrios, vertigens. Há amuletos evitando esses infortúnios . dad ivoso em peixe. "

.2.2
O presente de Iemanjá indica alto nível aculturativo na ofere nda de
elementos do afo rmoseamento feminino, quando Kianda recebia alimen-
tos, na antiquíssima fó rmula ritual.
De qualquer forma, eram votos propiciatórios à potestade do ma r,
invencível na imponente imensidão. 0 ~EÍN O DO CONGO NA {E~~A DO B~Asíl
• • • •• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • ••

C dade de São Salvador do Congo, capital do poderoso N'Goio!


Debalde procura-se identificar, na po breza monótona dessa aldeia melan-
cólica, os vestígios de existência da rica e nobre , impetuosa e aguerrida
corte de quarenta e nove soberanos, desde o Muêne-Mu zinga-a-Cuum, o
O. João I de 1491, até O. Antônio III, dos nossos dias, deixando o trono
vazio ...
Dormem alguns, entre árvo res, nos escuros sepulcros derruídos.
"Ruínas que vão morrendo devagar", como diria Raul Bopp. Solidão
que o crepúsculo ainda mais entristece de evocação e cisma. Na catedral,
erguida nos fins do século XV, os negros e sólidos paredões recordam as
eternamente desaparecidas cerimô nias litúrgicas da Colegiada , criada em
1534. Resta uma porta de arcada, abrindo para um aposento pequenino ,
sem teto, atapetado de relva. Os filh os do Re i de Congo foram prelados.
Em maio de 1518 o Bispo de Utica in partibus, e sob o Papa Leão X, o
Bispo do Congo e de São Tomé, eram príncipes negros do Congo. Devia
ter sido dada a bê nção nessa Sé, feita de escombros. As vilas à margem do
rio Cuan za, situadas antes de São Salvador, Muxima, na confluência do
Lucala, Massangano, Dondo, perdidas no antigo esple ndor econômico,
ainda possuem movimento e vida, aspectos indiscutíve is de esperança ,
ânimo, obstinação em recomeçar. A capital do Congo é o re ino do desâ-
nimo, do a bandono apático, da resig nação sinistra. Terra o nde perpassa o
verso de Lucano, o lhando o nde Tro ia existira: Etiam p eriere ruinae, as
próprias ruínas pereceram ...
Nesta morta Catedral oficiou um Bispo do Congo em 1597, setenta e
nove anos antes do Rio de Jane iro ser cátedra e piscopal, apenas quarenta
e cinco depois d o primeiro Bispo do Brasil.
O Rei de Angola , Ngola , em Luanda, era vassalo d o Muêne Ekongo,
Muêne-Congo, Manicongo, Rei do Congo, "irmão do Rei de Portugal". Em
1557 o Ngola solicitou ao Rei de Po rtugal tratamento igual ao Manicongo.
O Rei concedeu mas os angolanos obtiveram sua autarquia lutando contra
o antigo suserano do Zaire. Foi a vez do Congo pedir socorro aos portu- Barléu, nessa prime ira metade elo século XVII, informava: "O re i elo
gueses. O Re i mandou Paulo Dias ele ova is, não para acudir ao Manicongo Congo se ufana com estes títulos e denominações: Mani Congo por g raça
mas para fundar em Angola um do mínio lusitano. ào ho uve resistência. ele Deus, rei do Congo, ele Angola, Macamba, Ocanga, Cumba , Lula, Zuza ;
Em 1575 a Vila de São Paulo de Luanda estava fu ndada , com ritos de salva senhor elo ducado de Buta, ucla, Bamba, de Amboíla e suas províncias,
e festa pública. Construiu-se a fo1taleza de São Miguel. gola e Manicongo senhor do condado elo Sonho , Angola e Cacongo e ela monarq uia elos
eram vassalos. Ambonclaras e do g rande e ma ravilhoso rio Zaire."
Em 1641 o Congo auxiliou quanto pôde aos holandeses na conquista Várias vezes o Manicongo te nto u sacudir o jugo colonizador. Em 1656
de Angola, aliados da Rainha Jinga. Em 1648, expulso o flamengo , pagou o rei O. Antônio Manimuluza declaro u guerra ao Rei ele Portugal e saiu a
alta conta pelo atrevime nto e prematuro autonomismo . ca mpo sendo derrotado por Diogo Gomes de Morales. Repetiu a tentativa
Sob administração batava o Manicongo e o conde do Sonho (Santo dez anos de pois , levando todos os seus fidalgos, mobilizando q uase todos
Antônio do Za ire), o mais poderoso súdito elo Congo, desavieram-se. os homens válidos, numa desesperada batalha, 1° ele janeiro ele 1666,
Enviaram ambos embaixadas ao Recife , levando protestos de fidelidades e quando Luís Lopes ele Sequeira esmagou-o em Ambuíla, e o próprio rei
lame ntações pela cond uta alheia, com elogio da própria. Ao Conde ele sucumbiu , degolado.
assa u, Governador elo Brasil Ho landês, mandaram 200 escravos e uma Vou olhar na pequena e linda ig reja de Nossa Senho ra de Nazaré, em
bacia de ouro, de presente. Os governadores ho landeses de Angola (a Luanda, diante elo mar, o azulejo consagraclor desse milagre. Milagre por-
parte portuguesa tinha sede em Massangano, no rio Cuanza) info rmaram que ossa Senhora ajudou aos po rtugueses contra D. Antônio Manimuluza.
que o governo lusitano local tramava a expulsão do Rei ele Congo dos seus Espero q ue a Divina Senho ra ate nda a súplica do pintor e poeta eves
Reinos, e q ue era assunto assentado antes de 1641. e Sousa, no "Mahamba".
Gaspar Barlé u info rma-me no seu cronicão de 1647 ter assau pre-
Aqui te peço, Senhora de aza ré
senteado ao Manicongo com "um manto comprido, todo ele seda, com
que nos valesres na batalha de Ambuíla
fímbrias de ouro e de prata, uma banda, um gibão de cetim, um cha péu
que consetves Luanda como é .. .
ele pele de castor, com um cordão e ntretecido de o uro e de prata.
Acrescentou o Conde como dádiva sua um alfanje tauxiaclo ele prata com Detrás desse azule jo, à direita do altar-mor, eleve estar a cabeça elo Rei
o respectivo ta lim. Ao conde elo Sonho foi oferecida uma cadeira estofada vencido , ali colocada com as homenagens majestáticas e reverentes, por
de cetim vermelho, com franjas de o uro e prata ; um manto muito compri- o rdem do então Governador André Vida! ele Negreiros, brasile iro da
do ele cetim variegaclo, uma túnica ele veludo e também um chapéu de Paraíba , minha vizinha ao s'u l.
pele ele casto r". O rei elo Congo e o Duque ele Bamba voltaram a mandar O engenheiro arquiteto Fernando Batalha antecipo u minha impressão
embaixado res aos fla me ngos no Recife. desolada nessa aldeia, cidade defunta povoada de sombras: "A própria
Barlé u, com documentação coeva, descreve os embaixad o res: "Eram povoação é destituída de beleza o u ele ca ráter, não possuindo sequer
e les de comple ição robusta e sadia , rosto negro, muito ágeis de membros, aquele ambiente evocativo que proclame as gló rias e as grandezas passa-
q ue ungiam para maior facilidade ele movimento. Vimos-lhes as da nças das. Apenas pobres casebres, quase todos insig nificantes e incaracterísti-
originais, os saltos, os temíveis floreios ele espada, o cintilar dos olhos cos, e mais uns tantos prédios modernos, ele tão reduzido valo r intrínseco
simulando ira contra o inimigo. Vimos também a cena em q ue representa- e falta ele caráter como aq ue les."
vam o seu Rei sentado no sólio e testemunhando a majestade ·por um É o que resta ele Mbanja-a-Eko ngo, M'Banza-Eko ngo, Ambase, a capi-
silêncio pe rtinaz. Depois vimos a cena dos e mba ixado res vindos do estran- tal famosa e sepultada no silêncio, cidade de São Salvador do Congo,
geiro e adorando ao Rei, conforme o cerimonia l usado entre suas nações,
capital do Distrito elo Zaire, Província de Angola ...
as suas posturas, a imitação elas suas cortesias e mostras ele acatamento,
Como um veneno penurbaclor os eleme ntos ela etiqueta palaciana
coisas que, para cliveitimento dos nossos, exibiam, um tanto alegres depois
foram lo ngamente inoculados nas almas elos Manicongos d o Zaire. Os Re is
de be be re m."

26 27
de Po11ugal teimaram , durante séculos, nas o fe rtas e mbriagado ras, estan- Congo Amulaca, Pe mba, Sembo, Lebita, Bumbi, Mussulo, Enzanga , Tiro ,
dane rea l, carta d'armas, brasões aos fidalgos, selos, timbres, capa magna, Quicuti, Quifuma, Quiba, Emensile, Engombe, Casinga, Engilada, Sunda.
casaca bordad a, cetro, coroa, baixelas ele prata. O Manicongo acabou alu- Eram o sangue azul no futu ro alma naque de Gota, editável no Za ire .
cinado ele o rg ulho, hiperbolismo verbal, d istribuindo títulos estupefacie n- Acabaram e m Amb uíla, Alcácer Quibir desses varões assinalados elo
tes aos familia res, elevados a ministros, cama reiros e mordomos. Congo.
A decla ração ele guerra d o Ma nicongo ao Re i d e Po rtugal é uma o bra- ingué m justificava minha e moção nesse Congo ele 1963. e m os
-prima e basta o final que Luís Fig ue ira divulgou (África Banto, Lisboa, me us amigo s d e Luanda. A curiosid ade contribuinte e d esde nhosa do
1938): "Dado, passado nesta corte elo Congo, cidad e d e São Salvador, no turista não corresponde ao sentime nto brasileiro ele nordestino, nascido na
tribunal elo estro ndo ele gue rra, perante os do Supre mo Conselho, pelo região onde o Congo é uma p resença senrime nral, camad a, dançada,
Secretário Me nor, O. Rafael Afonso de Ataícle, gentil-home m como cedro decla macla , vivida na lúdica po pu lar conte mporânea.
do mo nte Líbano, por mandado elo Secre tá rio Maio r ela Puridade, O. A projeção perma ne nte afirma-se no folclore elo Brasil mante ndo a
Calisto Sebastião Castelo Branco Lágrimas da Mad ale na ao pé ela cruz elo realeza unicamente, no plano masculino, para o Rei de Congo. Rei negro
monte Ca lvário, aos 15 ele julho ele 1665. Assinado - REI - O. Ge raldo será invariavelmente o Rei de Congo.
Zilote Manuel Arre pe ndimento ele São Pedro no Côncavo ela Terra , Justiça Jaime Griz registou, de um Maracatu pernambucano, o canto o rgulhoso:
Maio r. O. Cristóvão ele Aragão d os Vieiras ele Feliz Me mó ria, Justiça Meno r. Eu sou Rei! Reil Hei!
Do Presidente O. Miguel Té rcio Pelo d e Três AJtos para Borzeguins Que Rei do meu Reinado!
Cobrem os Pés del-Rei Meu Senho r! " Maracatu lá do Congo,
Al fredo de Sa rme nto (Os Sertões d 'África, Lisboa , 1880) regista esse Lá do Congo,
modesto preâmbulo num decreto : "REI, po r Divina Graça , aumentado r d a ele fui coroado!

conversão ela Fé d e Jesus Cristo, defe nsor dela nestas paragens ela Etió pia, Os suclaneses não d e te rminaram essa impressão impone nte , apesar
Rei elo a ntiq uíssimo Reino do Co ngo, Angola, Matamba, Veangá, Cuncli, elas tradições elos reinos negros ela região. Por to do o te rritó rio banto a
Lulha e Sonso, Senho r d os Ambundos e d os Matumbo las e d e o utros mui- imagem ostensiva de majestade, severa, impe riosa, Rei coroado, supre mo
tos Re inos e Senho rios a eles comarcãos d 'aqué m e d 'a lé m elo mui espan- título subjugador, coube ao Congo, ao Manicongo, cuja sede, irradiante d e
tosíssimo rio Zaire, suas margens e águas verte ntes, d e to da a costa d o Mar to dos os poderes, me rgulha na no ite nostálg ica. N'África ocide ntal o que
Salgad o e suas praias, etc." não e ra Guiné era Congo, pelo lito ral, Reyno de Manicon.guo, info rmava
A geografia do Re i incluía o Congo na Etiópia mas estava o rtodoxa. Duarte Pacheco Pe re ira (1506-1508).
Garcia ele Resende, na Miscelânea , ainda e m 1556, fazia correr e m Po rtugal: Dos a utos po pulares brasileiros, ele inspiração negra, o CONGOS o u
CONGADA é o que alcança maio r área ele expansão. Para ele con vergem
O maior rei da Etiópia,
dezenas ele motivos, cenas, sketc hes sucessivos e ncadeando e nredo dra-
de Manicongo chamado ...
mático, interconaclo ele bailad os, cantos uníssonos e mesmo ele me ntos
esse te mpo o rio iló fa zia ba rra no Atlâ ntico, no Senegal. Havia as históricos, fundidos na re min iscência confusa e saudosa dos escravos e de
"Etiópias ela Guiné". seus descende ntes. Pe lo Brasil inte iro, norte, centro , sul, as vozes infalíveis,
O capitão Ivo ele Cerqueira (Vida Social Indígena na Colônia de cada ano no ciclo elo atai, ressuscita m o te rmário africano, coroação do
Angola, Lisboa, 1947) cita a relação sono ra d a no biliarq uia: "Duques ele Rei ele Congo, Embaixad as, gue rras , da nças, g ló rias conquistadoras que o
Bamba, ele Sundi, ele Bata, Co nde do Sonho, 'ele mais mand~ e po de r que tempo não consegue murcha r.
cada qual dos duques, e d e sangue real elo Congo', Marqueses d e Pango, Já em 1674 coroavam no Recife, na igreja de Nossa Senho ra d o
de Lijinga, de Ie nzu , de Mata ri, d e Soando, d e Cuica." Há referê ncia aos Rosário dos Homens Pretos, Antô nio Carvalho e Ângela Ribeira , Re i e
nobres marq ueses de Zembo Ensilo, Sa nga, Bena, Cundi, Canga, Lu la, Rainha do Congo.

.29
No me u Dicionário do Folclore Brasileiro', no verbete CONGADAS, duques, marqueses e condes, no século XVI, pelo mo de lo d e Portugal. A
CONGADOS, CONGOS, registei quanto pude obte r e saber na espécie. coroa, nos derradeiros templos, cabia pela escolha dos Pares e a continui-
Ainda boiam dezenas ele vocábulos ide ntificáveis como africanismos, adul- dade do novo soberano d ependia da confirmação dos barões. Ainda em
te rados mas legítimos. 1700 o duque de Bamba, o marquês de Pemba e o poderoso conde do
Que re ndo-se amenizar o sofrimento elo escravo pela permissão ele Sonho (Sioh), atendendo à Carta-Régia de D. Pedro 11 de Portugal , elege-
festas privativas, reaparecendo o aparato elas cortes negras, a escolha sole- ram rei do Congo a D. Pedro V, fundando a dinastia d 'Água Rosada .
ne, o cerimonial ela coroação no interio r elos templos, convergiram, to tal- A menção do Congo não está no Brasil precisamente pe lo e nvio ela
mente, para o Congo e seu distante soberano. Nenhum outro, na lembran- massa escrava dura nte anos ininte rruptame nte e mbarcada nos portos de
ça elos escravos, poderia competir e ocupar a dignidade semidivina, não Angola mas, essencial, na continuidade dos valores humanos que o
sendo o Manicongo, o Rei d o velho Congo, imortal nas memórias fiéis. homem congo, o Pai Congo, re presentou nos séculos de cativeiro e , d e pois
Nem o Manclimansa de Mali, o Prestes João da Etiópia , o sultão de d e livre, na colaboração afetuosa no espírito popular. A existência funcio-
Monomotapa. nal das CONGADAS é uma impressio na nte comprovação dessa vitalidade
O a mbie nte b rasileiro, normal e comum, era compreensivo e toleran- que encontrou no sentimento brasileiro os impulsos ele conservação e
te para os escravos conse ntindo-lhes as trovejantes noites ele batuque, os re percussão positivas.
bailas, formalmente proibidos pelas Ordenações do Reino, Livro V, Título No ba ile do MOÇAMBIQUE afirma-se que São Benedito já foi mari-
LXX: "Que os escravos não vivam per si, e os negros não façam bailos", nheiro e deixou Congada para nós congueiro na linha do Congo do
incluindo os pretos forros. D. Tomás José ele Melo, Capitão General e moçambiqueiro (Maria de Lourdes Borges Ribeiro, A Dança doMoçambique,
Governador ele Perna mbuco, e m o fício ele 10 ele novembro ele 1796, São Paulo, 1959). Congo! Congo! Esses Reis e Rainhas eram escravos e
auto rizava-os porque para eles é o maior gosto que podem ter em todos os a presentavam-se deslumbra nte mente vestidos, cobertos de joias e cordões
dias de sua escravidão. Esse clima favoreceu sobremaneira a manute nção ele ouro fino, empréstimos elos senho res e elas sinhás brancas, alg umas
elas festas africanas, explicando como elas atravessaram os te mpos. gratuitas e desveladas costureiras e modistas das clamas d e uma Corte ele
Defende u a sobrevivência elo Congo no Brasil. vinte e quatro ho ras existenciais.
A tradição n 'África Oriental e Ocidental mantinha o fulgor ele três Jo hann Emmanuel Po hl , em 1819, assiste e m Traíras, Goiás, a festa
Re inos exte nsos e prestig iosos; o do Prestes João, e ng lobando Abissínia, de Santa Ifigênia, virgem pre ta ela Etiópia , promovida pelos pretos; caval-
Sudão, parte ela Núbia; Monomotapa, na bacia elo Zambeze no Índico, gatas d e "negros vestidos ele uniformes portugueses", com os animais
planalto elos Grandes Lagos, Kalahari, bacia elo Limpo po; e Congo, abran- "ornados ele campainhas e fitas", "sob constante troar de tambores, dis-
gendo as te rras elos antigos Congo Francês, Congo Belga, Congo portu- paros ele espingarda e o soniclo ele vários instrume ntos nacionais do
guês, compreendendo Cabinda, indo aos possíveis 3 000 000 de km 2 • Os Congo", bandeiras , aclamações, num estrepitoso regozijo q ue contrariava
gra ndes reinos do oeste, re unidos pela espada e mantidos milita rmente a imagem triste daqueles fo liões sere m destituídos de qualquer capacida-
povos diversos de e tnia e cre nça, jamais d e ram uma visão d e unidade e d e jurídica . A ninguém , e ntreta nto, ocorria a ide ia de proibir-lhes a par-
pe rma nê ncia mas uma prolongada situação d e posse g ue rreira. Seria exce- ticipação estrondosa o u diminuir os recursos pa ra a espe tacular indu-
ção, pelo século XV e parte d o imediato, o reino d e Mali, da Gâmbia até me ntá ria de gala .
o mar, cujo Manclimansa e r:::~ consider:::~do ep erador de todos estes rrys e lhe O motivo central dessas festas, além da louvação aos oragos, e ra uma
serue muy prosperamente, escrevia Vale ntim Ferna ndes (1506-1510). exaltação às virtudes legítimas do africano na plena fruição do costume
Para as populações às ma rgens do Zaire o Manicongo era realmente lúdico. Não há CONGADA, CONGADO, CONGOS, sem Rei, Rainha, secre-
uma fo rça natural de mando, com suas alternativas de maior ou meno r tários, corte acompanhante e vistosa, guarda d e honra, armada, agressiva,
amplitude influenciai, disputado pela concorrê ncia dos chefes militares, vaidosa da missão decorativa. Trajes mirabo lantes . Enfeitado como um Rei
de Congol Cadeira ele espaldar. Umbela. Vênias. Fatalmente haverá uma
Edição atual - 12. ecl. São Paulo: Global, 2012. (N.E.) escaramuça, emba te de espadas, minutos de batalha ruidosa, entusiasma-

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da, tumultuosa. De pois, comer e beber. E danças, sem que o Tempo seja
fator ponderável no cômputo funcional da duração. África, unser Afrika,
nossa África, como dizia Frobenius.
A voz de Camões:
Ali o mui grande reino está de Congo!
A ~AíNI!A }íNGA NO B~Asíl
• • • • • • • • • •• • •• • • • • • • • • •
Por que não havia de comover-me em São Salvador, Reino do Congo?

N jinga Mbandi, Ngola Jinga, rainha dos Jingas, Dongo-Mata mba em


Angola, morre u há trezentos anos . Encontro-a viva, citada, contemporânea,
de Cabinda a Benguela, de Luanda às terras de Lunda. Indicam-me os
lugares onde viveu, caminhos percorridos, vestígios do seu pé tornados
ilustres nas pedras ele Pungo Anclongo, Matamba onde residiu, Kifuangondo,
no rio Bengo, que lhe eleve a de nominação. Lendas, anedotas, invenções
consagradoras ressuscitam a velha sobe rana indomável, astuta, obstinada,
opondo-se ao irresistível preama r dominador e branco.
Está, inarredável, na História de Angola e nos fastos ela conquista por-
tuguesa n'África ocidental. Fisionomia móbil, tenaz no d esígnio ele resistir,
de salvar seu povo, governando-o como ele amava ser governado, com
gue rra, sangue e festa , em todas as ocasiões julgadas opo1tunas para com-
bater, atirou seus pre tos contra os canhões lusitanos. Re ndeu-se várias vezes.
Ficava sere na, gentil, concordadora, até que brilhasse a hora d a reação.
Erguia o braço de comando e os batalhões negros atiravam-se contra os
po rtugueses. Aquela onda angolana elevava-se, fremente de ódio, percutin-
do a rocha das Quinas, a espada d 'EI-Rei, sem evitar um mome nto, infalível,
teimosa, infatigável, na insistência elo heroísmo ineficaz. Nos de rradeiros
a nos, exausta, doente, vencida, voltou a batizar-se, ouvindo os capuchinhos
italianos, sonoros e gesticulaclo res. Morreu curvada, anciã vene randa , anelan-
do vagarosa, cabeça firme, olhos manhosos, inquietos, perscrutando a pos-
sibilidade de reacender a revolta e combater. Tinha 82 anos. Ningué m con-
seguiu esquecê-la, brancos, pretos, mestiços, estrangeiros, nativos. Está nos
livros imp ressos e na lite ratura oral. Por onde passou foi deixando a imp res-
siona nte marca d e sua personalidade e né rgica, invulgar, poderosa. Falam-me
ele sua pessoa como de uma e ntidade presente, e ncontrável, atual, numa
menção incontida de evocação, um nome pronunciado pelos lá bios d e todas
as classes, como nenhum outro no Reino de Angola.
Ainda possui e na morados, pesquisado res, poetas. Onde nasceu e
o nde mo rre u são perguntas-motivos de indagações pacie ntes . Não morreu

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em Lua nda mas em Matamba , terras d o re ino perdido mas sabidamente , go vernador, dona Ana ele Me nezes, tomo u o '·Ana" e, d o marido, o "Souza•·
ainda hoje, sua propriedade. Sepu ltada no chão sagrad o duma igreja desa- aristocrático. Fico u send o Do na Ana Jinga de Souza. Ho rroroso e hábil. Fo i
parecida . em 1621. Ficou sendo Ana zinga band i rgola .
o século XVI, po r misteriosa causa, desencade ia-se um movimento a primeira aud iência da princesa Jinga com o Go vernador ele
de po vos fortes, emig rando de escudo no braço e lança na mão, derru ban- Angola, D. João Correia de o uza, ocorreu um episód io inverossímil e
do Re is, q ue imando alde ias, esmagando exércitos, conquistando regiões; lindo. Havia uma única cade ira de espaldar para o Governad o r e uma
Galas na Etió pia, Zimbas em Moçambique, Sumbas na Serra Leoa , Jargas almofada de seda sobre alcatifa para a embaixatriz. Jinga acena a uma
no Congo. Os Ja rgas apoderaram-se da Guiné ao centro de Angola. Serão escrava, fá-la ficar de gatinhas e senta-se no dorso, como nu ma po ltrona,
deno minados Ngolas e Jingas, no mes ·de seus gra nd es chefes que ficaram com a naturalidade fidalga do hábito . E assim expôs, J eoate u e argumen-
sendo a pe lidos coletivos, como os nossos Jand uís, cariris do no rdeste bra- to u, sentada nas costas ela escrava imóvel. Q uando termino u a aud iência,
sileiro no século XVII. A rainha Jinga é filha dessa g lo riosa vio lência, pre- deixo u a sala, fica nd o a cativa na mesma posição. Perguntaram-lhe se
ado ra e fecunda. O rei de Matamba, Ngola-Zinga, sang ue dos chefes jargas, esq uecera a escrava. Respo ndeu Jinga que não costumava co nd uzir a
é 0 pai ele Ngo la Bandi e de Ngola Jinga, a rainha dos Jingas, imortal. cadeira util izada em cerimô nia ele tal importância.
O irmão Ngo la Bancli herda o re ino e Jinga vive à parte , amando o Mas c 'est plus beau que nature ... O assunto era bem literário e correu
filho , ún ico, vigiando se us pasto res, guardada pelos g uerreiros familiares. na Espa nha d o século XVI. No Libro de Chistes, de Lu is ele Pinedo, no El
gola Band i q uer as terras ela irmã e, para que não haja sucessão, manda Sobremesa y Alivio de Caminantes, de Juan de Timoneda , 1563, conto-
matar o jovem sobrinho . Jinga recebe o cadáver. Abraça-o , muda, sinistra, -XXJX na prime ira parte; no La Floresta de Melchor de Santa Cruz (1 574)
e jura mo rte-por-mo tte. Vive num recanto escondid o, Gabazo, longe do e n uma comédia de Lopes ele Vega (1 562-1635), El Honrado Hermano.
irmão truc ulento. Está re unindo um peque nino exército, na forma med ie- 1enhum, ecologicame nte, lembrou-se elo do rso escravo. Todos os exem-

val dos vassalos contribuintes, pagos na solução d ivisória do saque , plos mencionam uma ca pa luxuosa , assento abando nado o rgulhosa mente
comum e próximo . Assalta fro nteiras ele Ngo la Bandi, a poderando-se de de pois da conversação.
gados, mulheres, rapazes, semeando prestígio ameaçad or. Sobre o tema p ubliq ue i no Diário de Notícias (Rio ele Jane iro , 29-X-
Ngo la Bancli so nha com o territó rio intacto, a jurisdição indivisa . Os -1944) um estudo sobre A POLTRONA DA RAINHA JINGA , mostrando
po tt ugueses estão ava nçando co ntinu amente . As batalhas repetem-se interesse há vinte anos passad os.
furiosas e os portug ueses fazem caminho através dos corpos inimigos, Conta Luis de Pineclo: "Dicen q ue un Embajad or de Ve necia, e m pre-
varridos pelas desca rgas. Ocupam Matamba, comandados por Luís Mendes sencia de la Reina Dona Is<\b el, y visto que no le da ban silla, se desnud ó
de Vasconcelos, em 1618. O rei fugira deixando a família na mão do ven- la ropa rozagante que llevaba , y la puso en e l suelo cloblada y sentóse; y
ced or. São acordadas condições ele pazes. gola Bancli recebe a famíl ia e después q ue h ubo negociado, se fué en cuerpo. La Reina envió um mozo
o lvida os compro missos. Recomeça a luta com ferocidade to tal. O gover- de cámara q ue le diese la ro pa. El Embajado r respondió: 'Ya la Sefi oria no
nado r O. João Correia de Souza d ispôs um verdadeiro corpo militar e necesita de aquel escabel. ' Y no q uiso tomar la ropa."
atacou com os rigores da técnica e nvolveclo ra, apossand o-se dos lugares- A redação posterior de Juan de Timo neda assim relata: "Ve nido un
-chaves, ele víveres, estradas-tro ncos, zonas ele caça, aguadas. gola Band i, embajado r de Venecia a la corte de i Gran Turco, dándole aud ie ncia a él
refug iado no recesso dos settões d o Cuanza, recorreu à irmã, su plicando- juntamente con otros muchos q ue había en su corte, mancló el Gran Turco
-lhe a intervenção inteligente . J inga fo i a Luanda, parlamentar. A embaixa- q ue no diesen silla ai embajaclo r ele Venecia, por cietto respecto. Entrados
dora negra era invencível na graça fe iticeira, na pro ntidão verbal e , como los embajad o res, cada cual se sentó e m su cle biclo lugar. Viendo el vene-
amavam os portugueses, de co nsciê ncia hierárquica, sabendo po rtar-se ciano que para él faltaba silla, q uitóse una ropa ele majestad que traía de
como uma princesa rea l e não como uma bail arina em minuto de co nta r- brocado hasta el suelo, y asentóse encima de ella. Acabando todos de
são . Conq uistou a todos. Rece beram-na com salvas ele artilharia e conti- relatar sus embajadas, y hecho su de bido acatamiento ai Gran Turco,
nê ncias. Jinga fez-se batizar, co m indispe nsável sole nidade . Da mulher do salióse e l embajado r ve neciano, dejando su ropa en el suelo. A esto d ijo

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el Gran Turco: 'Mira, cristiano , que te elejas tu ropa .' Responclió: 'Sepa tu, manobras de Jinga, derrotando-lhes as tropas eufóricas de vinho de palma
majestacl, que los embajadores ele Venecia acostumbran cle jarse las sillas e ardor belicoso. Esmagou-as em Quilombo e na áspera jornada de Quina
e n que se asientan .. , Grande dos Ganguelas. Aprisionou as duas irmãs, tão queridas da rainha ,
A info rmação de Melchor ele Santa Cruz é assim: "Um escudero fué a as damas Cambe e Funji, e nviadas para Luanda e batizadas por Bárbara e
negociar com el Duque de Alba, y como no le cliesen silla, quitóse la capa, Engrácia. Jinga desaparecera. Estava no leste, território dos Songos,
y asenróse e n ella. El Duque te mancló dar silla. Dixo el Escuclero: 'V. Massongos, Bassongos, Cassongos, Tussongos, companheiros ele aliança,
Sei'ioría perdone mi mala crianza, que como estoy acostumbrado en mi oculta no labirinto do Luanclo e elo Cuango. Até 1632 ficou em apareme
casa de asentarme, clesvanecióme la cabeza.' Como hubo negociado, sali- tranquiliclade. Recarregava as baterias. Em 1635 o governador Francisco ele
óse e n cuerpo, sin cobijarse la capa. Trayéndosela um paje, le d ixo: Vasconcelos da Cunha aquietou-a habilmeme, mandando presentes,
'Servíos ele ella, que a mi me ha servido de silla, y no qu iero llevarla más saudando-a como amiga. Jinga arredou seus guardas dos caminhos da
a cu estas."' circulação mercantil , não mais assalto u os combo ios e conciliou-se com os
Lope de Vega, no Honrado Herma no, regista: sobas, maiores e menores . Sua fo rtaleza eram as pedras altas e negras ele
Pungo Anclongo.
Curiacio: - Vuelve, Horacio, fuerte.
Era a hora ela entrada holandesa . O ho landês, senhor elo no rte elo
H o racio: - Aqué?
Curiacio: - Toma el manto.
Brasil, mercado consumido r de escravos que Angola fornecia inesgotavel-
H oracío: - Para qué?
mente , desejava obter os mananciais da produção. O negro era a plantação
Curiacio: - Pues, por qué le has de dejar? elo açúcar. Os navios artilhados ela GEOCTROYERD WESTI DISCHE
Horacio: - No me acostumbro !levar COMPA IE rumaram pa ra Angola. Esse 1641 foi um ano ele revolta. A rai-
La silla en que me senré. nha Jinga despertou , numa surpreendente agilidade aliciadora , mobilizan-
do seus exércitos ao lado dos batavos. ào era portuguesa e nem católica.
Todos escreveram antes de Jinga sentar-se na escrava. E os reis africa-
Era uma rainha africana , livre para escolher o seu senhor. O rei elo Congo
nos usa riam de cadeira em 1621? Interpolação literária ou fato verdadeiro? e o elo Dongo trouxeram os aliados retintos e vociferantes. A posse holan-
Voltando a Matamba, cristã e simpatizada, Jinga reorganizou seus desa ele Luanda, dia ele São Bartolo meu ele 1641 , quando todos os diabos
g uerre iros e esperou a hora propícia. Ngola Band i, refeito, reatacou impe- se soltam dos infernos , fo i um triunfo para Jinga . Passara unicamente de
tuosamente e fo i destroçado. Escapou-se para uma ilha perdida no rio um para o utro amo, armado ele mosquete ao auxílio das adagas angolanas.
Cuanza, acompa nhad o ele raros fiéis. Ali o alcançou a vingança fraterna. Gaspar Bo rges de MacluHeira ainda a derrotou, retomando-lhe a mana
Morre u e nvene nado. Bá rbara, antiga Cambe. acla mais pôde fa zer. Jinga era uma convergência
Aclamada Rainha, Jinga atraiu o filho do morto, o sobrinho detestado . instintiva das forças insubmissas. É uma fase ele razzias, saques, comandos
Recepcionou-o em Gabazo, alegremente, e apunhalo u-o sem perder depredadores, incêndios, destruição elos presídios ele Portugal e elos régu-
tempo, vingando o filho. Entregou o cadáver aos crocodilos. E os tambores los timidamente saudosos ci'El-Rei , Senho r da Guiné. Madureira fuzilara
ressoaram a noite inteira, jubilosos pelo êxito. dois mil negros, ajudados simbo licamente por cinco holandeses orientado-
Insta lou-se como uma soberana a utêntica, na legitimidade de todas as res. Jinga voltou a ser a rainha sen hora elo seu reino, mandando, dançan-
tradiçõe::; africa nas, luxo, armas, festins, invasões de fro nteiras, massacres do, planejando, tendo as aclamações festivas quando passava pelas aldeias
de suspeitos, consolidação militar. ão eram assim os césares de Roma e trovejanres de elelenu, o brado da sa udação quimbunda . Hirta, senhorial,
os basileus ele Bizâncio, Luís XI da França, D. João TI de Po rtugal, Filipe 11 coberta ele fios de latão e de prata, de miçangas e cauris, a carapinha
de Espa nha? A tática ficou melhorada e tranquila. Não enfrentava o poder endurecida de argila vermelha e branca , dezenas de jarreteiras, ligas maci-
po rtuguês e m Ango la mas os feudatários do governado r. Ia roendo as raí- ças, braçaletes, colares, placas douradas, erguia o braço magro e lento
zes do domínio lusitano. Dongo teve o seu rei vencido e as ilhas de agradecendo as manifestações elo seu povo delirante, Boadiceia de ébano,
Q ueinalo nga devastadas. O governador Fernão de Sousa interrompeu as num final melancólico ela auto nomia africana .

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Salvador Corre ia de Sá e Benevides apareceu com a esquadra pa ra negro ele máscara preta, como mo rdomo, ele sabre em punho; depois, os
reforçar a resistência incomparável dos p ortugueses em Massangano. príncipes e princesas, cujas caudas eram levadas por pajens de ambos os
Provoca a fortuna , bombardeando Luanda e tomando-a a 15 ele agosto ele sexo s; o Rei e a Ra inha do ano antecedente, a inda com cetro e coroa e,
1648, Assunção ele Nossa Senho ra. Na véspera, em 1385, fora Aljubarrota. finalmente, o real par, recém-escolhido, enfeitado com diamantes, pé rolas,
Jinga nada mais poderia realizar. A reação portuguesa caiu , fulminan- moedas e preciosidades de toda e spécie, que haviam pedido emprestado
te, sobre os colaboradores da posse hola ndesa. Congo, Dungo, Matamba , pa ra essa festa ; a rabaclilha do séquito era composta ele gente preta, levan-
perdem te rras, gados e homens, dire itos e garantias, prerrogativas e liber- do círios ou bastões forrados d e p apel prateado. "
dades elas usanças velhas. São zonas de influência, policiadas, vigiadas, Nos CONGOS o u CONGADAS pelo n o rdeste elo Brasil a parece seu
com ate nção cautelosa. Do a lto sertão, e nviou sua mensage m submissa. nome soberano, dispondo elas vidas, determinando gue rras, vencendo
Ace itara m como a uma fórmula aliviaclora. Apenas tomaram as precauções, sempre . Reaparece lembrando , não as campanhas contra os portugueses
evitando uma su rpresa sangrenta da velha rainha clesteme rosa. mas as excursões militares aos sobatos vizinhos, régulos elo Congo,
Ficou uns te mpos e m Luanda, para ela cidade estranha. Volto u para Cariongo em Ambaca . Conste ou não ela História, Penélope sombria, cons-
as terras distantes, para o mato querido, a palhota que era palácio aos tará sempre de uma estória vulgar nas cantigas brasileiras contemporâneas,
o lhos elos derradeiros soldados ele s uas arrancadas. no enredo elos CONGOS:
Nascera , provavelme nte, e m 1581. Em 1657 converte u-se novamente Mandou matar Rei Meu senhor!
ao catolicismo. Restituíram-lhe a lgumas posses. Jinga possuía a te rra e as E quem mandou foi Rainha Jinga!
vidas que quisesse. Os negros eram apenas us ufrutuá rios.
E mesmo a citação vaidosa ela mulhe r guerre ira, no coro ele um ba ilado:
Faleceu a 17 ele dezembro ele 1663.
É a única soberana ele toda a África que, sem jamais saber da existê n- Rain ha Jinga é mulher de bata lha,
cia elo Brasil, continua na me mória brasileira , íntegra, feroz, na autentici- Tem duas cadeiras arredor de navalha!
dade do tipo vo luntarioso, decisivo, legítimo , com a majestade da voz e da E a declamação: "Senhora Rainha Jinga , mulhe r ele Camumbira, ele .
vontade ilimitadas e obje tivas. Perpassam n os autos nomes que não mate- Moxaritatiguári, senhora Dona Flor de Cambange q ue passeia e m te rras ele
ria lizam corpos reais ele ação e ele e ne rgia. Jinga vive . gentes Guinés e fa z anos que não vem cá!"
Comparecia nos préstitos oficiais e votivos. Em junho de 1818 von O Emba ixador, expressão maior no alto elos CONGOS, é um e nviado
Martius assistiu n o Tijuco, Diamantina , Min as Gerais, o cerimonial pela ela Rainha Jinga. Essa n ão aparece. Ninguém a vê. Sente-se o pod e r, a
aclamação elo re i D. João VI, descrevendo-o na Viagem p elo Brasil: "É cos- força , o d o mínio implacá>ve l. Os d e mais p e rsonagens dos CONGOS,
tume elos negro s elo Brasil nomeare m to dos os anos um re i e sua corte . He nriq ue Re i Cariongo, o Príncipe Sue no, Suana, Sua na Mulopo, um elos
Esse rei não tem prestígio algum político nem civil sobre os se us compa- herdeiros elo Mu ata-Cazembre, Impe rador dos Lundas, Suana-Murô p e,
nhe iros ele cor; goza apenas da dignidade vaga , tal como o re i ela fava, n o segundo o major Gamito, são infe rio res, de rrotados, arruinados, aprisio na-
dia de Re is na Europa , razão por que o governo luso-brasile iro n ão põe elos. Só a Ra inha Jinga conserva a ple n itude dominadora, in contestável,
d ificuldade alguma a essa formalidade sem significação. Pe la votação geral, ind iscutível.
foram nomead os o REI CONGO e a RAINHA XJNGA, d iversos príncipes e Os escravos idos de Angola levaram a o clisseia tempestuosa ela rainha
p rincesas, com seis mafucas (camare iros e camareiras), e dirigiram -se e m neg ra de Matamba. Todo o século XVIII b rasile iro exigiu a mão escrava de
procissão à ig reja elos pre tos. Negros, levando o estandarte , abriam o prés- suclaneses e b anto s pa ra a mine ração, catas de diam antes e alargamento
tito; seguiam-se o utros levando as imagens elo Salvador, de São Francisco, ele canaviais. Os governos ele O. João V, O. José e D. Maria I tiveram o
da Mãe ele Deus, todas pintadas d e preto; vinha depois a banda ele música Brasil como uma grande fo nte produtiva. Com O. João V o ouro. Com O.
elos pretos, com capinhas verme lhas e roxas, todas rotas, e nfe itad as com José as matérias-primas, companhias de comércio. Com O. Maria I o me r-
grandes penas ele avestruz, anunciando o regozijo, ao som ele p ande iros e cad o consumidor e expo rtador, sup rindo em esp écie e moeda o tão ama r-
chocalhos, elo ruidoso canzá e ela chorosa marimba; marchava à frente um gurado so nho ela Índia Po rtuguesa. Para todo esse mundo , o Brasil no seu

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contorno territorial presente, o escravo era indispensável. Vieram aos
milhões. Notadamente de Ango la, fo rnecedora e geograficamente entre-
posto de embarque das peças.
Em cada navio, invisível e lógica, e mbarcava a Rainha Jinga ...
0 fAfAGAÍO-CíNZENJO
•••••••••• ••••••••••• ••••••••
DE CABÍNDA

E m Cabinda vi pe la primeira vez o papagaio-cinzento, de cauda ver-


melha, o "jaco", Psitlacus e1y thacus, espa lhado pela África equatorial,
desde Senegâmbia. Era esse, e afins d'África setentrio na l e oriental, que
reproduzia a voz humana para os e legantes de Roma, dando assuntos e
ver os, vivando Júlio Césa r de Ma rco Antôn io , o p sittacus, a vobis aliorum
nomina discam, dos epigramas de Martial (XIV, LXXIII), presenteado nas
a poforetas, '·festas" d o ano-novo, étrennes, às damas ga lantes do Império.
É verdade que a anedota dos dois papagaios aclamand o os p ossíveis
vencedores de Actium, Marco Antôn io e Júlio César, regista Macróbio
(Saturnália, II , 4) como sendo dois corvos, Corue salutator.
Eram papagaios indianos o u africanos os enviados para Roma? O
no me será árabe, babbaghá, mas diziam o romanos apenas p sittacus.
O meu papagaio-cinzento de Cabinda parece-me o velho papagaio do
Brasil, pelo volume e fe itio, vestido de o utro modo, fa ltando-lhe o verde
flamante e o ouro v ivo na gorjeira. O bico adunco e agressivo, os olhos
redo ndos, pequeninos e d uros, são os mesmos. Dá-me vontade de obrigá-
-lo a mudar de traje, retomand o as cores nacionais em que me habituei a
vê-lo. Cre io ser um pa pagaio disfarçado e fa lso, o lhando-me no mercado
de Cabinda, naquela manhã ardente de abril. Fico pensa ndo nos versos de
um coreto de Minas Gerais:
Papagaio verdadeiro,
Até na cor é brasileiro !
Ar é na cor, até na cor,
Até na cor é brasilei ro!

Este, pelas mostras ele fora , não é patriota como o mencio nado na
ca ntiga de saudar e beber ele Minas Gera is. Orgulhosamente impõe remi-
niscências eruditas e mesmo demonstra haver atingido a Europa em pri-
meiro plano, palrando nos paços reais e nas salas nobres. O o utro, meu
verde patrício continental, a pareceu no século XVI. Este é um descenden-

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te do que pousava na mão da bela senho ra que o Rei O. Diniz cantou O e ncontro dos p apaga ios brasile iros espalhara-se como irresistível
(Cancioneiro, 86, ecl . Caetano Lopes de Mou ra): feitiço tropica l. Dome nico Pisa ni di G iovanni, na carta ele 27 de julho de
Ela tragia na mão 1501 para Veneza, notic ia ndo o regresso ele Pedro Álvares Cabra l da Índia ,
Hu papagay mui fremoso, informava, caracterizante: hanno descoperto uma terra nuova chiamano la
Cantando muy saboroso, terra de li Papagá, per esser i! Papagá longi uno brazo et piu, de varl colori...
Ca entrava o verão ... Da inclispensabilidacle papagaia como adorno basta recorda r que
Os psitacícleos brasile iros, para uá , curica, maitaca , ué, ua naçà, turu , Pe dro Álvares Cabral le vava um de les, de cor parda , na câmara d e coma n-
a nacá , e tc., sempre foram amigos ínt(mos e parasitários elas malocas ame- do, caminho das Índias. Mochos para Minerva. Na visita dos tupiniquins
rabas, mantidos p e la curiosidade indígena, falando e comendo no tempo ele Porto Seguro à nau almiranta , regista o fiel Pero Vaz de Ca minha ao
e no espa ço. anoitecer da sexta-feira, 24 d e abril ele 1500: Mostraram-lhes um papagaio
Não há , que saiba , nenhuma estória brasile ira, anterior ao século XVI, pardo que o Capitão traz consigo; toma ram.-no logo na mão e acenaram
ressaltando o papagaio verde e amarelo , ornamental e sedutor em sua para a terra, como quem diz que os havia ali.
ruidosa inutilidade simpática. Identificavam a família pela visão elo parente.
Há, di vulgado pela voz eterna ele Humbolclt, o e pisódio do papaga io Já em Atenas, re pe rcussão da Índia, o papagaio funcio nava como
d os Aturés, re pe tindo no silêncio elas a ldeias de e rtas a musicalidade do intermediário de amores. Essa utilidade emigrou , na literatura oral, para o
idioma extinto ele que era a derradeira me mona , inconsciente e teimosa. Brasil, adaptando-se aos tipos nacio nais:
Mas os Aturés eram de Maipure , no a lto Orinoco, perseguidos pelos
Papagaio louro ,
Cara íbas, na Venezue la.
Do bico dourado,
Todos os lindos contos que circula m e m nossa lite ratura o ral, flores ele
Leva esta ca tta
longínquas e seculares raízes temáticas ela Índia, ela Pérsia, ela transmissão
Ao meu namorado.
árabe , te riam gravitado ao derredor elo papagaio-cinzento, ele rabo rubro,
Ele não é frade
este que estou olhando em Cabinda, e não o nosso, brasileiro até na cor. em homem casado.
O "Príncipe elo Limo Verde", t~to bonita estó ria que Sílvio Romero reco- É rapaz solteiro,
lhe u, contavam-na na Europa, quatrocentos a nos a ntes elo Brasil existir. Lindo como cravo.
Ele é o centro dos motivos no Livro do Papagaio, a coleção ele contos
persas, o Tuti Nameh , vulgar na primeira me tade elo século XTV, d ado Era be m brasile iro o papagaio e nviado por O. João III ao Impe rador
como de autoria de Ziay-Eci-Din- akhchabi , mais conhecida na redação Carlos V e que sile ncio u na Espanha até ver um português, com quem
simplificado ra ele Mohamme cl Qaderi, no século XVII. E os papagaios, desabafo u: j oão Fernandes, não me entendo co1n esta gente/ (Diogo
pe rso nage ns d o Mil e Uma Noites, não e ra m verdes mas cinzentos. Fernandes Ferreira, A11e na Caça de Altanaria, Lisboa, 1616.)
De Portugal vie ra a matéria-prima e po pula r elas na rrativas, pouco a o Brasil é a ma is popu lar das aves como eleme nto aned ótico. ào
pouco coloridas no ambiente local. Resta-nos, e ntre os ditos primitivos, o é crível exis tir um brasile iro se m saber contar uma estória ele p apagaio.
"Pa paga io -Real para Po rtugal", não apenas presença elo uso romano das Essa s upervalo rização prefe re ncia l datará deste século e m s ua projeção
aves sa udare m os soberanos mas també m impe rativo reino! d e domínio, inflacio nária. O papaga io simboliza o Zé Brasile iro ou, mais legitimame nte ,
indignando fre i Vicente elo Salvador, na s ua História do Bmsil, terminada o Zé Carioca, malandro, astuto, indo le nte , manhoso, aproveitado r ele o por-
e m 1627: Papagaio-real para Portugal, porque tudo querem para lá! tunidades, inesgotáve l de resp ostas, imediato na solução útil e sempre
O papagaio verde encanto u a Euro pa e fo i, com os toros elo pau-brasil, pessoal, m as hábil , cauteloso, cortejador, inven cível e simpático.
o grande produto expottado, tanto e tanto que d enominou a te rra ainda Tanto e ntre os africanos como no contine nte ameríndio os papagaios
cartograficame nte ilha, como a INSULA PAPAGALORUM e inda e m 1520 (no d e o utrora não determinaram um ciclo ele estó rias, como o utros a nimais,
globo ele Schóne , o AMERICA VEL BRASILIA SIVE PAPAGALLI TERRA). co elhos, onças , jabutis, leões , e le fantes, aranhas, macacos, a rã , o chacal,

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o antílope. Nem na inacabável tradição oral na Índia. Vive a menção nas
cidades e maiores aglomerados urbanos do que no mundo rural.
A espantosa coleção d e anedotas d e papaga io, ace ntuadamente satí-
rica e pornográfica, é mais ou menos recente e de criação citadina. É
quanto verificamos no Brasil. Merecedoras d e compê ndio e anotação, não
DO NEG~O E DO f~EJO
• • •• • • • • • • • • • • • • • ••
são e ncontráveis pela África branca ou negra. Nem na Europa conte mpo-
rânea. O papagaio e o macaco, pode rosos centros ele interesse popular
brasileiro, não possuem o mesmo prestígio n'África. Não se podem com-
parar ao coelho, à tartaruga , à aranha, à rã. Ao gato e à raposa na Europa ,
por influência da Índia. Quando o papagaio, o cinzento, figura num elos ~aramente ouço alguém, nestas Províncias Ultramarinas, dizer negro
contos de encantamento, a origem é normalme nte a Índia em sua veloci- mas quase sempre preto. O mesmo e m Portugal.
dade inicial, via árabes ou pe rsas. Daí, dessa insistência , talvez o árabe No Brasil é justamente ao contrário. Muito mais dito o negro do que
babagá provir elo sânscrito pipâcá. Creio, mais logicamente, o papagaio o preto.
O capitão André Álvares d 'Almacla, nas últimas décadas elo século
falador te r sido mercadoria venal para o árabe, traficante inarredável do
XVI , viajando pela Guiné, registava: "Tornando a estes Falupos, que habi-
Oceano Índico, e natural padrinho ela ave.
tam nesta terra d e 12 graus, ao longo elo mar, são negros pretos- chamo
Esse papagaio d 'Ango la fora me rcado ria comum no tráfico d 'África oci-
preto muito negros" ( Tratado Breve dos Rios da Guiné, 1594).
dental para o nordeste do Brasil, quando existiu navegação direta e ntre os
Antes dele Valentim Fernandes (1506-1510) escreve invariavelmente
dois litorais. Zacharias Wage ner e ncontrava-o popular no Recife, de 1634 a '
negros: "Ho primeyro 1yo elos Negros q pa1te os Azenegues ... Huü Negro tru-
1641, enquanto lá residiu, secretário do governador conde ele Nassau. O simã ... Estes Senhores Negros.. ." E semelhantemente Dua1te Pacheco Pe reira
papagaio-cinzento, graue Papageien, vindo ele Angola, Guiné, Cabo Verde, (1506-1508): "Escravos negros ele Jalofo e de Mandigüa ... as gentes que nestas
não falava tão bem como os papagaios verdes, nativos, nichtsogutsprechen Etiópias abitam sam negros... no rio de Çanagá sam os primeiros negros".
wie die hiesigen grünen Papageien (Zoobiblion, São Paulo, 1964). Era o modelo de Gomes Eanes ele Zurara (Crônica dos Feitos de
A interrupção elo mercado de escravos fez cessar a exportação elo Guiné, LX): "E esta gente desta terra verde, é toda negra, e poré m é cha-
papagaio africano, naturalme nte po uco concorre nte aos verdes, dominado- mada terra dos Negros, o u terra ele Guinee, por cujo aazo os homees e
res pela fácil e apreciada loquela. molheres della som chamados Guine us, que quer ta nto dizer como
negros". Seria a nominaçãó regula r dos alvarás referentes ao trato e terra
de Guiné, p eças de escravos de Guiné, gentio de Guiné, forma comum na
correspondência dos jesuítas no Brasil do século XVI e també m negros. Os
indígenas era m negros da terra nas Cartas e Ânuas ela Compa nhia de Jes~s,
servindo no Brasil. O negro, comumente, e ra o guiné, falando guiné. E a
lição de Gil Vicente:
Bem vi e u que o guinéu
Me viu tudo aqui le ixar. (Clérigo da Beira , 1526.)
Mas a mi .fala guiné. (Frágoa d'Amor, 1525.)
Na imagem instintiva ele uma unidade morfológica:
Qui tan parecidos son
Como Mandinga e Guinéa .
(Templo d'Apolo, 1526.)

