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Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da

boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança


jurídica do sistema tributário nacional

SEGURANÇA JURÍDICA E AUTUAÇÃO FISCAL: A RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ


DO CONTRIBUINTE DIANTE DOS FATORES DE INSEGURANÇA JURÍDICA
DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL
Legal certainty and tax assessments: The relevance of the taxpayer's good faith in the
face of legal uncertainty factors of the national tax system
Revista Tributária e de Finanças Públicas | vol. 129/2016 | p. 321 - 339 | Jul - Ago /
2016
DTR\2016\22243

Gustavo Perez Tavares


Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Especialista
em Direito Processual Tributário pela COGEAE/PUC-SP. Bacharel em direito pela
Universidade Mackenzie. Advogado em São Paulo. gustavo.tavares@peixotoecury.com.br

Área do Direito: Tributário


Resumo: O presente trabalho parte da análise da situação de “primeiro intérprete” em
que se encontram os contribuintes (em sua grande maioria, pequenas e médias
empresas), e a complexidade e volume da legislação tributária, e conclui pela
necessidade da consideração da boa-fé dos contribuintes quando da lavratura de autos
de infração, sob pena de se ferir a segurança jurídica do sistema constitucional
tributário.

Palavras-chave: Tributário - Boa-fé - Segurança jurídica - Infração Fiscal - Tolerância.


Abstract: This work begins with the analysis of the "first interpreter" situation in which
taxpayers (for the most part, small and medium enterprises) are held, and the
complexity and volume of tax legislation, and concludes by the necessity of considering
the good faith of taxpayers when the issuance of tax assessments, so as not to hurt the
legal certainty of the constitutional tax system.

Keywords: Tax law - Good Faith - Legal certainty - Tax Assessment - Tolerance.
Sumário:

1Introdução - 2Breves notas sobre segurança jurídico-tributária - 3Quantidade e


complexidade da legislação como fatores de insegurança do sistema tributário - 4A
relevância da boa-fé do contribuinte em autuações fiscais - 5Conclusão - 6Referências
bibliográficas

1 Introdução

A atual complexidade das relações sociais em geral e, mais especificamente, das


relações jurídico-tributárias, demanda da comunidade jurídica uma reavaliação de
preceitos há muito tidos como certos e incontestáveis. Não é mais possível a idealização
1
simplificada e abstrata das relações jurídicas. Uma dessas idealizações que não mais
cabem refere-se ao sujeito (contribuinte) onisciente da assustadora quantidade e
complexidade da legislação tributária, do que decorre a sua responsabilização objetiva e
imediata em qualquer infração à legislação tributária.

Com efeito, havia no Brasil uma cultura arraigada, em parte da comunidade jurídica, em
analisar as infrações à legislação tributária sob uma ótica dita objetiva, no sentido de
que, verificada a infração, deve necessariamente ser aplicada a respectiva penalidade,
independentemente das circunstâncias nas quais ela ocorreu. Não havia espaço para
subjetivismos, análise de circunstâncias de fato, etc.

Basicamente, parcela dos aplicadores do direito tributário era fortemente vinculada à


dicção do artigo 136 do Código Tributário Nacional, o qual propagaria ser “objetiva” a
responsabilidade do agente por infrações tributárias. Importante transcrever o referido
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jurídica do sistema tributário nacional

dispositivo para melhor elucidarmos a questão:

“Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da


legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da
efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.”

A melhor doutrina sempre alertou para o fato de que essa responsabilidade por infrações
2
não deveria ser interpretada objetivamente. Nesse sentido Hugo de Brito Machado
afirma que “O art. 136 do CTN não estabelece a responsabilidade objetiva em matéria de
penalidades tributárias, mas a responsabilidade por culpa presumida do agente”. E
segue o ilustre professor piauiense demonstrando a diferença entre a responsabilidade
por culpa presumida do agente e a tantas vezes propagada “responsabilidade objetiva”:

“A diferença é simples. Na responsabilidade objetiva não se pode questionar a respeito


da intenção do agente. Já na responsabilidade por culpa presumida tem-se que a
responsabilidade independe da intenção apenas no sentido de que não há necessidade
de se demonstrar a presença de dolo ou de culpa, mas o interessado pode excluir a
responsabilidade fazendo a prova de que, além de não ter a intenção de infringir a
norma, teve a intenção de obedecer a ela, o que não lhe foi possível fazer por causas
superiores à sua vontade.”

