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1 Introdução
A incessante busca por maiores índices de arrecadação tributária por parte das
autoridades fiscais tem fortalecido teorias que buscam superar o caráter subótimo da
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regras, a que se refere Frederick Schauer, permitindo, por vezes, a tributação em
situações que a regra de competência verdadeiramente não alcança ou, ainda, que as
autoridades fiscais requalifiquem o ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte.
Não é raro que o ente tributante depare com uma nova realidade econômica (ou uma
nova faceta de uma realidade já conhecida) e proponha medidas que busquem aumentar
o campo semântico de um determinado signo utilizado nas normas de competência
tributária, que faça remissão a conceitos de direito privado, desprezando os limites
semânticos ínsitos àquele conceito, na delimitação que recebe em seu ramo de origem.
Em outras hipóteses, busca a autoridade fiscal se valer de institutos próprios do direito
privado para justificar, em matéria tributária, a requalificação de fatos ou atos praticados
pelo contribuinte para outros, sobre os quais incide alguma norma tributária.
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
A despeito da controvérsia existente nesse tema, a nosso ver, houve uma ampliação de
um conceito de direito privado incorporado na legislação tributária, apenas para permitir
que a capacidade arrecadatória dos Estados se amoldasse à economia digital. Não é
necessário dizer que conferir limites mais amplos e fluidos em situações bem delimitadas
pela Constituição Federal em matétria tributária, sobre gerar insegurança jurídica, abre
espaços para a intensificação de conflitos de competência entre os entes tributantes e
guerra fiscal.
Enfrentar tais questões, com vistas à delimitação do espaço para o trânsito entre o
direito tributário e o direito privado, é o desafio que se nos apresenta.
2 O trânsito entre direito tributário e o direito privado
Pelo contrário, um mesmo fenômeno é recortado tantas vezes quanto necessário para
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regular condutas intersubjetivas juridicamente relevantes. Cite-se,
exemplificativamente, o fato de um determinado prestador de serviço receber certo
montante pecuniário do tomador: para o Direito Civil, haverá o adimplemento da
obrigação por uma das partes; para o Direito Tributário, tratar-se-á de rendimento
recebido que comporá a renda do contribuinte; para o Direito do Trabalho, esse
pagamento poderá servir como indício para a verificação de uma relação de trabalho na
prática; etc. Tudo isso a demonstrar que um determinado fenômeno jurídico comporta
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
“Na verdade o Direito é uno. Nenhum dos ramos do Direito é inteiramente autônomo,
desvinculado dos demais. Todavia, em virtude das peculiaridades das relações jurídicas
de cada área de atuação, as regras jurídicas assumem características especiais, e
também o intérprete deve atentar para o verdadeiro sentido da norma, sem o quê, não
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será alcançado o objetivo colimado”.
Daí porque também uma unicidade de signo não significa a unidade de significado. A
eventual convergência de significado, conquanto seja possível, e até mesmo salutar, não
é necessária. Dependerá, fundamentalmente, se o legislador se valeu de técnica de
remissão, referindo-se e fazendo uso de significados preexistentes em outro ramo do
direito, ou se, visando conferir um tratamento mais adequado aos objetivos específicos
daquele ramo do direito, optou o legislador a introduzir um conceito autônomo, ainda
que sob a designação comum de outro ramo. Exemplo emblemático, nesse sentido, é a
prescrição e decadência no direito tributário que possuem regramento próprio e distinto
daquele existente no direito privado.
Em síntese, uma mesma realidade social é captada de formas distintas pelas diferentes
ciências do conhecimento humano ou, dentro de uma mesma ciência, pelos diversos
ramos que a compõem. Isso implica que qualquer pretensão de unicidade de
tratamentos ou significados a um determinado signo não é verdadeira. A aproximação
interdisciplinar tem o mérito de reconhecer a contribuição de uma abordagem sistêmica
para a investigação de um determinado objeto, sem, contudo, ignorar que as
particularidades e objetos de cada ramo jurídico poderão exigir diferentes tratamentos a
um determinado objeto do mundo fenomênico ou a atribuição de significados distintos a
um mesmo conceito homônimo. De idêntica forma, o exame dos conceitos de direito
tributário exige a consideração da unicidade do ordenamento jurídico, bem como as
especificidades do próprio direito tributário em relação ao ramo do direito com a qual
aquele está se relacionando.