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Depois passaram a d e nominar-se pela te rra os nativos ele outras regi- Pelo Brasil a provocação d epende do timbre, na e ntonação e ausência
ões, um congo, um angola, um Moçambique, Alexandre Angiquo, Manoel do possessivo. Negro! é agressivo. Meu negro! é um afago.
Congo, Manoel Cabo Verde. No exte nso e minucioso Livro de Contas do Respo ndiam: Sou negro mas não sou ela sua cozinha! Branco é q uem
Engenho Sergtpe do Conde (1622-1653), no Recôncavo da Bahia, adminis- bem procede. Negro na cor, branco nas ações. Negro por fora , homem
trado pelos jesuítas, não se depara uma única me nção d e preto mas inal- por dentro!
teravelmente negro, "negros doentes, negros fugidos, negra que morreu, Era velho ele milênio o niger, nigra, nigrum , antes que nascesse o
para os negros da leva da", etc. Documento expressivo é este registo ele preto n'algumas línguas neola tinas. E se vem o preto ele apertar, ajude-me
compra ele escravos para o Engenho elo Conde em 1644: Menéndez Pelayo para responder que yo en esto ni entro ni salgo, y buena
pedantería .fuera en un profano tener opinión en semejantes cosas.
Por 12 pesas de guine em q emtraram algu ns criou los ladi nos comprados a
Dioguo de araguão ..... 494$000. O negro de nomino u a epiderme dos povos a quem nega o filho de
Po r eles pecas cabos Verdes compradas a Dioguo ela Serra por ..... 442$000. Climene a cor do dia vivo na lite ratura la tina, e batizador do Níger, rio
Por sinco pecas cabos Verdes por .. .. . 195$000. imenso . É o nome que apresenta as populações reveladas pelas conquistas
Por um moleque por nome francisco custou ..... 28$000. à História: "Raça negra como a ela Guiné" e, falando d a ilha ele Moçambique,
Por um mu lato Jo rge custou ..... 26$000. a dura Moçambique, Damião ele Góis info rma : "hos naturaes são negros
Por hu negro po (Pedro) comprado a João Peixoto Vieguas ... .. 40$000.
assi hos ela ilha quomo da terra firme. " E todos os cronistas usam e abusam
Por outro negro Pedro comprado a Ant. giz gorogoai .. ... 30$000.
0

Por hu negro juzph comprado a miguel frz purgaclor ..... 60$000. do qualificativo.
Por hu negro comprado a gpar pra (Gaspar Pereira) Sarralheiro ..... 60$000. Mas seria o preto circula nte no idioma quando o a umentativo servirá
Por uma negra maria comprada a Ant.o da mota ..... 40$000. a Luís d e Camões para a eufo ria lírica à índia Bárba ra, negra amorosa e
Por hu moleque por nome manoel .. .. . 29$000. escrava a q uem a neve desejaria permuta:
Por hu moleque por nome Anronio Cabo verde .. ... 27$000.
Pretidão ele Amor,
Em 1645 há uma nota elucidativa: "Por 16 pessas ele angola negros e tão doce a figura,
que a neve lhe jura
negras crioullos pequenos e grandes a 41:000 cada hum ..... 656$000. "
que trocara a cor.
Havia algum sentid o pejorativo e m negro e intenção carinhosa no
preto? Pelo Brasil e América Latina negro, meu negro, negrinho, mi negra, Gil Vicente não escreve o preto mas suas pe rsonagens se anunciam
são palavras afetuosas e mesmo e mpregadas por quem não é preto. O como sendo hum negro C.frágoa d'Amor, 1525, Clérigo da Beira, 1526),
Imperador D. Pedro I assinava-se seu negrinho em cartas para a marquesa hum Negro de Beni (Nau cl'Amores, 1527), que se afirma nobre:
de Santos. José Bonifácio, exilado em Borcleaux, dizia-se para um amigo a mi firalclo tambem,
em 1829 seu muleque. Canta-se no Chile : Fio sae elo Rei Bení,
En la plaza andan vendiendo a qua renta que ele tem
Ramillitos de a peso; a masa firalgo he mi.
Le he ele comprar a mi negro Seria, evide ntemente, negro e não preto, o nome vindo à voz do portu-
Será mi gusto ... e por eso! guês in illo ternpore. Em maio de 1963 conheci no Biombo, Guiné, uma bija-
Conheci e m 1922 o embaixado r Bernardes, elo Uruguai, d e alta sim- gó chamada "Preta ela Silva", casada com um FuJa. O filho era "Saliato Galiça".
patia e melhor inteligência . As duas filhas, muy guapas y lindas, tinham A fundação das Irmandades de Nossa Senho ra elo Rosário dos Homens
nome de Gringa e Negra . Eram duas princesinhas de elegância e g raça. "Pretos" valoriza no Brasil o novo apelido, divulgado nos finais d o século
O Padre Antônio Brásio, S. Sp. (Os Pretos em Portugal, Lisboa, 1944) , XVII. Desta centúria é a criação elos REGIMENTOS CAÇADORES
distingue o tratame nto: "Nós preferimos preto, mais simpático, pois negro HENRIQUE$ e m ho nra d o Mestre ele Campo He nrique Dias, negro que se
é sinônimo ele escravo, termo injurioso. " celebrizara na campanha contra o do mínio ho landês (1645-1654). "Como

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nessa campanha He nrique Dias se tivesse coberto de gló ria à frente de seu tomá-la, sem muita imaginação, por uma capital africana, residência ele
terço de pretos, durante mais ou menos dois séculos existiu no Exército poderoso príncipe negro, na q ual passa inteiramente despercebida uma
do Brasil uma formosa tradição: terços e, depois, regimentos, em população de forastei ros brancos puros. Tudo parece negro: negros na
Pernambuco, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, de caçadores praia, negros na cidade, negros na pane baixa, negros nos bairros altos.
a pé das milícias, com fardas brancas paramentadas de vermelho, compos- Tudo q ue corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro; até
tos unica me nte de negros e intitulados He nriques o u Caçad o res-Henriques. os cavalos elos can·os na Bahia são negros. A mim pelo menos pareceu que
Essa trad ição infelizmente desapareceu ", e nsina Gustavo Barroso (História o inevitável meio ele condução da Bahia, as cadeirinhas, eram como cabrio-
Militar do Brasil, Brasiliana-XLIX, São Paulo, 1935). lés nos quais os negros faziam as vezes ele cavalos."
Já em 1633 o Padre Antô nio Vieira pregava numa Irmandade dos Profetizavam uma civilização ele mestiços, uma experiência ele aclima-
"Pretos" na Bahia. ração c ultural negra na América do Sul, como deduzia, em 1911 , Sir ]ames
Desde o século XV o negro foi e nviado a Po rtugal. Não o empregaram 13ryce, para apenas evocar contemporâneos sociólogos; Lapouge que nos
nas indústrias o u trabalho rotine iro dos campos o nde havia o suficiente e indicava para realizar uma ré plica do Haiti; Waldo Frank para quem a ver-
a herança o rgulhosa e legítima do lavrado r, no amanho direto da terra , a dadeira cultura brasileira só podia ser criada pelos pretos e mesmo um
dinastia de ca mpo neses, forças básicas, entidade infelizmente ausente no Ministro da França no Império, o conde Alexis de Guigard Saint Priest,
Brasil o nde o braço escravo arredou a colaboração d o ho mem branco, residente no Rio de Janeiro em 1833-1834, autor da sentença: Tout brésilien
aviltando a missão rural, fazendo-a inseparável do labor africano, cativo ou est, plus ou moins, sang mêlé. Le Brésil est une monarchie mulâtre. Tais
assalariado. O negro em Portugal adensou-se nas cidades para o serviço foram os sábios diagnóstico .
do méstico. Outra parte, em menor percentagem, dedicou-se aos afazeres Como o português não isolou , não enquistou, não fLxou o preto, esse
urbanos, carregado res, vendedo res ambulantes, caiado res, ferreiros, auxi- sentiu-se brasileiro, indo buscar mulher e ganho onde q uisesse, multipli-
liares ele construções, etc. Em 1516 Ga rcia de Resende de nuncia a inces- ca ndo as esculturas em chocolate e sa po ti , cortando-o-sangue, clareando-
sante preamar: -o-amor, dispersando-se nas gradações do pigme nto. O saudoso Jorge ele
Veemos no reyno metter Lima expôs excele nteme nte esse assunto no seu Rassenbildung und Ras-
tantos captiuos crescer senpolitik in Brasilien (Le ipzig, 1934).
& yrem se hos naturaes O noite-americano imo biJizou seus 17 000 000 de negros, represados, não
que se assi for, seram mais pela legislação mais a mais igualitária e humana, mas pela invencível repulsa
elles que nos, a meu veer. psicológica elos brancos. A batalha é pela atualização democrática na mentali-
Nicola u Clenardo, sacerdote flame ngo que foi professor em Coimbra , dade ele milhões e milhões de yankees, instintivamente aiTedios elo colored
info rmava e m março de 1535: "Os escravos pu lulam po r toda parte. Todo people. Desde o século XVI o português, fecundando negras e indígenas, anu-
o serviço é fe ito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar lou esse problema na relação futu ra ele suas dificuldades sociais. ão o teve.
com essa raça ele gente. Estou em crer q ue em Lisboa os escravos ·e as ão o temos.
escravas são mais que os portugueses livres de condição." Um verso popular, colhido por Tomás Pires no Alentejo, é pregão de
Era a impressão elos viajantes estrangeiros visitando o Rio ele Janeiro fraternidade:
ou a cidade elo Salvador na Bahia, nas primeiras décadas do século XIX. Anela cá, meu rodo preto,
Von Martius, em junho ele 1817, chegando à capital do Reino do Brasil, Meu torradinha de sol.
sentiu estar numa parte estranha do mundo pela "turba variegacla ele negros Quanto mais preto, mais firme,
e mulatos, a classe operária com que ele topa por toda parte, assim que põe Quando mais firme, melhor'
o pé em terra". Ainda em novembro de 1858 o médico alemão Avé-Lallemant D. Francisco Manoel de Melo, q ue esteve exilado na Bahia, deixou
registava: "Se não se soubesse que ela (a Bahia) fica no Brasil, poder-se-ia manuscrito, inédito e perdido, sobre O Brasil, Inferno dos Negros,

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Purgatório dos Brancos, Paraíso dos Mulatos/ Sem a indispensável concor- ração lógica. Ainda em novembro de 1787, sob O. Maria I, William Beckford
dâ ncia d o Inferno com o Purgató rio , seria impossível aquele Paraíso, mila- via no teatro do Salitre, em Lisboa, as negrinhas africanas, fa lando a lingua-
gre dos trópicos, q ue o portug uês possibilitou. gem nativa , acompanhando as clamas e assistindo a função nos camarotes
Esse instinto ecumênico o povo possuiu e defendeu contra a Ciência, aristocráticos. "O grande tom agora, na Cott e, é andar rodeado ele favoritas
sonhando esta um Santo Ofício, evitador do melting-pot. africa nas, tanto mais estimadas q uanto mais hediondas, e enfe itá-las o mais
No Brasil o negro aproximava-se do branco pela ponte econô mica. ricamente possível. Foi a Hainha que deu o exemplo, e na Família Hea l
Ganhava os postos, e ngenhos de açúcar, fazendas de gado, comércio, andam à competê ncia em presentear e festejar Dona Rosa, a negra, beiçuda ,
casa ndo com sinhá-moça, branquejando o couro. He nry Koster em 1810 e desnarigada valida ele Sua Majestade", ironizava o senhor ele Fonthill, neto
perguntava se um dete rminado Capitao-Mor, pernambuca no de pele fu sca , do !orei Chatham e futu ro sogro do Duque ele Hamilton.
e ra mulato. Ouviu a resposta tranquila: Era, porém já não é/ O poder admi- Tento u-se explicar a impressão ele subalternidade do preto ante o bran-
nistrativo atuava como fórmula ariani zante. He was, hut is not nowl Can a co por uma fórmula verbal, um contranome. "Valendo dez pretos um real
Capitam-Mor be a mulatto man? branco como ora valem", informava frei Joaquim de Santa Rosa em Viterbo
A participação familiar dos negros e negras na intimidade doméstica , em 1798. Distância entre as moedas ele cobre e de prata o nde seria encon-
fâmu los, amas de le ite , mãe de criação, a clássica Mãe Preta inarredável n·ada alusão às d iversidades da coloração pigmentar. O poeta Domingos
(também tive a minha, Joana de Modesto, falecida com mais de cem anos), Caldas Barbosa (1738-1800), mulato, saudo u seu colega branco e homô ni-
recadeiros e confide ntes, guarda-costas e compadres, foi no Brasil elemen- mo, Antônio Pereira de o usa Caldas (1762-1814), com a quaclrinha famosa:
to ele consolidação permanente e poderoso para a unidade social. Por esse Tu és Caldas, eu sou Ca ldas.
mesmo motivo o negro no sul dos Estados Unidos, Down South, Old South, Tu és rico, e u sou pobre;
o negro elas plantações ele algodão, do banjo, produzindo Uncle Remus, Tu és o Caldas de prata;
His Songs and His Sayings, inspirando as melodias de tephen Foster, Old Eu sou o Caldas de cobre.
Blackjoe, Away Down South , os coros nos pátios elas Big Houses e na proa A sublimação funciono u pelo plano lúdico. os autos dos CO GOS,
elos steamboats do Mississippi, atravessa sentimentalmente the apartness, CO GADAS, CONGADOS, nas danças ginásticas elo bambelô, coco ele roda,
fazendo-se presente e vivo no patrimô nio elas recordações: zambê, no jogo da capoeira vinda de Angola e ampliada no I3rasil, nos cantos
Gone are the days when my hea rt was young and gay e, pa ra o settão, no "desafio" que se nacionalizou, profunda e medularmente.
Gone are my friends from the cotton-fie lds a-way? Se o ,negro sofre a morte
A influê ncia envo lvente e sedutora é uma irradiação inesgotável elo o branco também sofre u ...
negro ele casa, na vassalagem cotid iana, e não elo negro elo e ito, traba- O sangue das minhas veias
lhador braçal, mo rador nas senzalas. Quanto exista no fo lclore brasileiro é vermelho como o teu!
ele o rigem africana teve seus fundamentos radiculares nas vozes mansas Se você nasceu nu zinho,
elas negras muca mas, dos velhos negros da cozinha e mandado, aposenta- nasci também todo nu ...
elos e fié is, dando os fios e os pais a quem todos nós pedíamos a bênção, Eu venho de Adão e Eva
Pai João, Pa i Congo, Tio Angola, Papai André, filho ele preto guiné, Paulo a mesma cousa que tu!
Africano, cabinda puro, instalaclor elos batuques, ditos zambês, em atai
de 1900. As estó rias têm essa fonte e os ritmos dos sambas revelam Angola, Q uando as casas de negócios
fazem s ua transação,
Congo, Cabincla, Guiné, nos bambo leios ensaiados no terre iro, pelas crias,
o papel branco e lustroso
sob o olhar senho rial e cúpido.
não vale nem um tostão;
Em Portugal negros e negras não se separavam do séquito das casas-
Escreve-se com tinta preta
-nobres. O preto vestido com as cores heráldicas ela família era uma osten-
fica vale ndo um milhão!

5<> 51
Você falou em Caim? da Negritude está voando por sobre essas miúdas cordilheiras já prato-
Já me subiu um ca lor! -históricas, unicame nte valiosas para os seus teimosos alpinistas anciões.
essa nossa raça preta O critério popular eu ropeu, levado ao continente americano, lindava o
unca teve um traidor ...
Preto numa apreciação reduzida, decorrente da própria espécie de sua cola-
Judas, sendo um ho mem branco,
boração, escrava, setvil, submissa . Fora assim desde Roma. A culpa jité del
Foi quem traiu Nossenhor!
tiempo. A valorização negra para os o lhos de o utras sensibil idades humanas
a poesia de improviso a bata lha entre negro e "cabra", enfrentando- será um resultado lógico ele indagações posteriores, verificações, pesquisas.
-se na ··cantoria", é sempre vio le nta. Consciê ncia pela comunicação legítima, imediata, direta. ào creio nas sim-
Você falando de negro patias por decreto, soliclarismo po r imposição e movimento compreensivo
Comigo não passa bem. advindo das proposições dos congressos, políticos o u cie ntíficos.
Branco veio de Ponugal, Nesse ponto a voz é de Kro nos e não ele Clio.
Caboclo no Brasil rem. O ambundu ki atu â, os pretos não são gente?
O egro veio da África ...
E Cabra? Donde é que vem?
O fo lclorista a lagoa no José Aluísio Vilela contou-me que um cantador disse
alumeia, sendo con·igido para alumia pelo adversário negro. A resposta:
M inha gente venha ver
O cantar de Malaquia!
Quem não sabe diz a lu meia
E quem sabe diz alumia.
Eu não gosto é de ver negro
Com muita sabedoria! ...
Como no Brasil, existem em Po rtugal versos, pilhérias, remoques, não
contra o preto mas criticando suas demasias na autoclassificaçào embeve-
cida. Há revides felizes, como nesta quadrinha ouvida na Casa da Ponte
da Ve iga (Lousada, Douro), re petida sem intenção de re presália po rque
não se tratava ele uma "desgarrada":
Eu cá sei que sou a preta,
Que sou a preta já sei ;
Também a pimenta é preta
E va i à mesa d 'El-Rei!
E a pimenta-preta, Piper nigrum, que dizemos no Brasil pimenta-do-
-reino, o utrora vinda da Índia , mo nopó lio po rtuguês na divulgação comer-
cial , fixava a origem indiscutível. Fosse a quadrinha brasileira e a citação
natural referir-se-ia a uma pime nta vermelha, vapsicum.
Ir à mesa d'EI-Re i era valo rização suficie nte para qualquer preta.
Mas todos esses motivos, sedutores para mim, são mais ou menos
sobrevivê ncias de predileções pessoais ou grupais. O conceito sociológico

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na volta, to do o cuidado e ra po uco para não deixá-lo apagar, inutiliza ndo
a potência defensiva. Abandoná-lo no mato equivalia ao re púdio do pró-
prio Anjo ela Guarda.

O luMiNoso COMfANhEi~o
O que vejo e m Gaza , rodando para João Be lo, vere i na Za mbézia, ao
derre do r ele Que limane. Idêntico e m Cabinda, águas elo Zaire; no Dunclo ,
• • • • ••• • • • • • • • • • • • • • • • reino dos macuas na fro nte ira elo ex-Congo Belga; na estrada de
Quinhamel, indo pa ra Bissau. O mesmo hábito elos sertanejos ele minha
infância nas catingas e tabule iros elo Rio G rande do orte.
a Jnj(mnaçào das Terras do Brasil, o padre Manoe l ela ó brega
S aímos ao an o itecer de Chidenguele. Tínhamos assistido ba ilados e escrevia e m 1549 sobre os indíge nas: "Dorme m e m red es cl'a lgodão junto
músicas, nativas e já influe nciadas pe lo e uro pe u . Variedade de instrume n- ao fogo, q ue toda a no ite têm aceso, assim por a mo r d o frio, porque anelam
tos fabricados n o local, numa recriação surpreende nte. O a utomóvel corria nus, como também pelos De mô nios que dizem fugir elo fogo. Pe la qual
pe la rodovia que o le nto c repúsculo manchava de escuro, atravessando causa trazem tições de no ite q uando vão fo ra." Ainda e m 10 de agosto elo
aquela te rra ele Gaza, domínio do Gungunhana , ru manclo Xa i-Xai, à beira mesmo 1549, o Padre Nóbrega insistia no pormenor, referindo-se aos ame-
do Índico. rabas da Bahia: "Tê m gra nde noção do De mô nio e têm de le grande pavor
Vamos silenciosos, sob o e nlevo miste rioso ela grande noite africa na, e o e ncontram de noite, e por esta causa saem com um tição, e isto é o seu
o lhando o caminho negro, ladeado ele á rvores. É uma zona de peque nos defensivo .. ,
agricu ltores e as macba mhas, p lantações, divide m os labores elos chopes, Em 1549 não havia influê ncia negra n o Brasil. O hábito e ra tão legiti-
bailaclores e timbile iros incompa ráveis. Vez p o r o utra há uma pequenina mamente a me raba como seria aute nticamente afri cano.
fogu e ira q ueimando diante elas palhotas redondas. O mais e ncontrado é o ] o hn Roberts vira que o hindu porte à la main un tison pour écarter
negro, ágil e rá pido, q ue passa com um tição aceso na mão, agita ndo-o ao ses inuisibles ennemis. François Le no rmant e nsina que cette description des
vento ela no ite, abafad a e morna. Hindous modernes s'applique trait pour trait au.x anciens Cbaldéens.
Não será, certame nte, para clarear-lhe a pisada q ue aquele pre to Assim o caldeu d e milê nios atravessava a treva fazendo-se acompa-
ba lança o tição ardente, riscando a treva num arabesco ele brasas. Aqui nhar pe lo tição lampejante, talqualme nte vejo o c hão ele Gaza.
estão e m casa, h á séculos, p lanta ndo, canta ndo, da nça ndo, outrora guer- Esse pedaço ele madeira fumega nte é uma elas mais a migas partici-
rea ndo , la nça na mão, escudo no braço, contra os sobas invasores, re pe- pações sagradas, uma elas ta ntas vezes mile nar exp ressão teste munhal ele
lindo os "impis" zu lus do gra nde fi lho de Muzila, neto elo Manicusse, um De us cordial, indo pe lo mesmo caminho dos pés humanos, prolongan-
esmagado por Mo usinho ele Albuqu erque. do com a lu z o sina l d a simpatia sob renatural. Será uma das mais veneran-
Deve haver festa nos arred o res porque os tições reapa recem , d enun- das utilizações do fogo no plano ela força mística . Não mais o lume imóvel,
ciando os convidado para o ba ile sonoro , movimentado e vibrante, como iluminando e aquecendo a resid ê ncia na caverna o u palhoça, mas a po tê n-
vimos e m Zavala , distrito de Inhamba ne. Mulhe res, tambores, timbilas. cia miraculosa acompa nhando o cre nte de seus valores mágicos através da
Não, o carvão escarlate é um companheiro luminoso, guardião elo caminhad a, anunciando ao s mo nstros e aos espectros a p redileção s upe-
corpo, custó dia do ho mem, protegendo-o com o breve clarão da presença rior invencível. O homem já conseguira a conquista da divina piedade pa ra
divina. Afugentará as coisas temíve is que andam à noite, como orava o rei segui-lo no percurso da v iagem e não ape nas agua rdar a o ração no recin-
David. e nhum fanta sma resistirá àque la a proximação d eslumbrante com to murado dos templos o u no limite rC1stico elos "fanus". Essa acha ru bra
que Mowgli espavoria as feras fam intas da jangla indiana. seria, s ucessivame nte, arma , oblação, súplica, amuleto, estanda rte distan-
Criado no sertão do nordeste brasile iro, sei a função mágica dessa ciador de todos os inimigos.
curta e trê mu la chama apaclrinhadora. Ninguém saía de casa, noite fecha- Ve io das prime iras horas ela inte ligência re fletiva. Começou e m todos
ela, sem o tição protetor, agitado como um broque i impenetrável. Na ida e os grupos humanos no alto paleolítico, q ua ndo o cad áver foi sepultado

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com oferendas para alimentar-se e defender-se. Quando o ho mem acredi-
tou na jornada inevitável depois da morte, lutand o e caçando nos campos
do céu.
o tiçào esbraseaclo, embaixador ela coivara fl amejante, cumpre ainda
a missão de salvaguarda. Na noite africana vou identificando essa presença
fuNDU
• • • • •
inesquecível de minha juventude no sertão de pedra do nordeste brasilei-
ro revendo a flor vermelha do fogo abrir suas pétalas ele chama, guiando
e defendendo o homem de sempre na floresta do mistério e do medo.
Ocapuchinho italiano Bernardo Maria de Cannecatim mencionava o
LUNDU como uma das danças ele uso menos abominável em Angola, onde
fora Missionário Apostólico e Prefeito das Missões, compreendendo o
Congo. O seu Dicionário da Língua Bunda ou Angolense, explicada na
po1tuguesa, e latina, imprimiu-se na Imprensa Régia, Lisboa , 1804. Podia dar
depoimento sem veleidades de contestação, há mais ele 150 anos passados.
Nas primeiras décadas elo século À'VI o Lundu estava em Portugal e
tão insistentemente bailado q ue o rei O. Ma nuel o proibiu , ao lado elo
Batuque da Charamba . O veto valorizou a dança que, tentando como
cousa defesa, foi seduzi ndo as gerações até a contemporaneiclacle.
Quando apareceu no Brasil essa dádiva coreográfica e melódica de
Angola é que não será possível a purar. âo adiantará dizer que mineiros
e mineiras ela Vila Rica adoravam o Lunclu , mencionado o quente Lundu
nas Cartas Chilenas, CVII, guardando costumes nos finais do século
XVIII. Ba ilavam te imosamente, par solto, com trejeitos e momices tenta-
doras, ho mem diante ele mulher, ou vice-versa, com palmas, castanholas
e requebros.
Derramou-se o Lunclu pelo Brasil e a memória bailarina nacionalizara-
-o sem recorda r os bamboleios iniciais em Luanda e , com variantes e
acréscimos no dinamismo elas ancas, do Zaire ao Cunene, não exilando
Cabincla na prática do saracoteio. Antônio ele Morais Silva, brasileiro,
senhor elo Engenho Novo de Muribeca e m Jaboatão, perto do Recife, dono
de escravas e escravos que se desmanchariam no Lundu frenético, registou
no seu Dicionário da Lfngua Portuguesa: "LU DU, e não Londum; dança
chu ta do Brasil , em que as dançarinas agitam indecentemente os quadris. "
Gostavam do Lundu brancos e pretos. João Maurício Rugendas, visi-
tando as regiões do sul, de 1821 a 1826, anota ra: "Outra dança negra muito
conhecida é o Lunclu, também dançada pelos portugueses , ao som do
violão, por um o u mais pares . Talvez o 'fandango', o u o 'bolero' , elos espa-
nhó is, não passem de uma imitação aperfe içoada dessa dança. " Charles

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Ribeyro lles, 1858-1860, concedia uma pincelada energ tca: "Mais além é Anos antes, publicando na ·' Revista Brasileira·· (tomo VI, Rio de
uma dança lo uca, com a provocação elo o lhos, elos seios e elas ancas. Janeiro, 1880) as pesqu isas sobre A Poesia Popular no Brasil, Sílvio Romero
Espécie de convulsão ine briante a q ue chamam hmdu." l~ugenclas docu- divulgara os mesmos períodos de 1888 mas o versinho citado era outro:
mentou o Lunclu com dois desenhos, deliciosos ele precisão e movimento. Quando eu era pequenina,
pix e Martius reuniram ao ATLAS ele sua Viagem ao Brasil, 1817- E aprendia o B-A, bá,
-1820, um Batuque, dança de negros, realmente um Lundu , pelos braços Minh a me tra me ensinava
tipicame nte erguidos. Frei Miguel elo Sacramento Lopes Gama, no O htndu do MON ROY!

Carapuceiro, novembro ele 1842, R<:;cife, lembrava nas festas de bodas e Esse Lundu elo MO ROY era solfa portuguesa elo século XVIII e
batizados: Pinto de Carvalho informava haver manuscrito na Biblioteca de Lisboa
Ao som de citra e vio la
(História do Fado, Lisboa, 1903).
Também era muito usado Nos Cantos Populares do Brasil (Rio de j aneiro, 2" edição, 1897) a
O dançar às umbigadas quaclrinha rea parece modificada:
O belo Landum chorado. Minha mãe mandou-me à escola
Era o meigo Lundum gostoso que Domingos Caldas Barbosa ca ntava Aprender o B-A, bá,
aos peraltas e sécias ele D. Maria I, ressoando na "Função", evocada por Minha mestra me ensinou
O hmdu do marruá.
icolau To lentino, na Lisboa elo Príncipe-Regente O. João:
Em bandolim marchetado, Esse LU DU DO MARRUÁ (novilho, rouro) fora dança preferida na
Os ligeiros dedos pronros, Cidade do Salvador e Manuel Querino descrevia o bailado entre elegantes
Louro peralta aclamado, ela Bahia: "O LU OU DO MARRUÁ - Duas pessoas, na posição de dança-
Foi depois toca r por pontos rem a valsa, davam começo ao lundu. Depois apartavam as mãos,
O doce hmdum chorado. levantavam os braços, em posição graciosa, a tocar castanholas, continu-
ando a dança desligadas."
Era o bmdum predileto de pretas e pretos a(facinhas, ao som ele
zabumha e re beca, na Lisboa d'EI Re i D. Mig uel (Sketches of Pomtguese Esse Lundu estava despido elas umbigadas patuscas que davam sa l e
pimenta para a patuleia devota. Mas à volta de 1880 , já não era bailado
L?/e, 1826).
mu ito conhecido e sim ca nção, no tada por Sílvio Romero . Foi essa a forma
O lunclu era dançado com instrume ntos de percussão e depois ele
sobrevivente.
corda. ão seria cantado em Angola e menos inicialmente no Brasil. Pelo
O barão ele Sant'Ana ery explicou em Paris (1 889) os sortilégios elo
século XIX o Lundu possui melodias características q uando anteriormente
Lunclu: "Le LU DU est plus populaire, et on !e danse dans tout /e Brésil. I/
teria apenas o ritmo. O Lundu cantado, a canção elo Lunclu , ganhou popu-
est d'origine noire. Vaiei comment on /'exécute:
laridade no plano da simpatia. Sílvio Romero (Estudos sobre a Poesia
"Les danseurs sont tous assis ou debout. Un couple se leve et commence
Popular do Brasil, Rio ele Janeiro, 1888) escrevera: "Os hmdus são uma la fête. C'est à peine s'ils remuent en comm.ençant: ils font claquer leurs
variante elas modinhas; são mais intercortaclos e lascivos na música, e mais doigts bruit de castagnetles, levent 01 1 arrondissent les bras, se balancenl
explosivos na letra. São popularíssimos e festejados até nas trovas anôni- mollewtenL. Peu à peu, te cavalier s'ani1ne: i! évolue autour de sa dame,
mas como um tipo especial de poesia, o que se vê destes versinhos: comme s'il allait l'entourer de ses bras. Celle-ci, froide, dédaigne ses avcm-
Quando eu era p eq uenina, ce!J~· il redouble d 'ardeur, elle conserve son indif.f"erence souveraine.
E aprendia o !3-A, bá, Maintenant, les voilà face à face, les yeux dans les yeux, prf!sque hypnotisés
Minha m estra me en sinava par /e désir. Elle s 'ébranle, el/e s 'élance; ses mouvements deviennent plus
O lundu do marruá. " saccadés, et elle se trém.ousse dans un vertige passionné, tandis que la viola

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soupire et que les assistants, enthousiasmés, hallent des Mains. Puis, elle
s 'arrête, haletante, épuisée. Son cavalier continue son euolution pendant
u n instant; ensuite, il va provoquer une autre danseuse, qui sort du rang,
et !e lundii recommence fiévreux et sensuel. Le LU DU a eles charmes qui
toument les têtes les plus solides'' (Le Folk-Lore Brésilien. Préface du Prince
GuE~~As Do ANANis E DO AoACA1i
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
Rola ncl Bo naparte. Paris, 1889).
A mús ica mereceu atento registo de Oneycla Alvarenga, Música
Popular Brasileira, Porto Alegre, 1950, e um estudo especial e brilhante ele
J{ossini Tava res de Lima, Da ConceitUação do Lundu, São Paulo, 1953. De
..... declaro que ambas as plantas
sua impo rtâ nc ia , é suficiente esse trecho d e Oneyda Alvarenga: "Mário ele
venceram o ple iro, po is cada uma
Andrade acentuo u (em estudo inédito que me revelo u) a importância fez quanto pôde."
social dessa ascensão do Lundu. Antes do Lundu , a mús ica, as danças e as
festas elos negros eram cons ideradas um mundo à parte, que o branco Antônio José, Guerras do Alecrim
escuta va e via com condescendê ncia , mas não pe rmitia q ue entrassem no e da Mangerona, 11 . VIl (1737).
seu alvo mundo. O Lundu foi a primeira fonna de música negra que a
sociedade brasileira aceitou e por e le o negro de u à nossa música algumas
for toda a África elo Atlântico, Índico, mar Vermelho e Medite rrâneo,
conhece-se o abacaxi.
caracte rísticas impo rtantes d ela , como a s iste matização ela síncopa e o Perdão. Conhecem ao a nanás.
e mprego ela sétima abaL"Xacla ." Ananás é o nome que se derrama po r todas as línguas africanas e essa
ào 'e i d e s ua presença portuguesa, assina lada na segunda metade é a fruta cujo s umo escorrega por to das as gargantas.
elo século XIX. Antônio Arroio dividia , e m 1909, a te mática coreográfica As culturas são vastas e o fruto p o pularíssimo, notadame nte pe lo leste
lus ita na e m quatro zonas, e os tipos essencia is e ra m a Chula , o Fandango, e oeste elo continente, nas exte nsas plantações.
as Saias e o Corriclinho. Só dize m, porém, ananás, comume nte o A nanas comosus (Linn. Me rr),
Nunca ouvi mencionar o Lundu em Po rtugal. s ubespontâneo há mais ele cem anos pe la orla ocidental. John Grossweile r
Desa pareceu e m Angola. Vive como uma canção no Brasil. (Hora Exótica de Angola, Lu anda , 1950) a dverte que a designação de aba-
caxi é especifica do Brasil.
Não há mercado africano, o rie ntal e p e lo Atlântico, sem ananases.
Nenhuma re fe rê ncia ao abacaxi. Como se não existisse a de nominação.
O tipo mais facilmente e ncontrado , exposto à venda , mastigado pe los
pretos, é b em o ananás, ele polpa rija , amarelada , semiácicla , e mbora a
diga m d oce e gostosa ele Angola ao e nega l.
Tão é barato. Em Lo ure nço Marques c usto u-m e um Cr$ 150,00.
Pro f. Raymond Mauny (Notes Historiques Autour des Principales
Plantes Cultivées d'Áfrique Occidentale, Hulletin de I'Institur Françai
d 'Afrique oire, Dakar, abril , 1953) resume excelenteme nte a expansão d o
ananás, Ananas sativus, Schult, pe la região africana do p oente . Marees
info rma e m 1605 le fruit qu 'on nomme A nanas... est venu en ces pais par
les Portugalois na fortaleza de Mina, Elmina, Gana atual. Lacourbe cita-o e m
1685 na Gâmbia. Dapper, 1686, no Cabo Ve rde, Gâmbia , Rio das Pamas e

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Costa d o Ouro. Conclui o Prof. Mauny: // est aujou.rd'hui répandu partout A imagem soberana já ante riorme nte ocorre ra a Sebastião ela Rocha
em A.O.F. bien que nulle parti/ nefasse l'objet de cu!ture pou.r l'exportatíon. Pita (1660-1738) na sua História da América Portuguesa (Lisboa, 1730, I,
Taturalmente os portugueses não espe raram um século para levar o ana- 50) enumerando as ·'fruta s naturais cultas'': "Das naturais cultas há infin itas,
nás aos seus domínios africanos, sabendo-o de fácil cultivo e planta tropical. sendo primeira o ananás, que como Re i de todas, o coroou a natureza com
Empurrava-o um cortejo de aclamações. Gandavo, Léty , Thevet, Claude diadema das suas mesmas fo lhas, as quais em círculo lhe cingem a cabeça,
d'Abbeville, Fe rnão Cardim, Gabriel Soares de ousa, este em 1587, eufórico e o rodeou ele espinhos, que como a rque iros o g uardam ."
na minuciosa descrição cleliciada, proclamavam-lhe a primazia incomparável. enhum cronista elos séculos XVI e XVII menciona o abacaxi. Todas
esse te mpo não havia o abacaxi. Viajo u o ananás. as homenagens e menções são para o ananás, o régio ananás.
Ma::; nu Bra::;il cumempurâneo diz-se um abacaxi valendo problema, O problema é a o rigem do nome, a bacaxi, não falado pelos antigos.
complicação, dificuldade. O aspecto exterio rmente hostil ela b romélia jus- O padre F. F. Betendorf registrara e m 1699 uma tribo indíge na no
tifica a imagem. Xingu , denominada Abacaxizes . Há o rio Abacaxi, afluente elo Amazonas,
Esse nome abacaxi é mais ou menos recente no vocabulá rio usual do entre o Madeira e o Tapajós, desembocando no grande furo dos Tupi-
Brasil. Até mesmo o século XIX peJtencia ao ananás a unanimidade dos nambaranas. Beaurepa ire-Rohan , no verbete "Abacaxi" no seu Dicionário
louvores . de Vocábulos Brasileiros, 1889, informa , prudente e lógico: "Em relação a
Para os poetas nativistas elo século XVIII as fo lhas e brácteas que este assunto, farei apenas observar que há um afl uente do Amazonas cha-
e nvolvem o fruto, numa vigilante e áspera defesa, constituíam a coroa real mado rio Abacaxis. âo sei se desta circunstância d everemos inferir que
no domínio d e todas as demais. as marge ns d aquele rio são a pátria desta fruta ''. Milliet de Saint-Adolphe
Assim o evoca frei Manoel de Santa Maria Itaparica (1 704-1768): regista no seu Dicionário, 1845 , um ribeirão no distrito de Borba, no Pará ,
o ananás se vê como fo rmada com esse nome, e indígenas Abacaxi residentes nas suas marge ns. Em 1758
Uma c'roa de espinhos graciosa, a aldeia ''Abacaxis", no Amazonas, d enomino u-se Serpa. Indígenas e não
A superfície te ndo matizada as frutas.
Da cor que Citereia deu à rosa ; Teriam esses amerahas dado nome ao rio? Certamente. També m à
E sustentando a c'roa levantada fruta? Não me parece plausível pela inexistência dela nessa parage m.
.Junto com a vestidura decorosa, Batista Caetano fala e m ibácati é .fhtto rescende-nte; também se escre-
Está mostrando tanta gravidade, ve ibacachi. Esclarece: catí é rescender, cheirar bem ou. mal, p orém muito.
Que as frutas lhe tributam majestade. Com os ananás e ra mais fácil a tradução. De nâ-nâ, pe rfumado ,
Fre i José d e Santa Rita Durão (1720-1784) e rg ue lo uvação idêntica: cheira-cheira , duplicativo ele nâ, cheira r, rescender, cheirar muito, o na ná,
ananás, para o po11ug uês.
Das frutas elo país a mais louvada
É a lição de Teodoro Sa mpaio: "Naná; corr. nanã, o substantivo nã,
É o régio ananás, fruta tão boa,
Que a mesma natureza namorada no grau aumentativo - cheirão, o aro ma g rande , o que sempre che ira. É o
Quis como a rei cingi-la de coroa. nosso ananás (Brom.elia). "
Tão grato cheiro dá, que uma talhada Sobre o abacaxi: "s. corr. ibá-cachi, fruta cheirosa, rescendente.''
Surprende o olfatO de qualquer pessoa. O próprio no me abacaxi determinou essa confusão etimo lógica. A
Que, a não ter elo ananás distinto aviso, designação permite continuar-se e m estado d e d e bate. Alguns, a rredando
Fragrância a cuidará do Paraíso. a discussão, identificam o a nanás com o abacaxi e tra tam d este último
como sendo a fruta e logiada nos séculos XVI e XVII nos nossos primeiros
O poema d e Santa Maria Itapa rica imprimiu-se na Bahia e m 1841 e o
cronistas.
Caramuru, de Santa Rita Durão, e m Lisboa , 1781. Os dois frades morreram
Ananás não é abacaxi, e nsinam todos o s botâ nicos e é a ula primária
igno rando o abacax i e fanáticos pelo ananás.
em pomicultura a indispe nsável distinção. Plínio Airosa compe ndia doeu-

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mentos e dá longa no tícia no seu Termos Tupis no Português do Brasil (S. A história maranhense do abacaxi está pedindo um investigador.
Pa ulo, 1937). Quando, como e onde se origi naram as tais variedades? Anucla Câmara trou-
O padre Ca rlos Teschaue r sugerira abacachaí, equivalendo a cabelo, xera ele lá o abacaxi para Pernambuco e este seria o centro ele irndiação. Von
gre nha, alusão ao pe nacho que encima o fruto. Esse penacho motivou a Ma rt ius visita o Maranhão em 1819 e só regista o ananás. em uma menção
realeza do ananás para Itaparica, Durão, e antes a Rocha Pita. Mas não lhe ao abacaxi. Em Belém do Pará, escreveu: '·Menção particular merece o ana-
tro uxe o no me. Continuo u ananás. nás, que, em muitos pomares elos arredores, sem cultivo especial, chega a tal
Quando os étimos propostos para o abacaxi incluem o prefixo iba, tama nho, excelência elo suco e sabor, que justifica o seu título ele rei elos
não havendo documento dessa g rafia e sempre vimos o vocábulo iniciado frutos tropicais. Só em raro se e ncontra o verdadeiro ananás nas matas de
po r aba, varão, ho mem , macho, no ·e mprego vulgar do nhengatu . Os indí- Belém, e concordam os dizeres elos antigos plantad ores que a qualiclacle, hoje
genas do rio Abacaxi talvez possuíssem no me ligado a esses elementos, aqui cultivada nas chácaras, foi importada ele Pernambuco e elo Maranhão"
aba, ho me m, e não iba, fruta, co m terminação que não posso traduzir. As CViagem pelo Brasil, III). Tratava-se, evidentemente, elo abacaxi cultivado mas
etimologias, em percentagem esmagad o ra, são conjeturas que ficam sendo von Martius não lhe o uve o nome e sim o elo ananás, obstinadamente.
convenções, sustentadas com maio r ou meno r habilidade erudita ou atre- Singular é q ue , cem anos depois, o sr. Domingos ele Castro Perdigão,
vimento d ialético. no seu O Que se Deve Comer- Adaptação do sistema de alimentação vege-
Cre io que o abacaxi fruta, e os indígenas abacaxis elo rio amazõnico, tariana para uso dos brasileiros (Maranhão, 1918), registe várias receitas
são unicame nte palavras ho mofo nógrafas, de igua l escrita e dicção, dife- para a utilização elo ananás e nunca se refi ra ao abacaxi, justamente na
re nciadas no sig nificado. área onde Arruela Câmara afirmara haver recolhido as mudas iniciais.
Alfredo Augusto ela Mata (Vocabulário Amazonense, Manaus, 1939) a tradução brasileira elo Notas sobre o Rio de janeiro ele j ohn
escreve sobre o verbete : "Lembram pelo aspecto volumosa espiga ele Luccock, como observação ele 1808, encontro: "Abundavam também os
milho. Lê-se e m Be rto ni ser avachi o milho em guarani , e avacachi cor- abacaxis ... " ão pude consultar o o rigina l texto. Deve estar ananás. O
rupte la elo pró prio g uarani, ele que proveio a vulga rização ele abacaxi, em abacaxi, nesse 1808, estaria descendo em lenta divu lgação, elo norte para
quase todo o Brasil. " o sul. Do is anos antes elo ensa io ele Arruela Câmara. Em inglês não há
O a bacaxi é uma variedade cultivada do ananás (Ananas sativus, abacaxi. Para as Índias o inglês leva o no me elo ananás, através elo seu
Schult). Não há abacaxis silvestres. pine-apple; annasiparan em tam il , annanas em hindi (Manorama
Se o g uarani, segundo Berto li, de no mino u o abacaxi avacachi, Ekambaram , Hind u Cookery, Bombaim, 1963).
comparando-o a uma grande e grossa espiga de milho , avachi, abati, não Na versão brasile ira da Viagem ao Brasil, do príncipe ele Wied-
lhe dando desig nação específica, é porq ue o abacaxi fora resultado tard io , -Neuwiecl, deparo abacaxis em 1815 no interio r ela Bahia, no rio Guajintiba ,
possivelmente recente, advindo ela cultura do velho ananás amerínd io. O afl uente elo São Mateus: "Abacaxis bons ele comer não se encontram no
milho , cultura amerínd ia pré-histórica, crismara o arroz, quase nosso con- Brasil em estado selvagem, mas são fartamente cultivados nas plantações,
temporâneo, dizendo-se auati-í, milho-d'água. vinga ndo tão vigorosa mente como plantas silvestres. " Wiecl- euwiecl
A primeira informação científica é a do naturalista Manoel Arruela escreveu: Die essbare ANANAS wird in Bn~1silien nicht wilde gefunden, etc.
Câmara no Ensaio sobre a Utilidade da Instituição de j ardins nas Principais Ananás e não abacaxi. Em alemão não há abacaxi. Em 1817 Pohl não inclui
Províncias do Brasil (Rio de Janeiro, 1810): ·'ABACAXI. Bro mélia . Há três o abacaxi na sua relação e sim, no Rio de janeiro, o Brumeliu wiunas.
variedades de ana nás no Maranhão, chamadas abacaxi. Uma tem o fruto Nem o cita Russell Wa llace no Amazonas, 1848-52.
branco e as fo lhas não são em forma de serra. Noutra, o fruto é de cor os idiomas cultos ela Eu ropa penetrou o ananás. É o que aparece
púrpura, com fo lhas espinhosas. Não vi a terceira. Levei as duas primeiras figu rando nas enciclopédias ilustres.
variedades para Pernambuco onde as plantei e se vão tornando comuns, Outro indicado r é j ean-Baptiste Debret. Vivendo no Rio de janeiro de
reenviadas, po r pessoas interessadas, para as demais províncias. Seu sabo r 1816 a 1831, desenha as FRUTAS DO BRASIL, descrevendo-as. Comparecem
é superio r ao elas espécies que conhecíamos há lo ngo tempo. " o "ananás coroado" e o "ananás verde". Nada ele abacaxi.
Charles Ribeyrolles, escrevendo na capital d o Impé rio, e ntre 1857 e
1858, d esconhece o abacaxi: "Ana nás de Pernambuco? Primeira qualidade
e o primeiro pe rfume, senho r. Polpa te nra, d eliciosa, sem fibras. Não sei
de mais curiosa bro meliácea na Amé rica do Sul. " Esse ananás de
Pernam buco e ra, no te mpo, precisamente o famoso abacaxi. De Goia na, CA{l!NÉ
be m possível. •• • • • •
Estudando Camp os dos Goitacases em 1887, o dr. José Alexandre
Teixeira ele Melo informava: "O município produz ainda, e m abundância,
muitos frutos quase sem ne nhum c ultivo; o caju, o cajá, o ananás, moder-
na mente suplantado pelo abacaxi proveniente de Pernambuco" (Re vista Anela ndo d evagar pelos infindáveis Musseques, nesses do mingos le n-
d o Instituto Histó rico Brasileiro, XLIX, 2° volume ele 1886). tos ele Angola.' encontro , vez por outra, uma mulhe r com os d edos inquie-
Presente me nte abacaxi é o no me q uase único, vulgar, prefe rido po r tos na cabeleira d e ho me m de itado à porta d a palhota, ele barro, cobe rta
todo o Brasil. Tão impositivo que os tradutores de Luccock e de Wied- de colmo o u telha em goiva. Revejo assim o ca.funé, tradicio nalíssimo no
- e uwied le ndo ananás escreveram abacaxi pela fo rça do hábito, no no rdeste brasileiro, notadame nte nas praias e pelos sertões.
auto matismo usual ele um vocábulo familia r. Já lhe d ediquei o bstinada pesquisa no Dicionário do Folclm·e
Quando se verifico u essa substituição do ananás pe lo abacaxi? Brasileiro (Instituto acionai do Livro, 2" edição, Rio d e Janeiro, 1962).'
Naturalmente a cultura do abacaxi , sumoso, mais alime ntado, muito Ataques, defesa, o rigens, bibliografia, arte, histó ria e geografia elo Cafuné
mais d oce, foi e mpurra ndo para a suplê ncia alime ntar o a na nás histórico. compendie i quanto pude no assunto. '
Os estrangeiros multiplicaram os gabos porque na Euro pa as frutas tê m .? Prof. Roger Basticle examino u a Psicanálise do Cajim é (Ecl. Guaíra,
me no r índice d e sacarose e o a na nás pareceu-lhes uma maravilha açuca- Cunt1ba-S. Pa ulo-Rio, 1941).
rada . Era a ofe rta de supre ma guloseima : Que dirlez-vous d 'une tranche O viajante e uropeu ou na ne-americano fatalme nte confundirá o cafuné
d 'ananas? com o ato prosaico de catar piolhos. Dife re m, funcional e tecnicame nte.
As fru tas tropicais, pela irradiação solar concentraclora, possue m uma . Catar al~ué~1 é um dever afetuoso e demonstração de bem-que rer para
pe rcentagem d e açúcar infinitame nte supe rio r às frutas elos climas frios ou esses povos, mdigenas e amerabas. A recusa é uma injúria. u m elos alunos de
te mpe rados, mais ácidas. ~eli Chateia in em Luanda queixou-se ao mestre: So-and-So rfi!fitses to catch my
Até prova expressa e m contrário o abacaxi começa a sua história bra- hce! O mestr~ conclui: He considered that a great breach qfschool:fellowship.
sileira a partir da prime ira década do século XIX. No Brasil, todos os viajantes e naturalistas testificam a p redileção indí-
Pela África reina os a na nás . Desd e o século XVI. Missio nários e via- g~na pela ca ta~ão a te nta e demorada, com os dire itos naturais da recipro-
jantes me ncionam o a na nás, frutificando na segunda me tade d o século XVI ~Icla~le. Os .registos são multidão, de re paro a ntigo e conte mpo rfmeo, pelo
pe la o rla africana do leste, como no lito ral atlâ ntico. mteno r e Cidad es maio res e me no res.
Nunca o abacaxi. Não se tra ta dessa prática d e asseio ca pilar.
.O cafuné é uma ocupação deleitosa ele horas ele folga , pen Cia em
serviço da preguiça re po usada, ávida elas p e(}uem1s volúpias sem malda-
des, limpas ele intenção e ró tica prefig urad a. Aqui em Lua nda como na
cidade ~o atai, pelos bairros d o Alecrim e d o Areal, no sue to 'd ominical,
o ca fune comprova sua conte mpora neidacle positiva. Este nde 0 do mínio
elo hábito secula r e m ambas as margens do Atlâ ntico.