E é justamente nesse ponto específico, ou seja, na intenção de obedecer à norma


tributária (complexa e excessiva), que a relevância da boa-fé se aprumará, adiante
neste trabalho.

Mais recentemente, por influência do Superior Tribunal de Justiça, essa visão passou a
ser um pouco abrandada. Destacamos, nesse sentido, o Recurso Especial 1.148.444/MG,
de relatoria do então Ministro Luiz Fux, que, tratando de infrações relativas ao
recebimento de mercadorias de fornecedores posteriormente declarados inidôneos pela
fiscalização, garantiu aos adquirentes o direito ao creditamento do ICMS incidente
nessas aquisições. Confira-se a ementa:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO


543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA
NÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS.
ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.

1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela
empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o
aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez
demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da
inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (Precedentes das Turmas
de Direito Público: (...) 2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na
exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à
assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco,
razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual "salvo
disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária
independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e
extensão dos efeitos do ato" (norma aplicável, in casu, ao alienante). 3. In casu, o
Tribunal de origem consignou que: "(...)os demais atos de declaração de inidoneidade
foram publicados após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notas
fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque do
ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). No
que toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento às
empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204),
sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho de
Contribuintes ." 4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas
inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado),
uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS. 5. O óbice da
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Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a insurgência especial fazendária reside
na tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas
fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máxime
tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN. 6. Recurso especial desprovido. Acórdão
3
submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.”
(destacamos)

Tais autuações foram muito frequentes há alguns anos em todos os Estados. Nelas, o
Fisco glosava o crédito escriturado pelo adquirente das mercadorias, aplicando-lhe
pesadas multas, sob o fundamento de que não importaria a sua boa-fé na aquisição das
mercadorias, uma vez que a responsabilidade por infrações seria objetiva, a teor do
indigitado art. 136 do CTN.

Em nosso entender, não poderia ter maior acerto o E. STJ, uma vez que, se o próprio
Fisco, com todo o seu aparato, tem dificuldades em determinar a idoneidade dos
fornecedores, o que se dirá dos adquirentes dessas mercadorias.

Pela reiteração da matéria, o STJ editou a Súmula 509, com o seguinte teor: “É lícito ao
comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal
posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e
venda”.

Os Tribunais parecem ter, em alguma medida, incorporado essa orientação em seus


julgados sobre a matéria. Vamos nos ater, no presente trabalho, ao Estado de São
Paulo:

“TRIBUTÁRIO. ICMS. O contribuinte de boa-fé que adquire mercadoria de empresa


posteriormente declarada inidônea pode aproveitar o crédito do ICMS, uma vez
demonstrada a materialidade da compra e venda efetuada. O caso não admite
responsabilização objetiva. Súmula 509 do STJ. Sentença mantida. Recurso desprovido.”
4
(destacamos)

O afastamento da responsabilidade objetiva, contudo, não é unanimidade no próprio


Tribunal de Justiça de São Paulo. Confira-se, por exemplo, outro recente julgado (dias
antes do julgamento anteriormente citado) em sentido diametralmente oposto:

“APELAÇÃO – ICMS – ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO – NOTAS FISCAIS –


AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE IDONEIDADE – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO –
REGULARIDADE – ARGUIÇÃO INVIÁVEL – PREVALÊNCIA DA AUTUAÇÃO.

A pretensão de anulação de auto de infração que tem como fundamento a falsa


declaração quanto ao destinatário da mercadoria indicado nas notas fiscais, somente
pode ser revista com demonstração suficiente e formal de que ocorreu vício no ato
administrativo, nãosendo a singela arguição de boa fé suficiente para o desfazimento
daquele procedimento, cujo trâmite tenha obedecido ao formalismo legal e regulamentar
5
e atendido ao princípio da ampla defesa. Sentença mantida. Recurso negado.