2.2 A inter-relação entre direito tributário e o direito tributário no direito comparado
Muito se tem discutido, mundo afora, sobre os limites existentes no trânsito entre direito
privado e direito tributário, bem como a amplitude da zona de intersecção entre esses
dois ramos do direito. Pioneiro, nesse sentido, foi o debate travado entre François Geny
e Louis Trotaba, que sintetiza as duas principais posturas existentes neste tema.
De um lado, Geny, embora reconhecesse que não haveria propriamente uma relação de
hierarquia ou supremacia entre aqueles dois ramos do direito (mas funções distintas e
uma “colaboração necessária”), sustentava que o legislador, ao estruturar as hipóteses
de incidência tributária, deveria agir de forma “sábia”, respeitando a organização jurídica
preexistente e com ela se harmonizando. Daí concluir que, em regra, o direito tributário
deverá respeitar as formas e conceitos de direito privado, salvo se houver, em seu texto
ou em seu espírito, algum fator que imponha uma deformação ou desvio daquele
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significado.
De outro lado, Trotabas pugnava pela existência de regras especiais de direito tributário
que, consequentemente, valiam-se de conceitos próprios. A única exceção seria caso se
estivesse diante de uma lacuna, hipótese em que caberia ao intérprete decidir se deverá
haver a sujeição à regra existente no direito privado em tal ocasião. Em suas palavras,
“a lei fiscal (...) tem a faculdade de regular, a seu modo, situações jurídicas, e que,
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
quando é omissa, no caso de se apreciar uma situação jurídica em matéria fiscal, não é
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necessariamente a lei civil a que mais convém seja aplicada”.
Ilustrativo é o que ocorreu na Alemanha, no século XX. Como relatado por Heinrich
Kruse, até a Primeira Guerra Mundial, os tribunais alemães consideravam evidente que a
autonomia da vontade privada regia todas as relações humanas, devendo prevalecer,
inclusive, no âmbito do Direito Público. Após esse período, passou a prevalecer a posição
de Enno Becker, segundo a qual deveria se considerar “a finalidade e o significado
econômico do fato tributário” para a interpretação da lei tributária, não existindo a
necessária vinculação com os conceitos de direito privado utilizados pela legislação
tributária no antecedente da norma de incidência, salvo nas hipóteses em que o
legislador tributário elegeu como fato gerador a realização de um negócio jurídico.
No final dos anos 50 e durante os anos 60, a tese do primado do direito civil passou a
contar com o apoio dos tribunais alemães, tanto que a jurisprudência do Tribunal
Constitucional Alemão era firme no sentido de que o direito civil e o direito tributário
seriam intimamente vinculados. Entretanto, não demorou para que os tribunais
voltassem a aplicar as ideias de Enno Becker, sobre a consideração econômica.
Ainda de acordo com Kruse, atualmente não se sustenta que conceitos idênticos de uma
mesma lei sejam necessariamente interpretados de forma idêntica ou que conceitos
idênticos de leis diferentes devam a priori ser interpretados de forma idêntica. O
contexto, a finalidade da lei, e todas as outras razões imagináveis, poderão justificar, ou
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até mesmo obrigar, que conceitos idênticos sejam interpretados de forma distinta.
Vê-se que, hoje, portanto, prevalece no ordenamento jurídico alemão uma posição
intermediária que, sem desconhecer a relevância do direito privado na conformação do
direito tributário, reconhece autonomia ao último. De uma forma geral, essa tem sido a
posição adotada também em outros países.
Willhelm Hartz sustenta que a incidência da norma tributária não deve se condicionar à
validade dos fatos realizados pelos contribuintes, mas, sim, se os atos e negócios
jurídicos realizados, conquanto defeituosos, produziram efeitos entre as partes. Assim,
fenômenos do direito civil defeituosos ou nulos não são, pois, simplesmente irrelevantes
para o direito tributário, sob pena de a carga tributária “ficar refém da habilidade dos
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indivíduos para suprimi-la”.
Também nesse sentido, Dino Jarach traz interessantes ponderações sobre o tema.