Edição atual- 12. ed. São Pa ulo: Globa l, 2012. ( .E.)

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l3e m sei que o ca funé reafirma mais uma presença de Angola no clormitaclores. Desa pareceu o escravo mas o branco herdara parcela valiosa
elo patrimônio gostoso. Nas cidades maiores, o nde a população se avolumou
Brasil.
Vivo no uso e fL'(ado no folclore. Começa pela catagem inconscie nte- na vinda ele imigrantes e convergência funcio nal pela necessidade elo setv i-
mente amorosa, provocativa de contatos, de hálitos perturbadores pela ço público, o negro, d iluindo-se na mestiçagem, não defendeu suficiente-
mente o cafuné como um uso sobrevivente elo costume antigo. Nas cidades
vizinhança .
que cresceram lentamente, o cafuné não mo rre u. Pelos sertões ficou resis-
Comadre. minha comadre,
tindo. Mo tTendo devagar, como El-Rei D. Se bastião em Alcácer-Quibir.
Comadre bastante ingrata;
ão tenho a meno r referê ncia elo correspondente cafuné entre os
Venha catar meus pio lhos
Que há muito . tempo não cata! sudaneses. Do cafuné africano, trazido pela Angola para o Brasil, e nsina-
va-me Oscar Ribas, o mestre em Luanda, desde janeiro ele 1958:
Mas não se traca apenas ele catar. Os dedos da mão denunciam a fina- "Etimo lo gicamente , cafuné é apo rtuguesamento d o quimbundo kifune, o
lidade precípua: verdade iro termo local ele emprego corre nte , resulta ele kufunata, vergar,
Dedo mind inho, torcer. Compreende-se: para a produção d o ruíd o, tem que se vergar o
Seu vizinho, polegar, quer estalando sozinho, quer também com o indicador, pelo
Maior de todos, toque das duas unhas, a do po legar na elo indicador. O cafuné , segundo
Fura-bolo, os apreciadores, para ser verdade iramente a petitoso, devia estalar fo rte ,
Cata-piolho. o u, confo rme o vulgo, gr·ifar. Esse efeito, no entanto, não era obtido por
Como catar é procurar, buscar, ·'cata-que-farás" deno minador ela ve lha todas as mulheres. Em resultado, existiram autênticas especialistas. Mesmo
rua em Lisboa, o indígena tinha vocábulo semelhante. Ca tar era cicare, não gritando, o sabe r pôr cafunés, na classe baíxa, constituía, a par da
cicari, procurado, buscado, catado; ciraresáua, busca ou catagem , info rma jimhumba (tatuagem), um dos predicados fe mininos. Do mesmo modo
o conde de Straclelli. Mas, pelo que se conhece, não possuíam os amerabas q ue uma mulher sem jimbumba se assemelhava ao bagre , assim ela, eles-
o cafuné , o fingir estalidos inseticidas, que Camilo Caste lo Branco incluiu provida dessa habilidade, não conquistava o título ele pe rfeita . Era ~~
na Corja. Morais averbo u no Dicionário: estalos, que são dados na cabeça, mulhe r que competia p ôr cafunés . Quando alg uém os pretendesse, pedia
como quem cata, com as unhas, para adormecer. Exato. O cafuné inde- a pessoa íntima. O ho mem , se fosse solteiro, soli citava-os a uma pare nta.
pende elo catamento e a explicação profilática é fal sa. Inteirame nte e rrada . Se namorava, à conversada , à ho ra elo idílio. E, se casado, à cara-metade.
É distração, prazer, tarefa ociosa. Em regra , as mães, para adormecerem as crianças, aco nchegavam-nas a
Eu só q uero mulher
essa estalejante carícia. O cafuné não apenas ex iste onde se fala o quim-
que faça café, bundo, ele Luanda a Malange, mas também se e mpregou , como ainda se
não ronque dormindo , emprega, em toda a Província. Na área de Benguela, entre os umbundos ,
e dê cafuné. diz-se xicuanli. Entre os quiocos e lundas , coxoholeno. A sua extinção nos
grandes centros, o u mais precisame nte, a sua eno rme decadência, eleve-se
Quem gosta de cafunés frui volúpias muito além elo que sonha a
a do is importantes fa to res: as dificuldades econô micas e a vertiginosa cor-
nossa vã filosofia . A sra . Elisabeth Barbosa Mo nte iro conta que o seu sogro,
rida para o Progresso. Nu primeiro caso, as criaturas dadas a esse prazer,
mesmo sob a tremenda ameaça ele um assalto elo cangaceiro Lampião à
com a maior soma de trabalho verificada em toda parte, de ixaram ele pos-
cidade do Crato (Cea rá), não dispe nsou os cafunés habituais ela velha mes-
suir a antiga largueza de ócio, a base fundamental do cafuné. E, no segun-
tiça: A chave da minha casa está ali nas mãos do Coração de j esus! Maria
do , as atuais gerações, pela aversão que sente m por tudo que tresanda a
Isabel, continue os cafunésf Aí está como o vício se torna heroísmo.
tradicio nalismo, nem sequ er pensam em tal coisa . Por isso, a decadência;
O cafuné só existe no Brasil por onde viveu escrava ria banto, elos
por isso, a aparente extinção. Daqui, o usar-se , só em reduzidíssima esca-
Congos e ele Angola. Divulgou-o numa contaminação incessante para seus
la, como que em desfolhamento de saudades.
descendentes, colaterais, e as mucamas viciaram amos e amas aos estalos

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"Constituiu o ca funé uma inveterada prática angolana, muito apre- Vivem ainda os fi éis ao cafu né. Morre u, realmente, o segredo pro-
cia da pe la doce o no lê ncia despe rtada. Usa ram-no ho mens e mulheres, vocador daquela inocente e voluptuosa sonolência intencional , como as
adultos e crianças. Mas só as mu .lhe res o aplicavam. A o pe ração com- derradeiras "crias de casa", as últimas matro nas sertanejas, mandonas e
preendia três p artes: a pre parató ria, a ento rpececlo ra e a fi na lizante . Na valentes, adormecendo os maridos e fil hos com a ponta elos dedos ágeis.
p re parató ria, fri ccio nava-se, com o indicad o r di re ito, lentame nte, sua- Os estrangeiros confu nd iam com a caça aos piolhos e lêndeas. As damas
vemente aq ui ali acolá e m todo o couro cabe ludo. a ento rpecedora ,
1 , ' )
e donzelas do cafuné não são les chercheuses de poux, dando motivo a
à med ida que se esfregava, vergava -se o po legar respecti vo, como q ue Rimba ud.
matando um pio lho, daí se arrancando, com habilidade, o estalido do Sem nenhum palpite difusio nista lembro-me da Índia diante da África
s uposto esmaga me nto . E, na finaliza nte, conseque ntemente no fina l da O riental. E na Índia o cafuné tem o nome ele chamotim, estalos ele dedos
fi ctícia ca tagem, a p li cava-se , nào uma mão, mas ambas, cada q ual em na cabeça para ad ormecer. Coincidê ncia o u velocidade inicial?
se u lugar. a prod igali zação desse mimo o u passate mpo, isto confo rme Eie uandaia kuijía o ima ioso; q ue re rás sa ber todas as cousas? Tentei
as circunstáncias , a o perado ra pe rma necia sentada , de o rdinário e m a purar a vaga notícia. O Dr. José Leal Ferreira J r. , da Embaixada do Brasil
este ira o u Iuanda (este ira q ue se e nro lava no sentido da la rg ura), com na Índia, atende u generosamente a minha curiosidade provinciana. O Prof.
as pernas estendidas, e o pacie nte, deitado, com a ca beça recostada no M. K. Kara nd ikar, do Departamento de Línguas Modernas Indianas na Uni-
seu colo . A ho ra mais pro pícia e ra a ela ta rde, sobretudo q uando o calor versidade ele Delhi, respondendo à consulta , informou por intermédio do
ape rtava, o u , e ntão, ele no ite, ap ós o jantar. De dia, fo ra de casa, a uma Prof. R. K. DasGupta, head of the Department qf Modern lndian Lan-
sombra elo q ui ntal o u de uma á rvore p róxima. E ele no ite, també m no guages. Deixo ficar no o rig inal inglês para mais fie l informa ção:
quintal, q ua ndo a família, em amen o e ntre tenimento, q ue r de cavaquei- CHAMOTIM.- The nearest Mamthi expression is "Champi ", a.form of
ra que r de passatempos seroava, o u ti p ica me nte , sanguilava , mormen- massage and shampooing The word is oid in Marathi. It is deriuable from
te ao luar. " the Scmskrit root (chap) (from which we get wheat Cake jlattened etc.). The
O ca funé continuo u inalterável no mo no pó lio das mãos femininas nasal occurs on the analogy of (Chwnb) to kiss.
no Brasil. Também melancólica a sua decadência brasileira. Além das The present practice o.f "Cbampi" consists in using a little oil (most~y
razões lógicas de óscar Ribas, vemos que o ócio se orie nta para o utras slightly.fragrant) and using it on tbe headfor massaging it. fl also includes
sublimações abstratas e concretas em resultados positivos. A ciência do massaging ali parts qf the bocly right from head to .foot. It is used botb for
Dopolavoro abre o leque elas tentações irresistíveis, esportes, praia, mon- wrestlers and ordinary peopie. Anyone deuisiting Cbowpatty (in Bombay
ta nha , passeio, danças, conversa ele bodega e bar, cinema, namoro com- opposite the Wilson Coliege, Bombay) woulcl meet a number o.fpersons offe-
pensado r, um jus Ludi q ue Jo hann Huizinga não poderia prever e menos ring to do "Cbampi" or massage for any amount from 4As (0.25nP now) to
deduzir. Mas nào desapa receu de to do. Docume nta-o pintu ra, escultura, a rupee or two; .fonnerly it cosi much iess.
versos, estudos. It may be that the Portuguese word "cafune" (if C pronounced like CH
Eu ado ro uma iaiá, in church and not K) may have an !ndian origin - possibly Marathi -
Q ue quando está de maré, where lhe Portuguese established themselues in Goa in the 16th Century.
Me cham a, m uito em segredo, 'l he word "Chamoti?n " may be a corruption derived .from this word
P'ra me dar seu cafuné. "Chumpi".
New Delhi, 10-9-1964.
ào sei qu e jeito ela tem Esse Champi divu lgou-se através elo inglês shampoo, xampu , loçào
No revolver elos ded inhos, pa ra lavagem e limpeza da cabeça, ind ustrializada e conhecida por todas
Q u'eu fech o os o lhos, suspiro . as mulhe res deste mundo.
Quando sinto os estalinhos.
Ao d iplomata José Lea l Ferreira Jr. , a que m elevo a mais distante inda-
gação elo Cafu né , todos os agradecimentos.

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O Chamotim hindu , massagem com ó leo perfumado, é quase univer-
sal e os negros africa nos empregavam o ó leo de dendê e de pois a mantei-
ga de vaca ames de qualquer uso culinário, registrada no século XV. esse
estado ele cultura , como notou Joest, citado por Karl von den Steinen, a
untura é anterio r à lavagem inte ncio nal. O Chamotim não é , funcionalmen- MAX)lA , JífOÍA E ~EDE
• • • • • • • • • • • • • • • • • • •
te, o Cafuné . Parece-me este, até prova expressa em contrário, uma ca rícia
banro. Talvez tenha partido da massagem na cabeça, tornada independen-
te. Mas, como a vemos n'África Ocidental e no Brasil. não há na Índia.

S abemos dia, mês e ano em que a brasileira rede ele dormir foi vista
pelo europeu: 27 de abril de 1500. Pero Vaz de Caminha denomino u-a,
visitando a residência dos Tupiniquins em Po rto Seguro, em que haveria
nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta
nau-capitânea. Eram de madeira e as ilhargas de túbuas, e cobertas de
palha, de mzoada altura; todas duma só peça, sem nenbum repartimento,
tinham dentro nzuitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos
cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, pam se aquecerem, faziam. seus
fogos. Sete nta anos depois, Ganclavo podia afirmar: A maior parte das
camas do Brasil são redes. Não havia transpo rte em rede e nrre os indíge-
nas. Dom inavam, nas tribos do litoral, as redes que os indígenas Aruacos
transmitiram aos Tupis.
Chamou-se REDE pela semelhança com a ele pesca. E ficou a deno-
minação para os cro nistas elo século XVI e até hoje no uso e abuso tradi-
ciona is. O no me indígena era INI e assim registraram Hans Staclen, Jean ele
Léry, André Thevet, Claucle cl'Abbeville, Jea n Nie uhof. REDE pa ra os por-
tugueses, óbrega , Cardim , Anchieta, Gabriel Soares ele Sousa, o Branclônio
elos Diálogos das Gralldezas do Brasil, fre i Vicente elo Salvador, Ganclavo.
De po is vieram quisáua amazônica, maquira, maca, vulgarizada
como o le ito naval. Monraigne informa sobre os seus "Cannibales": Leurs
licts sont d 'un tissu de coton, suspendus contre !e toict comme ceulx de nos
navires. Era a branle, o lit de matelot.
A rede ilustro u em 1555 o ponulano ele Guillaume Le Testu.
Francesco Antonio Pigafetta, companheiro de Fernão de Magalhães,
dezembro ele 1519, escreve no Rio ele Janeiro o apel ido aruaco, caribe,
com que os castelhanos iam-na d ivulgando, hamac, hamaca espanhola,
hamac francesa, a maca italiana, inglesa hammock, alemã Hangematte, a
portuguesa maca. atu ralmente há q uem diga hamaca orig inar-se elo
neerlandês bangmat, cama suspensa, no tipo ela branle. Pigafetta escreveu
sobre o ameraba em sua casa: Abitano in casa lunghe ch'essi chiamano

73
boi e dormono in rette di hmnbagia da logo dette AJ\!IACHE attacate nelli resgua rdado, e m pequenas jornadas, chamou-se ·'Palanquim ele Rede" . o
case stesse pe due capi a grosse traui. Os ho landeses, no domínio ele 1630 Brasil resistiu até a segunda metade do século XIX.
a 1654 , diziam hangemach e mesmo hamacca. Há o nome ele TIPOIA. O padre Fernão Cardim informava que o
Para a ocieclacle de Estudos Históricos Dom Pedro II estude i longa- ind ígenas "amào os filhos extraordinariamente, e trazem-nos metidos nuns
mente o motivo, Rede de Dormir - Uma pesquisa etnográfica (Ministério pedaços de redes que chamão typoya". Era, visivelmente, uma faixa para
ela Educação e Cultura , Serviço ele Documentação, Rio de Janeiro, 1959),' segurar a criança . Com essa acepção tipoia é charpa amparando o braço
com as info rmações possíveis e nu m plano sistemático. doente, poupando-lhe movimento . A mão na Lipoia, o braço na tipoia,
O rumo agora é diverso. Como dizem em Luanda, Dibulu diengi, comu ns no vocabulário popular. Mas TIPOIA é rede pequena , pouco
kim ln mgu kiengi, o utra lebre , outro lo bo. cômoda, ele qualidade inferio r mas rede de dormir. É termo vulgaríssimo
A rede era conhecida desde o México. Castelhanos e po1tugueses usa- pelo no rdeste . Lacerda e Almeida regista, no Mato Grosso, "as tip oias que
vam na Europa a cadeirinha, redução ela clássica liteira ro mana. Adaptaram a são como umas túnicas sem mangas, feitas ele algo dão" (1788).
rede como meio ele transpo1te, urbano e rural, suspensa ao lo ngo de um varal O pottuguês não levou a REDE e menos ainda a TIPOIA para Po1tugal
aos ombros de dois escravos possantes. É uma solução ameríndia. e sim para os domínios asiáticos e africanos, insulares e continentais.
O jesuíta Fernão Ca rclim, em 1583, registava: "Partimos para a aldeia Tipo ia é vocábulo indígena? tradelli informa: "Tipoi, tira de tauari ou ele
elo Espírito Santo, sete léguas ela Bahia, com alguns trinta índios, que com envira, que serve para fazer o aman·ilho elo paneiro que se leva às costas,
seus arco e flechas vieram para aco mpanhar o padre e revezados de dous preso à frente. O atilho que serve à mulher indígena para carregar o filho a
em clo us o levavam numa rede ." Mas continuava sendo cama. " em falta- tiracolo, ficando com as mãos livres para trabalhar. Tipoia (é nheengaru?) -
vam camas, porq ue as redes, que servem de cama, levávamos sempre rede para dormir, muito ordinária (Solirnões). Camisa de dormir. " Antônio ele
conosco. " Sa lie ntando os escrúpulos ele Marias de Albuquerque q uando Morais Silva (1764-1824), q ue foi senho r do Engenho ovo de Muribeca, em
Ca pitão-Mor de Pernambuco, frei Vicente do Salvador ano to u: " unca quis Jaboatào, Pernambuco, não registou Tipoia no seu Dicionário senão como
anelar em rede, como no Brasil se acostuma, senão a cava lho ou em bar- "Palanquim de Rede". Devia tê-lo entendido na região onde é vulgar. Pelo
cos." registo ele Fernão Card im e Stradell i, Tipoia será perfeitamente do idioma tupi.
Os doentes, velhos adoentados, não escolhiam o utra loco moção. o Inicia lmente, pe la África, Tipo ia era a rede suspe nsa ao va ral e con-
ro l das despesas do Engenho de Sergipe elo Conde, re lativo a 1645, lê-se: d uzida pelos negros, como aparece na gravura de Pigafetta, circulando no
"Item a hüa rede q me carregou por anelar indisposto .. . 80 re is; Item a h üns reino do Congo nas últimas décadas d o século XVI. Depois, século XVII
negros ele me carregare em hüa rede po r andar ind isposto ... 80 reis." ou finais ela centúria anterió r, deno mino u-se MACHILA, MAXILA (já citada
Pela Ásia (China, Índia, Japão, Arábia) estava o palanq uim, a cadeiri- e m Sofala por Frei João dos Santos em 1586), desde a fronteira portuguesa
nha o rname ntal, levada po r ho mens ou animais. O po rtuguês substituiu o ele Moçambique, Angola , Guiné e as ilhas, Madeira , Cabo Verde, Açores ,
estrado ele made ira pela rede e a posição senracla pe lo fo lgado descanso São Tomé. Heli Chatelain no fim elo século XIX, antes ele 1894 e depois de
deitado, talq ualme nte fizera no Brasil tropical. a Relação do Reino de 1885, em Angola, assim descrevia a Ti po ia: For long marches through the
Congo, de Dua1te Lo pes e Fillippo Pigafetta (Ro ma, 1591), estão as gravu- hush, it (a MAXILA) is replaced by the TIPOIA, which is a bammock han-
ras elo MODO DE FAR VIAGGIO & COlU"{ER LA POSTA, a rede pendente ging jrom a strong bamboo pole, to which a dais or canopy is fixed so as to
de varal, levada por do is home ns; ALTRO MO DO D'ANDAR ATTORNO, a protect jrom sun and rain. É exatamente o "Palanq uim de Rede" ou sim-
cadeirinha descoberta, e ainda ALTRO MODO D'A DAR IN POSTA, o plesmente a rede transpo rtado ra da aristocracia rural brasileira . Assim via-
palanquim , carregado por quatro servos. O primeiro era uma presença javam pela África O riental e Ocidental, notadamente enfermos e feridos,
po rtuguesa e os dois o utros orie ntais, embora po pulares na Roma republi- até poucos anos mas denominando-a MAXILA. Mesmo em quimbundo a
cana e imperial. A rede com co1tinas, travesseiro, para q ue se viajasse Tipoia d iz-se uanda. Na Gramática de Kimbundo, elo Prof. José L. Q uintão
(Lisboa, 1934) leio : Muene ua-ng'-ambatesa m u uanda: "ele mandou-me
Ed ição a tual - 2. e cl. São Pa ulo : Gl obal, 2003. (N. E.) levar na sua tipoia". Era termo usual para os brancos e não para os pretos

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q ue c riara m um vocábulo e quivale nte. Em Po rtugal d izia-se Tipoia o carro A MAXILA, para Chatelain, is a kind qf palanquin witb either side op en
meno r e rápido , mais leve, ou pe jorativame nte velho, estragado, re les. or screened by curtains. I! is used by the whites and well-to-do nalíues in
o Brasil de no minou-se SERPE TI A o Pa lanquim de Rede, mais the Portguese towns of West Aji"ica. Para jornadas curtas empregava-se a
confortável, cortinas longas, franjas, a lmofada de sed a, veículo das velhas Maxila e , para as longas, a Tipo ia. É o registo de He li Chate lain, reside nte
donas senhoriais ou moças donas donairosas. Ve ndo uma dessas, a lvo- e m Angola, obse1vador fie l. The Jact that Nzuá uses a maxila shows that
roçou-se G regório ele Matos na igreja ele São Gonça lo na Bahia: his residence was in the neighborhood of Loanda. Fosse ma io r o pe rcurso,
Estava eu fora esp erando, e mpregaria a Tipo ia.
Que o clérigo s.e revista; Em 1797 o governado r Lacerda e Alme ida escrevia ele Quelima ne: só
Quando p ela igreja entro u em mancbila se pode sair para fom de casa. Essa distinção tornou-se ine-
O sol numa "serpentin a". xiste nte e mesmo, ao redor ele 1920, dizia-se unicame nte MAXILA,
refe rindo-se à REDE ele tra nsporte. A Tipoia , vocabularmente, desapa rece-
Ces hamacs de coton s'appellent "Se1pentin ., (non p as Palanquin,
ra . Ninguém dela me fal o u e m Angola o u Moçambique.
comme disent quelques Voyageurs), a inda e m 1714 criticava o francês
Maxila, machila, machim, manchila, e ram mantas tecidas ele a lgo-
Amade u Franc isco Frezier que v isitara a e ntão capital elo Brasil.
dão. Obra das mãos cafres.
A REDE ele transporte continuava, modesta e útil :
Já não usam a Max ila e parece te r h avido proibição oficial. Imprópria
E impondo o vulto na rede, macbila, diz o almirante Sarmento Rodrigues, que governou tod as as pro-
Comecei de caminhar.
víncias ultramarinas portuguesas. Pe la Zambézia disseram-me a inda
Ao lado ela onipotente REDE, de sono , preguiça e transporte, a cade iri- e mpregá-la e m casos urgentes. Já e m 1927, Card ina ll afirmava para igéria
nha, cade irinha ele arruar, era a caracte rística por todo o século XIX brasile i- e Gana , antigas Costa elos Escravos e Costa elo Ouro: - hammocking is
ro. Em novembro ele 1858, Avé-Lallemant re parava na cidade do Salvado r: to-day almost a thing ofthe past.
"A mim pe lo menos parece que o inevitável me io ele condução ela Bahia, as Determinara um topôn imo e m Angola: Maxila, povoação em Que tá,
cad e irinhas, e ram como cabriolés nos quais os negros faziam as vezes de Golungo Alto, distrito ele Luanda.
cavalos. " Valiam a onipresença oriental do ríckshaw ele rodas, o veloz riqui- O português levara-a do Brasil pa ra a África Ocidental e Orie ntal.
xó, corrente na ilha ele Moçambique, puxado po r um pre to. Ainda em 1889, Duarte Lopez vira-a popu lar no Congo de 1577, transporte para sobe ranos
an o em que se proclamou a Re pública , Cardoso ele Oliveira descrevia a e fid algos. Fre i Joào elos Santos, descrevendo as guerras dos Muzimbas na
cade irinha na capital baiana: "... a velha, que deixara a senho ra na p otta elo Zambézia, em 1952, informa que os p ortugueses vinham diante do arraial
Convento, voltava elo beco elos Aflitos com uma cadeirinha ele transpone, dos cafres em machiras e andores (Etiópia Oriental, II, XVIII), de nuncian-
uma espécie ele palanquim antigo, mas formado po r grossas cortinas ele do red es e palanquins, vulgarizados mesmo numa tropa militar e m ma rcha
pa no escuro com arabescos dourados, ele forma quase oval, tendo duas de combate.
hastes ele made ira salie ntes para trás e para a fre nte , q ue descansavam nos Ficou a red e-de-transpo rte na ilha ela Mad e ira até a prime ira década
o mbros de dois robustos pretos africanos. Pa ra a liviar o peso, seguravam a elo século XX. A red e servindo ele le ito fo i sempre insignificante e lenta-
extre midad e ele um pau roliço , fazendo alava nca no ombro livre, e cruzando me nte desceu até a semitotal ausência nessa aplicação. A cama é o le ito
a o utra po nta p o r baixo com a haste ela cadeirinha. A '·mulher de capona ", no rmal do "branco" e praticamente ne nhum prero do rme em rede. Dorme
com muitas zumba ias, ajudou a senho ra a sentar-se, correu as cortinas de e m cama rústica, estrado, peles ele animais, este ira, pa lha forrada, mantas.
um lado e, postando-se elo outro, seguia a pé, conve rsando com ela. Um E o mais ordinário neles é dormirem no chão, escrevia, elos cafres elo
gên ero de condução muito original, aventou Ricardo . -É a inda um legado Índico, Fre i João dos Santos e m 1586. A rede ficou sendo o cômod o e
colonial, que já se vai acabando, info rmou Álvaro. - Hoje quase exclusiva- natural veículo ele viagem para o e uro pe u. Os soberan os e potentados
me nte rese1vaclo ao tra nspotte de doentes, acrescentou o pai" (Dois Metros africa nos possuíam o aparatoso pala nquim, o andor para frei João elos ·
e Cinco, 23 e d ., Rio ele Janeiro, 1909) . Santos, e m que compareciam às festas. A inclusão cl~s redes nos atributos

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do cerimo nial só ocorreu o nde o po1tuguês desfrutava influê ncia econ ômica O uso privativo para reis, chefes, fidalgos, afastando a divulgação
e milita r, Congo, Daomé, El Mina , a Mina e m Gana, e pelas costas, do popular, restringiu a rede a um orna me nto de luxo e ele e tiqueta, facilitan-
Marfim, d os Escravos, d o O uro , da Pimenta. Um centro irradiante fora Ajuda, do o esquecimento. O uso, que nunca se tornara geral p ara o pre to , quan-
Ajudá, Ouidah, Whydah , com sua corporation des hamacaires, transportado- to às suas finalidades tradic ionais, dormida, descanso, jornada, resistiu na
res excepciona is. A tradição é que o Brasil seguia exp ortando redes para a segunda metade do século XIX e primeira década do subsequente como
África como ainda e m 1820 vendia-as do Rio Negro para as Antilhas. Na trans po1te dos brancos p elo oeste e levante. Jam ais figurara como e lemen-
primeira metade do século XVIII Jean Baptiste Labat podia informar que les to indispensável no interior da palhota africana.
plus beaux hamacs viennent du Brésil. Os mercados d istribuidores seriam Assim, e m Lua nda de abril ele 1963, não havia uma única rede. Nem
Luanda e Ajudá. Creio muito pouco n as indústrias africanas da rede no plano mesm o como objeto ele exposição etnográfica. Um grande estudioso da
da suficiê ncia. cultura po pular de Angola , 6scar Ribas, veio conhecer e deitar-se na pri-
Os grandes viajantes pelo contine nte africano, Livingstone , Stanley, meira rede em nossa residê ncia em Natal, 20 ele dezembro ele 1963, no Rio
Wissmann, Cameron, Spe ke, Burton, Schweinfurth, não a ludem à rede o u Grande do Norte, nordeste elo Brasil.
a mencionam em te rras de pegadas lusitanas. Normalme nte p ara passeio e
viagem. Lacerda e Almeida, Gamito, Serpa Pinto, Capelo, Ivens, etc.
O Prof. K. G. Lindblom (The Use ofthe Hammock in Africa, Estocolmo,
1928) pesquisando o assunto disting uiu , q ua nto ao uso ela rede, duas
áreas. A primeira: In the Lower Gongo and Loango, and on the Slave and
Gold Coasts - and apparently also on the Ivory Coast- it is practically used
exclusively by kings, chiefs, and distinguished people generally. To the great
masses oj the people it does not seem to have descended. A segunda consists
of Liberia and Sierra Leone, and surrounding regions. Here it is used not
only as a travelling conveyance but also, and perhaps mainlyfor resting is,
though hardly as a bed at nights but for siesta, whether it be in the home or
in the palaver-house C!f the vil/ages.
Antes ele 1600 a re de, como m e io d e transpo1te, o hanunocking, esta -
va do Congo no Atlâ ntico à Zambézia no Índico. Decorrenteme nte pelo
Sudão e Niger.
O Brasil fico u , através do te mpo, fie l ao uso ela red e, utilizando-a para
dormir a p ossível quarta pa rte de sua população to tal. Cerca de 600 fá bri-
cas funcionam , atendendo o m e rcado consumidor nacion al. Não é uma
"curiosidade " mas uma "permane nte", básica em milhões e milhões de
residências brasileiras. Como transporte desapareceu a serventia , exceto na
condução de de funtos n 'a lgumas regiões do a lto sertão, nortista e sulista .
A rede não se limitou aos indígenas mas acompanhou o m estiço e a
descendência branca contemporânea. Natura lme nte os portos africanos de
intercâmbio comercial mais intenso e contínuo com o Brasil fo ram as agên-
cias naturais dessa penetração, interrompida com a suspensão do tráfico
de escravos, desaparecendo a navegação direta com a costa do poente
africano.

79
ao serviço de minha importunação. Ouviu ainda Pilar García ele Diego e
ieves ele Hoyos Sancho, e tnógrafas em ine ntes. o essencial , informava-
-me: " o existe esa posición ele descanso e n una pierna sola de una mane-

NílOJENSJElluNGEA fosíçAo DO Socó ra general. Pe rsonalmente no conozco más que la de estar con una pierna
apoyando la o tra cloblacla con e l pié puesto en la pareci. Pilar García ele
• • • • •• •• • • • • • • • •• • • • • • • • • • • • • • • • •
Diego me clice sin poderio precisar si fué en el norte ele Castilla y León o
en Asturias (ele todos modos son zonas limítrofes montanosas y frías) en
las que ha visto a los pastores en la cocina dei pueblo apoyarse e n la forma
q ue Vd. dice, pero sosteniéndose e n la pareci y apoyando e l coclo e n la
P e lo O RDESTE elo Brasil w~a .?osição muito p~p~llar c~·ian­
e ntre as roclilla cloblacla y el pié ele ese lad o e n la roclilla o pu esta tal como Vd. la
ças, e üs vezes vis ta n os adultos, e por a planta elo pe cltre tto na face mte- cl ib uja, pero siempre, repito, a poyándose e n la pareci, no sosteniénclose en
rio r da coxa esquerda. Ou vice-versa. É um gesto ele descanso embora un pié como las grullas . ieves de Hoyos no con oce tampoco esa posició n
pa reça ser de equilíbrio instável. Nunca a consegui ver pelos sertões. como habitual en nuestros cam pesinos" (Carta ele Madrid, 23-XII-1959).
Pro íbe -se fo rmalmente que uma me nina a execute. Reprovam-na nos rapa- O grande e tnólogo da Beira, mestre Jaime Lopes Dias (Lisboa,
zes quanto m ais nas moças . 1 o povo e ra e continua sendo comum. 10-Xll-1959), ma ndou o gentil depoimento: "Quanto à consulta , sobre a
Quando minha avó materna e ncontrava-me "faze ndo-o-quatro" na altu- posição de pôr o pé na a ltura do joelho ela outra perna, nada conheço
ra elo joelho na o utra pe rna, ralhava: Desça essa perna, menino! ... Você não nem sei q ue tenha existido em Po rtugal. Posição parecida existe e
é socó/. .. Socó é uma ave pe rnalta, aquática, Arde iclea, que costuma fica r p ratica-se entre nós, em todo o país, para sa ber se uma pessoa está bêbe-
longamente nessa posição estética, com uma pata mergulhada n'água e a da, etilizada, e a que chamam fazer o quatro. Mas então a perna direita
outra encolhida. Dizem que a p osição decorre duma imitação servil ao socó. não assenta sobre o joelho da perna esquerda mas cruza-se com esta
Q ue m não conhece essa técnica juvenil por todo o litoral brasileiro, perna na altura elo joelho ou um pouco acima. Se a pessoa está bêbeda
notadame nte ela Bahia para o no rte? Comu m , d iá ria e vulgar. d ific ilme nte se equilibra nesta posição!"
Como as cousas cotidianas se bana lizam pela exibição no rmal, nunca Temos n o Brasil , e com idê nticas fin alidades, verificadores, o fazer o
d e i aten ção à posição do socó, corre nte na cid ade elo Nata l. quatro.
À volta ele 1947 li no suíço Freei Bla nc hod que, para os Chours, do Luís Chaves, doutor em borla e capela ela cu ltu ra popular portuguesa,
Nilo Bra nco, "a sua posição favo rita é pousare m no chão só um dos pés, não me negou o auxílio, n uma amável carta de Lisboa (7-Xll-1960):
apoiando o o utro na face inte rna ela coxa: conseguem o equilíbrio "Demore i resposta à consulta ele 27-XI-59, porque me proporcionou um
apoiando-se a uma lança''. Le ndo o Índios do Brasil, do gene ra l Cândido pequeno inquérito entre geme elas pesqu isas etnográficas e gente do povo
Rondon (Rio ele Jane iro, 1946), deparei com duas fo tografias, ele pesquisado: as respostas levam tempo e algu mas nem chegam a vir. Que
hambiquaras, no rte elo Mato Grosso, e Pa rintintins, ela bacia do Madeira , apurei? Apenas isto: - descanso ele um pé sobre o joelho ela outra perna
a lgu ns indígenas n essa confo rtável situação. A posição elo socó estava no pode te r havido por cá; hoje, porém, não se verá senão isoladamente e
ilo Branco, África setentrio nal, e norte elo Brasil , com os testemunhos mais como prova ele habilidade elo que por hábito: o que mais se aproxi-
pessoais de uso nordestino e banal. ma da posição de cegonha, ou elo Nilotenstetlung, é a de o homem se
Por interméd io ela Embaixada d o Brasil na Su écia, recebi o estudo elo e ncostar a uma parede , equ ilibrar-se numa perna e dobrar a outra até
Prof. Gerha rd Linclblo m, The One-Leg Resting Position (Nilotenstellung) in assentar a sola elo pé na parede; disse um dos inquiridos que, se a cegonha
Africa cmd Elsewhere (Estocolmo, 1949). É a in formação básica no assunto. levanta ora uma ora outra p ara, a modos ele da nça, também os dançadores
a forma habitual d a indagação, procure i saber da existê ncia ela One-Leg elo fandango ribatejano p arecem cegonhas, quando em ritmos ela dança
Resting Position na Espanha e Portugal, po de rosas fontes ele costumes bra- levantam alternadamente os pés, parecendo por vezes que ficam no ar.
sile iros. O Pro f. Dr. A. Casrillo de Lucas pôs a sua erudita prestimosidacle Pelo visto, não p osso servir V. S. com info rmações e fotografias. "

So 81
Por essas notícias, generosas e definitivas pela autoridade dos infor- viano, com os Ashluslay assim como os Lengua do Chaco Boreal. Incluam-
mantes, não tivemos o nosso .feito do socá o riginado em costume espa nho l -se os Cainguás, vizinhos elos Guayaquis do Paraguai. Os Savajé apontados
o u português. por Krause no rio Araguaia. E os dois grupos estudados pelo general
O estudo do Prof. Gerharcl Lindblom permite fixar o itinerário do Ronclo n, hambiq uaras do norte do Mato Grosso e Parintintins da bacia
mo tivo. Começa e ntre os felás ele Luxor, d istrito de Hizâm, no Egito . do rio Madeira. Dos Nhambiquaras do alto Guaporé, Levy-Strauss divulgou
Praticam essa fa vourile altitude qf restos Bisharin , Hadencloa, Beni Amer, uma foto com essa posição sem salientá-la. O Prof. Egon Schaden
Soho à margem do Mar Vermelho e mesmo os Somalis do cabo Guardafui. comunica-me gentilmente os Surara e Pakidai elo rio Demini, afluente do
Do Egito, essa resting position desce pe lo Sudão , adensando-se nessa Rio Bra nco.
região e Etió pia, vindo pelo inte rior.de Quênia e Tanganika, derramando- A one-leg resting position mantém uma viva re presentação nas regiões
-se nos bantos centrais . Para Moçambique vai rareando, notada entre mais diversas do mundo, África setentrio nal oriental central ocidenta l
Chonas e Angonis, e pelas Rodésias. ""' ' ' '
Asia, Oceania , Austrália, Europa (o cigano da Romênia) e os grupos indí-
'
Do seu maior centro irradiante, Sudão-Etiópia , não avançou notada- genas d'América do Sul. Uma investigação pela América Central e do
me nte para oeste. Grandes zonas do Congo não fo ram notadas. Pelo o rte, fronteiras da Sibéria, talvez revelasse vestígios de esquecidas vias de
Atlântico, e m Angola, marcam-na nos Kuanyamas (Cunhamas), Humbe penetração.
(Masumbe), Batshioco (Quioco) e Bayaka (Jaca). Para o poente , acusam-se Segue-se um período de concordâncias e ajustamentos. A posição
os pigmo ides Babongo das florestas ao norte de Sibiti, no antigo Congo nilótica only ro be p ractised by males, from young boys to old men. Exato,
Francês; Wuta do Camerum; Kona da igéria ; o imediato Lobi; o Guro ela excluindo-se o velho que não a usa. É uma prática de meninos e rapazes,
Costa do Marfim; Gola da Libéria; Mandi, mandinga da Guiné e iger; o adultos jovens. As meninas sabem perfeitamente a técnica mas há uma
Sussu da Serra Leoa vindo desde o Senegal a Angola o nde é o Damba . re provação imediata . Dava-me a impressão de uma proibição religiosa ,
Cita-se o Coniagi in Portuguese Guinea , que não consigo identificar entre formal, provocando a defesa dos mais idosos sempre que houvesse a cons-
os gru pos contemporâneos dessa província. Visitada em 1963. tatação no uso femi nino .
Ainda não existe bibliografia esclarecedora para a África setentrio nal Aqui pelo no rdeste do Brasil não podia ocorrer a restingposition para
e austral. uma determinada classe o u profissão, no tadamente pastores. Trata-se ele
Pela Ásia, e ncontraram-na na Índia centra l d o oeste, Estado Barwani, uma ação instintiva, a utomática, ele espectação, sem q ue influam anteriores
nos pastores Rajput; em Betul, com hindus e Gonds; coolies ele Bombaim e capitalizações experimentais. Falo pela minha própria experiência, useiro
Karachi; faquires em certas atitudes o rantes em Calcutá; acrobatas em solu- e vezei ro nessa posição até os possíveis 15 anos.
ção ginástica em Tarikeri, Mysore . Ide nticame nte entre Vedas, Toradja, do ão vi em atai nenhum ad ulto ficar nessa posição. Unicamente
Ceilão; Nagas Konya k de Wakchin. Na China fo ram vistas em Pekim, meninos e rapazes novos, até 18 o u 20 anos.
Taiyuanfu, Shanghai. Também pela Nova Guiné, nos Papuas, adultos e Publicamente , nenhuma menina será vista nesse modo do socó.
crianças ele Aroma , perto de Clo udy Bay, na ilha ele Coutance. a Austrália, Tentou-se articular a posição com certas exigências religiosas, ligadas
nos Mangula de Kimberley. os Kenta, Semans de Peark e Kedah, na aos de uses o u espíritos unípecles, Luwe elos Bailas, Chermos dos randi,
Malaia. Nas Celebes. ogros elos contos populares d o levante africano, e ritos ele iniciação,
Na Euro pa , apenas nos ciganos Ruclari o u Bagesi, de Zlacu ou La anteriores ou posteriores à circuncisão, dos lacas do sul de Angola e nati-
Glod, nos Cárpatos, e ntre Pietrosita e Sinaia , na Ro mênia. vos da Austrália, permanecendo longame nte, num pé só, perna dobrada.
Passa a Nilotenstellung a registar-se na Amé rica elo Sul. O nosso único duende pe rneta é o Saci-Pererê, ausente do nordeste
Ano tam nos indígenas Chimila do rio Ariguani, no rte de Colômbia; e norte elo Brasil e que jamais possuiu c ulto . ão vive justamente na região
Nomaná-Chocó do rio Docordó, oeste colombiano; Siriono, do d istrito de onde a One-Leg Resting Position é mais popular e atual.
Casarabe, no leste ela Bolívia. Na mesopo tâmia Guaporé e Paraguai, Teria vindo essa posição elas populações ao de rredor do Nilo, o nde é
Bolívia e Brasil, e ntre os Huari. Também no rio Pilcomayo, no Chaco boli- mais comum e documentadamente existente, determinando a denomina-