Não vamos entrar nos detalhes de cada caso, os quais, obviamente, podem ter
particularidades que levaram os julgadores a entender por um ou outro desfecho. Basta,
no entanto, sabermos que a tese da responsabilidade objetiva do contribuinte por
infrações já foi mais forte, contudo, ainda existe em nossos Tribunais, notadamente em
matérias ainda não analisadas pelo STJ.

O que pretendemos, nesse trabalho, é propor um passo adiante na consideração da


boa-fé do contribuinte em autuações fiscais.

Em nosso entender, em alguns casos, a prévia análise da boa-fé do contribuinte é


requisito necessário para a validade da autuação fiscal, tendo em vista, basicamente, (I)
a necessidade de se manter um estado de segurança jurídica em matéria tributária; (II)
o grande fator de insegurança que representa a quantidade e complexidade da legislação
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tributária; (III) a inserção do contribuinte como primeiro interprete da legislação


tributária; e (IV) a necessidade de humanizar as relações entre Fisco e contribuinte
(mediante posturas de tolerância, por exemplo), em busca de um cumprimento
voluntário das obrigações tributárias e a consequente redução de conflitos.

Com efeito, entendemos ser dever das autoridades fiscais perquirir a boa-fé do
contribuinte na aplicação da legislação tributária, antes de lhe aplicar qualquer punição,
como forma de consagrar o princípio da segurança jurídica. Equivale dizer, a boa-fé é
elemento relevante nas relações entre Estado-Fisco e contribuintes, e, mais do que isso,
em alguns casos chega a ser de observância cogente pelas autoridades fiscais, sob pena
de invalidade da autuação.

É o que procuramos demonstrar a seguir.


2 Breves notas sobre segurança jurídico-tributária

A segurança jurídica em matéria tributária tem ganhado a atenção de nossa doutrina.


6
Segurança jurídica, para Roque Antonio Carrazza, “ajuda a promover os valores
supremos da sociedade, inspirando a edição e a boa aplicação das leis, dos decretos, das
portarias, das sentenças, dos atos administrativos etc.”.
7
Carrazza defende a ideia de que a segurança jurídica seria o próprio fim do sistema
jurídico, pautado no binômio certeza e igualdade:

“De fato, como o Direito visa à obtenção da res justa, de que nos falavam os antigos
romanos, todas as normas jurídicas, especialmente as que dão efetividade às garantias
constitucionais, devem procurar tornar segura a vida das pessoas e das instituições.

Muito bem, o Direito, com sua positividade, confere segurança às pessoas, isto é, ‘cria
condições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de seus
próprios atos e dos atos dos outros’.

Portanto, a certeza e a igualdade são indispensáveis à obtenção da tão almejada


segurança jurídica.” (grifos originais)
8
Heleno Taveira Torres, após fazer duras críticas ao tratamento do tema – banalizado,
em seu entender – e cobrar uma postura rigorosa na construção semântica e funcional,
também assenta a ideia de que a segurança jurídica representa o fim do ordenamento
constitucional brasileiro:

“No constitucionalismo do Estado Democrático de Direito a segurança jurídica vê-se


incorporada ao ordenamento como garantia constitucional, e não apenas como
decorrente da estrutura sistêmica ou da certeza do direito (segurança jurídica formal),
mas como meio de efetividade dos direitos e liberdades fundamentais (segurança
jurídica material), como proteção a esses direitos. A segurança jurídica, nessa totalidade
formal e material, converte-se em fim do ordenamento, como eficácia do sistema
jurídico haurida a partir do interior da Constituição. Daí comumente dizer-se que o
Estado Democrático de Direito é o ‘Estado de Segurança’. Com maior rigor, melhor seria
dizer que a Constituição na atualidade é a ‘Constituição de Segurança’” (grifos originais)
9
Torres propõe uma definição funcional de segurança jurídica, como:

“princípio-garantia constitucional que tem por finalidade proteger direitos decorrentes


das expectativas de confiança legítima na criação ou aplicação das normas tributárias,
mediante certeza jurídica, estabilidade do ordenamento ou efetividade de direitos e
liberdades fundamentais”.
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O autor diferencia a segurança jurídica do atual sistema constitucional da simples ideia
de certeza do direito que, para ele, sempre existiu:

“O ideal de segurança, a exemplo da expectativa de certeza das leis aplicáveis, ao longo


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da formação histórica experimentada pelos Estados, sempre existiu. Sua tradução em


segurança jurídica é que nos chega em época mais recente, com vistas a conferir
estabilidade às relações econômicas e aos direitos de propriedade, tutelando-os e
atribuindo-lhes a necessária condição de juridicidade. Neste evoluir, do liberalismo
burguês ao Estado do bem-estar social, do individualismo jurídico para o
intervencionismo legislativo, a segurança jurídica ‘individualista’, fundada unicamente na
certeza da legalidade, vê-se secundada pela segurança jurídica ‘social’, ao amparo do
intervencionismo estatal que tolhe os excessos de liberalismo, ao afirmar exigências de
ordem pública, econômicas e sociais, no interesse geral.”
11
Em arremate, Heleno Torres afasta o que chama de uma posição jusnaturalista sobre o
tema, lecionando que a segurança jurídica não é um fim metafísico ou
supraconstitucional, mas sim deve ser compreendida a partir do sistema jurídico,
“entendido como uma forma que elabora e reelabora seus fins a partir de seu interior e
segundo valores institucionalizados e mediatizados por princípios”.
12
Humberto Ávila ao se debruçar sobre o tema, analisou detalhadamente todos os seus
aspectos, destacando se tratar de uma garantia que ultrapassa a segurança física ou
psicológica, estando no mesmo patamar de valores sociais objetivos como o direito à
liberdade, à igualdade e à propriedade (art. 5.°, CF).
13
O autor gaúcho também qualifica a segurança jurídica como “norma-princípio”, pois,
“pelo exame de sua estrutura e das suas partes constituintes, verifica-se que ela
determina a proteção de um ideal de coisas cuja realização depende de
comportamentos, muitos dos quais já previstos expressamente”.
14
Ávila descreve o aspecto material da segurança jurídica com base na Constituição
Federal de 1988, com um estado de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade.
15
Entre diversas outras considerações que Ávila faz acerca da segurança jurídica, dois
aspectos são mais relevantes para o deslinde desse trabalho. O primeiro diz respeito aos
sujeitos que devem garantir a segurança jurídica, cuja resposta é, simplesmente, “os
três Poderes”. O segundo e consequente aspecto é a quem se destinaria a segurança
jurídica, cuja resposta é “ao contribuinte”, assim entendido como o “cidadão comum e
não o especialista em direito tributário”.
3 Quantidade e complexidade da legislação como fatores de insegurança do sistema
tributário

Como visto, a segurança jurídica deve ser objetivada como um dos próprios fins do
sistema constitucional tributário. Equivale afirmar que todo e qualquer ato deve ser
pensado tendo em vista esse fim.

Há, no entanto, diversos fatores de insegurança jurídica dentro do sistema, causados


pelos Três Poderes, como a defesa de interesses de classes pelos legisladores, na edição
das leis, a morosidade do Poder Judiciário em resolver questões de relevância para os
contribuintes, a alteração de entendimento da Fiscalização sobre determinada
classificação fiscal, etc. São diversos os fatores que poderíamos exemplificar.

Nesse momento, no entanto, nos interessa focarmos em um fator específico, qual seja, a
quantidade e complexidade da legislação tributária. Com efeito, sabemos que a
quantidade e complexidade da legislação tributária são um problema global. Contudo, no
Brasil, esse fator toma proporções astronômicas.
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Com efeito, de acordo com um levantamento realizado pela KPMG, o Brasil ocupa a
pior colocação entre os países da América Latina na quantidade de horas gastas para o
cumprimento das obrigações tributárias, chegando ao estonteante número de 2.600
horas gastas anualmente apenas para o cumprimento dessas obrigações.