Afirma o autor não haver uma submissão do direito tributário ao direito privado,
tampouco exige-se que possuam uma linha coincidente, tendo em vista que ambos
regulam relações jurídicas distintas e, portanto, não é correto assumir a existência de
uma supremacia de um sobre o do outro. No entanto, sustenta-se que a interpretação
do direito tributário deve levar em consideração a proximidade entre direito tributário e
Direito Público, em virtude da natureza da relação jurídica que disciplinam, aplicando-se
princípios que sejam comuns a ambos. Apenas quando isso não for possível, deve-se
buscar princípios gerais de direito que sejam aplicáveis à matéria, tendo em conta a
finalidade, o propósito e o significado das normas tributárias e das instituições que se
busca regrar. Somente quando nenhum desses procedimentos permite a interpretação
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da norma tributária é que se deve aplicar supletivamente o direito privado.
Ramon Valdes Costa também afasta uma prevalência a priori do direito privado,
defendendo que a vontade das partes, válida para que o negócio surta efeitos dentro do
direito privado, não deve produzir efeitos tributários, pois estes dependem
exclusivamente da lei (obrigação ex lege). Em sua visão, o legislador tributário não tem
em vista a natureza ou estrutura jurídica do fato tributário quando cria a norma de
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
Comum a todas essas referências doutrinárias é o fato de que tem havido um esforço
para reconhecer a autonomia do direito tributário em relação ao direito privado, sem,
entretanto, pugnar pelo seu absoluto isolamento. Não se nega a possibilidade de
comunicação entre as camadas de linguagem que compõem cada subsistema jurídico, e
mais especificamente entre direito tributário e direito privado. Entretanto, reconhece-se
haver limites para a intertextualidade entre esses dois ramos do direito, havendo três
caminhos possíveis a ser trilhados pelo legislador tributário ao se utilizar de conceitos de
direito privado: (i) a lei tributária pode se utilizar de conceitos de direito civil, fazendo
remissão às normas ou significados próprios daquele ramo do direito (aplicação
analógica); (ii) a lei tributária se vale dos conceitos de direito civil, mas expressamente
modifica seu sentido e alcance em matéria tributária (transformação); e (iii) a lei
tributária se refere a conceitos homônimos do direito privado, mas não faz remissão ao
sentido e alcance das normas de direito privado, tampouco declara expressamente a
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pretensão de construir um conceito próprio para fins de aplicação da lei tributária.
Portanto, sem desconsiderar existir um espaço para que haja a intersecção entre direito
tributário e direito privado, não se deve olvidar as precisas lições de Ezio Vanoni de que:
“uma identidade absoluta entre os conceitos de direito tributário e de direito privado não
existe e nem pode existir, porque não pode existir identidade absoluta de objetivos entre
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Direto Privado e direito tributário”.
2.3 O direito tributário e o direito privado no direito brasileiro
No Brasil, o tema tem sido amplamente debatido, como, de resto, ocorreu no mundo
afora. Tradicionalmente, sustentava-se que, embora o aplicador do direito deveria colher
as características do fato gerador na disciplina jurídica da qual a sua definição foi
tomada, era fundamental a consideração dos princípios fundamentais de direito
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tributário e, entre eles, estaria a interpretação econômica, reconhecendo existir uma
prevalência do direito tributário sobre o direito privado, uma vez que o critério decisivo
não será a identificação das características do fato gerador na disciplina jurídica de
origem, mas, sim, a “finalidade e o significado econômico do fato tributário”.
Entretanto, tal posição foi combatida por parcela significativa da doutrina que, pugnando
pela prevalência dos conceitos de direito privado sobre o direito tributário, sustentava
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ser incabível a interpretação econômica em nosso sistema jurídico. A partir daí,
passou-se a sustentar que o direito tributário seria um “direito de sobreposição”, na
medida em que as normas de incidência tributária colheriam atos ou fatos de
particulares para figurar na hipótese normativa, reafirmando-se a ideia de que haveria
uma supremacia prima facie do direito privado.