B.z
ção. Seguiram elas as migrações hamitas, do norte para o leste e deste para lhicla pela semelhança foi o socó, da família elas Ardeídeas, com muitas
o sertão, rumo ao poente negro. Procura-se identificar, pela percentagem va riedades, entre essas o Socó-Boi, Tigrisoma brasiliensis, vu lga r.
da influê ncia n ilótica, o uso plagiador elas Ardeídeas. Vimos que a velocidade inicial ela posição, em zonas geográficas,
Seriam esses hamitas os clivulgaclores no continente negro. E ainda do partiu das o rlas elo Nilo, abunclantíssimas em pernaltas, algumas diviniza-
Nilo teriam passado pa ra a Índia. Quase sempre o e lemento cultural vem das. Todos os demais g rupos imitadores, em alta maioria, fixa ram-se ao
da China para a Índia mas agora processar-se-á o inverso. Egito-Índia- lado elos cursos fluviais, em qua lquer situação estudada , África , Ásia , mares
-China e desta , e da Índia, a difusão para os mares do sul , até a Austrália. elo Sul, Austrália , América Austral. 1 e nhuma dessas tribos deixou ele pos-
Interessa-me a presença da posi~ào nilótica , a Ni/otenstellung, no nor- suir um rio lindeiro ela povoação. em um povo sem água próxima, sem
deste d o Brasil , não e ntre indígenas que não mais os possuímos nem a fácil utilização dos rios e dos lagos, os povos elo deserto, bebendo nos
ex-escravos negros que também não existem, mas em pleno uso popular, poços exíguos, nas cacimbas perfuradas no areal, nas cisternas de reserva,
de brancos, pretos e mestiços, com a naturalidade de um hábito muitas conheceu a arte ele ficar nessa curiosa posição. Nesses casos materiais não
vezes secular. há igualmente ambiente pa ra as pernaltas cismare ntas, ele perna dobrada.
ão a recebemos por intermédio de europeus porque na Europa Po r que a representação humana da atitude não recordaria o modelo
clássica , notadamente nas regiões formadoras ela cultura popular ameri- o rnito lógico, comum, visível, habitual aos o lhos cotidianos elo povo? Uma
ca na , Espanha-Portuga l, a One-Leg Resting Position não foi registada, ora l explicação clássica indica o animal como iniciador ele certas atividades
o u impressa. humanas. a eleição ele frutos e raízes, na técnica ele subir às árvores, na
Acreditar qu e tivesse vindo pe lo estreito de Behring ou Alêutidas, com iniciativa ela natação, e mesmo para defender-se , primariamente, arrojando
os pré-mo ngoloides, será devaneio erudito. projéteis, o animal fora o esboço, o anterior mestre instintivo .
Todos os indígenas sul-americanos que conheceram a Niloten.stellung A posição acocorada, o estar de cócoras, o inglês diz to be duck, imi-
tiveram contato c ultural com os negro africanos , diretamente pela aproxi- tar, ser como o pato. Por que não dariam os Arcleícleos elo ilo Branco,
mação dos q uilo mbos, aca mpamentos ele fugitivos ocu ltos nas matas, ou aceitando o dogma d ifusio nista , a sugestão imediata e clenominadora para
por interferência, ele gru po-a-grupo, mesm.o sem a intercorrência imediata. o Niloten.stellun.g? E quem provará que outros povos desconheceram essa
Animais e plantas cultivadas pelos e uropeus, nas primeiras décadas do restingposition até que descessem as emigrações hamitas divulgacloras? Ça
século XVI, dispe rsaram-se, ating indo os recantos ma is lo ngínquos, viven- n 'empêche pas d'exister, diria Charcot.
do no ambiente elas tribos mais recuadas e arredias ao convívio elos bran- Invento r nilótico, concedo, mas africa no-negro o ampliador e foi esse,
cos. A banana (Musa sapientum), o inhame (Diocoreáceas) , os cães, os para mim , o transmissor da One-Leg Resting Position para a América do Sul.
ga lináceos, foram os melhores exemplos. A única prova expre sa em contrário será um autêntico desenho pré-
O Prof. Linclblom, sabiame nte, adverte : In any case J.find it d~fficult, -colo mbiano. É bem po sível surpresa pela América Central , insular e elo
in this connection, to link together South America and Old World. 1ão orte, não investigadas.
ho uve, realmente, conexão alguma nesse ângulo. O missing link foi o Para o Brasil, mercado consumidor de milhões ele escravos bantos e
escravo africa no elo século XVI. Negros cl 'África Ocidental, bantos e sucla- sudaneses, o caminho não me pa rece o utro e ainda menos provável um
neses, tro uxeram essa resting position., especialme nte without any support, diverso portador. A presença das pernaltas brasileiras avivou a lembrança
característico. da posição q uerida e velha, fazendo-a uma permanente nas populações
Qual a origem ela posição? It is ohviously no attempt to imitate wading- mestiças e brancas do nordeste.
birds that stand on one leg, opina o Prof. Lindblom.
Parece-me não ter tido o utra o rigem o u pelo menos o utra sugestão
imitativa mais poderosa e plausível. A posição provoca inevitavelmente a
imagem comparativa das aves pernaltas q ue ficam, horas seguidas, com
uma perna encolhida, à beira d'água. Pelo no rdeste d o Brasil a ave esco-
no é condição fundamental. Não descobrir-se na passagem das imagens
em procissão não e ra apenas pecado mas crime ele omissão, de lito punível
sem remissão.
Esses atributos vivem ainda na África negra com a natural intensidade
A SAUDAÇiO Af~íCANA compreensiva, indispensacla, básica para o edifício social.
• • • • • • • • • • • • • • • •• • Ningué m se ad verte ela antiguidade usual desses gestos d iários. Agitar
os dedos em adeus, conw vai? Bom. dia! O valo r po deroso da saudação
militar, a mão na pala d o quépi. A mão na fronte como um cumprime nto
entre soldados e para os superio res, era comum na Roma Imperial e temos
"A tout seigneur, tonte honneur!" seus registos nos camafe us e vasos documentais.
Ainda hoje aplaudimos batendo as palmas. Aquela pe rcussão terá uma
Q ualq ue r estudioso de E.tnogt~afia sabe. q ue b:ter as ~alm~.s das ~ãos força de expressão convencional tão profunda que nenhuma mo dificação
e e rgue r 0 braço fo ram as mats anugas mamfestaçoes elo tegozl)O humano. ele cultura , revolução social ou estad o de progresso consegu iram anu lar.
ino-uém e nsinou nem o costume obedeceu às leis ela transmissão clifusiva. Porque bater as palmas seja uma aprovação, um ato de solidarismo coleti-
o f .
São gestos instintivos e que tiveram, há milê nios, significação que se O I vo, é que não sei explicar, justame nte pela a bundância das interpretações
ampliando o u perdendo no decurso dos séculos. . erud itas. O fa to no tó rio é que na era ela desintegração atômica o homem
Foram os movimentos ele braços e mãos, mais visíveis e compreendi- aplaude como há milênios e não sabe por q ue choca as duas mãos, obten-
dos, as ho me nagens iniciais de ho mem para homem, como contempora- do esse barulho que enche de alegria íntima o ho menageado. Por toda a
neamente ocorre. Os gestos com a cabeça, na intenção da vênia, te riam África o preto dá as palmas na mesma intenção elo resto do mundo. Não
vindo posterio rme nte. As saudações com os braços, mãos agitadas, e aprende u com os árabes nem com os europeus. Os prime iros viajantes
depois com a cabeça constituem o nosso cerimon ial obrigató rio na exigên- registam os negros batendo palmas. Forma mais primitiva e comunicante
cia do convívio of human beíngs as creatures of society , como a senho ra de sa udar e exprimir concordância. um plená rio da O U não há fórmu-
Ruth Beneclict definia a Antropologia. la diversa. Nem são dispe nsadas na recepção de ne nhum Chefe ele Estado.
Se pe nsarmos que há mais de duzentos anos que o homem não con- Entre os indígenas brasileiros o processo era idêntico. Notadame nte
seguiu ''inventar" um c umprime nto novo, teremos a impressão de sua para o povo tupi , ele mento histó rico mais importante na fo rmação étnica
presença significativa na quarta dimensão. e na elaboração cultural do povo. As aclamações eram de nominadas poce-
As sa udações de mão, os dedos em determinadas posições, valendo ma, ele po, mão, cema, rumor. Parece-me suficiente e claro.
uma cortesia integral, estão indicando estágio mais adiantado na conven- Erguer o braço seria gesto de caçad o r, d ecorrentemente de gue rrei-
ção ela etiqueta. ]. H. Farquhar estudou na África elo Sul , acentuadamente, ro , levantando a lança, afirmando-a estar ao serviço d o aclamado. Entre
a significação elas saudações com a mão e os dedos, numa g radação cor- bantos e suda neses é a saudação mais corrente e natural nas estradas.
responde nte aos níveis da chefi a negra. Les honneurs changent les nwe~rs. Para as mulhe res bater as palmas, reparo de Lacerda e Almeida na
Todos os orixás jeje-nagôs possuem vênias especiais, com denomma- Zambézia d o século XVIII . Inútil le mbrar a universalidade do gesto pe los
çôes pró prias. As prosternações, já registadas pela África uci~ental . n~ povos q ue caçam e g uerreiam, seja qual fo r a região do mundo. Os "civi-
século XV, resistem no ritual elos candomblés na Bahia, no dobale e no tka, lizados" não puderam a inda libertar-se d o automatismo dessa saudação.
obrigando o devoto ele santo masculino a ficar ele bruços ante o Pai ele A saudação universal é uma concordância de gestos da cabeça e do
Santo o u Mãe ele Santo, caso do iká, ou apoiando-se nos quadris e ante- braço. O africano , verdadeiro e natural, erg ue o braço, levantando a invi-
braço, tocar o solo com o lado direito e depois esquerdo do corpo, se sível lança glo riosa. Baiéte!
possuir santo feminino , ritmo do dohalé. Nos grupos hierarquizados pela O aperto ele mão estava ausente do Brasil velho assim como n'África
função religiosa o u política a iniciativa da saudação po r parte d o subalter- negra e verídica. É uma influência e uropeia. Ainda e m 1884 os Bacairis elos

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arredores de Cuiabá ignoravam o aperto de mão, surpreendendo a Ka rl e s im essa aspiração amorosa, também existe nte entre os esquimós (R.
von de n Steine n. Naturalmente os historiadores e poetas antigos, Ho mero, F. Peary, My Arctic }ournal, Nova York, 1893; Wencesla u de Morais,
Heródoto, Tiro Lívio , Tucídides, Tácito, Teócrito , Aristófanes, os trágicos 71·aços do Oriente, Lisboa, 1895; Luís da Câ mara Cascud o, Superstições
gregos, registam, como cumprimento, pacto, p romessa. Cre io que os roma- e Costumes, Rio de Janeiro, 1958). ão posso info rmar se o cheiro teria
nos conheceram depois da conquista do Mediterrâneo, da Ásia mais pró- vindo da China , via Índ ia, para a África O rie ntal. O árabe não o tem e
xima. A saudação romana não compreendia , o utro ra, o aperto de mão. Era sim abraço e beijo, tão ca ntados nos seus poemas capitosos. Ig no ro sua
o braço em diagonal. O a peno ele mão terá um conteúdo psicológico mais acl imatação e m Portugal.
intenso , mágico pela transmissão ela força comunicada, afirmação pela Compreende-se que o preto africano tenha aproximação e uro peia
intensidade da pressão e nérgica. Erg uer o braço era mais simples, mais desde finais do século XV. Regras de etiqueta branca penetraram o prOLo-
no tório e ornamental no movimento de conjunto . Curiosamente seria o colo negro, insensível e teimosamente. Tendo-se presente as velhas fontes
romano o propagaclor d o aperto de mão pelas terras onde suas legiões de informação, as narrativas dos séculos XVI-XVll e os primeiros livros de
levaram a loba de bronze do minadora. viagem elo século XIX e finais da centúria anterio r, é possível da r o natural
O beijo-saudação é uma presença de é pocas histó ricas e foi exportado desconto às notícias conte mpo râneas, notadamente quando o viajante
para Grécia e Ro ma pelos cultos orgiásticos de Vênus, parrindo das regiões entende de d izê-las tradicionais e antiquíssimas. O. Domingos j osé
sagradas, Pafos, Citera, Lesbos, Chipre, santuários ven usinos. O romano, Franque , Boma Zanei- 'Vimba , um príncipe na Cabinda, afirma que o
muito mais do que o grego, consagro u o be ijo-ca rícia na abundância de branco tro uxe o aperto ele mão (Nós, os Cahindas, Lisboa, 1940). O capitão
uma literatura e ró tica incomparável. Passou para a Ásia Menor e orla seten- Coquilhat regista aperto de mão no Alto Congo. Seriam imitações negras e
trional africana. Sua presença n'África do leste e oeste não é sensível. A não atos ele saudações velhas. O maior registo ele Stanl ey é justamente o
multidão dos ornatos labiais negros impossibilitava o beijo. É a mesma negro passar a mão no ombro do companhe iro, co rno fa zem os matutos e
razão para o ameraba que também não rem um vocábulo para traduzi-lo. populares brasileiros contempo râneos.
Pela África ocidental e o riental o beijo é uma denúncia de cinco séculos As palmas soam como saudação e ritmo lúdico po r toda a África. É
históricos, elo XV1 em diante. concordar.
A saudação espo ntânea é exibir a palma ela mão aberta. Dirá que está As posições u bmissas de humilhação sagrada o u de reverê ncia aos
sem armas ou poderá ter outro sentido. Nós não possuímos documentação potentados negros estão funciona lmente desaparecidas. Uma o u o utra
confid e ncial africana explicativa. É uma razão de europeu , segundo a ima- resiste nos atos religiosos. Prosternação, ajoelhar-se com os braços esten-
gem e semelhança ele sua cultura. didos, de itar-se batendo as palmas, pô r areia na cabeça, esfregá-la no
O abraço não é vulgar n'África como não é no Brasil caboclo e popu- peito, rojar-se pelo solo, calcando um e o utro ombro no chão, ele pé com
lar. O mais vivo e comum é a batida com a mão no o mbro, rápida, afetuo- os do is braços erguidos vertical o u horizontalme nte , tocar com a testa no
sa mente. O abraço é herança "branca " e urbana. Nas feiras, mercados, solo, abraçar os joelhos, são algumas elas intermináveis fó rmulas das sau-
festas, nas ruas, nas visitas ele aldeias, tanto n 'África como no Brasil serta- dações às majestades orienta is, sultões e ca lifas árabes, com unicadas
nejo, quase nunca presenciei um abraço . Sempre batia-se no ombro, com du rante as invasões militares o u reminiscências dos soberanos mou ros ela
um sorriso. Ou agitava-se a mão aberta. orla levantina, desde o século XV. Cerimo nial do norte e elo leste.
V i cente nas e centenas de mu lheres africanas com seus filh inhos. Como uomo qualunque o africano conhece todas as formas de sau-
Ficavam alisando, le ntamente, cabeça, faces, o mbros , tó rax . Beijavam, dar e e mprega-as oportu namente. Gosta muito ele fazer a corninê ncia
na maio ria, as mestiças e mo radoras ao derredor das cidades. As o utras, militar po rque lhe e mpresta a sensação ele rápida autoridade suficiente .
em percentagem decisiva , punham as narinas no pescoço o u cabeça Será uma herança co lo nial do europeu fa rdado, comandando todas as
dos filhos, aspirando-lhes o querido aroma peculia r, essência de va lor atividades negras.
incomparável pa ra elas. Essa ca rícia o lfa tiva é popu laríssima no Brasil Para os munés, os p retos maometanos , musulmis, acontece, às
o nde a dizem cheiro. O portug uês tro uxe da China o nde não há beijo vezes, a mão tocar a testa , repetindo o início do sa lamaleque clássico.

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Mas tocar na testa e sa udar, é modo comum, significando o adeus para exclama Acroteleutia no MiJes Gloriosus, ele Plauto. O senador Haterius fez
o popu lar e mesmo e lementos de classes ma is altas no Brasil. É ele fácil tombar Tibério, abraçand o-lhe os joelhos, Tiberii genua advolveretur
constatação diária. (Tácito, Anais, l).
as escolas e infantá rios as crianças sau davam como as colegas ele A raridade elo preto africano estender a mão não me parece vestígio
qualquer educandário moderno. Nas alde ias, mercados elo sertão africano, impositivo da d isciplina colonizadora e sim infl uência árabe decisiva. O
ao lo ngo elas rodo vias, sempre as vi agitando as mãozinhas, uma e mesmo hábito ele inclinar a cabeça ou curvar-se ligeirame nte, segundo a trad ição
ambas, com os dedos abertos, ta lq ualme nte nos grupos infantis o u pré- orienta l tão viva na orla do Mediterrâneo, institui para o africano a regra
-maternais brasileiros. e nhuma mod ificação. mais vulgar em q ue foi educado mesmo nas aldeias nativas. os mercados
as apresentações normais o africano tem uma leve inclinação ele e reuniões familiares pelos sertões, jamais os vi apertar a mão, chegando
cabeça e ombros, retomando a vertical. A inclinação maio r, dobrando o para a refeição festiva que as danças complementariam. Saudavam-se com
corpo, quase em âng ulo de 45°, reservam para as autoridades e os sobas, as vênias mais ou menos profundas. E guardavam, na relação ela autorida-
os reis de amizade tradicional. Toda seme lhança com o que se vê pela de pessoal, um ar de gravidade melancólica que sempre foi , no Oriente, a
África sete ntrional, de Marrocos ao Egito, entre o povo, e ncontrando os forma típica da dignidade soberana, a face serena, impenetrável, superior
seus chefes históricos o u com insígnias de maneio, fard ado o u não, mas à curiosidade elo populacho. Para os velhos romanos a tristilia era um atri-
ide ntificados por eles. Essa sa udação mais profunda, mais acentuadamente buto elo decoro magistral.
curvada, bem característica elo o rie ntal, não se aclimatou no Brasil. Em De modo gera l a presença árabe é mais sensível nas saudações elos
nenhum elemento do povo existe essa vênia. É, entretanto, sabidamente pretos do que a modificação europeia . Era anterior na região. as cicia-
vulgar pe la África elo Índico e do Atlântico. Mesmo para bantos não fiéis eles, arredores dos centros industriais, o africano é um operário, campo-
ao De us Clemente e Misericordioso. nês, agricultor, como o utro q ua lque r, nas relações cotidi anas com os
A propaganda muçulmana é poderosa por toda a África ele leste e "brancos " ou administrado res de cor mas exercendo fu nções ligadas à
persistente pelo Atlântico. Quando estava na Guiné Portuguesa instalou-se economia sistemática. As minhas observações tiveram o critério ela ano-
(maio de 1963) uma mesqu ita no Gabu, cerimônia com inúmeros fiéis q ue tação nos povos elo interior, dos ca mpos, das aldeias e das cidades meno-
tinham feito várias peregrinações a Meca e tiveram o pri meiro lugar. O res o u pequenas ind ústrias, com ha bitações inclepenclentes e sem a
ritual é exigente e o devoto, na viela civil, repete meticulosamente os ges- necessidade elo contato citad ino . O preto nas plantações de chá no
tos to rnados indispe nsáveis para saudar, alimentar-se, expor o u simples- Guruê não é o preto morador nos Musseques em Luanda. O lenhador de
mente conversar. A saudação é uma elas prime iras influências, advindas Maio mbe é figura d iversa ele um fâmu lo em ampula. Os pretos ele
elas o rações d iárias, fatalme nte obedecidas. Daí a curvatura mais profunda Mansoa estão d ista nciados elos monhés ela il ha ele Moça mbique ou elos
e a mão na testa. Saiam/ ... lavradores ele Mussuril. Alguns, residindo nas aldeias legitimamente afri-
Balançar unicamente a cabeça, sa udação mínima e glacial das ciclacles- ca nas, têm interesses nas cidades e essa contiguiclacle é um fato r dife ren-
-grancles elo mundo, não há pela África como ainda não ganho u vulgari- cial. A população residente ao redor elos rios represados, fornecedores
zação no Brasil. Tive ocasião de falar com vá rios sobas na Zambézia, Gaza , de energia elétrica, com cana is ele irrigação, têm posição psicológica , na
Luncla, Ca bincla, Guiné . Todos iniciaram o c umprimento curvando a cabe- mecânica elas soluções mentais, não iguais àquela que colhe água em
ça e os o mbros e descrevend o com a mão semiaben a uma elipse. É a poços ou nas bombas hidráulicas. Os pontos de concentração diária não
sauda ção árabe de "boas-vindas". coincidem no horá rio e mesmo nos elementos que \,ão buscar água.
Não vi, mas há e ainda popular, curvar-se com as d uas mãos cruzadas Onde o líquido é transportado em barris ro lantes ou veículos de tra ção
no peito. Submissão. Acatame nto ao superio r hierárq uico. humana o u animal e não nas vasilhas seculares, a conversa popular,
Abraçar pe los joelhos dizemos no Brasil abraço de cigano, hu milde, especialmente entre mulheres, sofre transformações e, creio, modifica-
de servo pleiteante. Era a suprema imprecação. Heitor, mo rrendo, suplica, ções no temário. As mu lheres que buscava m água, voltando de fábricas
pelos joelhos ele Aquiles, uma sepultura (/iiada, XXII). Genua amplectar, o u plantios inclustrializaclos, falavam sem sa udar, imed iatamente à chega-

9<> 9 1
da , sem perder te mpo. A preta das palhotas tradicionais, a mu lhe r-de-
-sua-casa, agitava a mão sa udando e conversava mais lo nga me nte.
A impo rtâ ncia da saudação ainda conserva alta significação social para
o africano q uando rapidamente decresce para o e uro pe u e americano. As
vênias cordiais nos e ncontros, as frase clássicas, limitam-se ao sorriso e ao
LuANDA! LuANDA!
• • • • • • • • • • • • • •
quase imperceptível movime nto de pescoço. "Um po1t uguês bem-educado
nunca usa do simples aceno d e cabeça ", reparava jo hn Luccok no Rio de
Janeiro de 1808. Passa mos hoje e ntre rosnados amáveis, How? Well! Ai!, ou
o semiuniversal alô, inlerjeições e coriscos, Am! HumJ H ein? Bom? Então? ··... e u gosto de Luanda a
O sorriso africa no é mais comunicante e natural. Vai perdendo a força horas esquecidas ..."
contagiante na razão inversa da conquista econômica. Pe la África do
Índico e d o Atlântico reaparecem a ntiquíssimas maneiras ele saudação, A. eves e Sousa (13atuque).

apertar o polegar, a pró pria mão ou beijá-la, comuns pela o rla setentrional
N ão acred ito que ne nhuma cidade deste mu ndo esteja nas cantigas
mediterrâ nea, mais vivame nte em Marrocos.
brasileiras como Luanda.
Mantém-se, no rigor da obrigatoriedade, para as classes militares, a
os hábitos, nas frases, na preciosa sinonímia ela cachaça, a bebida
continê ncia regimental cuja ausência é pu nida disciplinarmente . Saudar um
nacional, vive , confusa e reconhecível, Luanda , Mamãe de Aruana, ele
preto pela continê ncia vale uma dupla sa udação. Encanta-o a opo rtunida-
Aluana , de Lua na, d e Arua ncla , ele Aluancla. os tempestuosos Maracatus
de de retribuí-la.
do Recife, sacudindo a multidão, estrondo ele tambores contagiantes, a
Para o o rienta l, com maciça infl uência no africano negro, a reverência
grande voz uníssona atroa , inesgotável no soliclarismo instintivo e lúdico:
é um dever religioso, inseparável na sucessão das hiera rquias. Cad a posto
social corresponde às vênias legitimame nte devidas e ciosamente reclama- Rosa Aluanda, qui tenda, tenda,
Qu i te nda, tenda, qui tem tororó'
das. ão podem ser dispe nsadas porque são direitos sagrados, atributos
ine re ntes ao patrimônio ritualístico. ào sa udar a um supe rio r equiva le a Ascenso Ferreira , cantando o Maracatu , só podia consagrar Luanda :
uma agressão no tó ria. É pe rmitida a deserdação do herde iro q ue negou a Za bumbas de bombos,
reverê ncia ao asce ndente, pai, chefe de família , tio. Não saudar a um estouros ele bombas,
"velho" é causa d e justa reprovação. A saudação, saiutis, exp ressa voto batuques de ingonos,
público pela continu idade da vid a ao saudado. ào haverá compree nsão cantigas de banzo,
para seu esquecimento ou esquivança. rangir ele ganzás .. .
A sempre viva divulgação muçulmana, preto de roupa talar, turbante
Luanda, Luanda, aonde estás'
e p lacas d e metal ao pescoço, com versos d o Alcorão, amplia a inclispen-
Lua nda, Lua nda, aonde estás?
sabiliclacle ela saudação , ele me nto ela própria ide ntificação fraternal.
Quando um preto vai substituindo as curva turas pelas fó rmulas ver- As luas-crescentes
bais, quase invariáveis na rápida troca ele d itos formais, aproxima-se da de espelhos luzentes,
uniformização ocidenta l pelo exemplo ·'branco". Sapéra! Bá, á, caué, res- colares e pentes,
po nde o o utro. Calungá! Caué, re trucam. Laripó! Tuénde, cá, contesta-se. queixares e dentes
ão mod elos cafres e e m Luanda. E tá fica ndo "branco"... de ma racajás.. .

Luanda , Luanda, aonde estás?


Luanda, Lua nda , aonde estás'

93
,..

A balsa no rio Descarregando abacaxis na avenida Martins ele Barros, diante elo
cai no corrupio, Ho tel Lusitano, pelas madrugadas em 1924, ca ntavam os negros de Goiana:
faz passo macio
mas wma desvio Vou-me e mbora pra Luanda,
que nunca sonho u ... A vida lá é mió ...
Escalé de doze rem o,
Luanda, Luanda, aonde e::;tou? Meia lua e meio só .. .
Luanda, Luanda. aonde esto u?
Jaime Griz recolheu canto de Maracatu, saudoso:
Jaime Griz, evocando "Escravidà9'·, regista um bailado bamboleado e Ê! aluê, al uê, aluê ... lê!
lúbrico: Lê! lê!
Ê! baiana bonita, Ê! Cambinda! Ê! Lua nda!
Vamos a Luanda, Ê! aluê, aluê, aluê ... lê!
Que Do na Clara Lá! lá!
Foi quem mandou! Disse-me o poeta ter sido caso verídico de um negro escravo que,
Ê! vamos a Luanda sonhando dançar na terra natal, era d ificílimo de acordar. Debalde o Feitor
Ê! zô! ê! zô! gritava as ordens furiosas:
Ê! va mos a Luanda Mas o negro não ouve
Ê! zô! Ê! zô! A voz elo Fe itor.
Guerra Peixe estudou os Maracatus d o Rec(j"e (S . Paulo, 1955). Luanda Está lo nge, bem lo nge,
é uma o bsessão temática . Em Cambinda, em Luanda,
Pisando, gingando,
Princesa Do na Emília o meio da negrada,
Pra onde vai? - Vou passeá. A dança r,
Eu vou para Luanda,
A cantar,
Vou q uebrá saramuná' E de lá não quer voltar.
Eu vou pra Luanda , Ê! dindêro, dindêro, dindêro, rim!
Buscá miçanga pra saramuná! Ê! clinclêro, clindêro, dindêro, tim 1
Vamos vê Lua nda, ô miçanga, Dindêro, Tim, darará!. ..
Chegô, chegô! Essa presença de Luanda no no rte e no rdeste elo Brasil, mas não
ausência noutras regiões, é flo ração obsti nada e sobrevivência de sua
A bandê ra é brasilêra ,
poderosa interde pe ndência humana e econômica com este território por-
Nosso Re i veio de Luanda,
Ôi, viva Do na Emília, tuguês d'América Austral. Reduzida às reminiscências da cultura popular,
Princesa pe rnambucana!. .. impregnada da influência africana, atualiza quanto de comum, profundo e
natural existiu entre as duas possessões de Portugal. Impressionante po r-
Quando eu vim lá de Luanda que Luanda pern1aneceu na memória coletiva e não no olvido das gera-
Trusse cuíca e gougué .. . ções contemporâneas.
Quem brinca em Cambinda Estrêla , Acabou o tráfico. Ficou a lembrança. Desde a segunda metade do
Êste baque é da Gu iné! século XVIII até as primeiras décadas do subsequente, Angola era mercado

J
94 9 5
exportador e importador d'alta importância pa ra o Brasil, três e quatro Esse fascínio seria ainda maior quando viviam os negros angolanos.
vezes superior ao comércio com a Metrópole. Os produtos brasileiros Os cantos dos maracatus elevem constituir convergências dessas inspira-
permutavam-se com as peças negras, povoadoras dos canaviais e peneira- ções anônimas, cantigas esparsas entoadas nos eitos e terreiros elas casas-
me nta das areias auríferas, indispensáveis ao ímpeto ascensional recípro- -grandes e que foram atraídas pela batucada elo maracatu espaventoso. a
co. Mantinha-se uma intensa navegação direta . Esses interesses, crescendo Cidade do Salvador, onde não há maracatu, Oclorico Tavares o uviu aos
em volume no tempo, aproximaram-se de uma unificação política, eviden- negros pescadores elo xaré u no Chega-Negro, carimbamba, sa raiva, a toada
ciada durante a Independência. Angola , por dois dos seus três deputados evocaclora, entoada em coro:
às Cortes (Eusébio de Queiroz Coutinho Matoso ela C~una ra, angolano, e Só, só,
Fernando Martins elo Amaral Gurgel e Silva) pensou seriamente numa Eu venho só!
união administrativa sob a égide elo Príncipe-Herdeiro dos Braganças, Quando venho de Aru anda,
Imperador do Brasil. Da continuidade econômica e elaboração desse Eu venho só!
plano, além e aquém mas, expõe nitidamente josé Honório Rodrig ues Eu deixei pai,
(Brasil e África, Rio de janeiro, 1961), com expressiva documentação. Em Eu lá deixei vó!
Bengue la as manifestações fo ram impressionantes. O interesse mercantil Só, só,
dividia- ·e funcionalme nte entre Ango la e as praças brasileiras, dominadas Eu venho só!
pe los negociantes lusitanos, todos possuindo "correspondentes" abastados Q uando venho de Aruanda ,
em Luanda. Lisboa, sentime ntalmente sonhada, ficava afastada e sem Eu venho ó!
razõe específicas de preferência material e re ndosa em moeda efetiva. Os brasileiros nascidos entre Sergipe e Ceará sentirão esse ambiente
Também a assiduidade elo contato dete rminou n'algumas cidades no rdestino em Luanda com maior acuidade que os filhos elas demais pro-
angolanas, notadamente Luanda, uma fisionomia familiar aos olhos brasi- víncias. Quase ree ncontros, ele conhecidos velhos. Intervindo apenas a
le iros. Uma semelhança tão flagrante que, atualmente , Luanda, transforma- memória. Os angolas, congos, cabinclas, adensaram-se nessa região, visí-
da e moderna, ainda permite o delicioso encontro desses pormeno res veis na permanência folcl órica, contos, bailados, os negros velhos patriar-
coincidentes. cais, os "tios" denunciado res ela materliniclacle, o vocabulário , o ritmo elo
Um técnico e minente, o arquiteto Fernando Bata lha , residente em anelar, o rebolado das negras ocidentais, o e ufo rismo lúdico, o sereno bom
Luanda , e nsina: "Não será para estranhar referirmo-nos com certa largue- humor, as manifestações festivas preferencialmente públicas, cord ões, ran-
za ao 13rasil , dadas as grandes afinidades e relações q ue existiram o utro- chos, embaixadas, o jogo da capoeira, a devoção a São Miguel, Oxóce elos
ra e ntre as d uas colônias fronteiras. ão era apenas o modo ele viver e jeje-nagôs, padroeiro elos capoeiras angolanos e padrinhos da fortaleza em
o ambie nte climatérico que lhes dava m ca racterísticas comuns: a própria Luanda, maior índice e tendência para dissolver-se na massa coletiva pela
arquitetura e urbanística elos dois te rritório o identificava. Embora no menor clensiclacle coesiva elos clãs, comparada aos sudaneses.
13rasil e em Angola - como, aliás, noutras colônias portug uesas - se Certamente Congo é uma palavra vibrante, ele conteúdo sugestivo,
segu issem então os modelos metropolitano , a verdade é que o contato mas é região e não núcleo, na limitação demográfica.O mesmo poder-se-á
ela Mãe-Pátria com Angola se fazia q uase excl usivame nte através elo d izer ela Guiné. Citamos mais como e ntidades majestáticas, funções de
Brasil. Assim, certas particularidades c diferenciações conseque ntes das mando, individualizações geográficas.
cond ições p róprias elo meio tropica l apresentam em ambas as regiões
Eu sou rei, rei, rei,
grande similitude, pelo q ue, em determ inados aspectos, o que se refere Rei do meu reinado!
a uma pode admitir-se para a outra. A evolução da arquitetura, da urba- Maracatu lá do Congo,
nização e ela própria viela social, no Brasil colo nial e em Angola, seguiu Lá do Congo,
c urvas paralelas e apresenta um panorama comum" (A Urbanização de Nel e fui coroado!
Angola, Lua nda, 1950).

97
Luanda é a terra com os valores e mocionais da evocação. Vive isola-
damente, como célula inde pende nte e mágica de abstração e sonho. Um
congo, um guiné, um cabinda , o próprio Angola, um moçambique, fixam
tipos somáticos, espécies antropológicas, generalizações étnicas. Valores
humanos. Luanda é sempre uma projeção lírica, um apelo à Poesia recor-
QUEM fE~DE o CO~fO É A líNGUA
• • • • • • • •• • • • •• • • • • • • • • • • • • • •
dadora, fórmula de compensação ao sofrimento, recurso à saudade viajei-
ra, atravessando as águas do mar.
Adeus, mamãe de Luanda!
Adeus, meu filho Nogueira! ... "]e raconte une histoire pour les gens d "ici ."

Henri Béraud

l uísa Freire (1874-1953) viveu em nossa casa desde 1915 até o fale-
cimento. Era mulher branca, de olhos castanhos, cabelo fino, conversando
fluentemente. Nunca quis aprender a ler. Nascera em Contendas, perto da
Barra de Inácio de Góis, e pôs-se mocinha em Estivas, no Ceará-Mirim.
Veio para Guarapes em Macaíba e passou para a cidade do Natal de o nde
jamais saiu. Nesses limites viveu , amou e morreu. Não me parecia ter san-
gue negro. Foi uma grande colaboradora nas minhas pesquisas de litera-
tura oral. Chamavam-na BIBI. De u assunto para as Trinta Estórias
Brasileiras que a Portucale nse Edito ra, do Porto, publicou em 1955, com
amável apresentação do dr. Fernando de Castro Pires de Lima.
Uma dessas estórias de Bibi, narrada com interesse comunicativo e
gesticulação idônea, era essa da "língua perder o corpo".

"Um caçador e ncontrou uma caveira num oco de pau e ficou muito espan-
tado. Tomou coragem e perguntou:
- Caveira, quem te pôs neste oco de pau?
A cave ira responde u:
- Foi a Morte!
- E que m te matou?
- Quem perde o corpo é a língua!...
O caçador voltou para casa e contou aos companhe iros o sucedido. Ningué m
acreditou mas a conversa foi-se espalhando, espalhando. Dias depois o mesmo
caçador passou pelo canto ve lho e tornou a ver a caveira do oco elo pau . Fez as
mesmas perguntas e a caveira respo ndeu pelas mesmas palavras.
O caçador teimo u e m contar a estória aos compa nheiros e tanto contou que
e les ficaram com raiva e disseram:
- Vamos ver a caveira. Se ela não disser coisa alguma que se pareça com o
que você anela d izendo, nós lhe daremos, lá mesmo , uma boa surra ele pau para
você de ixa r de ser mentiroso ...

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Foram todos. Viram a caveira e o caçador fez as pe rguntas e a caveira nem
como causa. Calada estava, calada ficou. O caçador tornou a perguntar e a cavei-
ra foi dando o calado por resposta.

{A~OfA, {A~ófíA
Os companhe iros não quiseram saber de conversa. Chegaram o pau no
pobre homem que o deixaram mo ído e todo pisado. Foram e mbo ra. O homem r r r

ficou estirado no chão, gemendo. Depois de muito trabalho pôde ir-se arrimando • • • • • • • • • • • • • • • •
e se levantando. Quando se aprumou, olhou a caveira e disse, com raiva:
- Aí está, diabo , o que me fizeste!
- Que m perde o corpo é a língua!, respo nde u a caveira, com toda ra zão.
O ho mem foi para casa mas não disse que a caveira falara ele novo."
{arofa, elo quimbundo falofa , parece-me o vocábulo banto mais cor-
No Livro dos Fantasmas, de Viriato Padilha (Rio de Jane iro, 1925), li rente no Brasil, depois elo africanismo banana.
a prime ira versão impressa, A resp osta da Caveira. Théo Bra ndão (Folclore Curioso é Antô nio ele Morais Silva (1764-1824), carioca residente em
de Alagoas, Maceió, 1949) registou uma estória idêntica, ouvida ao seu avô Pernambuco, senh o r do Enge nho ovo de Muribeca, em Jaboatào, não
materno que a tivera , quando me nino, de uma negra escrava , do tetravô haver registado faro fa no seu Dicionário enq uanto viveu. Mesmo a edição
do autor. Théo Brandão, nas notas, traduziu Le crâne, uma variante entre ele 1831, primeira depois ele sua morte, igno ra o tão popular conduto.
os Batonga da Zambézia, no Moeurs et Coutumes des Bantous, de Henri Impossível Morais não ter comido farofa.
Lonod (Paris, 1936). Encontre i-a no Folk Tales of Angola de Heli Chatelain Antenor Nascentes julga a inclusão nos d icionários po1tugueses entre
(Nova York, 1894), numa versão angolana de Mbaka, com o texto qu im- 1813 e 1880. Ainda não estava no Domingos Vieira de 1873-1874 embora
bundo e inglês, The Young Man and the Skull ou Man 'a a diiala n i o tivesse empregado Almeida Garrett em 1829, em O Casquilo j anota
Kabofongonio. Leo Frobenius registo u-a e ntre os negros Nupês no Sudão (Fábula):
Central, Tbe Talking Skull, "Africa Genesis" (Nova York, 1937). Mas a mulher gostou
O escritor cearense Braga Monte negro e nviou-me e m junho de 1951 Da taljarófia de apareme brilho ,
uma versão elo Ceará, o uvida de sua bisavó, D. Maria Barbosa Braga . E a coisa pôs o no me ele casquilho.
Publiquei todos esses textos no Trinta &tórias Brasileiras. Diz-se também .fàrófia mas o uso não é comum no Brasil, exceto para
No seu Missosso (1° tomo, Luanda, 1961), Óscar Ribas inclui nos pro-
os pedantes. Farofa para Monteiro Lobato, José Lins do Rego, Érico
vérbios angolanos o Mu kuenda ngó, mu. kúfua ngó; mu kuz uela ngó, mu
Veríssimo, Farófia para Almeida Garrett ontem e para Aquilino Ribeiro,
kuia ngó; "por andar à toa , morre r-se à toa; po r falar à toa , ir-se à toa!" e hoje, em Portugal.
anota: "Este adágio provém da seguinte anedota : Certo viandante ia por
Em Angola o uvi sempre farofa e nãofalojà ou faró.fi"a , como seria ele
uma mata vê uma caveira humana e exclama desdenhosamente : - Por esperar.
andar à to~ mo rre r-se à toa! ... Po r fa lar à toa , ir-se à toa ... Redargue-lhe a
' Óscar Ribas, etnógrafo angolano tão admirado no Brasil, fez pa ra mim
caveira. E o homem mo rre u. "
uma pesquisa filo lógica . Info rma-me em carta ele Luanda , 25 de abril ele
É o resíduo episodial da estó ria , comum aos suclaneses e bantos; na
1964, a interessante conclusão nesse passeio semântico:
Zambézia, em Angola , no Sudão Central , viva no Ceará, Rio Grande do
Norte e Alagoas. Viriato Padilha não afirmara a o rigem de sua versão, inde-
"O vernáculo , em q uimbundo, é jaloja. Resultou ele de kuvala oja, expres-
ciso e ntre Po rtugal e Brasil. O documentário ele Théo Brandão e de Braga
são q ue significa : parir morto. Ou., preferindo: dar à luz morto. Da mecânica lin-
Montenegro e a narrativa ela velha Luísa Freire positivam a contemporanei- guística, com toda a sua série de tra nsformações, o riginou-se o termo valoja ,
clacle da circulação temática pelo nordeste brasile iro . depois modificado para .famja. A a lte ração elo v em f explica-se facilmente: além
Ouvindo-a em Luanda , compreendia a simultaneidade em amhas as de serem consoantes Jabioclentais, a segunda, .1; é mais bra nda. Afora esta particu-
margens elo Atlântico. laridade, ainda se pode admitir o fe nôme no ela atração silábica: a te rminação .fa.

100 IOI
"Agora , interpretemos o sentido. Desdobremos a expressào parir morto: do Mundo Português (M. A. M. ed. Tavares Martins, Po rto, 1962) que ensi-
·parir' corresponde a preparar, e 'm o rto', ji·io. Quer dizer: preparar com ingre- na a fazer uma Farqfia Angolana o nde não entra água , fria ou quente, e
dientes frios. Ou melho r: sem a intervenção do ca lor, para efeito da cozedu ra.
sim sumo de laranjas: "Farinha ele pau , um quilo. Cebola 1. Salsa, um ramo.
'Ofa' ( morto) constitui o particípio passado do verbo ·kufa' (mo rrer). Representa
Laranjas, sumo, 2. Pica-se a cebola muito miudinha e junta-se à farinha de
uma variante de 'afa ', bastante usada pelas populações sertanejas. De língua quim-
buncla, evidentemente."
pau, assim como a salsa também picada. Rega-se com o sumo das 2 laran-
jas e mistura-se tudo muito bem. Serve-se como acompanhamento ele
Será essafalofa, farinha e água fria , o inicial processo angolano, man- carne o u peixe." ào participando água quente, nem mesmo fria, essa
tido pe los escravos bantos no Brasil. .Corrente, secular e comum, é a faro- "Farófia Angolana" está legitimando a explicação de óscar Ribas. a culi-
fa com água quente. ~'África ocide ntal a farinha de mandioca divulgou-se nária da Bahia, acentuadamente na Cidade do Salvador, frio é sem pimen-
no século XVI e afalofa anterior fariam os pretos com asJúbas elos sorgos tas e quente, muito a pimentado. Um vatapá sem pimentas é um vatapá
e milhetos, até que saboreassem a farinha ele pau, como ainda dizem pre- realme nte morto, um vatapá o.fa, como d izia um angolano.
sentemente em Portugal. Em Ango la diz-se Juba de bombó. E os nossos indígenas usava m da farofa? A mistura preferida para eles
Em Luanda a farofa faz-se com qualquer caldo de carne peixe cereais com a farinha de mandioca era o caldo quente do alimento cozido, dando
' ' ' , o mingau, minipirô, zpirum, o pirão escaldado. Ou , como documentam os
cozinhado previame nte . Mesmo nos sertões não vi empregarem água fria.
Ating indo a consistência de pirão, chamam fúnji, conhecido no nor- velhos cronistas, a farinha seca, atirada à boca sem erro no trajeto .
deste brasileiro como sinônimo de alimentação, refe ição farta . Pereira da Não conheço vocábulo nhengatu correspondendo a farofa .
Costa ( Vocabulário Pernambucano, Recife, 1937) recolheu o termo no
Recife ele 1896, 1901, 1915. No jornal Pequeno desse último ano lê-se: "Fui
à casa da mana apertar ofungedo almoço, e não havia mais sinal ele boia."
De 1901: -"Prova r do Jitnge preparado a capricho. " De 1896: - "O ho nra-
d o Partido Re publicano Fede ral é agora o róifunge da época. " O Pequeno
Dicioná rio Brasileiro da Língua Portuguesa (9 3 edição, 1951), como pecu-
liaridade pernambucana regista o .funje, "reunião dançante de gente ele
baixa condição". Desaparece u a ideia do alimento . Nã o confund ir com
VUNJI, a de usa ela Justiça angolana, também incluído no Pequeno
Dicionário, vale ndo "mu ito sa bido, atilad o, esperto", também de
Pernambuco, mas não e ncontrado e m Pereira ela Costa. O português Serra
Frazão dizia ser o Demônio.
Pe la Angola inteira a farofa é idê ntica à q ue comemos no Brasil. Em
Portugal, sob o título de farófia há o que dizemos "ovos nevados": clara
ele ovos, batida com açúcar e cane la em po nto de castelo, cozida no leite.
Laudelino Freire (Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa,
Rio de Jane iro, 1934) cita essa "farófia ", certamente lusitana, acrescentando:
"Doce fe ito ele claras de ovo batidas com açúcar e canela, também
chamado bazófia, globos de neve, espumas." Doce deno minado Faró.fia
nunca existiu no Brasil. Nem já o me ncionam nos grandes livros doceiros
de Portugal. Emanuel Ribeiro , O Doce Nunca Amargou (Coimbra , 1928),
não o cita na sua re lação clássica . em o recente e monumental A Cozinha

10.2
103
Sampaio diz provir do guarani congõi, valendo o -que -sus te nta o u alime nta.
Complica-se porque a maconha, lia mba , cliamba, cânhamo, hachiche ,
Cannabis saliva, diz-se aqui também cangonha. Teria ido com os escravos
DÉNEJE~ BEBEU GONGOENHA ... a ngolanos para o Brasil o nde continua missão inebriante e criminosa.
Alguma afinidade e ntre a congonha brasileira, alimentar, a refrescante gon-
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
goenha e a vene nosa cangonha? Algo mais p rofundo que a me ra seme-
lhança e ufô nica?
Consulte i Óscar Ribas, mestre na cultura popular a ngolan a. Fique i
sabendo que a gongoenha é ngongoenha em quimbunclo, de ngongo, tor-
N ão peça gongoenha em Luanda ne m noutra qua lquer parage m ele me nto, e menha, águ a; to rmento pe la água, sede, valorizando a bebida
Angola. É uma bebida para gente íntima , fe ita em casa, conhecid a no mundo fácil e boa.
doméstico. Po pularíssima. Não se vende em p arte alguma. Faz-se e bebe-se. Na lo nga iniciação das iauô, sacerdotisas dos orixás nos candomblés
Não procure nos dicionários nem a me ncione conversando com amigo da Cidade do Salvador, na Ba hia, há banhos de ervas p e rfumosas, ariaxé
importante. Dará impressão ele vulgaridade total. Home m de po uca ciência. para o rito jeje-nagô; maionga ou maiongá serão os b anhos na fo nte m ais
No mercado municipal d e Quinaxixe vi uma mulher preparar uma próxima, como disse a Edison Carne iro o chefe elo candomblé ela Gomeia ,
bebida e fazê-la beber ao miúdo que condu zia amarrado às costas, com o João da Pedra Preta.
uma japonesa. Atine i que era farinha d e ma ndioca, um po uco ele açúcar e Fui visitar, na rodovia para o aero po rto de Luanda , o Poço da Maianga
água . Mexeu e serviu-se, com um sopro de satisfação regalada. do Rei, antiga fonte, cercad a ele circular muro branco, o nde o Ngola man-
Lá fui p e rguntar o n ome. dava buscar pe las escravas a água ela serventia diária. Há ta mbém o Poço
- Gongoenha!, respo ndeu, num sorriso integral de 32 de ntes cintilantes. de Maianga do Povo. Ambos do século XVII. Maionga e maiongá serão
Daí a minutos bebia eu um copo de gongoenha , ma nipulado pela formas adulteradas dessa Maianga angolana. Maianga va le dizer lagoa, e m
minha professora re luzente. quimbunclo. No Poço ele Maianga elo Rei duas mulheres b ebiam a gongo-
Era o xibé amazônico. Jacuba, no utras regiões do Brasil. Augusto ele e nha numa caneca de folha de flanclres. Não vi nenhum ho me m preparar
Saint-Hilaire e von Martius b eberam e gostaram da jacuba . Ficou no e beber o refresco, visivelmente vulgar e sem idade presumíve l.
Dicionário do Folclore Brasileiro num verbete extenso, docume nta ndo uso Qualquer etnógrafo m e e nsinará que a gongoenha e o kykhéon, x ibé e
e abuso nacion ais no Brasil. jacuba, são bebidas de milê nios, ante riores à técnica da ferme ntação, con-
Se me permitem um voo na quarta dimensão, a gongoenha é o kykhé- temporâneas à preparação elos primeiros cereais torrados e moídos para
on grego que a deusa Dé meter, q ua ndo procurava Proserpina , sorveu obte r-se a farinha. Será, num cálculo bem tímido , alturas neolíticas. Digo
deliciada , graças à solicitude da velha lambé. Ficou , por is o , fazendo parte neolíticas pelo respeito que tenho aos mestres velhos que aí situavam a
elo cerimonial nos "misté rios" de Elê usis. lavoura, como dizia Orville Derby, preferindo à clássica agricultura. Os ves-
Ovídio, Metam01phoseon, V. 450, informa: Dulce dedit; tosta quod tígios cerâ micos no e pipaleolítico d esarruma m um tanto o venerável edifício.
texerat ante polenta. Parece que a gongoenha está me dando e mbriaguez ...
Po le nta h oje é acepipe diversíssimo e mastiga-se. Naqu ele te mpo ,
bebia-se. Significava a mistura d 'água, fa rinha de cevada e um adoçante ,
gotas de mel d e a be lhas natura lme nte , porque os deuses o límpicos não
conheceram a cana-ele-açúcar.
Tal e qual a jacuba. Quero dizer, a gongoenha de Luanda.
O nome de Gongoenha é que me fez recordar uma bebida brasile ira,
indisp ensável no s ul, a congonha, e rva-mate, illex congonha, que Teodoro

104 105

J
cos não passam de pretexto para os senho res se desembaraçare m ele mu i-
tas bocas inúteis. Ouvi dizer na Eu ropa que a abolição ela esc ravatura
tirava aos reis africanos o desejo ele fazer gue rras, pois que nada ga nhavam
AUSÊNCÍA DO DiABO Af~íCANO e m procurar escravos para vende r! Os q ue asseveram semelhante dispara-
te não sabem elo que va i na África , e ignoram que eles, os re is, fazem
• • • • • • • • • • • • • • • • • •• • • • • • •
g ue rra por diferentes motivos. " Jacollio t fora presidente de um Tribunal e m
Taiti e na Índia (Chandernagor) e d ivulgava sua opinião e m 1887, e m Paris
(Voyage au Pays Mystérieux). No Benin: "Milhares de escravos são imo la-

dec~pc_ionante:
d os sobre as sepulturas reais, degolando cada ganga três home ns, três
J e nho agora essa conclusão não há um Diabo legíti- mulheres e três crianças. Depo is d 'esta ca rnificina , recolhem tod o o sangue
mo, ve rdadeiro, típico, nas crenças d a África Negra , pátria d os escravos numa bacia monstro, onde deitam legumes e carnes, prepa rando e m segui-
vindos para o Brasil. da o feitiço anual, que d eve gara ntir a vida ao rei até a próxima festa do
Como e ra preciso uma justificação mo ral pa ra a imoralidade do tráfi- inhame, isto é , durante o ano seguinte (. .. ) O sítio onde encontram o pri-
co, explicava-se q ue o cativeiro e ra uma libertação para o selvagem negro. meiro inhame maduro fica brutalme nte inundado de sangue humano , que
Tudo n'África e ra opressão, violê ncia, barba rismo. Reis que bebiam san- fazem co rrer a jorros!" Os escravos sacrificados volta riam à te rra no corpo
gue. Família promíscua. Guerras sem trégua e mercê. O preto não d evia de homens livres, chefes, sacerdotes, sobe ranos! Os voluntários e ram
ter sa udades do infe rno torturante e bruto. nume rosos. As narrativas do Dao mé e da campanha dos Achan tis causa-
Era a trad ição. Saint-Hilaire conta um e pisódio expressivo. 1 os vam assombro, pesade lo , insônia.
a rredores d o Rio d e Ja neiro, em 1818 , "fez um dia esta pe rg unta a um Só podiam existir d uas fórmu las salvado ras. Trazer o conde nado
velho negro q ue, e ncarregado por seu a mo de vender milho numa venda negro pa ra escravo na América o u mandar o europeu "civilizar" a África,
aos viajantes, passava os d ias na tranquilidad e, livre d e qualquer vigilân- do minando-a. Por esse me io havia que m desa parecesse d a Civilização,
cia. É possível esquecer completame nte o país e m que nascemos? - Você pe rdido no sertão africa no, procurado como uma joia perdida: Dr.
está do ido! gritou incontinenti sua mulhe r, se nós voltássemos para nossa Linvigstone, I presume? Ou Albert Schweitzer, médico, devoto de Bach,
terra, não tornariam a nos vende r? Diz-se q ue, se os Africanos cessassem lo nge da lógica d o "Progresso" e pe rto da assistê ncia cristã .
de poder vende r os prisioneiros aos ho me ns brancos, eles os massacra- Os de uses africanos só poderiam ser e ntidades monstruosas, d esapie-
riam; não tinha m mais o mesmo interesse e m se gue rreare m, e viverão e m dadas, sádicas. Não e ram assim, despoja ndo-as d o sensacio nalismo viajei-
paz". (Viagem p elas Províncias de Rio de j aneiro e Minas Gerais, trad. ro, irresponsável na interp retação alucinante.
Clado Ribeiro d e Lessa, 1°, São Paulo, 1938.) Po dia, prude nte me nte , limita r-me a Angola mas é possível avançar o
As informações históricas da é poca e ra m apavorantes. Milhares e sinal e o usar maio r pe rcurso te mático. ão há De mô nio preto se não como
milha res de negros mortos aos ante passad os do novo Rei o u aos d e uses presença cató lica do Branco. Não há mesmo um vocábulo próprio pa ra
insaciáveis para os quais o sangue huma no e ra indispensável. Muito mais d esigná-lo a não ser pe rsonalizando uma de suas atribuições. Psico-
sequio os que o s mexicanos. Eram vibrantes as reportagens ele Louis logicame nte, uma projeção cristã de Sata nás.
Jacolliot que parecia responder ao seu patrício Sa int-Hilaire: "É preciso que No te mpo de Heli Chatelain elll Angola os três maiores insultos eram
os nossos negrófilos saibam be m isto: a situação dos escravos e prisionei- diabu , nékulu, negro, e malándulu, malandro, trazidos pelos po rtugueses.
ros de g ue rra e m África é muito mais desgraçada d esde a abolição da O Diabo , diabolus, é o caluniador, o Anjo-Mau, Cacodaemon grego.
escravatura, po rq ue não tendo eles o valo r necessá rio pa ra se efetuar uma Demônio , daimôn, correspondia ao genius romano, bom-gênio, mau-
troca com as mercadorias e uropeias, serve m tão somente aos reis e chefes -gênio, agathodaemon, cacodaemon, inspirad or, d efe nsor. De mô nio de
indígenas para abrilhantarem as suas festas selvagens, degola ndo-os; Sócrates. Gênio d e Roma. Sata nás, o haschatán he breu , é realme nte a
sendo de dizer-se aqui que a maior parte d as vezes estes folguedos p úbli- fonte de to dos os males, o Inimigo to tal, o gra nde adversário da tranquili-

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dade humana, ininterruptame nte inverso a qualquer concepção do Bem. Todos os deuses africanos são inte ressados na continuidade do
Esse está ausente das funções extraterre nas no continente negro, para a culto votivo. Ficam maus quando são esquecidos, negligenciados, pos-
me ntalidade negra. tos na margem devociona l. É preciso uma vigilância o bstinada no p lano
ão incluo os árabes que possuem Ech-Cheitân, o u o Iblis onipresen- revere ncial para evitar a transferê ncia do protetor para o campo adver-
te, atarefadíssimo nas missões de punição e tentação sucessivas. sário. Uma entidade funcionalme nte perversa , tentado ra, malvada, pra-
Os pesquisadores e uropeus no plano religioso encontraram os deuses ticando o mal pelo mal , não há no panteon africano. Qualqu er uma
africanos, nos finais do século XIX, multiplicados pela dispersão heterodo- de las tornar-se-á adversária , pe rseguido ra, rancorosa, mas é sublimação
xa. Como os gregos e romanos na decadência social, te riam divinizado do sagrado recalque ante o o lvido oblacio nal. Mesmo os espíritos que
simples funções eminentes, personalizando transformações assumidas para oeleiarn a família elo seu assassino, incendiador do plantio , violador da
realizar determinados atos. Estas ações seriam , primariamente , unidades residência, ladrão molhado de sang ue, apaziguam-se com dádivas, a li-
volitivas e não formas materiais da mesma potência espiritual. Para mentos, cantos, danças, e terminam protegendo aos descendentes de
restituir-se a uma visão inicial é indispensável que os numerosos e subli- quem tanto detestavam.
mados acessórios sejam absorvidos pelo essencial, ca usa motora e única Evito citar os deuses do firmamento negro para não irritar algum pre-
de suas convencio nais existências poste rio res. Sem esse processo saneador terido na mobilização nominal. Não é possível comparar nos atos, ações e
será ape nas possível um recenseamento de deuses negros para a sistemá- obras o nosso Demônio com um outro eleme nto personalizado e sobre na-
tica d icionarizada. tural, recebendo vênias pela África negra. O nosso Diabo é uma perma-
Ango la, Congo, parte ampla da população sudanesa, compreendiam- nência, força inflexível, terebrante, teimosa , em serviço do Mal. Toda
-se, para Frobenius, na civilização da Eritreia Meridional. É, como a civili- genialidade satânica é um longo encadeamento envolvedor no rumo da
zação ariana para Max Müller, um mundo sem injunções diabólicas. perdição das almas. O "inte resse" demoníaco inde pendente da provocação
Quanto, nesses bantos e sudaneses, apareça de perene e funcionalmente inicial do pecador. Essa atitude não existe entre os "santos pretos".
perverso, "inimigo de Deus", dever-se-á ao semita pelos divulgadores Ninguém poderá considerar Elegbará, Elegbá, Exu, o Legba dos Fo ns,
devocio nais, o árabe e o cristão, titulando a Satanás como Anjo poderoso o Edschou de Frobenius, um diabo nos cultos africanos sudaneses e no
e re belde, "feito de luz", reinando nas trevas do pecado. panorama dos candomblés da Bahia, Rio de Janeiro ou Recife. Difere-se,
O dualismo do-Bem-e-do-Mal fo i uma dádiva oriental, trazida pela substancial e essencialmente, na atuação . É um embaixador dos pedidos
irrupção árabe ao longo das praias onde se põe o sol no Atlântico. Vinda humanos para um orixá po deroso e capaz da realização suplicada. Os
do norte e do levante, na terra negra. Resiste ainda, no primitivo chão pedidos é que podem ser bons ou maus sem a participação do intermedi-
africano, às plantas obstinadas e humildes, palpitantes nas manifestações ário. Exu é um portado r, mensageiro, um Hermes africano. Exige, decor-
de crenças antiquíssimas, florindo e ntre minaretes de mesquitas e torres re ntemente, seu salário ritual, o seu despacho integral; azeite de dendê,
sineiras católicas. Todas as informações, as mais antigas e preciosas, são bode, cachaça, fumo. Lembrarem-no nas segundas-feiras. ada mais.
de árabes o u de po rtugueses. Dominadores o u visitantes. unca ouvimos Esquecido, vingar-se-á pondo sua influência no sentido contrário da pre-
as vozes nativas. Nem mais as ouviremos confide nciar a história matinal de tensão pleiteada. O lógico será satisfazê-lo com os alimentos preferidos;
suas esperanças e temores. come tudo, info rma Donald Pierson, e gritar-lhe a saudação privativa:
É o utesmo problema elo meu país. Quem estuela as religiões inelíge- Larô iê! Exu não tem ~ malciade congênita, medular, alhe ia à provocação
nas, registradas pelos colonizadores, te nta reerg uer o edifício partindo das inconsciente do olvido devoto. Sua suscetibilidade, caráter irascível, turbu-
ruínas, num master plan conjetura!. As linhas supositícias da Torre de lento , inquieto, vingativo, são invariavelmente reações, ré plicas, represá-
Ba be l. O fundame nto é a relatividade dime nsional dos volumes calculados. lias. Satanás não guarda a casa de ninguém. Exu , re pleto e tranquilo , é
Correlação. Cada arqueólogo tem a sua Babel. O "material" analisado guardião incomparável.
ajusta-se ao critério do examinador. Não po de contrariá-lo, expor diferen- Em Angola ocorre semelhantemente. Diz-se Diabu em quimbundo
ça, defender finalidades. Fantasmas, coisas mudas e mane jáveis. mas borrowed from the Portuguese, adverte Heli Chatelain.