Imagine o leitor, o robusto aparato administrativo que uma empresa precisa ter para
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cumprir com todas essas obrigações! Ainda, rememore-se que todo o dinheiro gasto
para a manutenção desse aparato não é dedutível para fins de apuração fiscal.
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Em agravamento a esse cenário, segundo levantamento do SEBRAE, 99,2% das
empresas no comércio e 95,5% das indústrias são Micro e Pequenas empresas,
sabidamente sem grandes estruturas administrativas e fiscais.

Para fechar esse crítico cenário de insegurança jurídica, atentamos ao fato de que, cada
dia mais, é o contribuinte o interprete primeiro da legislação tributária. Com efeito, pelo
chamado “lançamento por homologação”, aplicado à grande maioria das situações
tributárias, deve o contribuinte interpretar a norma e, a partir dela, verificar a ocorrência
do fato imponível, calcular a base imponível, determinar a alíquota aplicável e recolher
os valores eventualmente devidos aos cofres públicos.
18
Heleno Taveira Torres atribuindo o nome de “comunidade de intérpretes” (ao fato de o
contribuinte integrando o conjunto de interpretes da legislação tributária, junto com o
administrador público e o juiz), confirma a ocorrência de lesão à segurança jurídica.
Confira-se:

“Destarte, quando contribuintes orientam suas condutas segundo uma compreensão


equivocada da legislação, por não apreenderem adequadamente todas as repercussões
derivadas da legislação em vigor, em decorrência de falhas legislativas, este
condicionamento psíquico gera interferências na determinação das condutas normadas
(insegurança jurídica por deficiência de orientação). Como vimos, à acessibilidade formal
deve conjugar-se a acessibilidade material ou cognitiva, que consiste na possibilidade de
compreensão dos textos legislados, de forma simples, clara e objetiva. Valores
constitucionais de maior suposição amparam sua pertinência ao sistema como meio hábil
para a solução de problemas decorrentes da opacidade da legislação, mormente aos fins
da orientação ou adequação das condutas normadas. A eliminação de opacidade da
legislação tributária é um imperativo de segurança jurídica inelutável.”

Retomamos, ainda, o destaque que fizemos anteriormente, com relação ao destinatário


da segurança jurídica ser o “cidadão comum” e não o especialista em direito tributário.
19
Nesse sentido, H. Ávila também discorre sobre o destinatário da norma tributária,
destacando a necessidade de o “cidadão comum” conseguir compreender integralmente
as prescrições normativas. Confira-se:

“No Direito Tributário, isso significa que há segurança quando o contribuinte tem
condições de, em elevada medida, conhecer o Direito, confiar nele e calcular os seus
efeitos. A exigência de determinabilidade será tanto maior, quanto mais intensamente
forem restringidos os direitos fundamentais de liberdade, de propriedade e igualdade.
Esse é, precisamente, o caso do Direito Tributário, pela eficácia oneratória e indutora das
normas tributárias.”

Esse fator de insegurança decorrente da dificuldade de cognição da legislação tributária


pelo contribuinte é agravado, ainda, pela postura dos agentes do Poder Executivo, os
quais, muitas vezes, por suas ações, acabam por induzir os contribuintes à pratica de
determinados atos. São exemplos disso as mudanças de entendimento (mudança de
critério jurídico), as práticas reiteradas da administração, entre outras.

Para essa específica situação (insegurança causada por influência da administração), o


próprio CTN busca ferramentas de retorno ao estado de segurança jurídica, como por
exemplo, pelas disposições dos arts. 146 (que alberga fatos anteriores da aplicação de
novos critérios jurídicos pela Administração), 100 e 112.
20 21
Sobre o art. 146 do CTN, H. Torres, abordando inclusive a alteração de entendimento
decorrente de decisão administrativa ou judicial, assim discorre:

“Sobre a irretroatividade do não benigno, igualmente contemplada nessa disposição do


art. 146 do CTN, tem-se aqui nítida norma no modal deôntico ‘proibido’ para vedar a
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aplicação de modificações de critérios jurídicos no lançamento, em relação a um mesmo


contribuinte (salvo quando se trata de decisões erga omnes), sobre todos os fatos
geradores anteriores à decisão judicial ou administrativa. A permissão limita-se
exclusivamente aos fatos posteriores à decisão. Na prática, esta é a única regra:
qualquer modificação de critérios de lançamento somente poderá vir empregada aos
fatos geradores posteriores à decisão judicial ou administrativa (...) o que vale inclusive
para fatos pendentes de lançamento, como exceção ao teor do art. 105 do CTN.”
22 23
Por sua vez, os artigos 100 e 112 protegem, respectivamente, os contribuintes que
descumpriram a norma tributária por seguirem as chamadas “normas complementares
das leis”, como as práticas reiteradas da administração, bem como salvaguarda o
contribuinte no caso de dúvida com relação à interpretação da legislação refere às
penalidades.