Nesse sentido, João Francisco Bianco sustenta que o direito tributário “é aquele direito
de sobreposição, é um direito que se sobrepõe ao direito privado para dele extrair o
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conceito e regular os efeitos tributários decorrentes”. Se assim é, acaso a legislação
tributária se valha de conceitos próprios de direito privado sem explicá-los ou defini-los,
presume-se que os conceitos foram utilizados na legislação tributária na exata dimensão
e sentido a eles conferidos pelo direito privado, prevalecendo aquele significado definido
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exatamente por seu ramo de direito.
Daí não merecer reparos a precisa advertência de Paulo Ayres Barreto, no sentido de
que:
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
Isso demonstra não ser óbvia nem automática essa necessária inter-relação entre direito
privado e direito tributário. Como aponta Hugo de Brito Machado, não há uma autonomia
do direito tributário em relação ao direito civil, mas a natureza das relações disciplinadas
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em cada ramo jurídico exige que seja conferido tratamento especial a cada um deles.
Ou seja, cada relação jurídica é regida por regras e os princípios informadores de seu
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respectivo ramo do direito que, em face de sua especificidade, devem ser aplicados.
Assim, vê-se que as diferenças ínsitas de cada ramo do direito impede que haja uma
comunicação fluída e sem amarras entre seus conceitos e institutos. Em outras palavras,
os ramos didaticamente autônomos do direito não se relacionam entre si como vasos
comunicantes porosos dentro de um grande sistema – i.e., o Direito –, mas, antes,
consubstanciam múltiplos sistemas autônomos, abertos à comunicação entre si, desde
que observados os princípios e regras específicos de cada um no momento da “tradução”
de um determinado conceito ou instituto para o outro.
Na visão de Humberto Ávila, essa opção da Constituição brasileira afasta a tributação por
meio de princípios, o que deixaria parcialmente aberto o caminho para que o Estado
pudesse tributar quaisquer fatos que, a seu modo de ver, seriam condizentes com a
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promoção dos ideais constitucionais. Em outras palavras, o tratamento minucioso na
discriminação de competências tributárias, em âmbito constitucional, somente autoriza
que haja tributação em conformidade com as permissões expressas contidas em suas
regras.
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
Eis o sentido do art. 110 do CTN (LGL\1966\26), que veda que a legislação
infraconstitucional altere o significado de conceitos de direito privado utilizados na
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
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discriminação de competência tributária entre os diversos órgãos. Ainda que, em rigor,
sua positivação não fosse necessária, já que a interpretação das normas de competência
tributária decorre de matéria constitucional, o dispositivo é elucidativo para reforçar a
rigidez do sistema tributário nacional e a impossibilidade de que, a pretexto de se
ponderarem princípios e valores caros ao ordenamento jurídico, amplie-se
indevidamente o âmbito de aplicação das regras de competência constitucionais.
Embora sejam os dispositivos mais comumente citados sobre o tema, há ainda outros
importantes dispositivos no próprio código tributário que confirmam o que foi
sustentado. Inicialmente, sendo o fato gerador da obrigação tributária “a situação
definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (art. 114 do CTN
(LGL\1966\26)), o próprio legislador pressupõe a adoção de um significado pela lei
tributária que permita uma precisa identificação da hipótese normativa, e isso apenas é
possível por intermédio da utilização de conceitos. Ademais, também no art. 116, II, do
CTN (LGL\1966\26) o legislador reconhece que, nas hipóteses em que houver a previsão
de um negócio jurídico (doação, compre e venda, prestação de serviço etc.) no
antecedente normativo, o fato gerador se realizará a partir do momento de sua efetiva
constituição, o que demanda igualmente uma aproximação conceitual.
Assim, tanto sob uma perspectiva doutrinária quanto sob a perspectiva do direito posto,
parece-nos acertado concluir pela adoção de conceitos rígidos e determinados na
configuração das regras de competência tributária, sem a qual correr-se-ia o risco de
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retirar a rigidez, traço próprio de nosso sistema tributário.
Essa constatação é decisiva para o tema do planejamento tributário. Não há uma única
estrutura jurídica para cada atividade econômica do contribuinte. Se isso é verdadeiro,
há de se reconhecer existir um espaço para que o contribuinte possa escolher qual a
forma jurídica (e sua respectiva tributação) mais adequada para seus negócios, e que
não poderia ser desconsiderada pelas autoridades fazendárias apenas porque gera uma
menor ou nenhuma tributação, uma vez que todos os fatos jurídicos que legitimam a
pretensão de tributar são precisamente delimitados no altiplano constitucional, não
havendo, fora daquelas hipóteses, direito subjetivo do ente público à tributação.