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Na fulgurante passagem das estrelas cadentes, o negro angolano ros- doméstica, cheio de exigências morais. Dom Frederico Costa (1876-1948),
nava , apreensivo: Diabu dibita bu-lu, passe o Diabo por alto. No Brasil Bispo do Amazonas (1907-1914) na "Carta Pastoral" de 9 de abril ele 1909,
diziam as velhas de outrora: declarou: Parece também evidente que houve erro em identificar]urupan·
com o Demônio.
Deus te guarde, Deus te tenha ,
Menos ficará ainda na classe diabólica a Anhanga que Couto de
Que na Te rra nunca venhas! .. .
Magalhães indicou com égide ela caça do campo. Os jesuítas Manoel ela
Para o preto d e Luanda, no te mpo ele Chate lain, a ideia ele Diabo e Nóbrega , Joseph d e Anchieta, Fernão Cardim, o franciscano André Thevet;
de Deus, ambos dos "brancos", unificavam-se . As estrelas cad entes, which o calvinista Jean d e Lé1y, o alemão Hans Staclen, diziam-no malfazejo. E
the Loanda natives cal/ MA-DIABU, singular DIABU, evidenciam que o um espectro, fantasma configurando um animal, seu duplo fantástico
Demônio d everia pertencer a uma classe superior e estranha aos seus (substituído pelo Zumbi, vindo de Angola), assombração determinando
Ilundo invocadores e à extensa teogonia suclanesa e banto. pavor que às vezes é forma punitiva para os caçadores desapiedados e
Há feitiço, uanga, contrário ou favorável, mas é um resultado elo traba- sádicos. Sua aparição é sempre castigo justo (Dicionário do Folclore
lho de um home m, de um mulôji, fe iticeiro votado ao Mal. O quimbanda é Brasileiro, 2" ed., Rio ele Janeiro, 1962).·
médico, adivinho, curado r, um especialista na terapêutica mágica. Não tra- O problema reside na abundância calamitosa das interpre tações em
balha num dicanga, sessão, com a destinação maldita. Os entes mais acen- vez de traduções honestas e literais do motivo. Imposições ele sistemas
tuadame nte inclinados às malvadezas, índice de pouca tolerância, dulcificam- religiosos alienígenas às normalidades metafísicas amerabas. Falta o senso
-se com os processos bajulatórios. O nosso Satanás é incorruptível. elas harmonizações no sentido das equalisations ele Chesterton.
Não havendo distinção específica entre a vida civil e a obrigatoriedade Os deuses respeitam a ecologia sob pena de não serem pe rce bidos.
religiosa para o africano, e ntende-se que todos os atos humanos incidem nas Os demônios do terror implacável e da insaciável crueldade depen-
zonas de influê ncia sagrada. A cada momento deverão estar sob a supervi- dem essencialmente ele um clima de compreensão psicológica no plano da
são ele uma divindad e a quem tributam homenagem. O abandono, mesmo função maléfica. A modelagem diabólica vem do d esespero e da angústia
parcial, desses deveres ou de um deles, é crime a que corresponcle uma inspiradores. Todo o conjunto da arte regional, desenho figurativo, orna-
sanção penal. Não existe divindade generosa que não se torne maléfica mental, esculturas, e nfeites, as cores decorativas, os cantos coletivos, o
de pois ele uma transgressão aos seus direitos. Um Nzambi está muito alto ritmo dos ritos, denunciam a concepção expressiva da plástica sagrada. A
para preocupar-se com o formigueiro humano mas o interesse ciumento fica augusta sereniclacl~ dos de uses fundame nta a tranquilidacle d os fiéis devo-
na relação aproximativa dos deuses encarregados da vigilância dos homens. tos. Os deuses egípcios e persas aparecem armados para o contendo r
Daí a frase fácil afirmando que o pre to é mais atencioso com as más elo que inflexível. Os "olímpicos" sabem que os adversários foram eternamente
com as boas e ntidades . É que as dívidas diárias figuram na jurisdição elas condenados à inanição funcional.
primeiras e não das últimas égides. O pavor prestigioso opera ao inverso elo Com a liberdad e irrespo nsável, surgem no Brasil os exus caudados e
quadrado das distâncias. Quem faz mau o "santo" é o pecador. cornuclos, a mpla bocarra escancarada para deglutição de vítimas como um
Não estou desejando estabelecer confronto brasileiro, evocando os Moloch. E assim se d e rramam as coleções e noticiá rios, vendidos pelo
sobrenaturais indígenas. O Demônio clássico dos a me rabas, desde a cate- mundo, espalhando uma visão estranha de um Exu de mentira somática.
quese no século XVI, Jurupari, nunca me receu esse título. Stradelli docu- Para que fosse possível aquela forma hedionda, contrária às significa-
mentou, com o fundamento d e pesquisas amazônicas, a distância intrans- ções dos ele me ntos utilizados, chifres, boca aberta, cauda, tridente, mão
ponível e ntre ele e um Diabo. Dediquei-lhe longo estudo (Geografia dos e m garra, unhas reviradas, seria indispensável l'altro mondo soprannatu-
Mitos Brasileiros, Rio de Janeiro, 1947)' no rumo ele sua inevitável absolvi- rale dei negri, p ieno di arcano malefizio, dominato da! senso delta paura
ção no santo ral ameríndio. É um reformador, ascético, ciumento da pureza e dei terrore, che solo si puõ spiegare come um fatto di degenerazione e di

Edição atual - 3. ed. São Paulo: Global, 2002. (N.E.) Edição atua l - 12. ed. São Paulo: Global, 2012. (N.E.)

li<> 111
abiezione, onde la credenza nell'Ente Supremo s'e ridotta quello stato vir-
tua/e di pura e semplice idea, senza oramai traccia piu alcuna di culto,
como escreve Oddone Assirelli fixando um ambiente de tragédia onde
'
Petrônio justificaria o seu Timor, Deorum origo (Ajrica Polyglotta, Bologna,
1938). justamente o inverso das conclusões de Leo Frobenius em suas
NoríciA co ZuMBi
• • • • • •• • •• • •• • •
doze jornadas africanas.
N'África , a mutação satânica, a função aterrorizante e cruel, é sempre
consequê ncia de falhas oblacionais e não ação consciente e normal do
e nte divinizado, como pratica o nosso Lúcifer.
É quanto observou um sacerdote etnógrafo, o Padre C. Tastevin, C. S. No Brasil, notadamente pelo norte, o ZUMBI é uma presença apavo-
Sp. (Les Idées Religieuses des Ajricains, Paris, 1934): En écrivant NZA M'BI rante e complexa. "O pasmo tem sempre um elemento positivo ele louvor",
on devrait traduire CELUI (DE) LE MAL, car c 'est au Dieu Suprême qu'on le mbrava Chesterton. Zumbi já não goza ele sua prestig iosa popularidade
attribue les grands .fléaux et les ma/adies incurables, en p articulier une mas permanece vivo e sensível no folclore brasileiro.
sorte de lepre à pustule, dite NZA M'BI ou BINSAMPA LA NZA M'BI, les Trazido pelos escravos ele Angola, o Zumbi abandona os limites
bourgeons de Nzambi. somáticos de sua representação africana e no Brasil encarna, funde,
Há uma natural ambivalência de amor-pavor para com os grandes- engrandece muitas figuras estarrecentes na imaginação coletiva.
-deuses onipotentes, transmitindo-lhes os vícios humanos da inveja e elo Passa a ser um negrinho ágil , irrequieto, buliçoso, competindo com
rancor. Tanto semeiam as bênçãos fecundas como as maldições esterili- o Saci-Pererê. Assobia como ele. Engana as crianças, desorienta os via-
zantes. Ainda mais "provadores" da fidelidade humana que o Deus de job. jantes como o Curupira . A égide elas matas era a Caapora. Em Sergipe o
Num resumo: 11 est l'auteur des maux, BE, mais il n 'est pas mauvais. Zumbi é o esposo da Caapora. Cavalga um porco-do-mato . Empunha um
Não existe n 'África , ocidental e oriental, um deus desinteressadamen- bastão rústico. Exige cachaça e fumo como a consorte famosa . Sílvio
te mau. Sempre, inevitável, funcionalmente perverso, como o nosso velho Romero acredita-o convergente com o lobisomem terrível. Povoa os bos-
Belzebu. ques de rumores imprecisos, desencontrados, espalhando um medo
info rme, injustificado mas rea l. Acusam sua presença de Minas Gerais a
Pernambuco.
Zumbi é o notívago, andarilho das noites silenciosas, o esquisitão
arredio, o neurastê nico ensimesmad o. Beaurepaire-Rohan, Vale Cabral ,
Macedo Soares, Nina Rodrig ues registam seus espantosos atributos, dis-
tantes e diversos elas atribuições em Angola. É alma de escravo melancó-
lico. "Cresce-e-Mingua" que faz galopar e m disparada os animais que o
avistam, desmarcado, imenso, curvad o em arco , zombando do sucesso
obtido.
Entre os indígenas o Anhanga podia tomar a fo rma ele animais fantás-
ticos. Zumbi assume essa função e num plano bem mais impressio nante.
É o Zumbi do Cavalo, re presentando o equino que morre u e fora enterra-
elo como corpo de cristão. Sepultando-se um bruto , provoca-se o apareci-
mento elo Zumbi correspondente. Os animais mortos correm, relinchando,
os tabuleiros e Campinas, vivos no Zumbi.

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Há testemunhos, depoimentos, narrativas estranhas que compendiei Capelo e Ivens (De Benguela às Terras de laca, I, p. 103), tratando da falta
na Geografia dos Mitos Brasileiros (Rio ele Janeiro, 1947).' É um cortejo de religião e falsas noções elo Criador entre o povo do Bié, dizem que em
muitíssimo mais apreciável que o disponível pelo Zumbi angolano, restrito T'schiboco, a 700 quilômetros da costa , encontraram um natural que, lhes apre-
a ser visagem o u sinônimo divino, sem que se dissolvesse nessa alucinao- sentando um objeto, que descrevem e reproduzem, disse ser o N'gana N'Zambi
te popularidade brasileira, vivendo cem papéis , com o direito ele intimidar (Senhor Deus), e perguntado sobre quem era o N'gana N'Zambi, não soube res-
crianças e velhos, matas e caminhos. ponder, acrescentando simplesmente que um ambaquista lho havia trazido elo
Sua figura cresceu por um desses mitos de confusão verbal, como ·'calunga" (mar) . Pela mesma ocasião, Capela, numa sanzala, era, segundo parece,
dizia Max Müller. Convergem para ele o nzámbi, clivinclacle, potestade chamado igualmente N'ga na N'Zambi, pela sua longa barba branca.
divina e, por translação, vocativo aos chefes sociais, m 'ganga Zumbi, e Perguntando eu a um negro natural de Angola como se chamava Deus na
língua dele, respondeu-me que Zambi e ainda perguntando-lhe o que queria dizer
nzumbi, espectro, duende, fantasma, visão de assombro. Este é o nome e
N'gana N'Zambi, apontou-me com o dedo para o céu e disse: Senhor Deus.
função mais vulgarizados.
"Zumbi e Zambi anelam confundidos na tradição brasileira; entretanto, como
Admirou-me não e ncontrar o Zumbi em Angola. Estava fora elas con-
se vê, exprimem seres diferentes entre si.
versas, elos contos orais, elos medos infantis, elo culto elos Ilunclos. Ninguém
"Exprimindo Zambi um ser superior, quando os pretos veem aproximar-se
o recordou para minha reminiscência ainda fiel às suas diabruras pelo
deles o senhor ou o feitor, pessoas a quem elevem respeito, dizem assustados e
agreste nordestino, entre o sertão e a praia. Mas o Zumbi veio com o escra-
rapidamente: - 'Zambi vem! ... ' Este fato prova que o Zumbi elos Palmares era
vo angolano e sua área ele influência corresponcle às zonas elo trabalho assim chamado por ser o superior, o chefe, o mandão, o poderoso da República
negro anterior a 1888. Participou do âmago elas crendices e se foi amplian- africana em Pernambuco. O sr. Oliveira Manins, na sua obra O Brasil e as Colônias
do, substituindo entidades indígenas mantidas pela memória mameluca, Portuguesas, tratando deste he rói, ainda que ele modo diverso do que lhe suce-
como o Anhanga. Em Angola o Zumbi é "Nzambi", o sagrado nome ele deu, porque ele morreu valorosamente em luta e não pelo suicídio, escreve cor-
Deus. Predominando localme nte segundo o Pe. Estermann. retamente Zambi. Em diversas obras e documentos o nome elo chefe palmar
Beaurepaire-Rohan, em 1889, apresentava excelentemente: "ZUMBI, aparece escrito Zombi, Zomby e Zumby."
s.m. ente fantástico que, segundo a crendice vulgar, vagueia no interior elas
casas em horas mortas , pelo que se recomenda muito a quem tiver ele Sobre o ZUMBI informa ainda Vale Cabral:
percorrer os aposentos às escuras que esteja sempre ele o lhos fechados,
para não encarar com ele. " Etim. É vocábulo ela língua bunda, significando "Zumbi: ser muito popular no Brasil, herdado elos africanos.
duende , alma do outro mundo (Capelo e Ivens). Fig. na Bahia, chamam "A) Entre os angole nses, gente que morreu, alma elo outro mundo.
zumbi àquele que tem por costume não sair de casa à noite: "Tu és um "B) Na tradição oral de muitas nações africanas, fantasma , Diabo, que anela
zumbi. " Em outras províncias elo norte , dão o nome de zumbi a qualquer ele noite pelas ruas; e quando os negros veem uma pessoa astuciosa que se mete
lugar ermo, tristonho, sem meios ele comun icação (Meira). em empresas arriscadas, dizem: - 'Zumbi anela com ele', isto é, o Dia bo anela
Vale Cabral, em 1884, fez longo registro sobre o ''ZAMBI: metido no corpo dele.
"C) No Rio de janeiro intimidavam-se muitas pessoas com o Zumbi da Meia-
é voz que exprime entre os negros naturais de Angola um ser superior, Deus, e tanto -Noite, espectro que vagava alta noite pelas mas. (Informação do sr. Conselheiro
assim que quando se lhes pergunta por coisas impossíveis ou misteriosas, eles respon- Bea ure paire-Rohan).
dem: 'Zambi que sabe.' O padre Pedro Dias, na sua Ar/e da língua de Angola (Lisboa, "D) Na canção popular "O A.B.C. da Venda" há a seguinte estrofe:
1697), diz que Nzambi significa De us e dá muitas frases em que entra a palavra mbun- Zumbi lobisomem
da. Cannecatim, no seu D icionário de Língua Bunda ou Angolense (Lisboa, 1804), dá E outros fadários,
igualmente Zambi como significando Deus. Como se vê, os termos são idênticos; o Of'recem rosários
n, porém, que precede Zambi na escrita do Padre Dias, é eufônico. Na Venda.
"E) Te rmo africano (Benguela) que significa alma; 'Eu ho je vi uma alma!' Ê
Edição atual - 3. ed . São Paulo: G lobal, 2002. (N.E.) têrei damoni Zumbi e também otirurum em vez de Zumbi; muitas vezes se reve-

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la em peque na estatura humana e cresce à proporção que algué m dele se aproxi- Há o Zumbi no Haiti e creio constitu ir a fo rma mais imprevista e trá-
ma para curva r-se e m fo rma de arco sobre a pessoa. Outras vezes oculta-se, e gica em toda sua escala de personalizações. W. B. Seabrook (La Jsla
impede a um cavale iro prosseguir, to mando-lhe as rédeas do animal. Os animais Mágica, trad. ]. Canalejas) regista os Zom hies, cadáveres animados por
de montaria o conhecem e evitam passa r pe los lugares o nde ele estiver, o que é força mágica, sob a vigilância constante do feiticeiro; corpos insensíveis e
denunciado por um ronco surdo do próprio Zumbi ( Hio de Ja ne iro, informação
alimentados parcamente e sem sa l. Se provarem o sal, sentem que estão
do sr. dr. Luís Rodrigues da Costa Júnior).
mortos e voltam para a sepultura, irremediavelmente. Esses zomhies, de
"F) Alma de preto transformada em pássaro que fica ao escurecer na porteira
das fazenda , dos pastos ou nos lugares ermos, gemendo e chamando os tran- vida aparente, empregam-se exaustiva mente nos trabalhos agrícolas,
seuntes pelos nomes, e às vezes ao meio-dia canta e lamenta a vida que levou como explorados pelo proprietário dos mo rtos, roubados ao cemitério. Miguel
escravo e diz: Zumbi .. . biri... ri ... coitado! ... Zumbi .... biri ... ri .. . coitado! (Sul da pro- Ángel Monclus (Apuntes de Ha iti, Ciudacl Trujillo, 1952) informa ser uma
víncia de Minas Gerais, informação do sr. Carlos Frederico de Oliveira Braga). substancia animal o vegetal que provoca o estado cataléptico, suspensas
"G) Ca pela e Ive ns, refe rindo-se aos negros da região do Dombe Gra nde, as manifestações vitais, e a vítima é sepultada como defunto e depois rap-
dizem: ' .. . vê-se fre que nteme nte ao bebe re m agua rde nte, entornar no chão uma tada do túmulo; vuelta en sí la persona que f ue victima dei malefício, reco-
peque na parte, a fim de contentarem, segundo parece, o Zumbi ou n 'z wnbí (Alma bra sus f acultades físicas, pero no las intelectuales. AI resucitar, se convier-
do outro mundo), por que m sempre julgam estar cercados, e mais ou menos em te en u m imbécil o autómata; en una máqu ina viviente de mantención casi
relação, esfregando e m segu ida a testa e o pe ito como remate à cerimônia. ' V. De gratuita. Los ZOMBIES comen poco y rinden ap reciable labor, porque
Benguela às Term s de laca, I, pág. 23. No Brasil costumam também as negras
aunque despaciosos, son incansables. En realidad, es para el trabajo gra-
africanas, quando come m o u bebem água ou aguarda nte, de itarem as primeiras
tuito para lo que seles procura. Mo nclus, cônsul da República Dominicana,
porções no chão e a esse ato, quando se lhes pe rgunta, d izem que é para o santo,
que se acha pe rto delas. Entre algumas crioulas dá-se o mesmo fato e dizem que
nunca chegou a ver um Zombi mas tantas foram as afirmativas de crédito
é para S. Cosme e S. Damião, do is santos da predileção das escravas pretas, que q ue me ohligan a no dudar de la existencia del ZO MBI.
desejam as suas alforrias por intervenção dos mesmos santos. É uma trad ição dos negros do Camerum. Acreditam que os gênios da
"H ) O sr. dr. Macedo Soares no seu artigo 'Sobre algumas palavras africanas floresta equatorial africana, os BA-KONGS, desenterram os defuntos, dão-
introduzidas no português que se fala no Brasil' (Revista Brasileira, IV, 1880, pág. 269) -lhes movime nto e fo rça, fo rça ndo-os às la butas do campo, indefinidamen-
que Zumbi é ' .. . voz com que as amas negras amedro ntam as crianças choronas: Olha te, para aumentar as riquezas daqueles enca ntados.
o Zumbi! Outros dizem: Olha o Bicho!' e acrescenta: 'Serão sinô nimos? Será o Papão Deve haver variante no Daomé, fo nte étnica do Haiti.
pottuguês? Parece.' O Zumbi pode como o tutu ou o Bicho servir para intimidar as Em Angola o Zumbi não tem, o u já não possui, essa fantasmagoria
crianças, mas eles não são sinônimos como pensa o meu amigo sr. dr. Macedo Soares. que desfrutou no Brasil. É nome ele De us, N'Zamhi, o Senhor, numa invo-
É verdade que na Bahia se põe medo às crianças com o Tutu-Zambê (ou Cambê?!),
cação abstrata e respe itosa mas sem esperança de interferência útil na vida
mas por ora nada sei ao certo. Em África existe um monte denominado Mulundu
prática . O Zumbi-fantasma diluiu-se o u não fui capaz de rastejar-lhe os
Zumbi, cuja tradução, segundo me informaram os srs. Beaurepaire-Hohan e Menezes
vestíg ios nas superstições da província. Nem se orgulhará, como o seu
Brum, quer d izer Monte das Almas e diz-se que essa denominação provém de ali
ouvir-se lamentações e gemidos elas Almas do Outro Mundo. Cannecatim no seu irmão brasileiro, da rica documentação estudiosa, marcando-lhe o diagra-
Dicionário dá a palavra mulundu como significando monte. ma do fabuloso percurso.
"!) O sr. dr. Sílvio Romero na sua obra A Poesia popula r do Brasil (Rer. Bras., Óscar Ribas (/lundo, Luanda, 1958), informa:
VI , 1880, pág. 215) dá a palavra Zumbi como significando Lobisomem. A significa-
ção poré m não é exata e ne m os dois seres são sinô nimos. A estrofe antiga, e vejo "DELE o u ZUMBI é a a lma de pessoa falecida recentemente, num período
nela traços evidentes do modo de poe tar ele Gregório ele Matos, os apresenta como não secular. O primeiro termo é mais usado e m Luanda, e o segundo no interior.
fadários diversos entre si, que para disfarçarem a aparência sobrenatural vendiam "O aportuguesamento de zumbi é canzubi. E de dele proveio a expressão
rosários. Como se sabe, o Diabo tem tanto medo do rosário e tanto que a ge nte para munde!e, indivíduo de raça branca. Pela decomposição, mukuá-ndele, apura-se a
se livrar dele basta apresentar na frente, dizendo: Foge dele como o Diabo da cruz; comparação: possuidor de alma, semelhante a alma.
e assim o Zumbi oferecendo rosários à venda, nunca pode ria ser tomado como um "ZUMBI e DELE derivam, respectivamente, ele kuzumbika e kuendela , ambos
ente malévolo, o Diabo" (Antologia do Folclore Brasileiro, São Paulo, 1956). os verbos significando 'perseguir' (a ma ndado de fe iticeiro). Quer dizer: o nome

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de alma de pessoa morta resulta do efe ito provocado pelo sonílogo, e não elo
novo estado a q ue passa. Duma maneira geral, os mo rtos, consequentemente as
almas e os espíritos, são designados pelos te rmos: akuá-Lunga (os do Além) e
aku á -moxi -ia -mavu (os de debaixo ela te rra).
·'QuUulo é a alma pe nada. Deriva de kulula, amargar. ~ECADO AO MO~JO
"As três designações, Zumbi, Dele e Q uilulo, segundo nos parece, inicial- • • • • • • • • • • • • • • •
me nte constituíam te rmos específicos. Mas com o tempo, o povo, no se u dinamis-
mo linguístico , passou a e mpregá-los ind istintamente, na pu ra acep?o ele alm~
d o extt:rlfo, consequememente na de A1ukuá-Lunga , singular de Akua-f.unga. Sera
assim? Pelas de rivações dos respectivos vocábulos, de rivações, aliás, resultantes elo N a Correspondência de Fradique Mendes, Eça ele Q ueirós d ivu lga
nosso e ngenho , assim nos fundamentamos para tais deduções." u ma tra dição que dizia comum n a Zambézia .

Zumbi, redu zido a alma d o o utro mundo , sem as mate rializações estupe- "Mesmo e ntre os simples há modos de ser religiosos, inteiramente despidos
facientes de sua nacio nalidade ame ra ba , está m esmo semiexilado d e Luan da, ele liturgia e ele exterioridades rituais. Um presenciei eu, deliciosamente puro e
o nde De le lhe tomo u vantagem e p osto. No Brasil é ainda topônimo conhe- íntimo. Foi nas margens do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria,
cido : sen·a da Ba hia, rio na Paraíba , povoações e riachos em Pernam buco, nas vésperas de entrar em g ue rra com um chefe vizinho, comunica r com o eu
lagoa e m Serg ipe e no Rio Grand e do Norte, alé m ele p ra ia piscosa . Deus, com o seu Mulungu (q ue era, como sempre, um avõ divinizado). O recado
Em Angola ning ué m me fa lo u no seu no m e e m qualque r atuação ou pedido, porém, que desejava mandar à sua Divindade, não se podia transmitir
vulgar. Me nos ainda e m Lua nda, ele Maiang a aos Musseques, o nde conhe- através dos feiticeiros e do seu cerimonial, tão graves e confidenciais matérias
ci ta n ta no tícia fa ntástica . Confu nde-se po pularme nte com DELE e continha ... Que faz Lubenga? Grita por um escravo; dá-lhe o recado, pausadamen-
Q UILULO pela ide ntificação funcio na l. O imo rta l Zumb i e stá conde n ado à te, lentame nte, ao ouvido; verifica bem que o escravo tudo compreendera, tudo
retivera: e imediatame nte arre bata um machado, decepa a cabeça do escravo, e
m o rte pe lo Te mpo.
brada tranquilame nte - "parte!" A alma elo escravo lá foi, como uma ca1t a lacrada
Ndenu n i Nzambi. Id e com De us! e selada , dire ita para o céu, ao Mulungu. Mas daí a instantes o chefe bate uma
Na co nfusão ve rba l ele N'Zambi, d e us , e N'Zumbi, esp ectro, fantasm a, palmada aflita na testa , chama à pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido rápidas
o Zumb i veio ao Brasil na memória elos escravos angola nos . Um p oderoso palavras, agarra o machado, separa-lhe a cabeça e berra : - "Vai!" Esq uecera algum
conco rre nte ele N'Za mhi n o le ste a fricano , MULUNGU, divindade supre ma detalhe no seu pedido ao Mulungu .. . O segundo escravo e ra um post-scnptum."
e m vinte e cinco idio mas e diale tos, elo Baixo Zam be ze ao lago Vitó ria e
co sta até o rio Lua nga (Eclw in W. Smith , B-ibliograf ia Etnológica de Bem pode existir a técn ica d a Zam bézia , vinda dos zul us q ue a empre-
Moçambique, A. Rita-Fe rre ira , Lisb oa , 196 2), assoc iado ao trovão, ao re lâm- gavam . Passando elos bantos aos suda neses o processo viveu tipicamente no
pago e à c huva, d esconhece as te rras novas d 'Amé rica Austral. Ocldone Daomé, e ntre seus e mite ntes soberanos, q ua ndo a África O cide n tal os pos-
Assire lli , p rofesso r ele Linguística na Univers idade ele Bo lo gna , e nsina q ue suía, o niporen tes e livres ela civilização limitad o ra elos brancos.
ZAMBI é nome straord inariamente dif.!uso in tutta l'Africa nera, a parti- George Peter Murclock, no Our Primitive Contemporaries (1934),
re dai Kunene .fino alia costa d 'Oro, nel bacino de/ Congo, nella Rhodesia regisra se mel han teme n te: "O Re i sa crifica um clelinq ue n te ou dois semp re
settentrionale e nell'alto Zambesi, f ino ai Niassa .. . (A/rica Polyglotta, q ue q uer transm itir um a m e nsagem aos seus reais antepassados. " Ma is
Bologn a , 1938) . recente mente (1935), Geoffre y Go re r, A/rica Dances, insiste na notícia:
Mas, dizem os q uimbundos: M.ukuanhi kafuê? Que m não m o rre? ... Also whenever any event o.f importance occurred the king would send news
of it to his .father by telling it to some bystander and immediately killing
him . Come çara p e la re m es sa elo escravo, d epois a criminal e, no último
te m po , qualque r especta dor, bystander, servia .

118 11 9
Esse recado ao Espírito é uma c rença popula r em Portugal. d 'América e tudo quanto le mos nas investigações de Malinowski na
Antônio Nobre, no Só ("Antônio", 1891), denunciava-a na região do Melanésia o u de Frobenius no país dos iorubas.
Entre-Douro-e-Minho: Comumente os babalaôs ou babalorixás negros encarnam os orixás,
deuses e subdeuses sudaneses e bantos e não o espírito d os mortos. Há o
Morria o mais velho dos nossos criados,
indispensável cerimonial que é o cenário impressionador e propiciante do
Que pena! Que dó!
culto. No recad o ao morto há uma simplicidade, uma naturalidade que
Pedi-lhe, tremendo, fizesse recados
exclui a distância sobrenatural, estabelecendo uma comunicação normal e
À aiminha da avó ...
afetuosa pela correspondência oral e comum.
No féretro das crianças punham, em Portugal, lenços, rendas, velas, Esse recado ao morto aparece no nordeste do Brasil, claro e sereno
agasalhos, destinados aos velhos parentes mortos. As crianças : ntrega.riam em sua estonteante banalidade surpreendente.
tudo, fielmente, às almas tristes que podem padecer escundao e fno. E O coronel José Bezerra de Andrade, da Polícia Militar do Rio Grande
sobretudo sofrer a angústia da falta de comunicação, a suspeita de que do Noite, contou-me que , residindo na cidade de Santa Cruz, assistira ao
estejam olvidados pela família. Ide nticamente na Espanha , França, Itália. curioso episódio. Na sala pobre velavam o cadáver da dona da casa , fale-
Entre os Vitotos, noroeste do Amazonas, uma alma só vive enquanto se cida durante a noite. Uma vizinha, de meia-idade, aproximou-se lentamen-
lembram dela. te da defunta e dirigiu-lhe a palavra como se falasse com pessoa viva: "A
Em Georges d 'Esparbés (1863-1944) , no conto L'Ordonnance (La senhora faça o favor de dizer a dona Xiquinha, se se encontrar com ela,
Grogne, Paris, 1907), o Imperador Napoleão encarrega ~ soldado ~as­ que eu me casei com o filho dela e vou passando muito bem. Diga mais
sonier, apelidado Chinfreniou , ordenança do general Co rbmeau , de dtzer- que ela já deve ter sabido d essa notícia porque tenho mandado recado por
-lhe que a Imperatriz seria madrinha de um seu filho. O general Corbine~u muita gente !" A D . Xiqu inha, sogra da mulher, opusera-se ao casamento
morrera na batalha de Eylau e Napoleão o ignorava. O chasseur Massomer desta com o filho. Morre ra, e o filho casara imediatamente com a namora-
mete u uma bala na cabeça para obedecer la comission suprême. Suicidou- ela. Esta, inesquecicla ela antipatia da mãe do marido, fiel à mágoa, e nviava,
-se para ir dar o recado do Imperador ao general Corbineau , procurando- sempre que visitava defuntos, recados à sogra, informando-a ela vitória.
-o no "Paraíso dos Bravos" . Impressionou ao coronel José Bezerra a naturalidade elo ato e a circuns-
Quando os espanhóis e portugueses vieram para a Amé rica não encon- tância ele todos os assiste ntes acharem normal e comum o recado ela nora
traram esse costume e ntre os a me ríndios. Não havia contato direto do d evo- à sogra já morta , por intermédio ele um cadáver.
to com a divindade e a figura intermediária do sacerdote ameraba era indis- Escolhi, ele propósito, Antônio Nobre , Georges ci'Espa rbés e Eça ele
pe nsável, e d ecorre nte me nte valorizada e preciosa. O espírito do g uerreiro, Queiroz, e não viajantes, naturalistas ou etnógrafos, porque fizera m me n-
morto na luta ou sucumbindo pela ação maléfica d e inimigos (ningué m ção natural de uma ação que julgavam tão integrada no patrimônio usual
fa lecia d e mo rte natural), vivia em vagas regiões de caça e pesca abundan- quanto outra q ualquer e não cogitavam, especificamente, ele uma de mons-
tes conforme os merecime ntos de força e vale ntia. Podia fazer-se sentir e tração em antropologia cultural. Tê m o valor ele um d e po imento insusce-
m~smo re me te r me nsagens misteriosas pelas vozes dos pássaros noturnos, tível ele contestação. Mu rdock funda me nto u-se em longa bibliografia.
pela inopinada aparição de certos animais ou especiais disposições eólias, Gorer ouviu o teste munho no próprio ambie nte suclanês. O recado ao
ventos o u aragens, rumor insólito na folhagem seca, feição original de obje- mo rto, po r intervenção g raciosa de outro d efunto, é tradição e uro pcia c
tos sonhos avisadores. Mas recado d o vivo ao morto é que não havia por não ameríndia . Incorporou-se à nossa cre ndice po pular através da supers-
toda a América pré-colombina. Desaparecido o cadáver, te rminavam as tição recebida de Portugal. Já vimos sua conte mporaneidacle n'África orie n-
mensagens imediatas. Vivia o guerreiro na imaginação dos companhe iros, tal e ocidental.
caçando e ntre as estrelas e através das nuvens e dos vendavais. De onde viajara, para Portugal, Mulungu?
A humana missiva da Zambézia e Daomé, a supe rstição na Europa
Latina, diferem das manifestações sobrenaturais dos "mediuns" indígenas

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vimento lúdico, uma Embaixada que saudava os Santos da Igreja, os gran-
des da cidade e conq uistava o povo pela melod ia , movimen tação, depois,
sugestão variada e vistosa elos trajes.
Pe re ira da Costa (Folk-Lore Pernambucano, 1908) salienta "Cabinda
CABÍNDA VELHA Velha" entre os Maracatus exib idos no Ca rnaval do Recife:
• • • • • • • • • • • •
'·Entre estes destacava-se o denominado Cahinda Velha , desfraldando um
rico estandatte de veludo bordado a ouro, como eram igualmente a umbela e as
vestes elos Reis e elos dignitários da Corre, e usando todos eles ele luvas ele pelica
N ào se diz, na voz popular do Brasil , CABINDA mas CAMBINDA. branca e finíssimos calçados.
"Os vestuários elos arqueiros, porta-estandarte e demais figuras, eram de
Prolo nga, sonoriza, e nternece o vocábu lo, espalha ndo-o nas me mórias de
finos tecidos e convenientemente arra njados, sobressaindo os das mulheres, tra-
vinte gerações de mestiço s e nas bagaceiras d esaparecidas de m il enge-
jando saias de seda ou veludo ele cores diversas, com as suas camisas alvíssimas,
nhos de fogo-mo rto. de custosos talhos de labirinto, rendas ou bordados, vistosos e finíssimos ; e pen-
Estavam os Cabindas incluídos na prime ira p lan a classificadora. Ainda dentes do pescoço, em numerosas voltas, compridos fios de miçangas, que do
e m fevere iro ele 1817, o francês L. F. To lle nare escrevia nas suas Notas mesmo modo ornavam-lhes os pulsos.
Dominicais, expondo a impressão sobre os tipos d os me lho res e scravos: '·Para as exibições do Maracaru organizavam-se associações, cujas sedes, pelo
"O s neg ros trazidos d a África vêm de Angola, Cabinda , Be nguela, Gabão Carnaval, ornamentavam-se com esmero, am1ava-se no salão um trono com dossel
e Moça mbique; não os trazem mais d a Costa do O uro desd e que o gover- para assento elos monarcas, e em lauta mesa, repleta ele iguarias e bebidas, tinham
no portug uês se comprometeu a não p e rmitir mais o tráfico ao notte do assento não somente os membros ela sociedade, como também, e preferencialmenre,
Equador. Eram os mais bonitos. Os ma is hábeis e mais convenie ntes pa ra os seus convidados, entre os quai , não raro, figuravam mesmo pessoas de distinção.
o serviço nas cidades são os negros d 'Angola; os Cab indas e Benguelas são "Quando o préstito saía, à tarde, recebia as saudações de uma salva de bom-
d óceis e excele ntes para o trabalho agrícola; os Ga bões são ferozes e bas reais, seguida de grande foguetaria, saudações essas que eram de novo pres-
maus; injuria-se um negro ch amando-se-o d e Gabão. Os de Moçambique tadas no ato do seu recolhimento, renovando-se e continuando as danças até o
amanhecer; e assim, em ruidosas festas e no meio ele todas as expansões de ale-
são fracos e pouco inte ligentes; todos os carregame ntos que de les vi che-
gria, deslizavam-se os três dias do Carnaval. "
ga r aqu i e ram miseráveis."
A va lo ri zação explica a imagem que, q uase cento e cinquenta anos Resplanclô,
d e pois, ocorria ao poeta pernambucano Jaime G riz: Coroou!
Cambincla Velha
Ó! Sinhô! Foi quem chegou!
Ó! Sinhô!
Preto Cambinda chegou! Como os m ais antigos grupos dança ntes tiveram nome de CAMBI DA ,
seriam e les a velocidade inicial elo que se o riginou em Maracatu. O nome
Cambinda , ta lqualmente Congo e Guiné, foi smo nuno brasileiro do
CAMBI DA é mais velho elo que a d e nominação Maracatu. O mais tradi-
africano. Cambindas eram denominados os grupos dança ntes de negros
cional Maracatu do Recife, Maracatu Ele fante, alude insistentemente, nas
que folgavam pelo Recife em p réstito até a porta da Matriz, depois conver-
toadas, a si mesmo, como sendo CAMBINDA ELEFA TE:
gindo, funcio na lme nte, para o Carnaval, no ritmo sole ne elos d esfiles ricos
d os Ma racatus . Esses grupos distinguiram-se pe lo nome evocador, Cambinda Elefante
Cambinda Ve lha , Cambinda Novo, Cambinda Estre la , Cambinda Leão Na rua!
Coroado, Ca mbinda Elefante, acla mados como gló rias locais, nas ruas e Chegou Cambinda Elefante
pontes ela ca p ital pe rnambucana. Realizavam , até certo ponto do desenvol- Dando viva à Nação!

