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A Metamorfose

O mais famoso livro do escritor tcheco Franz Kafka não conta apenas a história do
homem transformado em um inseto monstruoso. Ao narrar a trajetória do caixeiro
viajante Gregor Samsa que ao acordar vê o próprio corpo metamorfoseado em um
bicho com “dorso duro e inúmeras patas” o escritor consegue, através de metáforas,
contextualizar a condição humana e os dramas psíquicos da sociedade. Considerando
o conceito usado no livro “Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas”, de que crítica sociológica é aquela que procura ver o fenômeno da
literatura como parte de um contexto maior, uma sociedade, uma cultura, a obra
enquadra-se como exemplo concreto da concepção da produção literária como reflexo
do contexto social de uma época.

O drama do personagem Samsa se assemelha à vida de um trabalhador comum que


exerce atividades burocráticas. Ao relatar as experiências do inseto que se esperneia
tentando voltar à posição natural, ele mostra as tentativas de se rebelar contra as
imposições da sociedade. O caixeiro-viajante só consegue romper com o
automatismo, a dominação e a alienação das atividades diárias e da rotina, na
condição de inseto.

A dimensão social que o autor dá para o livro se resume ao quarto do protagonista,


onde se desencadeia praticamente toda a história. Mas nem por isso a narrativa deixa
de associar a literatura como um fenômeno intrinsecamente ligado à vida social. A
influência social na obra vai além dos lugares mencionados no livro. O apelo está
muito mais para o contexto psicológico do personagem.

A obra foi escrita em 1912, dois anos antes do início da Primeira Guerra Mundial. O
clima de agonia e pessimismo mantido por Kafka é apontado por alguns autores como
relação direta com o cenário mundial da época em que a obra foi escrita. Apesar de ter
sido escrita no início do século XVII, a obra permanece atual porque explora temas
característicos da sociedade contemporânea, como a crise existencial, a
desesperança do ser, pessimismo, a ausência de resposta, a solidão, impotência e a
fuga temas recorrentes da literatura de Franz Kafka.

A arte tanto é influenciada pela sociedade quanto a influencia. A influência da


sociedade na obra aparece tanto na superfície do texto (descrição de casas, roupas,
hábitos, etc) quanto na caracterização das personagens (sua psicologia, seus
preconceitos, ambições). A influência da obra na sociedade acontece porque os
indivíduos que lêem o texto recebem dele certa influência que pode traduzir-se na
prática, mudando de alguma maneira o comportamento dos leitores.

A maneira como a história se desenrola proporciona uma imersão de quem a lê. O


atraso para o trabalho leva o chefe de Samsa a ir até a casa do funcionário. A demora
obriga a família e o chefe a abrir a porta do quarto, quando se deparam com uma
barata gigante. Um outro aspecto a ser considerado é que apesar de em nenhum
momento da obra o autor fazer referência ao nome do inseto ao qual Samsa foi
transformado, o leitor subentende que se trata de uma barata. A descrição
pormenorizada garante condições para essa interpretação. O fato de não haver uma
menção explícita à barata também reforça as sutilezas usadas pelo autor para abordar
o assunto.
Após a leitura de A Metamorfose, pode ficar com uma incômoda sensação ao refletir
sobre as contradições que envolvem as relações humanas. Quando a família descobre
a transformação vivenciada por Samsa, ele passa a ser desprezível e deve ser
eliminado. Mesmo quando a irmã mais nova começa a se aproximar dele com o
objetivo de alimentá-lo, não esconde as esperanças de que voltasse à forma humana.

O problema e desconforto gerado pelo protagonista para a família se resolvem quando


a barata morre. A partir de uma abordagem sociológica, a sensação de alívio da
família com a morte de Samsa faz questionar sobre como os interesses pautam a
convivência. Como o peso carregado pelo pai, a mãe e a irmã mais nova, que
dependiam do dinheiro de Samsa para o próprio sustento, só acaba com o fim do
inseto, cria-se a impressão de que ele só era bem quisto quando garantia um retorno
prático, quando não estava impossibilitado de trabalhar e repassava a própria
remuneração a eles.

Na medida em que não pode mais produzir renda, não serve para mais nada. Não é
uma mera alusão à sociedade capitalista. Trata-se de uma forma cruel, mas talvez
verdadeira de retratar a frieza e falta de escrúpulos do ser humano diante de
situações de conflito. Quando a família passa a trabalhar e não depender mais dele,
os problemas se resolvem. E ela faz questão de se livrar dele, como mostra esse
trecho da obra:

“... quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao seu lado e
rolou diante dele. Era uma maça; a segunda passou voando logo em seguida por cima
dele. Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era inútil, pois o pai tinha
decidido bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê, ele havia enchido os bolsos de
maçãs e, por enquanto, sem mirar direito, as atirava uma a uma. As pequenas maçãs
vermelhas rolavam como que eletrizadas pelo chão e batiam umas nas outras. Uma
maçã atirada sem força raspou as costas de Gregor, mas escorregou sem causar
danos. Uma que logo se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele.
Gregor quis continuar se arrastando, como se a dor, surpreendente e inacreditável,
pudesse passar com a mudança de lugar; mas ele se sentia como se estivesse
pregado no chão e esticou o corpo numa total confusão de todos os sentidos...”

As maçãs arremessadas pelo pai ao filho demonstram toda a raiva e descontrole em


lidar com o problema. A cena não transparece apenas a dor física de Samsa, ao ser
atingido pelas maçãs, mas o sofrimento por não ser mais aceito pela família, sendo
rejeitado.

A Metamorfose explora a solidão, os sentimentos de exclusão e as crises do homem


contemporâneo. Por abordar com profundidade aspectos sociais, é uma referência da
literatura universal.

O mundo imaginário e surreal que marca as obras do autor faz surgir o termo kafkiano,
característico de todo esse universo desconhecido e único. Em A Metamorfose, o
fantástico norteia a história, mas uma leitura atenta pode revelar que a abordagem
registrada na obra pode não ser tão imaginária como se pode pensar, em um primeiro
momento. A impotência de Samsa perante ações que antes lhe eram rotineiras como
sair da cama ou caminhar, faz uma alusão às fraquezas humanas diante de pressões
sociais. Denuncia como a sociedade restringe o valor do ser humano ao que produz e
às aparências.

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