As duas opções são juridicamente válidas e possíveis, não se confundindo e não havendo
qualquer preferência de nosso ordenamento em relação a alguma delas,
especificamente. Optando o contribuinte pela primeira, sujeitar-se-á, em virtude da
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consolidada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (cujo mérito, aqui, não se
discute), ao ICMS por se considerar que tal operação equiparar-se-ia a uma operação
mercantil; entretanto, optando pela segunda opção, haveria claramente uma cessão de
direitos, não tributada por nenhum imposto em nosso ordenamento jurídico.
Inicialmente, importa esclarecer que, embora a qualificação dos fatos faça parte do
processo de interpretação, optamos por fazer referência à interpretação das normas de
competência constitucional, enquanto atividade de compreensão dos limites do campo
semântico possível dos signos constitucionais, em contraposição ao processo de
qualificação, que se trata da subsunção de um determinado fato à norma jurídica. A
distinção se dá apenas como uma tentativa de evidenciar que, no primeiro, há uma
preocupação com os limites normativos em abstrato da norma de incidência tributária e,
no segundo, que a preocupação será no momento da interpretação/aplicação da norma
ao caso concreto.
Dito de outro modo, à míngua de regra jurídica que obrigue o contribuinte a adotar o
caminho tributariamente mais oneroso, deve prevalecer o princípio de que ninguém
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estará obrigado a fazer algo sem que lei o estabeleça. Se a elisão tributária é um
direito subjetivo assegurado ao contribuinte de, por meios lícitos, evitar a ocorrência do
fato jurídico tributário, reduzir o montante devido a título de tributo; ou postergar a sua
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incidência, seus limites deverão ser definidos em estrita consonância com o
ordenamento jurídico de referência, justamente porque os limites da licitude – e,
portanto, da amplitude do exercício da liberdade gerencial do contribuinte – variam em
cada sistema jurídico, de acordo com suas regras e princípios positivados.
A pergunta que se faz, portanto, é de que forma e em que medida poderá a autoridade
fiscal legitimamente desconsiderar os negócios jurídicos praticados pelo contribuinte e
qualificá-los como outro diferente, sujeito a uma carga tributária distinta, por vezes mais
onerosa.
Nada obstante, é comum observar que, por vezes, a desqualificação dos atos praticados
pelo contribuinte é acompanhada dos mais diversos argumentos e institutos, que nem
sempre guardam completa aderência com o sistema tributário brasileiro, tais quais a
figura do propósito negocial, do abuso de forma, da fraude à lei etc. Não cabe, neste
estudo, estudar individualmente cada uma dessas figuras, bastando apontar que,
verificada sua ocorrência, embora possam ser desconsideradas no que tange aos seus
efeitos no âmbito do direito privado (ilícitos civis), o mesmo não se dá necessariamente
em relação aos seus efeitos no direito tributário.
Entendemos que a ocorrência dos ilícitos civis, por sua vez, dista de ser irrelevante.
Atuam, em verdade, como indícios de simulação ou dissimulação, nunca sendo
suficientes, por si, para se desconsiderar atos ou negócios jurídicos celebrados pelo
contribuinte em matéria tributária, ou serão relevantes apenas aos fatos geradores que
fazem referência a situações jurídicas (art. 116, II, do CTN (LGL\1966\26)), casos em
que eventuais vícios de nulidade nos atos ou negócios jurídicos impõem a consideração
do ato ou negócio jurídico efetivamente praticado.