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Cambinda Elefante Meu avô materno, o capitão Manoel Fernandes Pimenta, afirmava ser
E nação germa m! o Cabinda o mais risonho e bem-humo rado dos escravos. Acha g raça no
vento! dizia , com o seu "saber de experiências feito".
Va mos vê Cambinda Elefante ,
ossa rainha já se coroou!
Em dezembro de 1816, L. F. ele Tollenare, percorre ndo Escada ou
Ipojuca, em Pernambuco, informava: "Em Sibiró há uma negra chamada
Vamos vê Cambinda Elefante, Teresa Rainha; era rainha em Cabinda. Surpreendida em adultério, foi con-
Vadiá com a legria! denada à escravidão, e caiu do trono na senzala de um senhor brasileiro.
Os Cabindas foram sempre confundidos no Brasil com os angolanos, Quando chegou trazia nos braços e nas pernas anelões ele cobre dourado.
notadamente do grupo etnolinguístico quimbundo, quando pertencem ao As suas companheiras testemunhavam-lhe muito respeito . Era imperiosa e
quicongo, e mbora todos sejam bantos. Henry Koster não os mencio na, recusava-se a trabalhar. " Obedeceu sob chicote e perdeu as duas mãos,
incluindo-os, talvez, entre os Congos. Há bil, ágil, insinuante , airoso, o esmagadas num cilindro da moenda de cana. "Era uma bela mulher, de 27
Cabinda fo rneceu grande contingente de mucamas, amas de leite , bás pres- a 28 anos, muito alegre e palradeira. Q uis convencê-la de que havia sido
tigiadas pelo afeto do filho-branco. O temperamento acomodatício e q uase apenas a concubina de alg um chefe negro. Suste ntou, altiva e obstinada-
leviano ajustava-se a q ualquer circunstância, roughing it, deixando-se consi- mente, que fora Rainha de Cabinda . Hoje não pode mais trabalhar.
derar angola desde q ue obtivesse proveito. Foi jogado r de capoeira, de pau, Empregam-na, porém, utilmente, para vigiar as companheiras, e sabe
de navalha, glutão, capaz de heroísmos para defender a preguiça pessoal, fazer-se temer e obedecer." Continuava tendo filhos de pais ignorados.
capanga' do senho r-moço , moleque confidente, leva e traz, mastigador de Tollenare ofereceu-lhe uma agulheta de o uro e Teresa Rainha apaixonou-
gorjetas mas, quando Deus queria, excelente trabalhador e attífice, tão bom -se por ele. Destino de tod o francês viajante, discreto e confidente.
escultor q uanto um quioco e bailarino infatigável ao jeito de um Iuanda. Inesquecíveis dias de Cabinda! Temperatura abafada, úmida e morna ,
Mandando-o escolher, preferia comer, beber e dormir. de banho turco. Provo be bida feita com jindungo, pimentas vermelhas e
O comandante Nuno Queria! , antigo governador de Cabinda , retratou- acres. Vejo um papagaio-cinzento, de ornamental rabo escarlate, mantendo-
-os incisiva me nte : "Elegantes, robustos e de fe ições regulares são os negros -se em majestoso silêncio, no o mbro ela gorda dona sorridente. Em Belém
da região. Os homens dedicam-se não só a todos os miste res próprios do da Luz Celeste conheci o d uq ue de Chiaze, fidalgo ca binda, ex-vice-cônsul
seu sexo, mas ainda se ocupam em misteres mais pró prios do sexo fraco tais de Po rtugal em Dakar, esperto e desembaraçado. Na Missão Católica da
como o de lavadeiros, e ngo madeiras e costureiros. Excelentes marinheiros, Congregação do Espírito Santo, o padre Manuelino ele Oliveira mostra-me
são eles quem tripulam todas as embarcações de cabotagem q ue navegam sua coleção de restos de madeira, esculpidos, mabaia ma nzungu, com
e ntre os pottos da província , e que remam nas embarcações quer do motivos de o rientação mo ral ou intenção satírica. Não consigo lembrar-me
governo quer ele patticulares. Em todos os ofícios e ocupam os Cabindas, de algum povo com iguais desígnios ele ética no rmativa , mesmo com outro
carpinteiros, serralheiros, fogueiras, alfaiates, etc., pululam aos centos por nível de cultura e gabo racial, usa ndo essa fó rmula . Um desses restos é
toda a costa e interio r ela Província e Estado Independente (elo Congo). obra- prima , de significação evidente, imediata, comovedora. Um rapaz,
Como setv içais agrícolas não valem um maravedi. O cabinda é ele sua natu- com um braço cortado, está sendo conduzido no conforto de uma maxila ,
reza ratoneiro e bêbedo. Assim não raro as cadeias se abrem para receber suspensa aos ombros de d ois servos. Um homem, com a perna amputada,
no seu seio estes engenhosos matemáticos que acham um objeto antes do arrasta-se penosamente pelo solo. Devia realizar-se o contrário no plano
dono o haver perdido." Deixam as esposas, viajando para o estrangeiro, mas de transporte, mas ao lado da maxila, em relevo, há o sinal da realeza . O
se esquecem ele voltar. Ganhando dinheiro, compram obstinadamente luxu- moço sem braço é um príncipe. O velho sem perna é um plebeu. Acabou-
osas inutilidades. Sobre essa irregu laridade da o rografia sentimental, não -se a estória, humana , dolo rosa, real, fixada num palmo q uadrado pela
perdem o esmalte da simpatia impetturbável. mão ele um preto fiote . Esses restos setv iam, lógica e unicame nte, para
tapar panelas ferventes. Utilizar a tampa desse prosaico utensílio com fina-
Kapanga é to pô nimo no Congo ex-belga, na fronteira de Portugália, Angola. lidades de sugestão psicológica, ensinando, na superfície de um disco ele

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madeira, uma inteira aula régia de justiça formal, altera a sentença do jul- Havia um Povo de Pernambuco, local e população em Cabincla.
gamento crítico sobre a inteligência reflectiva desses Cabindas, analfabetos Julgavam os Reis à sombra ele uma árvore, como David o u Luís IX de
e poderosos de intuição comunicante. Outros restos avisam, doutrinam, França. Era a Muanza Quilua, sombra da Verdade.
estabelecem imagens de obediência, hierarquia , conformação, equilíbrio Fumo era o Príncipe .
social, no recorte ingênuo de figuras cheias de primitivismo e ternura. De Não havia edifício para prisão. O condenado carregava correntes mas
onde lhes veio essa técnica obscura e sutil do ensino pela visão de objetos perambulava, solto.
simples, humildes e familiares? Ao destapar a panela , os o lhos do marido, A donzela passava pela iniciação na "Casa ela Tinta ", doutrinada ,
dos filhos , da mulher, noivo ou noiva, recebiam a mensagem assimilável e orientada, pintada pelas velhas sabedoras das usanças. Era solenemente
clara nesse desenho espontâneo e suficierlle. Toda a minha zombaria , inte- apresentada como apta para o matrimônio. Não aparecendo candidato,
rior e concentrada, evaporou-se. Também em Cabinda verificava-se que o comprador pagando o dote, podia tornar-se n 'dumba, prostituta. Era-lhe
Espírito sopra onde e em quem quer... ainda facultado o direito de ser mulher séria, proclamando-se pelas ruas
Naturalmente já não esculpem mais as regras do Bem-Viver no dorso com tiros de espingarda. Cerimô nia custeada e promovida pelo amante
das tampas de pau. O Deus Progresso espavoriu essa Fada Civilização. d efinitivo.
Vejo a floresta unida e densa, o escuro verde tropical de Maiombe, Quando o marido prevaricava, devia contar o fato à esposa e dar-lhe
onde vivem os gorilas invisíveis. Em Simulambuco visito o monumento um presente como multa. Ele, não ela.
com uma placa memorizante: "Neste lugar em Simulambuco foi assinado Entre os ambunclos havia a réplica. Escreve Luís Figueira (África
a 1° de fevereiro ele 1885 o tratado que integrou o território de Cabinda na Banto, Lisboa, 1938): "As mulheres possuem, pela sua vida , relativa liber-
Nação Portuguesa." Estão sepultados os soberanos dessa terra tchoa, os clacle sexual e a tolerância ela coletividade indígena é manifesta para essas
reis fiotes da dinastia elos Puna, modesta e prude nteme nte reduzidos ao faltas , apesar ele proibido o adultério, mas no período ele gravidez não
baronato, título dado por El-Rei D. Luís a Manuel José Puna , seu afilhado comete tais delitos! Tem a superstição ele sobreviver parto laborioso, difícil,
ele batismo em 1871 , feito coronel honorário elo exército português, faleci- ele morre r num sofrimento atroz, se durante esse tempo tiver relações
do em agosto de 1901 e que assinara o tratado' . Não deparo com os anun- sexuais com outro homem que não seja o marido oficial! Na ocasião do
ciados índices da indolência cabincla. Os homens passam apressados. As parto, se surge complicação, interrogam a parturiente acerca das faltas, das
mulheres ondulam sob os trajes coloridos e sedutores. Às costas, a marra- inficlelidacles, e esta . confessa imediatame nte na persuasão ele atenuar o
elos nas faixas, os miúdos, serenos como pequeninos anjos de ébano. mal pe los expurgos nigromantes, pelas feitiçarias adequadas. Declina o
Leio um volume ele um o utro príncipe cabincla, Dom Domingos nome elo amante, elo sedutor. Ele arrosta com as consequêncías, caso
José Franque, Bona Zanei N'Vincla , Nós, Os Cabindas (Lisboa , 1940), sobrevenha a morte ou se a doença elo parto se complica. A ele pedem
coordenação e notas do sr. Manuel de Resende , com estórias que não contas dos gastos feitos a fim ele c urar a parturie nte; ele é o brigado a pagar
vêm na História. Minhas perguntas m entais vão sendo respo ndidas pelo tudo e a inde nização d e um boi no caso de morte!"
aristocrático Dom Do migos, fardado, e nluvaclo e notável, na dupla O Prof. Alberto Xavier da Cunha, da Universidade de Coimbra, estu-
autoridade da tradição familia r he rdada e ela observação contemporâ- dando na aldeia de Be netenfla , Costa elo Marfim, a tribo To, de etnia
nea , individual e dire ta . Gouro, e m 1958, e ncontrou o costume idêntico aos ambundos ele Angola:
O Impé rio congolês teve o seu início e m 1482, antes de Diogo Cão, "A mulher em trabalho de parto, e antes que este se dê, deve confessar às
o u um pouco mais alé m. Dizia-se N'GOIO. Havia a crença elo Rei elo mulhe res que lhe assistem as suas faltas, especialme nte os seus adultérios,
Congo não dever ver o mar depois ele coroado. Em 1894 o rei D. Álvaro de nunciando o nome elos seus amantes." As confide ntes de latam ao mari-
d 'Água Rosada rompe u o tabu. Faleceu na sua capital, São Salvador, a 18 do e , nascida a criança , o esposo, com toda a família solidária, exige o
ele outubro ele 1895. Castigo!... pagamento indenizatório ao ou aos namo rados ela cônjuge. Polígamos, os
chefes cabindas constroe m as moradas elas esposas sabiamente separadas
O Barão de Cabinda atual 0963) , cre io que o V, reside em Luanda. Tem casa em lncola. "para não permitir que as conversas sejam ouvidas".

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Macaco veio é expressão designando astúcia, finura , experiência do Vo ltando para Luanda tenho oportun idade fe liz ele molhar a mão no
mundo . Deve ter ido elo Brasil po rque "macaco" é sul-ame rica nismo. rio Congo, água do Zaire , p isando as areias
Meter um prego no ídolo é fazer pro messa. Quando a pagam, retiram
o prego . Noutras regiões elo Baixo Congo o costume é o inverso . A co n- o nde o Zaire passa , claro e longo
servação do prego na madeira do ídolo testifica a intervenção sobrenatural.
"Comer fazenda" é recebe r presentes intencio nais. O avião bimotor precisa de cinco minutos para atravessar-lhe a foz,
aberta em leque no Atlântico.
"Os maio res re ndimentos dos Re is do N'Go io eram resultantes elos
impostos pagos pelos mercado res de escravos ... Já se perdeu a maior fonte
de receita, qu e era co nstituída pelo imposto que pagavam os comandantes
das barcas negreiras." N'Bicó era esse imposto ele exportação escrava em
Cabincla. Toda exaltação da literatura abo licionista dirigia-se contra o com-
prado r e não o vendedo r de home ns.
O pano do primeiro mênstruo ficava exposto à porta da cubata. Edital
ela existência de mais uma mulhe r no grupo tribal.
O branco trouxe o aperto de mão. Também os amerabas brasile iros .
"O beijo era absolutamente desconhecido e não tem na nossa líng ua
designação pró pria ." Semelhante mente no Brasil d o século XVI.
Havia uma escravidão voluntária. O candidato deveria partir qualquer
objeto de louça ou vidro, tornando-se escravo do proprietário. To mava
então o no me de IBULABUNGO, "quebrado r de lo uça", sinô nimo ele cati-
vo. Quando o escravo desgostava-se do senhor, aconselhavam-no: "Mude
de senhor, que brando um objeto de outra pessoa. " Não se praticava qual-
quer violência física para com ele. " ão tem a nossa escravidão os ho rrores
da que era praticada pelos brancos ..,
Havia o rdálio pe lo veneno .
Informação memo rável: "O trabalho é considerado pelo cabinda
como o maio r mal e evita-o o mais cuidadosame nte possível. "
Diz-se no Brasil, no tadame nte no no rdeste e na linguagem popular,
fióta ou fióte, valendo casquilho, elegante , janota. Está todo fiote! Será do
peralvilho cabinda, o negro fiote , pisa-flores, airoso e peralta, o vocábulo,
na iro nia dos velhos escravos nos eitos pernambuca nos?
A Vila de Banana, no ex-Congo Belga, fica a 6 quilômetros daqu i na
margem dire ita do rio. Fixa a natividade no minal da musácea que o Brasil
indígena dizia pacova (Musa paradisíaca) e que divulgaria com aquele
no me, nacional para nós, na espécie vinda da Índia , por intermédio da ilha
de São Tomé (Musa sapientum). Banana ficaria nome brasileiro.

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em d uas filas em um muito pequeno espaço; mas, em lugar de conserva r
o corpo erecto, curvavam-no para dia nte , a poiavam um dos punhos na
anca, e saltavam com um pouco mais de vivacidade . Quando acabaram ele
dançar trouxeram-lhes feijão e milho."
UMBÍGADA Von Martius regista uma dança dos Puris em Minas Gerais, 1818: "Os
• • • • • • • • ho mens puseram-se em fila; atrás deles puseram-se igualmente em fila as
mulheres. Os meninos, aos dois o u três, abraça ram-se aos pais; as meninas
agarravam-se, por detrás, às coxas das mães. Nessa atitude puseram-se eles
a cantar: Hanjo-bá, bá-bá-bá . Com meneios tristo nhos, foram repetidas
N enhuma dança indígena do século XVI compreendia a umbigada. dança e cantiga , e ambas as fileiras se moveram num compassado anda-
Dançavam em círculo , marcado o ritmo pelo soar dos maracás. Vezes mento a três tempos. No primeiro e terceiro passos, colocam o pé esquer-
havia canto. Quase nunca tambores o u flautas. do à frente; no segundo passo, o pé d ireito; nos seguintes três passos,
Danças unicame nte de guerreiros, como Jean ele Lé1y assistiu no Rio ele colocam, no primeiro e terceiro passos, o pé direito, ao mesmo tempo que
Janeiro ele 1557. "Unidos uns aos outros, mas ele mãos soltas e fixos no lugar, se inclinam para a dire ita . Deste modo, movimentam-se alternadamente,
fo rmam roda, cwvaclos, para a fre nte e move ndo apenas a perna e o pé com pequenos passos, um pouco mais para diante. Logo q ue o tema musi-
direito; cada qual com a mão direita na cintura e o braço e a mão esquerda ca l se conclui, recuam, primeiro as mulheres com as meninas, e depois os
pendentes, suspendem um tanto o corpo e assim cantam e dançam." homens com os meninos, como que em fuga desordenada. De novo se
O padre Fernão Ca rclim escrevia em 1584: "Os seus bailas não são colocam em posição e repete-se a mesma dança."
diferenças ele mudanças, mas é um contínuo bater de pés estando quedas, Mas agora aparece a umbigacla como ele mento novo e característico.
ou anelando ao redo r e maneando o corpo e cabeça ... Cem homens bai- "Depois, passaram de uma toada para outra, e a dança tomou feição intei-
lando e cantando em carreira, enfiados uns atrás elos o utros, acabão todos ramente diversa ... As mulheres remexiam os quadris fortemente, o ra para
juntame nte uma pancada, como se estivessem todos em um lugar... As a frente, o ra para trás, e os homens davam umbigaclas; incitados pela
mu lheres bailào juntamente com os homens, e fazem com os braços e música, pulavam fora ela fila, para saudar, desse modo, aos assistentes.
corpo grandes gatimanhas e momos, principa lme nte quando bailão sós." Deram com tal violência o encontrão n um ele nós, que este foi obrigado a
Gabriel Soares ele Sousa, na Bahia, e ntre 1569 e 1584, cita os tupinam- retirar-se quase sem sentidos com tal demonstração ele agrado, pelo que o
bás: "... ca ntam e bailam juntame nte em uma roda ." nosso soldado se postou no lugar, para dar a ré plica da umbigacla, como
Nas primeiras décadas do século XIX, Augusto ele Saint-Hilaire descre- é ele praxe. Esta dança, cuja pa nto mima parece significar os instintos sexu-
ve um bailado dos Coroados em 1816: "Alinharam-se em duas filas, os ais, tem muita semelhança com o batuque etiópico, e talvez tenha passado
home ns na frente e as mulheres atrás: os primeiros seguravam o arco e as elos negros para os indígenas americanos."
flechas em posição vertical, e aquelas de ntre as mulheres que tinham Os negros estavam com os Puris e um deles serviu ele intérprete a von
crianças ele peito , conse1varam-nas nos braços. Assim dispostos, puseram- Martius. A umbigacla provinha deles. Os banhos ocidentais, porque nos
-se a cantar em to m lúgubre e melancólico, e, ao mesmo tempo, começa- o rientais, mesmo nos ba ilados vio lentos elos macuas e elos lomués, não há
ram a dança . Avançavam uns em seguida aos o utros r::~m i nhan do com umbigada.
gravidade e medida , ora sobre um pé, o ra sobre o outro; desse modo João Emanuel Pohl vê os ba iles dos Poracramecrãs no Maranhão, em
faziam em linha reta uma dúzia de passos; toda a fil a se voltava então; os 1819. ão modificaram a técnica elo século XVI. Os homens da com itiva
que tinham estad o adiante ficava m para trás, e recomeçavam em sentido de Pohl dançam o bodurzi, boduzke, bondurzi, botucke, que o grave ale-
contrá rio . A esta primeira dança sucedeu uma o utra q ue tinha por objeto, mão adverte que se deve distinguir do batuque, dança usual entre os
disseram-nos os índ ios , cele brar a derrota do jaguar, e que era acompanha- negros. Distinção q ue somente Pohl seria capaz de estabelecer em face da
da ele um canto pouco menos lame ntável. Caminhavam do mesmo modo unidade indiscutível: "O bondurzi é dançado ela maneira seguinte: Todos se
põem e m círculo. Um homem salta para a fre nte e dança à vontade em volta Ao som da citra e viola
do círculo, até que segura uma mulher pela cintura , bate os joelhos violen- Também e ra muito usado
O dançar às umbigadas
tame nte contra os d e las e volta ao círculo. Então, a mulhe r fica no círcu lo,
O belo Landum chorado.
d ança em volta e com o mesmo movime nto escolhe um homem , que depois
solta. Tudo se faz ao som de uma viola e os espectadores batem as palmas, Aqui pelo nosso mato,
ele acordo com o compasso, repetindo um estribilho , como, po r exemplo: Qu'stava e ntão mui tata mba,
Areia do mar! Os brasile iros gostam ta nto dessa dança, que são capazes ele ão se sabia outra cousa
continuá-la durante toda a noite, e mbora com isso tanto se excitem e se e não a dança elo Sa mba .
fatig uem, que muitas vezes caiam exaustos e tenham ele ficar doe ntes no dia Coco, Sabão, Lundu e Samba obrigavam a umbigada.
seguinte. Desde os primeiros tempos, os m issionários combateram viole nta- O Lundu, Landum , é o pai do Fado p01t uguês, d ança popula r no Brasil
me nte essa da nça, por ser indecente. Nisso se distinguiram sobretudo os quando lá se ignorava, fe lizmente. No te mpo do Re i Velho (0. João Vl) era
capuchinhos, ela propaganda fide, ele Ro ma. ão conseguiram, poré m , indispensável nas reu niões familiares, notadame nte no sul brasileiro.
abo li-la, por ser, como já dissemos, apaixonadamente apreciada por todos Manue l Antônio ele Almeida, Memórias de u m. Sargento de Milícias
os habitantes." (Rio de j aneiro , 1854-1855), dese nha o quadro anterior a 1821: "já se sabe
Se o "ch oque" fosse nos joelhos os missionários não protestariam. que ho uve nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram
Viajando em Minas Gerais, 1814-18 15, com o ba rão de Eschwege, todos d 'além -mar, ca ntavam ao desafio, segundo os seus costumes; os
Georg Wilhelm Freyre iss descreve u um Batuque legítimo, há 150 anos p as- convidados ela comad re, q ue e ram todos da te rra, dançavam o fado ."
sados. Antecipava as conclusões ele Po hl: "Entre as festas me rece me nção a Ning ué m mais conhece no Brasil o.fado-dança mas repetem o bater
dança brasileira , o Batu que. Os dançadores fo rmam roda e ao compasso de o .fado, ta lq ua lme nte fazem em Lis boa. ão cus ta recordar como viajou
uma oouitarra [devia ser viola] move-se o dançador no centro, ava nça e bate elo Rio de j ane iro pa ra Portugal. É a inda Manue l Antônio de Almeida
com a barriga na b arriga ele outro da rod a, ele ordinário pessoa de outro (1831-1861):
sexo. No começo o compasso ela música é le nto, po ré m , pouco a pouco
aumenta e o dançador elo centro é substituído cad a vez que dá uma umbi- "Todos sabem o que é Fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que
gacla; e assim p assam noites inte iras. Não se pode imaginar uma dança mais parece filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do
lasciva elo que esta, razão també m por que te m muitos inimigos, especial- q ue instru mento algum para o efeito . O Fado tem d iversas formas, cada qual mais
me nte e ntre os padres. Assim, por exemplo, um padre negou a absolvição original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulhe r, dança no me io ela casa por
a um seu paroquiano, acabando desta forma com a da nça, porém, com algum te mpo, fazendo passos os mais dificultosos, toma ndo as mais airosas posi-
ções. acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois
gra nde descontentamento de todos. Ainda há po uco dançava-se o batuque
pouco a pouco aproximando-se de qualque r que lhe agrada; faz-lhe diante algu-
e m Vila Rica (Ouro Preto) numa gra nde festa e na p resença ele muitas
mas negaças e viravoltas, e finalmente bate palmas, o q ue quer dizer que enfim
senho ras que aplaudiam fre neticame nte . Raro é ver o utra da nça no campo, acompan ha-se de novo. Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado.
poré m, n as cidades as danças inglesas q uase que substituíram o batuque." '" O utras vezes um homem e uma mulher da nçam juntos; seguindo com a
Um dos veículos da umbigada fora Lunclu, cantado e dançado com maior certeza o compasso da música , ora acompanham-se a p;1ssos le ntos, ora
intensa simpatia . O padre Migue l elo Sacramento Lopes Gama (O Carap uceiro, apressados, depois repelem-se, depois juntam-se; o homem às vezes busca a
Recife, novembro de 1842) evocava os bailes preferidos no velho Pernambuco: mul her com passos ligeiros, enquanto e la, fa zendo um pequeno movimento com
Em bodas e bautizaclos o corpo e com os braços, recua vagarosamente, o utras vezes é ela quem procura
He que se dava função; o homem, que recua por seu turno, até que e nfim acompanham-se de novo.
Da nçavam-se os Minuetos, "Há també m a roda e m q ue dançam muitas p essoas, interrompendo certos
Compo rta, o Coco e o Sabão. compassos com palmas e com um sa pateado às vezes estrondoso e prolongado,
~ts vezes mais brando e mais breve, poré m sempre igual e a um só tempo. Além

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destas há ainda o utras formas de que nào falamos. A música é diferente para cada Pelo Brasil o Lundu convergiu para o BATUQUE, a BATUCADA atual,
uma, porém sempre tocada em viola. Muitas vezes o tocador canta em certos espalhando os prime iros venenos rítmicos em de te rminadas classes sociais.
compassos uma cantiga às vezes de pe nsamento verdadeiramente poético. O BATUQUE, termo genérico, dominou o território nacional. Era ainda a
"Quando o Fado começa custa a acabar; termina sempre pela madrugada, prestigiosa voga de Angola , impondo a de nominação. O sr. Elias Alexandre
quando não leva de enfiada dias e noites seguidas e inteiras. " ela Silva Correia (História de Angola, I, Lisboa, 1937) info rma: "BATUQ UE,
dança indecente que finaliza com umbigaclas." Da o nipo tência do BATUQ UE
Em Lisboa o Fado não é d an çado. Cantam-no à gu itarra . "Bate-se o no Brasil há registo no Dicionário do Folclore Brasileiro (Rio de Janeiro,
Fado." No Bras il Pohl o viu dança r em Vila Rica, dezembro de 1820, como 1962),' com o cortejo convergente; Coco, Lundu , Sabão, Samba, Zambê,
fandango: "Entre as danças, há o fado ou fandango, que é a preciado <~p<~i­ Catolé, Bambelô, e a variedade de aplica ções, religiosas e ginásticas.
xonadamente, e specialmente pelo b elo sexo." BATUQUE é o nome dado pelos grandes viajantes po rtugueses n 'África
Esse fado era dançado no norte e nordeste do Brasil sob o nome de O rie ntal e O cidental, Gamito, H. Capelo, R. Ivens, Serpa Pinto, aos tambo-
Lundu. Assim Tolle na re registo u-o no Recife e na Cidade do Salvador em res e aos bailes pretos. Batuque é a coreografia e o instrumental percussor.
1816-1817. Alfredo de Sarmento (Os Sertões d'África , Lisboa, 1880) d esenha , inde-
Nicolau Tole ntino (1740-1811) foi contemporâneo da Comporta e elo levelmente , o BATUQUE do Congo e norte ele Ambriz e o ele Luanda :
Lundu , Lunclum em Lisboa.
Em banclolim marchetado, "Forma-se um círculo de dançadores no meio de uma arena, ficando em redor
Os ligeiros dedos prontos, os assistentes. Formado o círculo, saltam para o meio dois ou três pares, homens e
Louro peralta aclamado mulheres, e começa a diversão. A dança consiste num bambolear sereno do corpo,
Foi depois tocar po r pontos marcado por um pequeno movimento dos pés, da cabeça e dos braços. Estes movi-
O doce lundum chorado. mentos aceleram-se conforme a música se torna mais viva e arrebatada, e em breve
admira-se um prodigioso saracotear de quadris, que chega a parecer impossível
Se Márcia se bamboleia poder-se executar, sem que fiquem deslocados os que a ele se entregam ... Quando
Neste inocente exercício; os primeiros pares se sentem extenuados, vão ocupar os seus respectivos lugares
Se os quadris saracoteia; no círculo, e são substituídos por outros pares, que executam os mesmos passos ...
Quem sabe se traz cilício, em Luanda e em vários outros presídios e distritos, o Batuque difere deste que se
E por virtude os meneia? acaba ele descrever e que é peculiar do Congo e dos senões situados ao norte elo
O brasile iro Do mingos Ca ldas Barbosa (1738-1800) compunha e can- A.mbriz. Naqueles distritos e presídios, constitui também Batuque num círculo for-
ta va o m e igo Lundum gostoso para o s o uvidos ela Lisboa fidalga de Dona mado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou uma preta , que, depois de
executar vários passos, vai dar uma umbigada (a que chamam semba) na pessoa
Maria I.
que escolhe entre as da roda, a qual vai para o meio do círculo substituí-lo. Esta
Em maio ele 1745 El-Re i D. João V proibira que da nçassem as chegan-
dança, que se assemelha ao nosso fado, é a diversão predileta elos habitantes dessa
ças. Teriam e la s valo rizado as umbigadas africanas po r toda a gente moça pane do senão africano (Congo) onde a influência dos europeus tem modificado
do Re ino, seduzida na cadê ncia "rebo lada ele quadris, jogad a d e lo mbos, de algum modo a sua repugnante imoralidade."
batida de ventres", como resumira Júlio Dantas. Contaminara, essa e
o utras, muito bailados regionais, VIRA, BAILARICO, VERDE GAJO, De realçar a aproximação entre BATUQUE e Fado. Ambos tiveram no
SARAPICO, MALHÃO , CANINHA VERDE, que o Brasil conheceu , nas de r- Lundu uma forma ele transição propagadora.
radeiras décadas do século XIX, atra vés das revistas de costumes portug ue- Quando Batuque e Fado são vocábulos p o rtugueses, o primeiro pelo
ses, aplaudidas nos teatros ma is popula res. me nos de formação lusitana e divulgado pe los portugueses n 'África
A umbiga da fo ra made in Africa, com me rcado consumidor luso-
-brasile iro.
Edição atua l - 12. e cl. São Paulo: Global, 2012. (N.E.)

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Ocidental, Lundu é africanismo, dança do Congo e popular entre quim- SAMBA é no me próprio, divulgadíssimo na toponímia ele Angola:
bundos e já me ncionada pelo capuchinho italiano frei Bernardo Maria de Samba, povoação no sobado de Calumbu , Quilencle; Samba em Caculo-
Cannecatim no seu Dicionário da Língua Bunda (Lisboa, 1804) como um -Cabango, Muxima; Samba em Huí-iá-Cava , Ambaca; Samba em Senze,
dos usos menos abomináveis. No Dicionário do brasileiro Antônio de Massa nga no; Samba em Calanga, Ambaca ; Samba-Caju , povoação no soba-
Mora is Silva regista- e como: "Uma dança chuta do Brasil , em que as dan- do ele Caenda , Ambaca ; Samba-Calanga em Quitala , Ambaca; Samba-
çarinas agitam indecente mente os quadris. " Esse Lundu , embora Cannecatim -Calombo, sobaclo ele Caculo , Ambaca; Samba-Cango, povoação em
o cite em 1804 ao lado do batuque em Angola, deveria ter sido a inicial Duque de Bragança; amba-Cariombua, em ·Gonga Quilembo, Ambaca;
sacolejante do gênero. Único bailado que, com o Samba , conservou a amba-Conze, sobaclo ele Samba-Lucala, Ambaca.
denominação do quimbundo . O nome ainda corre no Sahel, região elo Sudão e elo aara, entre
Em 1878, e ntre os quilengues no sul de Angola , H. Capelo e R. Ivens To mbuctu e o Atlântico, o nde Leo Frobenius recolheu as aventuras elo
transmitem a mesma figura fixada por Alfredo de Sarmento: "Após três o u SAMBA KULUNGO, e na Costa elo Ouro, o nde há a estó ria do príncipe
quatro voltas perante os espectadores, termina o dançarino por dar com o SAMBA GANA, figura ndo no seu Decmneron Negro (1910).
próprio ventre na primeira ninfa que lhe parece, saindo esta a repetir cenas Nome ele homem e de mulher. Gregório ele Matos, despedindo-se da
idênticas" (De Benguela às Terras de Jaca, I, Lisboa, 1881). hospitalidade baiana ele Paranamirim, na segunda metade elo século XVII:
O Lundu-dança, já bailado no tempo elo Peregrino da Am.érica (1728) Adeus, amigo Fe rnando,
e ainda lembrado em 1842 no Carapuceiro, desaparecera à volta ele 1870, Que ao som de uma guitarrinha,
vivendo, como ainda hoje, o Lunclu-canção. Batuque-e-Samba haviam Atraís a vossa casa
esvaziado o sentido coreográfico do Lunelu. Toda a Angola e toda a Mina.
A umbigacla é o elemento essencial nas mais tradicionais danças ango-
Aludia, rancoroso:
lanas. Heli Chatelain (Folk-Tales of Angola, Boston anel ew York, 1894)
expôe a cena, tantas vezes prese nciada: One oj the essential parts oj mos! Adeus, Catona bizarra ,
n.atiue dances in Angola is the smacking q( stomachs (KU-BELELA). Two Adeus, gente da cozinha,
dancers, leaving the circle, advance trippingly toward each other, and, when Adeus, putíssima Samba,
near enough, simultaneously thntst .forward their stomachs so that they E honestíssima Luzia.
touch; then they grac~fuily turn round with a bow, seek another party in the SAMBA é também rezar, orar, suplicar a Deus. O clr. Antônio Joaquim
ring, and repeat the smack. Those just smacked jump into tbe circle, smack ele Macedo Soares (1880) estende lo ngo verbete no assunto:
each other, and choose their succe~--sors in the ring; and so it goes on and on.
Com a mesma e crescente vulgarização no Brasil, elo Batuque, há o "SAMBA é um verbo conguês da 2• conjugação, que significa 'adorar, invocar,
SAMBA, dança e re união dançante. implorar, queixar-se, rezar'. Quem reza queixa-se de seus males, invoca a divindade
Que significará Samba em Angola? a quem adora, e pede remédio e consolação. Samba é, pois, rezar. No angolense
Semba é umbigo em quimbundo. Dissemba, singular; massemba, plu- ou bundo, igualmente, rezar é cusamba: na conjugação o verbo perde a sílaba ini-
cial do presente do infinito; de sorte que, além deste tempo e modo, em todos os
ral. No Dicionário Etimológico Bunda-Português, do Padre Albino Alves, C.
outros o termo bunclo é samba, e assim é também o substantivo 'adoração, reza',
S. Sp. (II, Lisboa, 1951), regista-se: "SEMI3A, dança. " ão SAMBA. No
samba, mussambo. 'Dançar' é no bundo cttquina; no congo, quinina. Como, pois,
Dicionário Kimbundo-Português, ele A. ele Assis Júnior (Luanda, Argente, samba é dança? É sem dúvida; mas uma dança religiosa, como é o candombe, uma
Santos e co) lê-se: "MASEMBA, umbigacla (na dança). KUSEMBA, v. tr. e intr. cerimônia do culto, dança em honra e louvor da divindade, homenagem semelhante
Agradar, galantear, desvanecer.'' Óscar Ribas (Missosso III, Luanda, 1964) à de David, o rei-profeta, salmeando e dançando e m fre nte elo tabernáculo, dança
disse-me: "SAMBA é deformação de SEMBA pois qualquer dos bailados é como a elos sacerdotes de todas as religiões primitivas, uma função hierática.
constituído de umbigaclas." A dança REBITA, onde há o passo FOGOPE com "No Brasil não é outra coisa, tomada a palavra na sua popular e genuín a
a umbigada, dizia-se realmente MASEMBA. REBITA é ele Benguela. acepção; é a dança sagrada dos feiticeiros, dos curandeiros, dos rezado res ele

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J
quebrantos e o lhad os, dos dispensadores da fo rtuna. Nós, a gente culta , de tambor. É o mesmo Coco, Coco-de-roda, Zambê, o Samba primitivo,
damos, com o desp rezo da indifere nça o u da repugnância, o nome de samba Bambelô nas praias do Rio Grande do Norte.
a qualquer dançado dos negros, o u dos brancos que se de itam na esteira de les; A umbigada é mais frequente nas danças do oeste que no levante
os negros, po ré m, e o poviléu que e m sua compa nhia comunga na mesa do africano. Parece uma "permane nte" banto e não s udanesa. Aparece com os
pai Quimbombo, o sace rdote e médico, esses não confundem. O samba é a Banziris ele Oubangui, na República Centro-Africana, descendo pe los
da nça ritua l, a da nça ela reza; a profana , o bai le, o mero divertimento, é o
Congos, Cabincla, para os povos do litoral do Atlântico , vindo para Angola.
batuque, o lundu, o jongo, a xiba, ao som da puíta, e da zabumba, e elo
Para Moçambique e as Ro désias o veículo seria a região de Kata nga.
ricungo e do tamboril de pandeiro."
Não tenho informação de outras paragens na geografia da umbigada.
Resta um Midsummer Night's Dream.
O Dr. A. J. de Mace do Soares, um mestre na pesquisa cultural e p opu-
Que significará a umbigada como ele mento coreográfico? Demonstração
lar brasile ira , um precursor legítimo, inspirou-se na própria imaginação.
única ele rápido contato sexual? Exibição erótica sob o disfarce lúdico?
Samba, rezar, nom e p essoal, umbigo, são p alavras homofonógrafas, escrita
Vestígio de um rito cuja explicação desapareceu na memória dos dançarinos?
e pronúncia idê nticas e sentido diverso. Não h á d ança angolana, com
Nos bailados que vi em Angola, Cassonda no Dundo e o passo elo
intenção religiosa , deno mina da samba. Nem há notícia brasile ira de sua
Fogope n a Rebita em Luanda , no que ouv i da Xingombela em Moçambique,
existência no nosso patrimônio folclórico. As men ções ma is distantes
a umbigacla ocorre sem que constitua, como no Brasil, o convite para a
denunciam-lhe o caráter festivo, prazenteiro, jovial; típico, único, essencial-
s ubstituição do bailarino-solista. O que vi em Angola apenas se repe te na
mente lúdico. Lopes Gama, escrevendo e m 1842, informava que, pelo
Batucada ele São Paulo. Pelo nordeste a batida é a forma ele provocação
interior ela província ele Pe rnambuco:
cordial ao suple nte escolhido. Quem deu a umbigacla retoma seu lugar na
Não se sabia o utra cousa roda assistente, talqualmente Alfredo d e Sarmento, Capelo e !ve ns regista-
Senão a dança do Samba . ram no norte e no sul de Angola. Há , mesmo em Angola , outras fórmulas
n a função inalte rada que lhe conhecemos: divertir, agradar, uma elas acep- ele escolha. Bater o pé diante ela sucessora ou sucessor, ou saudá-lo com
ções do verbo semba. ligeira vênia. Apareceriam muito de pois da umbigada. Esta, para mim, seria
Uma dança de Benguela, comum e velha em Luanda onde a assisti, é a maneira inicial, ele expressivo conteúdo simbólico.
a REBITA, onde há o passo do FOGOPE, com umbigadas de tod os os E por que a umbigada?
pares. Corresponde re lativamente à BATUCADA de São Paulo (Alceu Existe uma una nimidade interpretando a esteatopigia elas estatuetas
Maynard Araújo, Danças, Recreação, Música, S. Paulo, 1964). Ou como o negroides de Grimaldi, as "vênus" adiposas ele Willindo rf, Laussel, Les-
desapa recido bate-baú na Bahia, c itado por Edison Carne iro. No Dundo, pugne, Savignano, como re presentações votivas da Fecundida de. Estranho
terra de Luncla , presencie i a da nça CASSONDA, dos pre tos Bangalas, uni- que hotentotes, b osquímanos e pigmeus não tivessem conservado ídolos
came nte masculina, com alte rnadas umbigadas. Os bailarinos tinham vindo com aquela desmesurada projeção glútea. Nem m antido, nas da nças tradi-
d o sobado Tchiluange Ganga, rio Tchitoco, afluente do Cuango , e m c io nais, algum gesto onde os quadris funcionassem como participantes
Cacole , Angola, p ara a fes ta pro movida p e lo Museu. O soba, presente, efetivos . Documenta-se esse p o rmeno r e m bailados dos negros Canori do
estava justame nte o rgulhoso elos aplausos obtidos pelos s úditos. Bornu , no Sudão, o nde n ão existe ne nhuma efígie esteatopígica estimula n-
Em Moçambique há danças com umbigadas. A mais conhecida é a Le. Eslra nho a inda, debita reuerentia, que a imagem da fartura p aleolítica
XINGOMBELA, informou-me o poeta José Craveirinhas, em Lo urenço e da abundância neolítica fossem as nádegas e n ão os seios ou o ventre.
Marques. É, como as anterio res, bailado de roda, com p articipação feminina. Ou la f écondité va-t-elle se nicher.. . As mulheres hote ntotes e as bosquíma-
A BATUCADA, o BATUQUE mais favorito e vulgar no Brasil, é vindo nas costumam avolumar a cinta, com pe les, p anos, tecidos vegetais desfia-
ele Angola: p ercussão, um dançarino-so lista escolhe ndo o sucessor p e la dos, a umentando a massa das ancas, num requinte excitador de supre ma
umbigada, depo is da exibição coreográfica . A roda elos assiste ntes entoa e legância, como as e urope ias usaram as anquinhas e os poufs, lembrada
refrão, respondendo à toada do tirador, quase sempre um dos tocadores tournure, qui sert à faire bouffer la jupe par derriere. Hote ntotes e bosquí-

139
manos pelo sul de Angola tiveram contato com grupos bantos que se tempo imprevisível. No Fogope, na Cassonda, na Xingombela , as umbiga-
encantaram com a moda da saliê ncia posterior e foram justamente os das se repetem. No velho Batuque ele Luanda e dos q uilengues elo sul de
bunda, mbunda , mambunclas. O sr. Luís Figueira ensina-me que "Bunda Angola, cada uma delas terminava a participação elo dançarino. Era um ato
o u mbuncla é o conjunto ela cinta e nádegas elo corpo humano, no dialeto que fechava a fantasia rítmica anterior, como o amplexo amoroso encerra
ambundo". Corresponcle ao mitanda elos luchazes. Aqueles grupos são o processo preliminar da conquista sedutora.
conhecidos vulgarmente por Ambuélas. Os tambores maiores, redondos, Pelo exposto e alegado, !e probleme n 'est pas tranché ...
são os nbumbi. Todos esses elementos linguísticos e etnográficos não
alcançam uma valo rização ela esteatopigia no plano coreográfico, coinci-
dindo na região de sua presença material. Por essas paragens chocam os
ventres em certas danças e não o desenvolvimento nadegueiro, como diz
o sr. Luís Figueira, com 25 anos ele Angola.
Ninguém pode "provar" que a umbigada não fosse gesto típico num
ritual propiciatório ele fecundidade. Gesto tanto mais expressivo na sua
legitimidade imitativa do ato fecunclaclor.
Para os g rupos humanos, ou sejam as culturas nonliterates, na acep-
ção ele Clycle Kluckhohn, a ausência documental afasta qualquer possibili-
dade sistemática ele sequência ininterrupta. Não sabemos os elementos ele
continuidade e a percentagem elos "colaborantes", determinando comple-
xos etnográficos, formados pela convergência e não pela fórmula elo
desenvolvimento natural, na mecânica elos acréscimos previsíveis. V.
Gordon Chilcle advertia que a técnica arqueológica podia apresentar isola-
damente fases culturais como incle pencle ntes, what was really a conti-
nuous process. A umbigacla seria atraída para um ciclo ele danças quando
já perdera sua integração ritual, desaparecido o culto agrário que a
ambientava e promovia.
De notar o seu uso unicamente na lúdica elos povos agricultores.
Também ser aplicada preferencialmente e m pessoa ele sexo diverso elo
bailarino. E constituir um passo final na alucinada dinâmica de meneios
eróticos e provocadores. E ainda hoje manter o círculo, a dança-ele-roda,
já ritual no paleolítico. Na Batucada ele São Paulo, como no Fogope da
Rebita em Luanda, a velha Massemba, não há círculo e sim alas, dançando-
-se fila diante de fila, como nas quadrilhas. A transmissão africana manteve-
-a pura e nítida no Brasil. Os depoimentos de Freyreiss, Pohl, von Martius,
entre 1815-1819, demonstram sua conservação incleformacla nos trópicos
brasileiros. Índice de poderoso conteúdo impulsionador e preservaclor da
própria fidelidade coreográfica.
Em junho ele 1964 assisti em Natal o bailado legítimo.
Nasci e vivo justamente na região onde Coco, Zambê, Bambelô são
forma s permane ntes do d ivertimento popular. Motivos recreativos desde
esquadrilha d o Serviço de Aviação elo Exército Americano, coma ndad a
pelo majo r Herbe rt A. Dargue. Três anfíbios, biplanos, com motores
Libe rty. Tinham vindo pelo Pacífico e voltavam pelo Atlâ ntico. Partiram

A fATA no CoElho cinco a parelhos e regressaram três, po rque o "Detroit" e o "New York"
chocaram-se e m voo e m Bue nos Aires, sucumbindo as equipagens. Um
•• ••••••••••••• • dos pilotos, o ca pitão Ira C. Eake r, alto, fo rte, risonho, d e u-me as informa-
ções que naquele te mpo e ram preciosas. Dezessete a nos de pois o jovem
capitão e ra Ge neral e comandava a Força Aé rea no rte-americana na
Inglaterra. Em maio de 1944, no dia e m que os exércitos aliados d esem-
Ocoelho é um dos he ró is nos contos populares africanos nas mar- barca ria m nas praias normandas, os aviões arrancara m ela Inglaterra para
gens do Índico como do Atlâ ntico. Tanto vence no Senega l como e m a cobertura. No minuto e m que o último bombardeiro ia decolar, o gene ral
Madagascar, Serra Leo a e Moçambique, Gana e Tanganica, poente e meio- Ira C. Eake r ofereceu ao piloto, como penhor d e sucesso indiscutível, uma
-dia, levan te e sete ntriào, na ilha d e São To mé e na ilha de Zan ziba r. Não pata d e coelho . Good luckl E d e u certo . Ficava d e mo nstrado não a penas a
é possível uma coleção de estórias negras sem uma astuciosa aventura do po pula ridade do amuleto como a sua consagração histó rica. O RABBIT'S
coelho. Frobe nius o uviu as façanhas do samba na foz do Niger, contadas FOOT ascend ia à classe vizinha do talismã.
pelos Mossis d o Ouagado ugou, como Chatelain e nte nde u as proezas do De 1942 a 1945 servi na Diretoria Regio nal do Serviço de Defesa Civil
kabulu, refe ridas e m Luanda o dimba do Bié. Está na China e na Índia, Antiaérea na cidade do Natal e tive contato assíduo com os milhares de
vivo na me mó ria coletiva. Os negros levaram-no para as Antilhas e para o norte-ame ricanos sediados e m Parna mirim. Ali estavam, e m filas, cente nas
Old South dos Estados Unidos, pa ra os algodoais, onde Chandle r Ha rris ele aviões de todos os tamanhos, recursos e formas . E aviad ores de to dos
recolhe u as estó rias incom paráveis do Une/e Rabbit. Sílvio Ro me ro guar- os recantos dos Estad os Unidos, com inteligência, cul tura, temperame nto,
dou algumas no nordeste d o Brasil, astúcias do ca m arada Co elho burlador educação, os mais d iversos. Cre io que muito dificilmente haveria outro
de todos os animais. Ouvi-as recordar e m Moçambique e Angola, no alto campo d e observação expe rimental da psicologia yan kee na legitimidade
Zambeze e nas fro nteiras d e Katanga . Onde não estará ele, ma nhoso e d a exposição humana . A pa ta d e coelho era uma constante infalível no
há bil como o Uhlaka niana d os zulus? O coelho pa rticipa d e uma tradição famoso Parnam irím Field, trampolim da Vitória, hospedando Franklin
sagrada d a Índia . Sacrificou-se espo ntaneame nte pa ra mata r a fome d e um Delano Roosevelt, gene rais, almirantes e aviad ores mais fa mosos na época.
brâmane q ue e ra o de us Indra. Emocionado, Indra pôs a imagem do coe- Rara e ra a farda cáqui que não contivesse no bolso o rabbit 's.foot inevitá-
lho na lua. Indra p laced the image of the hare in the moon, informa a sra. vel. Por esse inte rmédio e clima a pata ele coelho espalhou-se pelo Brasil,
Doroteia Chaplin. Há um Bodisata venerado sob a forma leporina e mesmo e ntre os amigos dos norte-americanos, funcionários brasile iros da Base
ide ntificado com o modelo. Os Tugs, devotos de Kali, ad iam q ualque r Aérea, visitan tes, curiosos ou simples imitadores, fanáticos pelo plágio
expedição avista ndo um coelho atravessar o caminho. Os árabes só o sedutor. As lo jas começaram a expor patas de coelho como obje tos da
matam por necessidade e jamais por divertime nto. Ligam-nos às supe rsti- moda e muita gente com prou para exibir a novidad e supersticiosa.
ções do ciclo lunar, te me ndo ofe nder o disco luminoso onde mora o Rei A pata de coelho con vergiu para outros amuletos prestigiosos. Nunca
dos Coelhos. a encontrei sozinha, isolada, valendo força indivídua. Desta maneira ape-
A pa1t ir de 1942 derramo u-se pelo Brasil a pata do coelho como amuleto. nas o no rte-americano usa, enfeitando o mo lho de chaves. O brasileiro,
Há, nesse particula r, motivo para uma estó ria que vou contar. por via das dúvidas e para não desmoralizar crend ices bem mais velhas,
Em março de 1927 e u e ra re pórter ela UNITED PRESS e m Natal e re uniu-a, em pe nca, aos amule tos tradicionais.
aproveitava os g randes raids aviatórios como matéria d e excepcional No mercado ele São José, no Recife, comprei uma pata de coelho
importâ ncia sensacionalista. Constituía, no momento , assunto ele interesse pendurad a na mesma corren te a uma figa . No Mercado Público da Cidade
universal noticioso. Na tarde ele 20 de março, desceu no rio Po teng i uma do Salvador adquiri a pa ta de coelho com uma figa ama rela e uma meda-

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lha do Senho r do 13onfim, tendo a inscrição: Lembrança da minha roma- Senhor São José
ria do Bor~ji'm. São populares os chaveiros com patas de coelho. Não sei Ponde aqu i o vosso pé!
quando com eçou a fabricação nacional. As primeiras remessas foram todas Na Espanha e Portugal a pata do topo, mão esquerda da to upe ira ,
made in U.S.A. usava-se trazer e ncastoada em prata contra o mau-olhado.
Qual seria a origem lógica? O norte-americano recebeu dos negros A ina lterável simpatia dos pretos sudaneses e bantos para o coelho
africanos, sudaneses e ba ntos porque ambos possue m alta admiração p elo decorre das ave nturas c histosas o u dra máticas em que se mete o anima l,
coelho. Dos Estados Unidos escorregou para a Grã-Bretanha e com alguma saindo sempre airosamente. Essa g rande série de contos constituiria o test
presença no contine nte europeu. Os pretos enviados para a escravidão para a invencibilidade e sua colocação e ntre as mascottes que sugerem e
yankee, ditos servants of !ife, eram, em decisiva percentagem, comprados atraem o êxito . Assim, bon pied, bon oeil, fundamentam a explicação de
nas Antilhas e não vindos diretamente da África. Depois é que a exporta- s ua invulnerabilidade manhosa.
ção intensificou-se desde as reservas inesgotáveis d 'África Ocidental. As É uma presença legitimamente africana, ajudando a batalha contra a
mes mas fontes d a provisão brasileira. infelicidade , informe e poderosa.
Trouxeram e les à terra e aos white Southerners o rabbit's foot e a
Snip, snap, snout,
tradição hila riante do coelho. O prestíg io do kabulo para o banto e do
This tale's to ld out!
samba para o sudanês é inapagável como expressão de h abilidade, inte-
ligência, rapidez nas soluções sempre felizes. Como é fecundo em sua
descendência, perfaz o símbolo da abundância , fa rtura , multiplicação . É ,
positiva mente, the lucky animal. Compete com o "Tio Tartaruga", Une/e
Terrapin , cuja ré plica brasileira é o jabuti, com sua deliciosa série de
aventuras recolhida por Charles Frederik Hartt, o Amazonian Tortoise
Myths (1875), que tive a alegria de traduzir e anotar, Os mitos amazônicos
da Tartaruga, Recife, 1952. O coelho é um centro-de-interesse, persona-
gem imortal do mais popular livro de estórias nos Estados Unidos, Uncle
Remus, de Joe l Chandler Barris (1848-1908), com reedições incontáveis,
Legends of the Old Plantation, e vocadoras das andanças e diabruras do
invencível personagem.
E por que escolhe m o pé, constituindo o amule to? Porque o pé re pre-
senta a estabilida de, a p osse, a segurança, a firmeza , o equilíbrio. Também
está ligado à imagem da locomoção, agilidade, movimento, de fesa na fuga
ou nas rea ções imediatas. A força da s ugestão mágica converge para o p é
do coelho, síntese de sua técnica fulminante. Itsfoot is especially valuable
as a charm, diz Philip F. Waterman. Possuir o p é do coelho é ter um e le-
me nto característico de toda s ua p otê ncia n o plano d o encanto comunica-
dor, misterioso e eficaz. Em várias orações antigas s uplicava-se a imposição
do pé de um Santo como uma intervenção benéfica. O Prof. He rmann
Urtel registo u um Portugal (Beitrage z ur portugiesischen Volkskunde,
Hamburg, 1928) um exemplo autêntico do singular processo vocativo:
Senhora da Conceição,
Ponde aqui a vossa mão;

144 145
va le clarear, limpar. Na Gu iné e na ilha ele Moçambique vira cliarian'1ente
o monhé, hindu , e os muçulmanos, com vestimentas brancas, cuidadosa-
mente tratadas, distinguindo-se dos grupos que ostentavam o utras cores,

A Co~ B~A NCA azul, verde, amarelo, marrom.