Três são as razões que nos conduzem ao caminho proposto: (i) o direito civil é
informado por princípios e regras radicalmente distintos do direito tributário,
baseando-se num modelo de concreção fundado em princípios como a eticidade,
sociabilidade, operabilidade, enquanto que o direito tributário opera mediante um
sistema fechado, fundado em regras rígidas, que prestigia, sobretudo, a legalidade e
segurança jurídica; (ii) fundamentalmente, não há previsão normativa específica, em
nosso ordenamento jurídico, para que haja a desconsideração de negócios jurídicos
quando verificadas qualquer uma daquelas figuras ou, ainda, a positivação de uma
norma geral antiabuso; e, ademais, (iii) nem todos os antecedentes de normas de
incidência tributária abrange um ato ou negócio jurídico, nos quais sua validade seja
requisito fundamental para a incidência da norma, mas faz, por vezes, referência a uma
fato de conteúdo econômico (renda, propriedade etc.) que independe da licitude dos
atos ou negócios que conduziram à realização daquele fato.
Portanto, no ordenamento jurídico pátrio, não é plena a liberdade para o aplicador da lei
se valer de institutos de direito privado para requalificar planejamentos tributários
conduzidos pelo contribuinte. Por força dos limites normativos à elisão tributária, o
aplicador do direito deve perquirir sobre a ocorrência de simulação ou dissimulação,
como condição fundamental para a desconsideração do ato ou negócio jurídico
alegadamente praticado pelo contribuinte. A constatação de ilícitos civis, por sua vez, é
relevante ao fornecer indícios da ocorrência de um ato simulado.
É importante salientar, também, que se trata de ilícitos civis, e não de ilícitos tributários.
Ou seja, as noções de “abuso de direito”, “abuso de forma” ou “fraude à lei”, são
relevantes na medida em que apontam que o negócio jurídico supostamente alegado
pelo contribuinte verdadeiramente não ocorreu ou ocorreu de forma diversa. Entretanto,
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seus impactos nos limites ao planejamento tributário
não nos parece possível sustentar a existência de tais figuras, num sentido próprio e
específico, aplicável ao direito tributário.
Como aponta Luís Eduardo Schoueri, tais figuras não seriam capazes, por si, de
fundamentar medidas da Administração Pública de contenção de planejamentos
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tributários: (i) em relação ao abuso de direito, previsto no art. 187 do CC, não se
atinge um direito alheio – requisito para esta figura – pela economia tributária
decorrente do planejamento tributário legítimo, na medida em que não há direito
subjetivo ao tributo sem a ocorrência do fato gerador; (ii) no que se refere ao abuso de
formas (mas sem que dela decorra uma simulação ou dissimulação), também não
fundamentaria por si a desconsideração de atos ou negócios jurídicos pelo contribuinte,
porque implicaria tributação por analogia ou, ainda, conferir uma eficácia positiva ao
princípio da capacidade contributiva que ele, verdadeiramente, não possui; e (iii) no
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tocante à fraude à lei, prevista no art. 166, VI do CC, haveria significativa dificuldade
para sua aplicação, na medida em que o planejamento tributário legítimo não violaria
uma lei imperativa na seara tributária, porquanto não há nenhum enunciado prescritivo
que obrigue o contribuinte incorrer no fato gerador dos tributos, só surgindo a obrigação
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tributária pela ocorrência do fato gerador.
Se isso for verdadeiro, então se ratifica nossa posição neste trabalho, no sentido de que
há limites para a aplicação de institutos de direito civil que pudessem fundamentar uma
qualificação dos fatos distinta pela Administração Tributária. A utilização de institutos de
direito civil será relevante, quando apontar que o negócio jurídico praticado pelo
contribuinte não é válido, indicando a efetiva ocorrência de simulação ou dissimulação.
De outro lado, não cabe a aplicação de tais institutos civis diretamente sobre a legislação
tributária, isto é, como ilícitos tributários que, por si, poderiam justificar a
desconsideração de atos ou negócios jurídicos do contribuinte.
A pretensão das Administrações Tributárias de que, para cada negócio jurídico, existe
uma única via tributária aceitável, não corresponde com a realidade viva das empresas,
cujo cotidiano exige, essencialmente, a tomada de decisões, por vezes tomadas em
torno de incertezas e risco, visando à prosperidade da empresa, como, de resto, já
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enfatizou Joan-Francesc Pont Clemente. Se isso é verdadeiro, é possível afirmar que,
para atingir um determinado resultado econômico, não há apenas um único caminho
previsto pelo ordenamento jurídico que possa ser considerado como “correto”, mas
vários, cada um com seus respectivos e específicos efeitos jurídicos.