Branca era a mortalha que envolvia os mortos europeus antes que a
• • •• • • • • • • • •
distinção nas funções sociais impusesse as roupas rituais, fardas, togas,
becas, batinas, privativas ele ofícios e hierarquias ou destinações supe rio-
res, como os hábitos elas Ordens religiosas, na ida para o Cemitério. Pelo
mundo latino a derradeira toilette fúnebre era a mortalha branca. Branco o
Por toda a África Negra a cor prefe rida é a branca. Poder-se-á mesmo luto. Roupa dos anjos e elos santos. Das no ivas e donzelas. As almas eram
dizê-{a. instintiva. Nos pretos maometanos as longas túnicas são brancas e vultos brancos. A Morte é branca. Pallida Mors.
nos sobas esses hábitos emprestam aos gestos lentos uma majestade Não creio que essa raclicular influência da cor fosse determinada pela
incomparável. A radiante policromia da indumentária negra unifo rmiza-se presença elo leucoclermo. A impressão da cor branca ser sobrenatural, per-
sensivelmente quando se trata de reunião religiosa. Aí o branco está em tencente aos mortos, sobretudo aos espectros, fantasmas, visagens, é ante-
perce ntagem absoluta. É verdade que esses negros e negras têm a vocação rior à conquista europeia. Cre io ainda que esse preco nceito seja uma
do ornamento individual, o equilíbrio decorativo para o corpo, o enfeite perma ne nte entre todos os povos nativos, primários, iniciais.
profuso, incontável , imprevisto mas surpreendentemente harmonioso, Em Angola, no idioma q uimbundo, Dele é a alma do outro mundo. O
justo, sed utor. O maukembu mauabesa o atu, os enfeites embelezam a indivíduo ele raça branca diz-se Mundele, semelha nte, parecido com o Dele.
gente, dizem os quimbundos de Angola. O Pe. Tastevin informa: Um peu partout, em Afrique, le blanc a été considere
Quando os vejo, naturais e sugestivos, os muçulmanos simples, comme um noir revenu du pays des mo11s, ou i! a été blanchi. Cette croyan-
sóbrios, na dignidade natural, os demais, por toda a o rla do Atlântico e ce se retrouve encare dans certaines régions reculées ou fermées de I~ .E. F et
pelo alto Índico cobertos de ornatos que substitue m o traje, concordo com même du Sénégal (La Tribu des Va-Nyaneka, Corbeil , 1937). Na Austrália,
o conde ele Gobineau que, no Rio de Janeiro de 1869, escrevia: Vous savez wunda significa o homem branco e o espírito elo morto australiano. Os fan-
que les negres sont nés tout habillés. tasmas são sempre brancos. Decorrentemente, os antepassados.
Recordo do meu tempo de investigação popular a constatação ela cor O defunto, que a cessação circulatória desmaiava, aproximando ela
branca ter uma supremacia na ordem das cores. Nos ca ndomblés ela Bahia, descoloração, e dando a exagerada palidez, esta sugeriu aos romanos a
Oxalá, Orixalá, Obata-lá, o Pai dos O rixás, Deus Supremo, vestia branco criação ele um De us, PALLOR, filho elo Inferno e da Noite. O Inferno era a
totalme nte de branco como nenhum outro entre os deuses nagôs, jejes o u região sem cor, Regia pallida. Os ingleses dizem o.ff colour, fora da cor,
angolanos. para quem não esteja no estado normal. A simples observação elo cadáver,
Era a cor da pureza, da castidade, das intenções sinceras. Vestia o can- que está sempre mais claro que a criatura viva, recordará a impressão agô-
didato em Roma e ossa Senhora no Céu, difere nciada pelo manto azul. nica da vertigem, desmaio, síncope, em que todas as coisas circunjacentes
No comum o branco predomina na roupa elo africano, na pintura das embranquecem e giram. Esses elementos não precisariam ela vinda do
casas de taipa, na indumentária cerimoniosa. Nos três enterros que vi, dois europeu para sua existência e constatação no homem africano.
em Luanda e um em Gambiafada, arredores ele Bissau, na Guiné, os defun- Quando as cores predominantes para o ameraba são o vermelho e o
tos vestiam branco. Na exposição do morto cobre m-no apenas com um negro-azulado, indispensáveis nas pinturas pessoa is e obtidas com o
único pano branco entre os Cassangas e Mandingas. Brancos os turbantes. urucu, Bixa orellana, e o je nipapo, Genipa americana, o africano, sudanês
Notável a predominância nas residências africanas, inevitavelmente na e banto, elege os calcá reos brancos e rubros, como a pemba e o ucusso
primeira sala, local de recebime nto protocolar. Paredes irrepreensivelmen- em Angola. Pela África inteira, para que um rapaz passe a homem, no rito
te caiadas de branco. Purificação. Em q uimbunclo o verbo zela, branquejar, ela iniciação, normalmente a circuncisão com as exigências ele retiro, dieta,

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ministração das regras tribais, direitos e deveres hu manos, no fanado pela
Guiné o u no Mucanda po r Angola, suna, iluco, em Moçambique, a cor
branca o u colares, braçale tes e fios de contas o u búzios brancos, são peças
caracte rísticas pa ra apresentação elo iniciado, rapaz ou rapariga. Os me ni-
nos e rapazes subme tidos ao j anado o u mucanda já não são simbo lica- fí~ANjí E1f0~JA }íMBO
• • • • • • • • • • • • • • • • • • •
mente as criaturas anterio res, ficticiame nte falecidas, e sim um espírito, um
ser d esencarnado, na fase ela a pre ndizagem para volver ao conjunto tribal
na ple nitude elo conhecime nto secre to. Não poderia figurar um mo rto o u
uma alma senão cobrindo-se d e branco.
Pelos Congos, Co sta d o Marfim, as no ivas tê m a face pintada ele b ra n- "Eu que sem jimbo,
An elo pulando,
co. Nos bailados gue rreiros pa ra afasta r os espíritos ameaçado res, o s par-
Vou me safando!"
ticipantes estão inte iramente untados de barro bra nco. São re presentações
de espíritos combatendo os adversários congêne res . O CAMPEÃO, Recife, 1863.
Desd e a pré-histó ria sabe mos d a importância ela cor vermelha na for-
firanji é uma linda povoação ao sul ela cidade do Natal, praia elo
mação elas c ulturas primárias e suas sobrevivências contempo râneas.
Atlântico, com bonitos casebres ele pescado res e residências "funcio nais"
Vermelho é o Sol e a re presentação elo sangue, movime nto e po tê ncia
que vão elo q uase ótimo ao ultrapéssimo.
orgânica . Ossos pintad os de vermelho nas tumbas pré-históricas. Mas o
misté rio ela Morte, seu mundo e po pulação ele sombras, elevem aparecer, Há Piranji elo Sul e elo Norte que o rio Pium divide. Logo d e pois do
invariavelmente, pela cor branca. Pira nji elo Sul está a Praia d os Búzios, o nde de balde procurei avistar o
O culto Padre Carlos Esterma nn (Angola) informa q ue a terra branca d e rradeiro espécime . Não creia em Gabriel Soares de Sousa calculando d ez
é a p referida p elos esp íritos. léguas a distância e ntre o Rio Grande (Po te nji) e o Porto dos Búzios. Creia
Ongi.ra m uiéra , "o caminho te seja bra nco", é a despedida elo cafre. e m Frei Vicente elo Salvador narrando que e m deze mbro ele 1597 Manoel
Nas danças festivas, nas pinturas elegantes de atração erótica, dispos- Mascare nhas Home m, vindo fund ar a fu tura capital do Rio Grande d o
tas o utrora logo após as complicadas tatuagens clânicas, os negros, e Norte, aí de para ra "sete naus francesas contratando com os Potigua ras, os
notadame nte as negras do nairosas, amam as tintas vermelhas, a ma relas, quais, como viram a armada, picaram as amarras, e se foram, e a nossa
azuis, pretas , reluzentes, com as variações inume ráveis e combinações não a seguiu, por ser tarde, e não perder a viagem". Ali ao derredor havia
sensacio nais. O branco in te1v irá q uando ho uver uma in te nção su perior às mata de ib ira pitanga e as na us estavam carregando o pa u-brasil ta mbém
funções visivelme nte o rna me ntais e às expressões unicame nte d efe nsivas d esaparecido na região.
que os d esenhos manifesta m. Sempre que se ultrapassem as fronteiras elo Fui várias vezes à ilha de Luanda, este ndida em sete q uilômetros dian-
lúdico, recorre-se ao branco como um apelo ao a ntepassado , ao mo rto - te da cidade de Lua nda. Mas a le mbrança de Piranji ocorre u d urante um
-protetor, às suas fo rças custo cliantes. domingo inteiro q ue fiq uei na ilha, ex-ilha porque agora está ligad a ao
Estou convencido d a inexistê ncia recôndita ele q ualq uer ideia subli- contine nte po r uma larga ponte facilitad o ra. Um domingo andando deva-
madora pa ra o pre to desejar ser b ranco q uando tornado espírito. Branco gar, vendo, evocando, pa rando para viajar sem mudar de posição. Há três
mesmo depois de morto. Creio tod o esse complexo d ecorre r ela sensação núcleos de mo radias, sanzalas, vale d izer "povoações" , e não senzalas,
pessoal ela vertigem e depo is do aspecto do cadáver descorado e macilen- como dizemos no Brasil. Estava pe rseguindo Quia ncla, a sereia dos axi-
to. A influência elos trajes bra ncos, en volventes e longos, elos muçulmanos, lu andas, nativos da ilha, seus devotos. Comprei um pacotinho de búzios,
será eleme nto convergente mas poste rio r. Ide n ticame nte é verificado pela Cypraea maneta, L 'm bongo, d e Angola, o njimbu d o Congo, moed a cor-
Polinésia e Austrália, com ecologia e mo de lagem social dife re nciad as. rente e vale ndo, no vocabulário popular brasileiro, gim bongo e mais vul-
O ambund u ki atu â. Os pretos não são gente? ... garmente jimbo, sinônimos de dinheiro . Esta ilha e ra o banco emissor do

149
Manicongo, re i do Congo, de quem o gola, ele Angola , foi vassalo até ga nte praia de banho, fora e ntre posto precioso na segu nda metade d o
1575. O jimbo d izia-se zimbo. éculo XVI.
Artur He hl Neiva re uniu docume ntário além elo suficiente no assunto, Em verdade vos digo que Piranji exportou o jimbo para a África .
Proveniência das pn·meiras levas de escravos aj1-icanos (Anais do IV O porto dos búzios q pella llymgoa dos jmdios se cbama py Rangype
Congresso de História Nacional, IV to mo, Rio ele Janeiro, 1950). Lá está a pettencera a Pero de Góis que o vendera por 500 cruzados a João ele
história desses búzios que os chineses empregaram há quarenta sécu los, Ba rros, feito r da Casa da Índia, donatário da Ca pitania dos Potig uaras, o
passando à Índia e África O riental, para o Atlântico e sertão sudanês. Por Rio Grande elo Norte. O pyRangype ficava fora dos limites da Capitania de
todo o golfo da Guiné o cauri era indispensável. Com ele tudo se compra- Itamaracá, de Pero Lopes de Sousa. Morto este, o capitão João Gonçalves,
va. Pagava todas as compras ao contado, ao inverso d o Brasil onde , afir- procurador da viúva D. Isabel de Gamboa, estava autorizando a ida de
mava frei Vicente elo Sa lvador, tudo se compra fiado. Havia tabelas, equi- mercadores ao Piranji para reco lher os búzios, pagando-lhe os direitos
valências, inflações, sabedorias na manobra circulatória. Ainda hoje o como se fora o proprietário. O procurador de João de Barros, Antônio
búzio é o ele mento inevitável na o rnamentação pessoal elos pretos, pretas Pinheiro, promoveu a defesa com um auto testemunhal na Vila dos
e pretinhos, de Tanganica ao Senegal. Já não vale bo is, escravos, mulheres, Cosmes, Igaraçu , a 3 de março de 1564, e no dia seguinte, perante o Juiz
mas não é possível uma criatura enfeitá-la para dança e guerra sem algu- Ordinário João Fernandes, o tabalião João Pinto e o inquiridor Manoel
mas centenas de búzios, artisticamente espalhados pelo corpo, dos jarretes Pereira, depuseram quatro testemunhas: Bartolameu Royz, o piloto
à ornamental cabeleira. O zimbo corria como um valor indiscuticlo. Gonçalo Royz, o "língua" Manoel Fernandes e Fernão ci'Ho lancla, alcaide-
Vendem por toda parte e todos os nativos consideram o cauri o relevo -mor de Igaraçu. Todos afirmaram a posse mansa, contínua e pacífica ele
brilhante ela breve e maravilhosa indumentária. Permite as mais surpreen- João de Barros em Piranju e a colhe ita tradicional de búzios, por contratos
dentes combinações, que a melanina ressa lta em plena gló ria. parciais o u arrendamento, satisfazendo-se em d inheiro, peças (escravos) ou
O Brasil , logo na segunda metade do século XVI, entrou como pro- búzios. Banolameu Rodrigues: "... q uando algumas pessoas queriam ir ao
dutor elo jimbo, mandando-o para a África , refo rçando o encaixe local de dito porto buscar bl'tzios, pediam licença aos procuradores de João de
Luanda e Be nguela, os bancos ela emissão tradicional e fácil. Os jimbos Barros... se concertavam com eles em búzios e peças" (escravos). Manoel
brasileiros eram a Cypraea exanthema e va riedades, menores e maiores, Fernandes, "língua , morador na vila de O linda": "... o dito Pero ele Góis
foscas e relu zentas, perfeitame nte aceitáveis no uso e a buso africano. vendera o porto elos búzios que era seu com dez léguas de costa ao d ito
O ponuguês Balrazar Rebelo de Aragão, em 1618, justificava a comodi- João ele Barros, feitor ela Casa da Índia, dizendo que lhas dera po r qui-
dade da construção da fo rtaleza ele Pinda "porque o dinheiro cl'aquele reino nhemos cruzados ... arrendou o dito porto dos búzios a Mattim Ferreira por
são uns búzios de que Sua Majestade tem grandes minas nas praias do Brasil três anos po r quinhentos cruzados ... também seus procuradores q ue nesta
e vale lá muito barato, porque os do Brasil trazem muita quantidade que terra tinham davam a dita licença e arrecadavam das pessoas que lá iam
vendem para o reino do Congo e Pinda, e assim custará muito po uco o gasto nos navios aquilo em que se concertavam em dinheiro ou peças o u
ela dita forta leza depois cl'ela feita". (Pincla, Zaire, no rte de Angola.) búzios." Gonçalo Rodrigues, piloto: "... e le testemunha fora já lá há muito
Falando do rio das Ca ravelas , na Bahia, frei Vicente do Sa lvador, antes tempo num navio a resgatar e pagaram por isso búzios que traziam por lá
de 1627, informava a existê ncia de "muito zimbo, dinheiro de Angola, que ir aos seus procurado res." Fernão ci'Holanda, alcaide-mor de Igaraçu: "...
são uns buziozinhos mui miúdos de que levam pipas cheias e trazem por dava licença para ele (puno) por búzios", referindo-se ao tempo em que
elas navios de escravos". fora procurador de João de Barros (Documentos inéditos sobre j oão de
Pe rambu lando na ilha de Lu anda é que o Po rto dos Búzios, nos Barros, Antô nio Baião, Coimbra, 1917).
arredo res do atai , apareceu -me como imagem associada aos movi- o de po imento ele Bartolomeu Rodrigues alude-se à colheita de
mentos econô micos daque la moeda que o mar e mitia. O topônimo não búzios "a veRahobra de vjnte anos pouco mais ou menos" e no ele Fernão
se refe ria à sua abundância mas à utilização prestante. Os ca ravelões da d'Holanda "dezasete anos que besta nesta lera", sabendo elo apanhamento
costa iam buscar os búzios para a valorizada ex portação. Piranji , e le- dos búzios em Piranji, fixando a atividade co letora à volta de 1544 e 1547.

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A colonização é de janeiro-junho d e 1598, construção d o forte d os Re is prara e a dieta cidade por preço de mil/ rreaes ceJ·tas cõchas, e q oouvera por
Magos, d ezembro de 1599, fundação ela Cidade do ata i. Piranj i exportava elas na dieta mina dez pessos douro. O barbeiro-mor defendia-se alegando
o jimbo antes qu e Pa ulo Dias de Nova is fundasse Luanda . Antes da dinas- igno rância da Orde m Rea l proibitiva. Suplicava perdão do castigo. O Rei
tia dos Água Rosada d o Con go. Quando este dominava Angola na sob era - atende u, mandando, poré m, que Gon çalo Pires êtrege logo os ditos dez pessos
nia do Manicongo. douro. Ganhara passeio à Mina da Guiné e ne nhum prove ito. As comchas,
o Rio Grande d o o rte a primeira indústria extrativa , como ocorreu b C1zios, cauris, estavam e m Lisboa em 1482, como valores positivos.
no Brasil inte iro , foi o pau-brasil, ibirapitanga, a Caesalpinia echinata, Pe la África conte mporânea os cauris aparecem pro fusos e sempre
responsável pela fixação e uropeia no imenso te rritó rio ameríndio. A o portunos. Decoram a rmas, corpos vivos e d efuntos, ídolos, pro messas,
segunda atividade seria a colhe ita elo jimbo nas praias a tlâ nticas ele Piranji. para fe rná lia sagrada, ofe rtas e feitir;o~ . Nem me~mo a miçanga p o licolor e
E o mercad o seria a África, no plano ela utilização incliviclual. Indepe ndia atraente substitui a su ave e macia coloração dos búzios sedutores. As á reas
ela residê ncia humana e de qua lquer esforço, além ele c urvar-se para a de consumo compreende m toda a África negra e para o e logio basta o leve
areia e apanha r o búzio. Dos po ntos povoados mais próximos, onde havia exame ele sua aplicação. Mas tem escapado o aspecto mágico dos cauris,
administração p o rtuguesa, Itamaracá e Igaraçu, vinha m os ca ravelões o u ornando os mortos desde o paleolítico. A cypraea sugere a vu lva fe minina
fustas ele remos carregar as pipas de jimbo , aba rro tando os porões, e simboliza a fec undidade. Cypraea vem de Chipre, santuário d e Vênus.
destinand o-as ao trato e resgate na Guiné. Vive a mesma crendice pela península balcânica, pela Inglate rra, Ale manha,
O zimbo ficou sendo jimbo no Brasil e era dinhe iro, simbolicame nte Po rtugal, Espanh a. Usam-na pendente de corre nte e às vezes com g uizos.
me ncionado. Gregório ele Matos, e m finais elo século XVII, podia desabafar: Assim h á mod e los no Museu dei Pueblo Espano! e m Madrid. Colares, p ul-
seiras, diade mas e nfe itad os de con chas minúsculas. Brincos para o re lhas.
A sentença revogado ,
Por saber que fo i comprada Engastadas como pedras em anéis. Alfinetes e laços de o uro para o pe ito ,
Pelo g imbo ou pe lo ab raço. com os cau ris infalíve is. É a inda uma moeda com que se compra a possível
tranquiliclacle venturosa , nos e legantes bustos elas mulhe res brancas da
Pere ira ela Costa (Vocabulário Pernambucano, Recife, 1937) regista
Euro pa magistral.
boa cópia ele exemplos do jimbo e elo gi1nbongo na linguagem vulgar,
Be m grato pa ra a minha saudade brasile ira sentir Luanda e Piranji
provindos do njimbu elo Congo e d o mbongo ele Angola. unidos e palpitantes no peque nino bo jo d e um cauri africano ...
Hoje parece haver desuso desses d ois africanismos que vieram às
prime iras décadas do presente século.
Os búzios e ra m recebidos naturalme nte pelo procurador ele João d e
Barros como espécie comerciável. Artur Hehl e iva divulga uma carta-de-
-pe rdão ele D. João li, em 7 ele agosto de 1482 , bem expressiva para
d e monstrar o conhecimento d a Cypraea maneta mesmo n a capital do
Re ino de Portugal nos derrade iros lustros elo século XV. O rei D. Afonso
V, e m 24 de julho ele 1480, concedera o monopólio das comchas nos "trac-
tos e resgates de ginee" ao amado filho , o futuro D. João li. Ao contraven-
tor, pena de perderem as ditas comchas. E todos seus beês ... E aalem disto
serem açoutados subricamente. E degradados pera alcacer dafrica por ssete
anos ssem Remissom. Os fidalgos não seriam açoitados mas perderiam os
bens e c umpririam degredo.
Sucedeu que Gonçalo Pires, barbeiro-mor na cidade de Lisboa , fo i a
Mina como ma rinhe iro da nau em q ue João Bernaldez fora capitão. E com-

152 153

J
pelo o lhar obstinado e perturbado r. Essa dança ele movimentos langues,
incitando, sugerindo desejos pelo rhythm body, é uma "constante" pela
orla orie ntal, nas hind us, mu lheres do Paq uistão, atitudes hierárquicas ela

. . . .A.NDA~
. . . . .~EnoLA
. . . . .Do
Ásia, e mesmo nas negras africanas, do povo, não profissionais, como vi
Do .. em Chidenguele, Zavala, Mussuril. Elas semi-imóveis e e les girando as
ga rupas. Em Zavala , Inhambane, como elemento decorativo e exaltador,
diante elos cinquenta bailarinos incomparáveis, de escudo e lança , passa-
vam e re passavam três do nzelas, despidas da cintura para cima, sacudindo
ini nterruptamente, não as nádegas mas os seios. Pelos mercados nativos,
Ospovos elo Índico não re bolam as nádegas no anelar e as danças povoações, festas, grupos à margem elas ro dovias, podia observar a nor-
não apresentam o agitado ele quadris frementes. Têm naturalmente um malidade elo andar africano por essa região elo encantado Levante. Os
ritmo de o ndul ação sensível e mansa que, nas mulheres hindus de longos agentes excitado res devem ser, e são, o utros.
trajes, dá um discreto e indisfarçável acento de provocação lúbrica. Passando para o Atlâ ntico o ambiente mudou ele pressão dinâmica
Nos g randes bailados africanos q ue assisti as mulheres dançavam com e velocidade no metrô nomo. O bamboleado é uma cadência natural,
os pés e acenar ele mãos e não com as ancas. Os ho mens, sim. De Quênia espontânea, explícita , decorrência congênita, íntima , temperamental. Em
aos negros ela União Sul-Africana o bailarino tem uma asso mbrosa mobili- Luanda , a Liga acionai Africana ofe receu-me uma exibição maravilhosa
dade glútea. Entre os Chopes essa especialidade constitu i mesmo caracte- elo seu Conjunto Folcló rico Mús ico-Teatral GO GO. As danças tradicio-
rístico coreográfico consagrado. Chigaza é o rebolado vivo, intenso, infa- nais foram ele uma movimentação, dinam ismo, mobilidade excitadora
tigável. Macara é o tremer, o corpo inteiro vibrando. Cutsatsula é o alé m do presumível, do lógico e do rea l. Era, para mim , vel ho pesquisa-
alucinado me ne io ele uma e outra nádega, alternadamente, ao som das dor da cultura popular, uma demonstração indiscutível, integral e com-
timbilas, as clássicas marimbas das "Gentes Afo rtunadas" . A chigaza seria pleta de que o rebolado dos glú teos nas danças e no andar despreocu -
vista por Sa int-Hilaire em 1816 nos escravos da província do Rio de pado nas ruas, permanente da lúdica angolana, fo ra a originária fo nte
Janeiro, remexendo os pés, e dando a todos os membros uma espécie de poderosa do que possuímos no Brasil. Modelo e formas fo rnecedoras elo
agitação con vulsiva. O macara é o bo le-bo le ela Bahia. Essas técnicas elemento mobilizante, inesgotável de potência envolveclora, perturbando
existem po r to da a África Orienta l mais o u menos acentuadamente. Os o metabolismo basal dos observado res. Esse balan çado , meneio de popas
soberbos Massai ele Quê nia têm um bailado circular e m que, acelerando o infatig{tveis, em rotação incessa nte de saracoteio tranquilo e sexual , é
ritmo da e ufo ria lúdica , dobram e redo bram o corpo como numa sucessão Angola , Angola, Angola!
inte rminável ele bisagras. É o que denominam no FREVO elo Recife o passo a proporção que se sobe para o no rte o sassaricado vai decrescendo
da dobradiça. O "peneiramento" dos Massai pareceria suspeito se não lentamente. Vi as mu lheres da igéria em Kano, as ele vários grupos étni-
fossem eles os gue rreiros que matam leões à lança. cos na Guiné e em Da kar, ruas, mercados, danças. Não têm preguiça nas
Mesmo visitando os portos árabes do Med ite rrâneo, inte iramente acul- cadeiras opulentas quando bailam mas o anela r apresenta uma visível eco-
turaclos e m sua multid ão ávida e hábil , vemos que as mulheres têm o nomia muscular, comparando-a com as negras bantos de Angola e Congo.
andar direito, os passos firmes, sustentando o harmonioso corpo numa As Fulas e Minas reviram naturalmente os posaclouros redondos e sa lie n-
vertica liclaele de tamareiras. Assim as tunisinas, marroquinas, argelinas. O tes, perdição dos amos e patrões luso-brasileiros de outrora e sempre. As
máximo ela atração sexual de propaganda turística até o Egito é a dança negras do Daomé, Nigéria e Gana não são esculpidas em ébano e dente
do ventt·e, inferio r a uma demonstração primária da chigaza na Zambézia. de elefante mas fe itas em carne pa lpitante e viva, ansiosa e fecunda . Mas,
Em Lo urenço Marques e na ilha de Moçam biq ue avistei-me com mui- entre o Zaire e a foz do Cune ne, fixo coordenada irradiante e legítima
tas hindus e mesmo presenciei bailados, vagarosos, intencionalmente ten- desse po tencial de técnicas biológicas, instintivamente asseguradoras ela
tad o res, maravilhas ele braços e mãos e loquentes, acidulando o estímulo perpetuidade vital.

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Muita gente velha recorda o "mo do d e a nda r d a mulhe r moça" n a Te ria influído o a nda r ela indígena brasile ira no ritmo do passo ela
Euro pa ele me io século p assa do. Era be m diverso do atua l. A allure ela mulhe r contempo rânea? Nada lhe devemos e m maté ria ele aperfe iço ame nto
fran cesa, leve, rápida, tocando a te rra o suficie nte p ara não ser inte irame n- conquistado r. Com o andar seguro , assentando a pla nta do pé com segura n-
te voo, desap areceu. A irresistível sugestão n orte-americana, n egada e ça , do minando o caminho e d efe nde ndo a carga que, privativame nte, carre-
verídica, transformou-a no passo que hoje vemos, fo rça no bico elo sapato, gava, a indígena nunca re bo lava as massas g lúteas na marcha, antes d ecisiva
roçar de tacão, g iro o ndulante na graciosa anca. Aq ue le anelar, sacudido, no passo e lástico e contínuo q ue lhe é habitua l. Há ba ilad os e m que os
e nérg ico, d ominad o r, the gait, d a inglesa, o passo definitivo, sonoro, largo músculos estremecem como tocados po r uma desca rga elétrica. São, po rém,
d a alemã, já não existem . Padro nização das n ádegas girantes, imposta , privativos de h omens. Os bo roros tê m re nome nesse pa1ticular.
categoricame nte , às mulhe res que am am a visão a lhe ia devocio na l. Ainda n ão apareceu registo de sábio-viajante e log iando a ndar de ind í-
Carl Gu stav Jung, o bservando o to go on f oot da girl elos Estados gena. As mulheres Macunis caminham muito mal, têm p ouca graciosidade
Unidos, d ecidiu que esse andm-particular, de articulações relativamente como todas as outras índias, confessava Saint-Hila ire em 1817, olhando-as
.froux as, quadris ond ulantes, que se observa frequentem ente nas america- em Minas Gerais. Gaba m as d e mais virtudes, o lhos meigos e tristes, doçu-
nas, vem dos n egros. ra resig nada , a serv idão jubilosa. Andar, n ão.
À volta de 1920, Antô nio Torres ins urgia-se n o Rio de Jane iro contra Pod eriam e las, e ntretanto, apre nder esse treme-treme com os mestres
a gelatinosa trepidação nas ga rup as cariocas. Presente me nte , mulher que natura is. A mulhe r indíge na , com o a onça, sempre teve esp ecia líssima pre-
não se remexa, p or si se deix a. dileção pelo pre to . Inversame nte, o ameraba sentia a negra como fê mea
A célula nobre p ara o fornecime nto d essa e nergia contaminante seria,
subalte rna, infe rior ao seu me recime nto b elico so e viril. Von Ma rtius e
no Brasil, a mula ta, que sempre fo i "gló ria naciona l". Mas, sa ibam qua ntos,
Saint-Hila ire , o desenhista e viajante Rugendas, de ixaram n otas n esse p ar-
o contágio não era tão e né rgico, intens ivo e geral até a primeira d écada
ticular. As indígenas e ntregava m-se aos maridos por obrigação; aos b ra n-
do século XX. Vivi no Rio ele Jane iro, ele 1919 a 1922, teste m unha ele su a
cos por inte resse; aos negros por prazer. Ao correr elos séculos XVII-XVIII ,
inc rível me tamorfose urba nística, notadame nte de p o is da Conflagração
Ba ndeiras, mine ração, plantas m ed icinais a mazônicas, companhias ele
Euro pe ia, 19 14-19 18, d as festas do cente n ário da Inde pendê ncia qua ndo a
navegação, os escravos ele Mato Grosso, Goiás, Minas Ge rais, São Paulo,
Capital Fe de ral amplio u o seu ecümeno, vencendo montanha e mar. O
fugiam co mo abelhas chamusca das. Fundavam os "quilo mbos" no me io
reque brad o posterio r e ra parc imo niosame nte registado ante as proibiçôes
das matas, serra nias, desertões e rmos, livres elo azorrague senhorial. O s
irredutíveis e forma is. "Deixe de remexido ... não seja rabo de laga rtixa ...
Sassaricad a!" O domínio d o "balançado" torno u-se vitorioso e m red o r de indígenas fo ram protetores dessas aldeias de homizio . As indígenas
1930. Já estava no teatro, nos ba iles pagos , nos cabarés que esperaram três cons tituíram-se madri nhas instintivas e amásias naturais d os fo ragidos qui-
lustros para a transfiguração em Night Club. lo mbolas. Mas não alte ra ram a relativa imobilidad e elos assentos, quando
Se pensarmos na sis uda educação do méstica e m Portugal não iremos e m marcha. Mesmo no exercício íntimo d a função sexua l, os m ovimentos
responsabilizar a p o1t ug uesa pelo m anejo d os quadris b rasile iros. No prin- d esusad os da mulhe r d e nunciavam ao compa nhe iro um con tato anterior
cípio do presente século , Lisboa sob El-Rei D. Carlos, o código do ritmo com o "bra nco". Era, para e le, uma modificação re p rovável na técnica
era tão exigente q uan to o ele d uzentos anos vividos sob Do na Maria I. fecundad ora: o m exer-se na cópula. Como ia m bambo lear-se, a nd ando?
Rever o tipo ela menina casacloira trazido elos ro ma nces lus itanos de então. Qual o processo ela influê ncia irresistível? Certame nte o bailado elos escra-
Mantinha aragens e odores d e 1830 qua ndo os rom an ces franceses, afirma- vos africanos, que se p ro lo ngou na d escendência fiel ao ritmo contagiante,
va Camilo, "en contrara m as almas p ortuguesas he rme ticam e nte calafeta- seria a mais poderosa sugestão para o re bolado anda r contemporâneo.
d as" . Havia, sempre h o uve, infração pre meditada ao sexto ma ndame nto da Os negros eram infatigáveis, Saint-Hila ire, vendo-os n o batuque ele
Le i de D eu s, mas a c um plicidad e p romovedora do de lito não compreendia 18 16, n otava: "da ndo a tod os os me mbros uma espécie de agitação con-
o ins istente bambo leado desp ertad or elo ins tinto. Não devemos, evide nte- vulsiva qu e devia ser extrem am ente fatigante para ho me n s q ue tinha m
me nte, à mulhe r po rtugu esa , a supervalia imprevista desses excessos mus- tra ba lhad o durante o d ia todo." Em fevere iro de 18 17, L. F. d e Tollenare
cula res e m vertiginosa ro tação atraente . no tava n os a rredo res do Recife: "Este tremor e este movimento, produtos de

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considerável.força musculm; exigem, muita arte e muito exercício. Os dan- petite fille négligeait de prendre ce balancement. Esse onioi não e ra , outro-
çadores desafiam-se para ver quem os prolonga por mais tempo, e os aplau- ra, encontrado mesmo nas danças, siuas, ele Samoa mas é essencial e
sos do público são a recompensa do que tem os músculos mais robustos e característico na hula-hula de Havaí e ele Taiti.
sobretudo mais móveis." João Maurício Ruge ndas, q ue pe rcorreu o sul do É preciso distinguir uma solução coreográfica de um modo regular ele
Brasil, 1821-1826, descrevendo o "batuque" info rmava: "são principalmen- marcha. Mas o passo-de-dança é um e le me nto permanente ele influê ncia
te as ancas que se agitam." Essa variedade coreográfica individual dentro no ritmo habitua l, na cad ê ncia ela a ndadura. Essa forma de anelar existe ,
da mesma unidade rítmica , o contagiante ciascuno a suo modo, como d izia provadamente, na Polinésia e na África Ocid ental. Desta última é que em i-
Pira ndello, constituiu incitante e natural modelo, diário e vivo. Onde o gro u para a América, com a escravaria d erramada nas ilhas e te rra-firme
negro não batucou, o andar requebrado não apareceu, com os coleios que do Novo Mundo. Trata-se, evide nte me nte , de maneira adquirida, a pre ndi-
sugerira m a Bauclelaire La serpent qui danse: da, artificial , útil para d espe1tar o desejo erótico, assegurando a propaga-
A te voir marcher en cadence, ção da espécie. Elsdon Best mostra como esse onioi constitui pre nda atra-
Belle d'abandon, tiva para o Maori. O bamboleio afi·icano e o onioi polinésio pe rte ncem às
On dirait un serpent qui danse mano bras provocativas da mocidade fe minina , vedadas às mulhe res ele
Au bout d'un bâton. completa maturidade, desa pa recida a utilidade excitadora.
Pergunta-se de sua origem, admitindo-se, prudentemente, difusão e
Semelhante mente Alfredo de Sarme nto assistira nos sertões do Congo,
pa ralelismo irradiantes. O processo funcional exige traje reduzido, decor-
norte de Angola, até Ambriz: "... admira-se prodigioso saracotear de qua-
renteme nte clima tropical. A presença na Polinésia e na África do oeste são
dris, que chega a parecer impossível p oder-se executar sem que fiquem
inde pende ntes, ou uma proced e da o utra? Qual a iniciante?
deslocados os que a ele se entregam."
Leo Frobenius, consultado, decidir-se-ia pela origem po linésia.
Fo ram as sementes, exemplos, modelos, padrões do anelar sacolejado
De terminando a "Civilização Atlântica", fazia-a proceder d as culturas d o
e clesafia nte.
Pacífico Central, proje ta ndo-se para a Ásia Ocidental , o Medite rrâneo, e
Sabe mos que o g iro voluptuoso elas cad eiras é perfeitamente indepen-
daí partindo para a África d o poente, não atravessando o deserto mas
de nte d o movimento da marcha normal. São soluções a utônomas da mecâ-
contornando o contine nte a té ating ir o golfo ela Guiné. Por esse esquema
nica muscula r. O bamboleio é uma provocação inte ncional, deliberada,
conve ncional o onioi polinésio não d e ixou vestígios permane ntes ao
conscie nte elo efeito excitador. Impossível que se produza instintiva,
lo ngo elo p e rcurso , vindo acentuar-se nas extremas, iniciais e te rminais,
espontânea , natural. Mareei Mauss negá-la-ia, fo rmalmente. En somme i!
ela impulsão temática.
n 'existe p eut-être pas de FAÇON NATURELLE chez l'adulte, ensinara nas
Teclmiques du corps (1936). As mulhe res bosquímanas e hote ntotes, com
a a no malia esteatopígica ampliando desmarcaclame nte os glo bos g lúteos,
agitam-se e tremem com o movimento, dando a impressão de duas massas
de geleía presas atrás, como escrevia j o hn Barrow em 1797, mas sem que
le mbre m a ondulação lúbrica elo gait citadino, com as bu ndas ele balaio,
como dizem no Brasil. Mesmo não estuda ndo o andar re bolado, Mauss
traduziu Elsclo n Best, num trecho sobre as mulhe res ela ova Zelâ ndia (The
Maori, 1925): Les j emmes indigimes adoptent un certain "gait": à savoir un
balancement détaché et cependant articulé des hanches que nous semble
disg raC'ieux, mais qui est extrêmement admiré par les Maori. Les meres
dressaient leurs filies dans cette jàçon de faire qui s'appelle l 'ONIOI. ]'ai
entendu des m eres dire à leursfilles: toi tu ne.fais pas / 'ONIOI, lorsqu 'une

159
É uma referência a Sào Filipe de Benguela, em Angola , grande porto
exponaclo r de escravaria para o Brasil. Benguela, Luanda e Cabincla eram
• os entrepostos mais ativos no tráfico elas "peças" africanas .
INJE~Lúoío NoMiNATivo Muitos escravos vindos daí não tinham os dentes dafrente, tornando-
-se estranha a feição apresentada . O costume ele a rrancar ou limpar os
• • • • •• • • • • • • • • •• ••• •
incisivos não e ra peculiar a penas aos g rupos ao redor ele Be nguela e nem
a região possuía população suficiente para atender, sozinha, ao reclamo do
comércio servil. Ali era um elos centros ele concentração, depósito elos
p retos arrancados aos senões, d e o rigens e etnias inco ntáveis. A passagem
, fui ver n'África o que não é possível no Brasil: o pôr do sol no mar. por Benguela clava-lhes o sobre nome: pre to Benguela, u 1n benguela, como
E uma d as minhas silenciosas homenagens pelas terras de Angola , assistir se to dos pe rtencessem ao grupo tribal. A ausência elos dentes, retirados na
ao crepúsculo em sa ngue e o uro, pedrarias rubentes dos ocasos, como festa ela iniciação, luto o u punição , no cerimonial comum em áreas exten-
dizia Cruz e Sousa , o nosso Poeta Negro, incomparável. Tão rápido e sas, transmitiu mais esse no me , não mais indicado r do tipo humano pela
fulgurante desaparece no Atlântico, mudada a radiosa cenografia em treva procedência, agora constituindo forma peculiar na conservação ela arcada
e nvo lvedora, como o meu velho sol se some no oeste ele minha te rra, dentária. Limados e m ponta ele adaga, ou o triâ ngulo, com o vértice nas
d etrás elo horizonte elo Natal, apagando a flamejante cabeleira no seio ela gengivas. Desapareceu o negro embarcado no porto d e Benguela mas o
noite tropical. banguela ficou no vocabulário brasileiro.
Venho devagar pela contornante Avenida Marginal. O nome oficial é O suclanês Mandinga deixou outro vocábulo, sinônimo de feitiço.
Avenida ele Paulo Dias ele Novais, o fundador ele Luanda, mas, tal-qualme nte "Mandinga, feitiçaria; feitiços, para ficar impe netrável a ferro. Mandingueiro;
no Brasil, o governo d á um nome e o povo outro, mais usual e comum. o que fa z o u usa de mandinga", regista Morais no seu Dicionário. Pe rma-
Nessa África ocidental a presença brasileira é atorcloante. Muita cousa neceu no espanhol sul-americano na mesma acepção:
daqui começou no Brasil e vice-versa. A região do nordeste onde nasci e Ni a descomunió n mayor,
sempre vivi, esteve ligada a Angola como ne nhuma outra. A escravaria elos ni a vestir el sambenito,
engenhos ele açúcar e licla nte nas casas-grandes, a famulagem poderosa das tiene pena ese maldito
bás, mucamas e moleques, vie ra ele Angola ou tinha os pais angolanos, com clurecido pecador.
as crias e mocio nais no domínio e rótico, sapotis, alvarintas, sararás. Pelo Mandinga , que es embaidor
nordeste dizemos banguela a que m não tem os incisivos. Leonardo Mota dá etc.
uma amostra da aplicação verbal, recordando pelejas de cantadores: Todos no Rio ele Janeiro conhecem os velhos bairros ele Catumbi e do
"Cantava Manuel Serrador e José Paulino. O último estivera doente, Catete. São elo idio ma tupi. Catumbi vem de caát-umbí, a folha azu l, o
anelava extrema me nte pálido e se achava d esde ntado. Além disso, pe rdera mato verde, o anil, ou corrupção ele caá-tumbí, ao pé elo monte, à beira
uma elas vistas. Quando José Paulino desafiou Serrador, este logo o fo i ela mata, segundo a lição de Teodoro Sampaio . Catete, cateto, caitetu, é o
fulminando : porco-montês (Dicotyles), ele tã i-tetu , o dente aguçado, pontiagudo. De
Acho ser coragem sua 1897 a 1960 denominou o palácio residencial da Presidência ela República
Me convidar p 'ra "martelo ", na então Capital Federal. Em Angola , no Concelho ele Quibala, há um
Q ue eu não respeito o utro homem Catumbi que o sr. ]. Perez Montenegro diz ser ingenuidade, inocência.
Quanto mais um amarelo , Caté te, e não Catê te, é um pássaro angola no e uma zona, povoação e
Que, além de am arelo, é torto estação na ferrovia que vai para Malange, partindo ele Luanda , numa dis-
E, além de to rto, banguelo." tância ele 63 quilômetros.

160
o antigo Congo Be lga , região de Cata nga , na fronteira de Lunda, e m Cambembe. Antes, a linda MASSANGANO, capital na resistência p oitugue-
Angola, há um lugar Kapanga , que no Brasil va le dizer guarda-costa , vale n- sa ao do mínio hola ndês, 1648-1651. Visíveis esple ndores n as ruínas ela
tão, "assassino assalariado ", registava Aule te como brasileirismo. Será ig reja de Santa Maria ela Vitó ria e elo imponente edifício do Tribunal na
Ca panga uma a rma defe nsiva como o jagunço, também vale ndo valente solenidade de su as arcadas solitárias. Tivemos e m Pernambuco o enge~ho
alugado , capanga, registaclo como brasile iris mo po r Aulete e Beaurepaire- MASSA GA A, no município elo Cabo, o nde Joaquim Ta buco se fez meni-
-Rohan? Mas o jagunço não emigro u p ara a África. como o Kapanga, gra- no, imortalizando-o na Minha For·mação. Há o utra MASSANGA A, estação
fia elos m a pas consultad os. ferroviária no município elo Ceará-Mirim, no Rio Grande elo Norte. Em
Encontre i e m Moçambique um Maxixe, posto administrativo da ambos os topônimos a última vogal é um a. É rio no Mara nhão. Massanga no
Circunscrição de Ho mo íne, dis trito de Inha mban e. Debalde procure i a quer dizer encontro, confluência, c é o local o nde os rios Cuanza e Lucala
cucurbitácea n os mercados e nas respostas às pe rguntas fe itas na casa dos se reúnem. Há o utro Massanga no no Baixo Zambeze, n'África O rie ntal,
a migos em Loure nço Marques. Ninguém dá notícia da Cucumis angúria. pe rto de Tete . Em Massangano fa leceu e m 1802 o doutor José Álvares
O nome parece africano típico mas as fon tes inquiridas indicam sua pátria Maciel, um Inconfide nte ele 1789, exilado p ara Angola, onde prestou ser-
como sendo as Antilhas e o contine nte am e ricano tropical. Não o deparo viços relevantes. Sepultou-se n a igre ja de Santa Maria ela Vitó ria. Quase
nos volumes lidos, registando a flora ultramarina sob o domínio português. diariamente via seu nome na p laca clenominaclo ra ela ma onde está o con -
O Conde d e Ficalho (Plantas úteis ela África Portuguesa, Lisboa, 1947) sulado d o Brasil em Lua nda.
decla ra-a espécie americana: "Welwitsch diz nos Apontamentos: 'O O IAIÁ e o IOIÔ foram tratamentos inarrecláveis d os escravos para os
Cucumis africanus Lincll.f. (Machiche) cultiva-se raras vezes.' É difícil senhores moços, rapazes e moças, e a ntes me ninos e me ninas. As pessoas
saber a q ue espécie se quis referir. ão é provável q ue fosse ao Cucumis idosas não recebiam essa sa udação ele intimidade confia da. Nhânhâ,
c~fricarzus Lincll.f. , esp écie da África austra l, e que ne nhuma qualidade Nhônhô, no sul elo Brasil. Da Bahia para o no ite , sempre Jaiá e Ioiô, com
recome nda para a cultura . O nome ele Maxixe d á-se no Brasil ao Cucumis os diminutivos carinhosos, laiazinha, Tazinha. Para o Joiô atina-se provir
angút·ia L. e ta lvez Welwitsch se refira a esta es pécie americana , que efe- d e "senhor". Araripe Júnior afirmava dever-se à negra afr·icana o petulan-
tivamente se p arece com o C. africanus. " Não consta e m John Grossweiler te e vicioso IO IÔ. E a doce IAIÁ? Jacques Raimundo, citando Be ntley, indi-
(Flora exótica de Angola, Luanda, 1950). Curioso é q ue dê nome a uma ca "do conguês YAYA, mãe".
povoação e m lnha mban e. Palavras h om o fo nógra fas? Outro vocábulo inseparável d as mucamas domésticas e ra o SINHÁ na
O utro nome que me soa brasile iro é PERY. Ao longo ela estrada ele mesma intenção afetuo sa do Iaiá mas com noção sensível de respeito. O
fe rro que liga a Be ira a Um tali há a Vila PERY, clara , movimentada, aco- "Sinhá" te ria nascido ele SENHORA, através ele contração mutiladora e terna
lhe dora. PERY pronunciam PÊRl e não PERl, como devia ser. PÊRI obriga- na fala elas escravas e escravos caseiros. Assim pensava José ele Alencar.
ria o utra grafia , o inglês PERRY, batizando counties no rte-americanos e Senhora, Sinhazinha , Sinhá. "Gente Sinhá" valia fa mília ele bom sangue:
velhas famílias britânicas. o p01tugu ês e no ing lês não h á PÊRI e menos Eu não sou cabocla
ainda PERY. Pe ri é um su bstantivo no minal na linguagem nhengatu , o tupi Lá do Pará.
brasile iro , de nominando o he ró i selvagem do ro ma nce O Guarany, de Sou me nina boa,
José ele Ale nca r, p ublicado e m 1857 no Rio d e Jane iro. Foi, ao tempo, Gente Sinhá.
divulgaclíssimo, e o mais popular J us roma nces nac io nais. A Vila PERY não Na ilha de Moçambique o uvi sempre yaya e mayaya, referindo-se,
teria essa o rigem , ele algu ém com esse nom e tupi , le mbrando o indígena indistintamente, aos meninos e me ninas p retas que carregavam as c rianças.
sentime nta l e devotado? Dizia-se e m macua e suaíle. É uma visível deturpação de aia, a ma, pajem
Em Angola ocorre sempre o encontro ele nomes a frica nos que são a o serviço infantil . Não cre io, perdo e-me Bentley, que os fâmulo s negros
familiares à me mória auditiva elo nordeste brasile iro . No velho auto dos chamassem mamàé aos jovens am os brancos. Mo rais registra Aiaia, arca-
CONGOS havia um ca nto e m lo uvor da Rainha Jinga, senhora elas gentes ísm o vale ndo brinco o u ves tido ele me ninos; ayáya melhor, adverte. A
cambemhe. ubindo o Cuan za , justifica a jorna da ir ver a barragem do

16.2
insistência das vogais sugere-me uma voz infantil, espontânea e sem vali-
menta sinonímico, imitativa e natural. Deixo o yaya suaíle e macua no. Lá
empregam para o me ninote-aio mas o processo de transferência designa-
tiva parece no rmal e lógico . O I oiô seria solução brasileira, com a vogal
masculinizante. Algum étimo português fundamentaria por que os mesmos
MAkA MA NoolA
• •• • • • • • • • • •••
africanos não tiveram o iaiá nas regiões de o utros idiomas.
Jaiá e Joiô soam unicame nte no Brasil.

Maka, notícias, informações, assuntos,


conversa ; ma Ngola, de Angola.

I - Santo preto
feias minhas andanças em Angola ainda não de parei São Benedito.
Raros os Santos Pretos. No museu elo Ounclo vi uma Santa Ifigênia e o utra
na igreja ele Nossa Senhora de Nazaré em Luanda. Nenhuma imagem ele
santo branco pintada de preto como era costume na devoção escrava no
Brasil.
São Benedito, preto de sangue mo uro, siciliano, te m mais culto em
Portugal elo que na África. No Brasil seus fiéis eram negros forros, a famu-
lagem das casas-grandes e, maioria esmagante, famílias portuguesas e
brasileiras. Não convergiu para nenhum o rixá jeje-nagô na Bahia ou no Rio
de Janeiro. Apenas]oão do Rio dá no tícia ele sua encarnação como sendo
Lingongo, entre os cabindas ele 1903 na então Capital Federal. Depois,
desapareceu.
Seria uma fórmula defensiva evitar a p resença de um Sa nto Preto
nos ca ndo mblés e macumbas. A incidê ncia da cor faria desconfiar a
vigilância cató lica quanto ao processo simulador ela acu lturação, o rixás
nos oragos. Ninguém maldaria de São Jo rge ser Oxóce o u Sa nt'Antô nio
representar Ogum, ambos alvos e de o lhos azuis. São Benedito era
"santo de preto" p ela epiderme. No bailad o elas Taiêras em Laga rto,
Serg ipe, cantava-se:
Meu São Benedito
É santo de preto ;
Ele bebe garapa,
Ele ro nca no peito!
O melhor era afastar a coincidência perigosa.
insistência d as vogais sugere-me uma vo z infantil , espontânea e sem vali-
me nta sinonímico, imitativa e natural. Deixo o yaya suaíle e macuano . Lá
e mp regam para o me ninote-aio mas o processo ele tra nsfe rê ncia designa-
tiva parece no rmal e lógico. O Ioiô seria solução brasileira, com a vogal
masculinizante . Alg um é timo português fundame ntaria por que os mesmos
NAkA NA NoolA
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africanos não tiveram o iaiá nas regiões ele o utros idiomas.
Iaiá e Ioiô soam unicamente no Brasil.

Maka, notícias, info rmações, assuntos,


conversa; ma Ngola, ele Angola.

I - Santo preto
feias minhas andanças e m Angola ainda não de parei São Be nedito.
Raros os Santos Pre tos . No museu do Dundo vi uma Santa Ifigênia e o utra
na igreja de Nossa Senhora ele Na zaré em Lua nda. Nenhuma imagem ele
santo branco pintad a ele pre to como e ra costume na d evo ção escrava no
Brasil.
São Be nedito, pre to ele sangue mouro, siciliano, te m mais culto e m
Portugal d o que na África. No Brasil seus fiéis e ra m negros forros, a fa mu-
lagem d as casas-grandes e , maioria esmaga nte, famílias portuguesas e
brasileiras. Não conve rgiu para ne nhum orixá jeje-nagô na Bahia ou no Rio
de Janeiro . Apenas ] oão d o Rio d á notícia de sua e ncarnação como sendo
Lingongo, entre os cabinclas ele 1903 na e ntão Capital Fed e ral. Depois,
desapa receu.
Seria uma fórmula defensiva evitar a p resença d e um Santo Pre to
nos candomblés e macumbas. A incidê ncia da cor faria d esconfiar a
vigilâ ncia católica quanto ao processo simulado r d a aculturação, o rixás
nos o ragos . Ning ué m maldaria de São Jo rge ser Oxóce o u Sant'Antônio
re presentar Ogum, ambos alvos e de o lhos azuis. São Be nedito e ra
"santo ele preto" pela e piderme . No bailado das Taiê ras e m Lagarto,
Sergipe, cantava-se:
Meu São Benedito
É santo de preto;
Ele bebe garap a,
Ele ro nca no peito!
O melho r e ra afastar a coincidência pe rigosa.
Mas, nas popu lações mestiças, com a ativa colaboração negra, São No Brasil as regiões de maio r atividade na agricultura, posteriores a
Be nedito e Santa Ifigênia tinham devoções festivas e calorosas. Mais no 1888, coincidem com as zonas ele menor coeficiência escrava. Daí o recur-
Brasil elo que em Po rtugal. Mais em Po rtuga l elo q ue na África po1tug uesa. so à imigração, ao colonato estrangeiro. O filho elos escravos alforriados
Apesar ela tradição dos grandes soberanos negros n·África oliental fixo u-se nas cidades, dando em alta percentagem nascimento ao malan-
(Monomotapa) e ocidental (Manclimansa, Manicongo), a figura do Rei Preto, dro, fa zendo heroísmos para não trabalhar. Competia-lhe , numa compe n-
entre os três Reis Magos, não simboliza o nativo na pureza de sua tradição sação trágica, a vez elo papel de branco: mão nas costas o u nos bolsos, e
mas o muçulmanizado, usando o infalível turbante. Ainda hoje o preceito tem a vocação ele mandar o ca nsaço alhe io ...
sido invariável. Rei Negro, o rei Belchior, é Rei Mo uro, em todos os presépios.
111 - Pirão e Fúnji
11 - Representação do ,,branco"
O português levou o pirão brasileiro para Angola e o angolano trouxe
Nunca vi nas co leções de esculturas africa nas uma figura ele branco
o fúnji para o Brasil.
trabalhando . Caçando o u pescando. Quase todos têm as mãos nos bo lsos
ão encontro d ife rença essencial e ntre ambos.
ou cru zadas atrás das costas. Branco não trabalha, manda o p reto... Das
Pirão, que Teodo ro Sampaio d iz provir de pirõ, a papa grossa , era habi-
fronte iras ele Tanganica à Guiné portuguesa as fig urinhas ele madeira não
tual entre os am erabas e ainda indispe nsável e diário para o nosso povo.
interro mpem o modelo , ocioso e mandão. em existe, nas séries guarda-
Beaurepaire-Rohan registou-o no Dicionário de Vocábulos Brasileiros (1889):
das nos museus e urope us, uma solução ele continuidade. São re presenta-
"PIRÃO, s.m. espécie de massa feita ele farinha ele mandioca cozida em
ções que datam deste século XX quando ho uve um movimento de livre-
panela ao lume, e serve à guisa de pão, para se comer a carne, peixe e
-crítica, determinando a exteriorização que o negro sentiu como impressão
mariscos. Também lhe chamam Angu. O Pirão d 'á gua é feito com água fria ,
verídica. aturalmente decorre ela presença e uro peia radicar-se ao feito r,
do qual mais se usa com a carne ou peLxe salgados. Pirão escaldado, o u
a po ntador, supervisor, gerente elo grupo ele pretos e ncarregados ela produ-
simplesmente Escaldado, é aquele que se faz lançando-se água ou cald o
ção. Pela região suclanesa, alcançando até o Senegal, o tipo elo branco
fervente sobre a farinha contida em uma vasilha. ETIM. Metaplasmo ele
simbo lizado não interrompe a ideia negra da indo lência dominadora e
Mindypirõ, nome que em tupi se clava às papas grossas, em contraposição
superio r. Mão nas costas e voz alta, dirigindo. No antigo Império das Índias
diziam que a palavra tchelo! Vá! era !e mot qui met en branle l'Empire a Mingau, que sig nifica papas ralas (Figueira). Vasconcelos escreve
Indien, afirmava Rudyard Kipling. Em tra balho o negro só podia imaginar Mindipiró, e Anchieta Mindipirô no mesmo sentido. O Dic. Port. Braz men-
a participação imed iata e física. A config uração elo branco entre os hindus ciona Marapirão como te rmo po1tuguês, e traduz em tupi por Motapirôn,
não diferia ela sugestão mo rfológica elo afri ca no. Mandava , não fazia. sem contudo lhe dar a significação. Não sendo, porém , Marapirão vocábulo
Imposição elo "Ho mo loquens" e não "faber". da língua po rtuguesa parece-me antes corruptela ele Mbapirõ, usual entre os
Quando o conde Luis Felipe de Ségur, voltando da América, ela luta guaranis. Na África Ocidental é usual o termo Pirão (Ca pela e Ivens); e sem
pe la Inde pe ndê ncia, tro uxe o negrinho Aza, de Santo Domingos, este, a menor dúvida o ho uveram do Brasil. "
desembarcando na França e vendo em Brest os trabalhadores rurais, g ri- Em Angola o pirão é conduto para peixe e não também para carne,
tou, assombrado e surpreendido: Maitre-m oi! Maitre-moi! mirez lá-bas; li como na culinária brasileira.
blancs travailler, travailler comme nous! Não pod ia compreender e menos Óscar Ribas ensina a fazer-se o pirão angolano: "Pirão. Cozid o ele
acreditar q ue os brancos tivessem a mesma tarefa que lhe parecia mono- peixe, temperad o com ó leo de pa lma ou azeite doce, acompanhado ele
pólio privativo ele sua raça . farinha de mandioca escaldada com o pró prio caldo. Fervida uma certa
A escravidão deixa essa clesmo ralizaclora herança para o trabalho porção ele água, com tomate e cebola, lança-se de ntro peixe fresco e seco
livre, a usência elo lavrador branco, o rgulho ela terra, inconcebível para o e bocados de mandioca, juntame nte com o ó leo ou o azeite. Depois ele
braço servil. A terra, patrimônio elo esforço humano, fica sendo o melan- tudo cozido , tira-se com uma colher a gordura e um pouco ele caldo que
cólico apanágio ela servidão. se deita sobre a farinha, contida no utra vasilha, e a qual se mistura conve-
nie ntemente. De ordinário, condimenta-se o caldo com jinclungo e limão.

J6 6
Verdadeiramente, pirão é a farinha assim preparada. O caldo chama-se na fa rinha vertida , procedendo-se logo ao seu revolvimento. Outrossim
muzongue. "Pilá", vernáculo de pirão , resulta ele "kupiapiluka " (ser sagaz). acontece com a massa pronta , servida no prato de onde cada qual se apro-
Alusão à rapidez elo preparo. E "muzongue", ele "ku zonga " (medir). Alusão visiona. Se se nào cumprir esta observância , corre-se o risco ele e ngasga-
à q ua ntidade de água, em relaçào ao produto cozinhado" (Missosso, li, menta. De k~~fungulula: remexer. Alusão ao constante remeximento. "
Luanda , 1962). To Brasil o nosso pirão é o escaldado, ca ldo fervente sobre a fa rinha
O etnógrafo angolano José Cortez não difere na lição que me dá do de mandioca , seca, única a se r empregada , e o mexido no jogo, farinha no
pirão elos axiluanclas, moradores na ilha ele Lua nda: " ra confecção elo caldo, dentro da panela e revolvido até a consistência desejada.
pirão, o prato q ue mais se come na ilha, elevem entrar os seguintes ele- O pirão de Angola é o escaldado e o fúnji é o mexido. Os modelos
mentos: farinha musseque , que se trata de uma farinha de mandioca pre- brasileiros excluem o óleo de palma , azeite de dendê.
parada nos musseques; ó leo de palma (maji ma ndende); água, sal e O jií.nji instalou-se pelo no rdeste do Brasil. Nunca o o uvi da Bahia
peixe, que pode ser, indistintamente, qualquer elas espécies comumente para o centro ou sul. Como o pirão va le dizer alime nto, subsistência, pas-
apanhadas na ilha , como, por exemplo, o pargo, o cachucho, o pungo, o sadio, fúnji tendo a mesma acepçào genérica.
quingongue, o roncaclor, etc. Este prato é cozinhado da seguinte maneira: Pereira da Costa (Vocabulário Pernambucano, Recife, 1937) recolhe u
cozem-se em água e sal, a mandioca e o pe ixe , já d evidamente preparado: o fúnji nos jornais do Recife até poucos anos passados. É também "pago-
d e po is de bem cozidos, adicio na-se-lhes ó leo ele palma. Quando estiver cleira de danças, comes e bebes": "O honrado Partido Re publicano Federal
preparada a ebulição, tira-se, com uma colher, o óleo do cozido e deita-se é o rói:funge ela é poca " (Lanterna Mágica, 1896): "O Castanho faz anos;
sobre a farinha musseque , previamente posta numa tigela , e mexe-se bem. é preciso ir c umprimentá-lo efusivamente, quero dize r: provar elo funge
É a esta mistura de farinha musseque com o ntaji ma ndende, re tirado do p re parado a capricho " (A Pimenta, 1901); "Arlequim va i e ntrar no funge"
cozido, que verdadeirame nte d ão o nome ele pirão, mas que, todavia , (Jornal do Recife, 1914); "Fui à casa da ma na apertar o funge do almoço''
pressupõe o peixe e a mandioca, como elementos acompanhantes" (A (Jornal Pequeno, 1915).
Habitação dos Ax iluandas, Estudos Etnográficos, Instituto ele Investigação O Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portug uesa (1951) cita o
Científica de Angola , Luanda, 1960). Funje como b rasileirismo de Pe rnambuco, "reunião dançante de gente d e
Pirão é uma palavra nhengatu e já fixada no século XVI nos seus é ti- baixa condição", fazendo desaparecer a sinonímia alime ntar.
mos. É uma presença elo indígena d o litoral brasileiro na orla africana ele
Angola . FÚNJI é o termo mais popular e comum, entendido a todas as horas. IV - Rosa Aluanda qui tenda, tenda ...
Ósca r Ribas estuda o Fúnji: "Massa cozida de farinha, de nominada
Juba , geralme nte de milho, massa mbala, mandioca ou batata-doce. Fervida Em tod os os velhos Maracatus elo Recife , desde 1909 qua ndo vi o p ri-
a água , deita-se a farinha e remexe-se consta ntemente com um pau ro liço, meiro Carnaval pernambucano, estro ndava, numa e uforia contagiante que
guico, a fim ele se desfazerem as bolas resultantes . Não leva sal. Também o s tambores enlo uqueciam na alucinação rítmica , o coro popularíssimo:
se pod e lo tar as farinhas, a de milho, chamada de quindele, e a de man- Rosa Aluancla , qui te nda , tenda,
clioca, chamada d e bombó. No Sul ela Província , antes de se juntar a fuba , Qui tenda , te nda ,
pre para-se, à parte , uma papa com água fria. Feito isto, verte-se essa Q ui tem tororó!
mesma papa para a panela e, depois de se misturar devidame nte , adicio na-
O maestro Hekel Tavares recolhe u e deliciosamente harmo nizou a
-se e ntão a restante farinha. O fúnji acompanha várias iguarias. Pelo seu
melodia inesquecível ela Rosa Luanda. Ningu ém mais sabia a significação
pod er d e sacieclacle, e ntra diariame nte nas refeições. Re presenta o pão d os
ela toada sacudida em ple nos pulmões pelas ruas , praças e p ontes elo
pobres. No Sul , consome-se a farinha ele milho e no interior ele Luanda a
' ' Recife, Coimbra com dois Mo nclegos. Rosa Aluancla seria, evidente me nte ,
ele bombó . Na difere nciação elas suas propriedades, talvez resida a robus-
Rosa ele Luanda. Não fui mais além. Uma minha curiosidade permane nte
tez d aquelas populações e a menor corpulê ncia das o utras. Em Luanda e
e ra conhecer a tradução da cantiga, farejada como quimbundo. Em Luanda
no seu inte rior, existe a prática de, com o próprio guico, se traçar uma cruz

168

.I
consultei Óscar Bento Ribas, autoridade no assunto. Aqui está a resposta
do mestre ele Angola:
V - A importância da desatenção
"Tenda tenda é a forma reduplicativa elo verbo kutenda, lembrar-se Atender prontamente é para muita gente brasileira e contemporânea
ele alguém, pensar em alguém, sentir saudades. E tororó, pelo que me um índice de subalternidade. Fazer esperar pregoa autoridade. ão perder
parece, eleve constituir um derivado aportuguesad o ele kutolola, abater. tempo em respo nder ao telefone, não é atitude aconselhável para a manu-
Portanto, abatime nto. Mas apenas em sentido figurado, pois o verbo com tenção da "importância". A passagem por vários intermediários valoriza a
sentido rea l é kutoloka, partir-se. Em face disso, a larguemos a tradução em pessoa procurada . Não é uso nacional mas universal. Ou quase.
toda a sua extensão. Será: "A Rosa de Luanda, que sente saudades imensas, Na África, naturalme nte, a tradição é a mesma. Menos pela vontade
4ue sente saudades imensas, e que tem abatimento.·· Ou, mais simples- dos chefes elo q ue pela imposição do costume . O despotismo do costume,
mente: "A Rosa ele Luanda, que se e nche ele sa udades, que se enche de de que falava Stuart Mil!. Costume dos pretos habituados com a exigência
saudades, e que tem quebramento! " pro tocolar dos seus sobas e antigos soberanos onipotentes. Falar imedia-
"Em kimbuncl o, a conjunção 'quando' corresponde a ki. Se não fosse tamente, ir ao encontro, dá uma impressão desairosa de humildade social.
o último qui, a coisa ficaria: 'A Rosa ele Luanda, quando se enche de Sir Hen1y Rider Haggard, q ue tão bem conhecia a África do Sul, já em 1885
saudades, tem quebramento! ' Se eu conhecesse mais alguns versos notava no seu King Solomon 's Mines: (fyou rush inlo conversation at once
seguintes, talvez me decidisse por uma tradução mais concreta. Enfim , é a Zulu. is apt to think you a person of litt/e dignity or consideration. A dis-
o que posso dizer .. ." plicência vagarosa e sorridente é a melhor solução. orei, apenas, que o
Os versos são unicamente esses. O final é um refrão. compasso ele espera, quando a autoridade é nativa, requer maior duração.
Rosa Aluanda, lê-lê! A majestade preta expressa pela lentidão o sentido do próprio poder.
Rosa Aluanda, lá-lá! He nry Koster, em 1814, registra um episódio na povoação de
É lógico um vivo processo deturpativo através da transmissão oral na Amparo, Itamaracá, evidenciando uma reação do temperamento indígena
retentiva tipicamente brasileira. As duplicações do qui tenda lenda são tido e havido como profissionalmente apático, resignado, tolerante. On
explicáveis po r essa deformação instintiva mas a linha melódica, coerente- o.f the Indians of Amparo met his master, the owner o.f the place, in the
me nte, acompanhou a letra da cantiga tro vejante. ji'eld near to the d welling-house. The Jndian took o.ff his own hat to speak
Creio que Óscar Ribas conseguiu o claro sentido emocional. A rosa to his master, but the same was not dane by his superior;· however the
de Luanda cheia de saudades, saudades, saudades, sente-se desfalecer, os fellow quickly performed this for him, saying: "When you speak to people,
músculos que se relaxam, evocando a lonjura ele mar e céu, afastadora ela take o.ffyour hat". The 1naster took this quietly, and when the conuersation
terra natal, o azul do imóvel firmamento, o verde mar de navegar... ended, his hat was returned.
O maestro Hekel Tavares manda-me a solfa que ele fixou, lindamen- "Quando se fala com gente, tira-se o chapéu!"
te, a mais linda flo r desse ramalhete angolano:
VI - Beber fumo
Como a fumaça do tabaco era deglutida, o fumar apareceu muito
posteriormente. Fumar, produzir fumo, e não queimar tabaco, era o enten-
d imento. O latim .fumare não podia prever a Nicotina tabacum, Linneu ,
tabago, tabaco, que Cristóvão Colombo testemunhou em 1492, em
Guanahani.
No Brasil, até o século XVII, o fumar era beber fumo . Creio ainda ser
do século XIX essa q uaclrinha que Pereira ela Costa recolheu no Recife:
Sinh'Aninha bebe j itmo Como o mascar, come r tabaco, fosse con hecid o mas em muito menor
No seu cachimbo ele prata, escala ele uso que o fumar, seria ma is lógico o e mprego elo U na acepção
Cada fumaça que bota ele ingerir, bebe r, porq ue a fumaça obtida se afastava dos sólidos para
É um suspiro que me mata!
aproximar-se dos líq uidos, no tadamente as baforadas espe sas e capirosas,
Nào é diverso o registo d os nossos cro nistas do século XVI. Falando evocadas po r Gabriel Soares de Sousa: "A folha d esta e1va, como é seca e
da ERVA SANTA, o taba co, o pad re Fe rnão Carclim d escreve o fuma nte ela c urad a, é muito estimada d os índios e mamelucos e dos portugueses, que
é poca : "Nesta terra se fazem umas cangueras ele fo lhas ele palma cheias bebem o fumo d 'ela, ajuntando muitas fo lhas d 'estas, torcidas uma com as
desta erva seca, e po ndo-lhe o fogo po r u ma pa rte põem a o utra na boca, o utras e metidas em um canudo ele folha de palma, e põe-lhe o fogo por
e bebem o .fumo .. . tê m po r gra nd e vício esta r rod o o d ia e no ite de itados u ma banda, e como fa z brasa metem esse canudo pela outra banda na
nas redes a beber.fumo." Não a pe nas os indígenas mas eram "os portuaue- boca, e so1vem-lhe o fu mo pa ra dentro até q ue lhe sa i pelas ventas fora. "
0
ses pe rd idos po r ela". Esse tragar e ra o beber f umo.
Na ling uagem le trad a beber e ra acompanha r com atenção, seguir com Viajo u o beher fumo para Angola. ão me consta que emigrasse para
desvelo. Be ber as palavras. Boire quelqu ·un les yeux. Havia em Portugal 0 outra qualq uer região africa na.
beber os ventos por alg ué m co mo sinônimo ele paixão, devota me nto afe- Heli Chatelain, reu nindo os seus FolksTales of A ngola (publicados em
tuoso, inte resse ele amor. O mesmo na Espanha, beber los vientos. o "píca- 1894), no conto "Ngana Fe nda Ma ria", ini.c ial da coleção, ouviu a frase:
ro" Ma rcos ele Obregón podia lame ntar-se em 1618: Y qué mayor pobreza Kunua kué makania, q ue o devia ter surpreendido. Só podia traduzir:
que andar bebiendo los vientos? d rink thine (was) tobacco. Beber tabaco? Registou em nota q ue todos os
Na Comédia do Cioso, ele Antô nio Ferreira (1528-1569), d iz a moça c ronistas brasileiros elo século XVI concordaria m: It seems dif.ficult to con-
Cla reta: "Po is o utro anela aqui bebendo os ventos... ·' E Luís ele Camõ es na ceive how tobacco ca n be a d rink. But in Kimbundo instead of saying TO
ca ntiga A Três Damas Que Lhe Diziam Que o Amavam: ' SMOKE TOBACCO one says TO DRINK TOBACCO . Smoke is classrfled with
the liquids. Naturalme nte para o preto africano, como para o indígena bra-
Uma faz-me juramentos
Que só meu amor estima; sileiro, o tabaco e ra de todas as aplicações. Moreove1~ tobacco-smoking is
A outra diz que se fina ; held by lhe A-mbundu to be a stimulant .for any physical exertion.
Joana, que bebe os ventos. Exatame nte como aind a no Brasil conte mpo râ neo.
No q uimbundo o fuma r é nua makanha. O verbo beber é nua, e
Diz-se també m beber os ares mas mode rnamenre. Assim o u vi nu ma tabaco será dikanha, fazendo o plural makanha. "Beber tabaco, beber
estória rimada de animais, q uand o e ra me nino :
fumo". U-pitima ame ra ba.
Calangro bebia os ares Mas o beber .fumo fo i e m Angola um modismo b rasileiro ou uma
Pela fi lha elo Papavento. simultaneid ade de hábito africano? Uma coincidência de técnicas?
No ro ma nce Fanga (Lisbo a, 1943), ele Alves Reclo l, constata-se a A Nicotina tabacum d ivulgou -se pela África Ocidental e Oriental nos
conte mpo ra neidad e elo uso e m Po rtugal, d esapa recido no Brasil: "Os finais do século XVI o u na centúria imediata mais p recisamente. Espalhou-
rapazes que bebiam. os a 1·es p or ela ... Antô nio Maçarico, q ue bebia os -se com tal ra pidez (como o a mendoim, Am.chis hypogaea) que as varie-
olhares po r ela ." dades fo ram julgadas produtos nativos. Antes do tabaco americano não
~sse _b~ber os ventos não dete rminaria o beber .fumo mas seria proces- creio que ne nhum africano conhecesse a espécie, apesar das afirmativas
so psicologico de aco mo dação verbal. Parece ter sido peculiaridade elo de Wie ner. Havia e fumava-se a Cannabis saliva, Linneu, haxixe, cânha-
po nuguês no Brasil po rq ue nào de parei me nção elo beber .fumo e m mo, pango, diamha, liamha, riamha, maconha, como dizemos no Brasil
Portugal. Peculiaridad e que o idio ma tupi també m condicio nava favoravel- o nde se multip licou e m pla ntio e vício, vinda do uso negro. O próprio
me nte. Fuma r, U-pitima, pe rmitiria a versào elo beber fu mo po r U ser tam- nome "ta baco" pela África de nuncia a origem ame ríndia , et-tobboo, tabba,
bé m o verbo "be be r". · tombaco, tamho, pela região central, em suaíle, qu igala, tabaco e mesmo

j 173
expressão. No estudo CABINDA VELHA fale i nesse mo tivo. Até e ntão des-
o português fumo, para os luchicongos. Mas em quimbundo é dikanha,
conhecia uma réplica dos Cho pes e Valengu es n'África Oriental, tigelas ele
makanha, rikanha, pouco disfarçando o macanha, maconha, o venenoso
made ira esculpidas com a mesma inte nção dos relevos fiotes ao norte de
cânhamo. Era esse o ta baco de Ango la antes que chegasse o verdadeiro,
Angola. Dora E. Earthy dedicou ao assunto uma rápida mas suficiente aná-
levado do Brasil pelo português que dele já não se separava.
lise no plano da informação: Note on the decorations on carved wooden
Divulgado pelo inte rcâmbio árabe, pelo Índico e descendo do .food-bowls .fronz South Chopiland (Preto ria, 1925). Alguns restos cabin-
Mediterrâneo, a dika nha fuma-se pelo cachimbo comum angolano, dianos fo ram divulgados pelo P. Joaquim Martins, C. S. Sp. , O Simbolismo
libueca, e com o vaso com água, como os na rg uilés orientais, e diz-se entre os pretos do distrito de Cabinda (Bole tim do Instituto d e Angola ,
mutompa. o a ntigo Congo Belga, no reino baluba de Mukenge, o rei n. 15, Lu anda, 1961). Aqueles que vi na coleção elo Pe. Manuelino de
Kalamba institu iu a riamba e m rito de culto social liame político fun - Oliveira não me parecem compreendidos.
dando os Bena-Riamba, "filhos d a maconha ", cot~o registou Her~1ann Devo ao P. Manuelino de Oliveira a foto e a justificação, com algum
von Wissmann (1853-1905), como o "Ve lho da Montanha" fizera no sécu- texto em língua fiote.
lo XI. Hassa n Ib n Sabah e mbriagava seus devotos com o haxixe , a mesma "Testo de panela fiote. 1°: Homem, com um braço amputado, é trans-
maconha ainda fumada no Brasil, e proveria "assassino" desses consum i- portado de tipoia . Ono kuanguka koko, na ui kuendila um kipoio. Ou seja:
dores de haxixe; ashoashin, hachchâchi. "O ind ivíduo com o braço amputado, vai ele tipoia. " 2°: Homem, com uma
O ra, a Cannabis sativa fuma-se e ngolindo a fumaça para o efeito pe rna amputada, a rrasta-se pelo c hão, arrimado a um bordão. Ono u kuan-
inebriante. A Nua-makanha, o "fumar" angola no de agora, não se referirá guka kulu, na ui liatila mu ikoko. Ou seja: "O indivíduo com a perna
precisamente à e ngolição do fumo da maconha, um beber-maconha, ante- amputada a rrasta-se pelo c hão, a rrimado a um bordão. " 3°: Campainha de
rior à Nicotina tabacum? meta l, de duas bocas de sino e sem badalo , que os cabindas tocam com a
O pre to africano fuma, masca e che ira o tabaco. Com a riamba , pango, percussão ele um pau zinho. Ngonge, mbembo fumo. Ou seja: "A campai-
apenas fuma ria. Mesmo a técnica de fumar através do vaso d 'água também nha, ngonge, é a voz anunciadora d as o rde ns ou da presença do Re i. "
passou ao Brasil e são conhecid os os recipientes bojudos o u oblo ngos de Análise: Veem-se, por vezes, coisas que parecem um contrassenso. É,
ba rro, destinados ao uso maconheiro. De q ualquer maneira, o essencial é a exatamente, o caso figurado pelo primeiro e segundo símbolos: quem te m
queima d a folha , com a sucção e deglutição da fumaça embriagadora. pe rnas, va i ele tipo ia, e quem não tem pe rnas, vai a pé ...
Não te nho elementos para saber se o verbo "fumar" nos vários idio - Teoricamente, de acordo; mas a vida não é feita d e ... teorias. Cada
mas bantos e sudaneses inclui a absorção d o fumo, o tragar ca racterísti- qual trata mas é d e se a rranjar o melhor, ou menos mal , que pode ...
co de um bom fumador de tabaco o u de maconha, esta mais demorada Com respeito a te r-se, na viela , mais o u me nos sorte, que fa zer? - Cada
qual é para o que nasce ... Como se pode ver pela campainha ngonge,
para ser expelida.
símbolo real entre os cabindas, o senhor que vai de tipoia é Rei! Ora, como
No quimbundo de Angola, onde o beber.fumo suge ria-me uma reper-
se sabe, "Quem manda, pode ! E ... está tudo dito. Que cada qual, portanto,
cussão d o U-pitima elo tupi, há de considerar-se o processo anterior da
se contente com a sua sorte e se arranje conforme pode. É assim a vida. "
diamba, ainda denunciado no próprio no me: dikanha, makanha, maconha. (a) Pe. Manuelino de Oliveira
De qualquer forma , coincidência o u repetição independente, é um
liame indiscutível entre Angola e Brasil.
Cabinda, 22 de junho de 1964.
VII - Um testo de panela fiote
Assim o Rei, sem braço, vai de tipoia. O vilão, sem perna, arrasta-se
A Congregação do Espírito Santo te m uma Missão Cató lica em no chão. O a nô ni mo esculto r fiote fixou o tema no rebordo ela tampa ela
Cabinda. É um cenário maravilhoso. O Padre Manuelino de Oliveira, C. S. sua panela. Po ucos o lhos haviam de ver o sile ncioso p rotesto, limitado na
Sp., mostrou-me sua preciosa coleção de restos de panelas fiotes, esculpi- simples exposição elo contrassenso. Cosi va il mondo ...
das com motivos de crítica social, com uma força ingênua e poderosa de

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174

~I
VIII - A Milonga no Brasil O TANGO MILONGA passou para o Rio Grande do Sul, onde se tornou
conhecido. I ào sei se alcançou o interior ela província, competindo com os
Pelo no rdeste d o Brasil milonga quer dizer conversa inútil , palavrea- bailes tradicionais, ou se se fixou nas cidades. O milongueiro gaúcho é idên-
do, embromação, perífrase vulgar... Deixem-se de milongas e embru- tico ao argentino. Milonga não é barulho, fa latório quente , discussão mas
lludas!" escrevia-se no Recife de 1829. O Dicionário do Folclore Brasileiro astúcia, destreza em palavras e modos, evitando ou dirimindo o problema.
o regisra. Assim, o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (1951)
Vocábulo do linguajar dos escravos está, praticamente, fora ele uso. regista: '"Milonga, s.f. (Bras. , Rio Grande do Sul) . Espécie ele música plati-
A docume ntação é velha e excele nte. Macedo Soares (1880): na, dolente, cantada ao som da guitarra o u violão; pl; (Bras.) (fig) mexeri-
"MTLO GA... só usado entre os negros, significando palavrada, palavras cos; manhas; dengues; desculpas malcabidas. MILONGUEIRO, adj . c s .m.
tolas o u in o lentes ." Beaurepaire-Rohan (1889): - "MILONGA, s.f. (Pern.): (Bras., Rio Grande do Sul). Que, o u aquele que canta milongas; (fig.)
enredos, mexericos, desculpas ma lcabiclas: Conta-me a coisa como ela se manhoso, dengoso; que , o u aqu ele que tem lábia. "
deu, e deixa-te ele milongas. ETIM. É vocábu lo de origem bunda. Mílonga Pereira da Costa, Vocabulá1·io Pernambucano: "Milonga- Tra palhada ,
é o plural ele mulonga e significa palavras (Saturnino e Francina). Em cer- enred o, embrulho; palavrório, rode io, desculpas de cabo de esquadra. "
tos casos pode ter a acepção de palavrório. egunclo Cannecatim, rem No Amazonas, milonga tem o utro e bem diverso sinô nimo. Barbosa
também a ig nificação ele questão." Rodrigues (Poranduba Amazonense, Anais da Biblioteca Nacio nal, fase. 2°,
Milonga, plural ele mulonga, em quimbundo vale dizer disputa verbal, 1886-1887, Rio de Janeiro, publicado em 1890) , foi o primeiro a revelar a
discussão, conversa acalorada, querela , insulto. Unica mente no plano oral. nova versão da milonga amazônica: Milonga. É termos africano imiscuído
Em Angola, a praça, átrio, terreiro destinado aos julgame ntos, decisões na língua geral e significa remédio, f eitiço. talismà. o conto '·J urupari e
processuais entre os nativos, deno minava-se Di-kanga dia mílonga, 0 as moças'·, a milonga do due nde estava escondida dentro da concha de
pátio elas questões. Como todo africano preto é o rador nato, deduz-se o um caramujo. Convergia, tematicame nte , para a puçanga, meizinha, amu-
pa lavreado antecede nte e consequente ao forma lismo judicial. Milonga é leto, objeto ele magia atacante o u defe nsiva, entre os mestiços amazô nico ·.
fato e é forma processual. Pela primeira vez no Brasil a milo nga toma forma concreta, material, sen-
He ii Chate lain registou: Milonga, pl. of Mulonga, Here the plural is sível, e não mais palavra o u veeme nte exposição verbal.
Segredo o u mistério, cobrindo aspectos da Umbanda que escapam ~~
used for the singular in a loose way qj' sp eaking, Mulonga means word,
compreensão racional , é o novo significado ele milonga no Rio ele Jane iro
speech, dispute, quarrel, lawsu.it, crime, qjfense, insult.
(Byro n To rres de Fre itas e Tancredo ela Silva Pinto, As mirongas de
Dessa acepção primária , Milonga provocou, não sei se unicamente no
Umbanda, Rio, 1953).
Brasil, o adjetivo Mifongueiro, manhoso, astuto, insinuante . Quem sabia
Em H. Capelo e R. Ivens (De Benguela às terras de laca , I, Lisboa '
argumentar, desculpa r-se ou suge rir, empregando habilmente a milonga,
1881), os nativos pediam aos viajantes: "Milongo, n 'gana ame... remédio ,
e ra n'lilongueiro. Transferira-se elo geral para o particular, já no nível ela
senhor me u!" É nessa mesma acepção o sentido do milongo, dado por Luí
elevação pessoal. Milonga podia ser chiste, pilhé ria espirituosa, graça
Figueira (Áji·ica Banto - Raças e Tribos de Angola. Lisboa, 1938): "As
e nvolveclora. Sempre inte ncional.
mulheres ambundas conhecem, na maio ria dos casos, os milongas, os
os países do rio da Prata, notadame nte na Argentina , popularizou-se
remédios inerentes ao sexo ..,
a MILONGA, TA GO MILO GA, MILONGUITA, bailado de par enlaçado,
Aí está o milongo, remédio africano no BrasiL
de melodia dole nte e cativante, com atitudes e passos va riados e coleantes.
O TANGO MILONGA teria ele Angola apenas o no me e não a coreografia.
Não existe, legitimame nte, dança africana ele homem e mulher enlaçados. IX - Publius Syrus em Fortaleza e Luanda
MILONGUETRO, n'Argentina, é o músico especialista nas milongas e tam-
bé m o dançador de milongas. Elegante, donairoso, flexível, sedutor. A Em Angola ouvi o provérbio: "Quem anela ele dois, anela depressa ... "
imagem disputadora e brigona da milonga angolana desapareceu. Há texto quimbundo em Missosso (1° vol. Luanda , 1961), coligido por

177
óscar Ribas: Njíla ia kiiadi, kíaibê: "caminho anelado por dois, desagradá- Há vários centos e toda gente conhece essa mania estranha de dar aos
vel não é. " fi lhos indefesos nomes extraordinários e cômicos.
À volta de 1919, Leonardo Mota recolheu nos versos elo cantador Anselmo Creio firmemente que nenhum o utro país do mundo se avanraja ao
Vieira ele ousa (Cantadores, Rio de Janeiro, 1921) em Fortaleza , Ceará: Brasil na concorrência dessa ridicularia denominadora. Fiz em 1940, por
ão tem outro cantadô ocasião do Recenseamento acio nai, uma boa provisão de asnices nomi-
Pra me ajudá um tiquim ... nais, irrecorríveis e inapeláveis porque os pais estão convencidos da des-
O cantá de dois é bom, lu mbrância irrecusável. Ninguém ignora pessoas equilibradas e cultas
O ruim é cantá sozim: imag inarem para suas crianças nomes inconcebíveis e fantásticos. Os
A gente, anda ndo ele dois, sacerdotes lutam obstinadamente contra a lo ucura , antepondo nomes
Encurta mais os camím .. . humanos às designações malucas. Um me u offíce-boy no Rio de Janeiro
Aulo Gelo (Noites Áticas, XVII, XIV) faz uma seleção de sentenças reti- chamava-se João Pipiriguaçu Oiapoque Mendonça. O pai, admirador do
radas das comédias de Publius Syrus: Sententiae ex Publii mímis selectae barão do Rio Branco, homenageara duas vitó rias diplomáticas do Chanceler
lapidiores. Publius, nascido na Síria, 80 anos antes de Cristo, foi levado a na defesa de nossas fronte iras. O padre impusera o João que, afinal, era
Ro ma como escravo e faleceu à volta de 21, primeiros anos elo governo ele cristão e comum, como era João um Jacareaçu Pindorama Guedes, sorve-
Augusto. Compôs as mimas, farsas burlescas, tornadas populares. Restam teiro no Pavilhão Mourisco, no meu tempo de estudante de Medicina.
algu ns fragmentos sob o título de SE TE ÇAS, citadas por Aulo Gelo. Júlio Essa técnica preferencial encontra em Angola semelhança nos mode-
César preferia-o a Laberius, então prestigiado pelo aplauso romano. Há vinte los, ré plicas que podem ser cópias inconscientes o u formas determinantes
séculos, Publius Syrus sentenciava: Comes jacundus in via pro vehiculo est. da mania brasileira. O exemplo histórico é provadamenre africano e o
Um companheiro conversador vale um carro na viagem ... brasileiro veio na suplê ncia devocional.
René Basset (Mille et un contes, récits & légendes árabes, I, Paris, 1924) Heli Chatelain cita Ngana Kamuanbatâ , gana Kamuanbelâ, equiva-
repete um refrão árabe: la conversatíon abrege la route. Informa de um lendo ao "Senhor Não me-Leve" e "Senhor Não me-Fale ". Óscar Ribas, no
enigma berbere : Porte-moi et je te p orterai (entretenons, et la route nous Ilundo, fala num espírito poderoso, ex-rainha do Congo, tia da deusa
paraftra p lus aisée). Hônji, chamada "Dona Maria Cumequeta de Máji de Guba", em po rtuguês,
Comparece-se o provérbio de Angola, "caminho andado por dois ... ", Dona Maria Reluzente de Óleo de Jinguba (amendo im). Alfredo de
com o nordestino do Ceará "a gente , andando de dois ... " Sarmento, no Sertões d'África, regista os nomes felizes dos ministros do rei
Vão juntos. Como os frades francisca nos na evocação de Dante de Congo, em julho de 1665: Ca listo Sebastião Castelo Branco Lágrimas da
Aligh ieri (Inferno, XXIII, 2-3): Madalena Ao Pé Da Cruz Do Monte Calvário , Geraldo Zilote Manuel
n 'andavam l'un dinanz i e !'a fi ro dopo, Arrependimento De São Ped ro No Côncavo Da Terra, Cristóvão de Aragão
como frati minor vanno per via. dos Vieiras da Feliz Memória, Miguel Tércio Pelo de Três Altos Para
Borzeguins Que Cobrem os Pés Del-Rei Meu Senhor, Rafael Afonso de
Ataíde Como Cedro do Monte Líbano ...
X - O nome bonito Lindos! ...
Afrânio Peixoto colecionou em Miçangas (Rio de Janeiro, 1931) longa
série de nomes inverossímeis e verídicos: Sindalfo Ca lafange Catolé da
Assunção Santiago, Comigo É Nove da Garrucha Trouxada, Francisco
Facada Sargento de Cavalaria, Abrilina Décima Nona Caçapavana Piratininga
de Almeida, Azarias Califrouchon Borges Neuplides Panteon , Lança-
-Perfume Rodometálico de Andrade, alucinantes.

179
..

ADENDO
Os óbitos re presentava m outros esplêndidos sítios para o cafuné. 'o
período q ue decorria entre o falecime nto e o cerimo nial da varriçào das
cinzas 2 , popularmente designado por comhaditôcua , as pessoas ~11nigas,

o• CA{UNÉ
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EM ANGOLA
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no prosseguimento do conforto ao lar enlutado, iam-se entretendo com
esse enganoso espio lhame nto. Mas só quando se palestrava, porque, de
noite - o único mo mento pe rmitido para se porem histórias e adivinhas -
que m se de ixasse ad o rmecer, pagava uma multa, imposta, por condena-
ção, pelo contador da narrativa.
Mas como o ócio a tudo favorece , o cafuné servia de pretexto para o
ÓSCAR RIBAS preencher. Assim, q ualquer lugar, mesmo ao sol, fazia jeito, muito bom
jeito - jeito para que m o p unha , jeito para q uem era p osto.
Esta informação prec iosa , a pri me ira notícia sobre o CAFUNÉ
em s ua te rra nata l, devo -a ao mestre ele Angola, Ósca r
Em Luanda , até po r volta de 1930, viam-se mulheres, q ue r no merca-
Be nto Ribas, e m janeiro ele 1958. Aproveite i-a do, quer nos chafarizes, estes localizados nos bairros humildes, pondo
parcialmente no Dicion á rio do Folclore cafunés, enquanto aguardavam a vez de sere m atendidas o u, como fre-
Brasileiro, c itando-a no estudo que quentemente sucede, mand riavam de sua conta . Em é poca mais remota, lá
neste volume dediq ue i ao CAFUNÉ. pelo ano de 1880, q uando ainda não existia a canalização ela água, as
Creio ser ind ispensáve l sua lavade iras, na praia, po rq uanto era no mar que se procedia a uma fase ela
d ivu lgação integral.
lavagem ela roupa , igualmente faziam o mesmo, e nq uanto ela secava. Não
Co nstituiu o cafuné uma inveterada prática ango lana, muito apreciada era um, nem dois grupos, mas vários. E então se acomo davam no solo, e
pela doce sono lê ncia despe rtada. Usaram-no ho mens e mulhe res, adultos no próprio solo se estiravam. E mesmo em casa dos amos, a criadagem
e crianças. Mas só as mulheres o aplicava m. A o peração compreende três femin ina, nas ho ras vagas, não se dispensava dessa volúpia.
pa rtes: a preparató ria, a ento rpecedo ra e a finalizante. a pre paratória, Embora a posição mais freq uente fosse a indicada , podia o paciente
friccio nava-se, com o indicador dire ito le ntamente suavemente aqui ali ficar deitado, ajoelha nd o-se o u acoco rand o-se, por detrás, a executante.
aco lá, em todo o couro cabeludo . N~ e nto rpeced o ra, à medida qu~ s~ Po r vezes, chegavam a catar-se umas po ucas, em fila ele reciprocidade,
esfregava, vergava-se o po legar respectivo, co mo que matando um piolho, excetuando a ú ltima, bem e nte ndid o, q ue não se beneficiava desse prazer.
daí se arrancando, co m habilidade, o estalido do suposto esmagamento . E Mas essa postura, como facilmente se depreende, não originava a total
na finalizante, co nseq ue nte me nte no final da fictícia catagem, a plicava-se, delícia que se devia fruir. Se, no tateame nto, a parecesse algum piolho, para
não uma mão, mas ambas, cada q ual em seu lugar. melho r sensação, era logo aí esmagad o. Contudo, se a operadora, po r
a prodigalização desse mimo o u passatempo, isso confo rme as circuns- re pugnância, o não quisesse fazer, limitava-se a retirá-lo e a entregá-lo ao
tâncias, a operado ra permanecia se ntada, de o rdinário em esteira o u luandol, seu portador, a fim de o matar, o u, vulgarmente, po r e ntre as unhas dos
com as pernas este ndidas, e o pacie nte, deitado, com a cabeça recostada no po legares, o u, ano rmalmente, po r entre os dentes incisivos, expelindo
de pois a saliva . É que, seg undo a filosofia dos que assim procedem, dos
seu colo. A hora mais propícia era a ela tarde, sobretudo quando o calo r
ape.rrava , ou, então, de noite, após o jantar. De dia, fora de casa, a uma som- q uais, pela co nstância da no rma, sobressaem os Quissamas, se o pa rasita
os havia mordido, também eles o deviam morder.
bra do quintal ou d uma árvore próxima . E de noite, também no quintal,
q uando a família, em ameno entrete nimento, quer de cavaqueira, quer de
passatempo, seroava, o u, tipicamente, sunguilava , mormente ao luar.
2 Rito q ue, para tranquilielade da alma de um defunto, consiste em se varrer a casa toda
ao canto elo prime iro galo, juntando -se a varredu ra à dos d ias anteriores, amontoada a
um canto do qu intal, desde o p assamento ao oitavo dia , nas pequenas cinzas, e do
Espécie de este ira, enro lando-se no sentido da largura . oitavo ao décimo quinto, na grandes cinzas.

182
Posto que sem re lação com o assunto, diremos ainda que aquele povo se emprega, em toda a Província. Com no mes difere ntes, pela diversidade
nào admitia q ue algué m, acide ntalme nte, lhes fi zesse notar a existência das línguas falada s nas v:lrias regiões. 1a área ele Benguela , entre os
dalgum piolho tresmalhado. Entào, a criatura a q uem se havia feito o re pa- Umbundos, semelha nte costume ira designa-se por xicuanli. o simulacro
ro. inclig nacla, apresentava-lhe uma quinda 3 , para que o atrevido comen- ela catagem, funcionam simu ltaneamente ambas as mãos: enquanto uma
tado r a enchesse de tais bichinhos. Como isso e ra inte iramente impossível, afaga a cabeça, a outra, através elo po lega r, vai arrancando os esta linhos.
era mo rto o u vendido como escravo. Só assim se rem ia tão grande injúria' Entre os Quiocos e Lundas, perte ncentes a o utras tribos, verifica m-se
Isto, o utro ra ... as seguintes particularidades:
O ca funé, segundo os apreciadores, para ser verdadeiramente apetito- 1 - Como o penteado das mulheres é muito complicado, decorrente-
so, devia estar fo ne, ou , conforme o vtdgo, g ritar. Esse efeito, no entanto, me nte moroso, se1vem-se elas ela dita usança , denominada coxoholeno,
não era o btido por todas as mulheres. Em resultado, existire m autênticas para adormecerem a pacie nte. Isto, claro, se for o utra mu lher a prepara r o
especialistas. Mesmo não gritando, o saber-se p ôr cafunés, na classe baixa, cabelo. Portanto, a paciente fica de itada. com a cabeça repousada no colo
constituía , a par da jimbumba 4 , um dos predicados femininos. Do mesmo ela o peradora.
modo que uma mulher sem jimbumha se assemelhava ao bagre, assim ela, 2 - Os muquíxis 7 , logo q ue para m ele dançar, correm, de mào em
desprovida dessa habilidade, não conquistava o título ele perfeita. riste, para o espectador mais próximo e, depois ele lhe prodigalizarem um
Conforme já d issemos, era à mulher q ue competia pôr cafunés. dos re feridos estalinhos, gritam: Munxoleno! Com este termo, pedem aos
Quando alguém os pretendesse, pedia a pessoa ínti ma. O homem, se fosse restantes assistentes q ue adormeçam, embora ma l e por pouco tempo,
solte iro, solicitava-os a uma pare nta. Se namorava, à conversada , à hora do enq uanto se pre param para nova exibição.
iclílio. E se casado, à cara-metade. Em regra , as mães, para ado rmecerem A sua extinção nos grandes centros, o u, mais precisamente, a sua enor-
as crianças, aconchegavam-nas a essa estalejante ca rícia. me decadência, deve-se a dois impo rtantes fatores: as d ificuldades econômi-
Antigamente, quando as grandes sen ho ras africanas, ele vestidos o u cas e a vertiginosa corrida para o Progre o. o primeiro caso, as criaturas
de pa nos, desejava m atrair o sono, o rde navam a uma o u duas escravas, ou dadas a esse prazer, com a maio r soma de trabalho verificada em toda parte,
mesmo discípulas 5, que as afagassem. Este ndidas na ca ma, esteira ou tape- deixa ram ele possuir a antiga largueza ele ócio - a base fundamental do
te, recebiam e ntão a suavidade do original narcótico. Mas só uma punha cafuné. E no segundo, as atuais gerações, pela aversão que sentem por tudo
os cafunés, po is a o utra lhe acariciava os dedos elos pés, puxando-os doce- que tresanda a tradicionalismo. nem seq uer pensam em tal coisa. Por isso,
me nte ele alto a baixo, um a um, para com a mesma brandura os dobrar a decadência; por isso, a aparente extinção. Daqui, o usar-se, só em reduzi-
no fin al ele cada esticaclela, sempre com o voluptuoso efeito elos estali- díssima escala, como que em desfolhamento ele saudades.
nhos. E ai daque la que, descuidadamente, se de ixasse vencer por Morfeu 1 Etimologica me nte, o cafuné- aportuguesamento elo q ui mbundo kifu-
Se a embalada patroa o u mestra 6 as surpreendesse, logo um junco, previa- ne, o verdadeiro termo local de emprego corrente - resulta ele kufunata:
me nte colocado à mão, as chamava à realidade. vergar, torcer. Compreende-se: pa ra a produçào do ruído, tem que se ver-
Quanto refe rimos, respeita ao setor em q ue se fala o quimbundo, isto ga r o polega r, q uer estala ndo sozinho , quer também com o indicador, pelo
é, de Luanda a Malanje. Mas o cafuné também se empregou, como ainda to que das duas unhas - a do po legar na elo indicador.
Lua nda, 25 de janeiro de 1958.
3 Espécie d e cesta .
4 Tatuagem.
5 Moça que entra para um serviço, não como serviçal, mas como aprendiz, a fim ele
melho r assimilação elos costumes europeus. Esta no rma , o ntem mais elo que hoje, é
muito usada pelos indígenas, e a ama, designada por mestra, o rdi nariamente a batiza,
e, tanto o u mais que os pais, a orienta pela vida fo ra.
6 Ver nota anterior. 7 Dançarino qu e se mascara ritua lmente.
Oo~As DE Luís DA C1MA~A CAscuDo
fuoLícADAs tELA GLoBAL EDíJO~A

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