A escolha entre um deles, ainda que seja mais favorável sob o ponto de vista tributário,
sobre não ser proibida (ilícita), é pressuposta pelo ordenamento jurídico, como
determinam os arts. 153 e 154 da Lei 6.404/1976, que exigem do Administrador não
apenas zelo na administração das empresas, mas que busque, ao exercê-la, alcançar os
fins e os interesses da companhia.
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2 Cf. STF. ADI 1.945 MC, Rel. Min. Octavio Gallotti, Rel. p/acórdão: Min. Gilmar Mendes,
Tribunal Pleno, j. 26.05.2010, DJe 11.03.2011.
5 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 4. ed. São Paulo:
Noeses, 2007. p. 122-124.
6 Cf. BARRETO, Paulo Ayres. Ordenamento Juridico e Sistema Juridico. In: CARVALHO,
Paulo de Barros (org.). Construtivismo lógico semântico. 1. ed. São Paulo: Noeses,
2014. p. 267.
7 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 3. ed. São
Paulo: Noeses, 2009. p. 194-196.
8 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 3. ed. São
Paulo: Noeses, 2009. p. 195.
10 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 32.
12 Cf. JARACH, Dino. Finanzas públicas y derecho tributario. 3. ed. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1996. p. 398.
15 Cf. TROTABAS, Louis. Ensaio sobre o direito fiscal. Revista de Direito Administrativo.
v. 26. Rio de Janeiro: FGV, 1951. p. 38-47.
16 Cf. KRUSE, Heinrich Wilhelm. Lehrbuch des Steuerrechts. Band I. Allgemeiner Teil.
München: C. H. BECK’SCHE, 1991. p. 20-22.
18 Cf. JARACH, Dino. Finanzas públicas y derecho tributario. 3. ed. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1996. p. 398-399.
21 Cf. VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. Rubens Gomes de
Sousa (trad.). Rio de Janeiro: Edições Financeiras, s.d. (título original: Natura ed
interpretazione delle leggi tributarie. Padova: CEDAM, 1932). p. 164-171.
22 Sobre o tema, cf. FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 7.
ed. São Paulo: Noeses, 2013. p. 19.
23 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 4. ed. São Paulo:
Noeses, 2007. p. 137-138.
26 Cf. ÁVILA, Humberto. Eficácia do novo Código Civil na legislação tributária. In:
GRUPENMACHER, Betina Treiger (coord.). Direito tributário e o novo código civil. São
Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 69.
ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. v. 15.
São Paulo: Dialética, 2011. p. 303.
28 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.
727-728.
30 Cf. BARRETO, Paulo Ayres. Elisão tributária: limites normativos. Tese apresentada ao
concurso à livre-docência do Departamento de Direito Econômico e Financeiro – área de
Direito Tributário – da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo:
USP, 2008. p. 36.
33 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 71-73.
34 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 77.
36 Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2010. p. 163.
37 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 90.
39 Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 2. ed. São
Paulo: Ed. RT, 2007. p. 80.
40 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.
268.
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A relação entre o direito tributário e o direito privado e
seus impactos nos limites ao planejamento tributário
44 Cf. BARRETO, Paulo Ayres. Direito Constitucional: teoria geral da constituição. In:
CLÉVE, Clémerson Martins; BARROSO, Luís Roberto (orgs.). Emenda constitucional. São
Paulo: Ed. RT, 2011. p. 162.
45 Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de
institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente,
pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do
Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
47 Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: Ed. RT,
1968. p. 22.
48 Ver STJ, REsp 1.070.404/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, 2.ª T., j. 26.08.2008, DJe
22.09.2008.
49 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 4. ed. São Paulo:
Noeses, 2007. p. 143.
50 Cf. BARRETO, Paulo Ayres. Elisão tributaria: limites normativos. Tese apresentada ao
concurso à livre-docência do Departamento de Direito Econômico e Financeiro – área de
Direito Tributário – da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo:
USP, 2008. p. 241.
54 Cf. BARRETO, Paulo Ayres. Elisão tributaria: limites normativos. Tese apresentada ao
concurso à livre-docência do Departamento de Direito Econômico e Financeiro – área de
Direito Tributário – da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo:
USP, 2008. p. 218.
55 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes.
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