No entanto, para as diversas outras situações, a boa-fé do contribuinte deve ser utilizada
como ferramenta de retorno ao estado de segurança jurídica, por meio de sua
consideração (inclusive obrigatória, por vezes) no momento de autuações fiscais.
4 A relevância da boa-fé do contribuinte em autuações fiscais

Com efeito, entendemos que a consideração da boa-fé do contribuinte é etapa que


necessariamente deve ser ultrapassada no momento da verificação da infração à
legislação tributária e a aplicação de penalidades pela autoridade fiscal. Se não chega a
ser obrigatória do ponto de vista formal (formalista), sua observância é necessária para
dar harmonia ao sistema jurídico-tributário.

Ora, se (a) a segurança jurídica é princípio-matriz e fim do sistema tributário nacional;


(b) é dever dos Poderes garantir a segurança; (c) seu destinatário é o contribuinte
“cidadão comum”; (d) o Estado, cada dia mais, relega ao contribuinte a tarefa de
primeiro interprete da legislação tributária, a qual (e) é uma das mais volumosas e
complexas do mundo; como não considerar, obrigatoriamente, a boa-fé do contribuinte,
antes de aplicar-lhe sanções?

Seria o mesmo que admitirmos que a sanção deva ser aplicada à revelia do próprio
motivo de existência do sistema constitucional tributário – unicamente por estar
formalmente prevista em lei. Sob outro foco de análise, não é mais razoável, diante da
abundância e complexidade da legislação tributária, que se autue o contribuinte sem se
considerar efetivamente a sua boa-fé.

À época da edição do Código Tributário Nacional, a afirmação anterior talvez não se


sustentasse. No entanto, cumpre relembrar que o CTN – que teve inspiração, inclusive
24
no direito nazista – foi editado em 1966, época de complexidade e volume muito
menores da legislação tributária, e com a situação dos contribuintes também diversa,
excluídos da “comunidade de intérpretes”.

Voltando ao nosso escopo de observação, há, no Estado de São Paulo, disposição legal
que se coaduna com o nosso entendimento acima exposto. Com efeito, a Lei Estadual
(SP) 6.374/89, assim dispõe em seu art. 72, § 2.°:

“Artigo 72 – A administração tributária tem por atribuição fazer cumprir a legislação


relativa aos tributos de competência estadual, devendo adotar, na sua consecução,
procedimentos que estimulem o atendimento voluntário da obrigação legal, reduzam a
inadimplência e reprimam a sonegação, tais como a educação fiscal, a orientação de
contribuintes, a divulgação da legislação tributária, a fiscalização e a aplicação de
penalidades.

(…)

§ 2.° – Em observância aos princípios da eficiência administrativa e da razoabilidade, o


Auto de Infração e Imposição de Multas pode deixar de ser lavrado nos termos de
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disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda.” (grifamos)

Duas importantes observações devem ser feitas a respeito do dispositivo acima


transcrito. A primeira, com relação ao caput, determina a obrigatoriedade da
Administração Tributária adotar – na consecução da aplicação da lei – procedimentos
que estimulem o atendimento da obrigação, reduzam inadimplência e reprimam a
sonegação, mediante, exemplificativamente, educação fiscal, orientação e divulgação da
legislação tributária – atente-se o leitor – antes da “aplicação de penalidades”.

Ora, o comando é claro à Administração: antes de autuar, deve se buscar o


adimplemento voluntário da obrigação tributária.

A segunda observação é a do § 2.°, que, para sanar qualquer dúvida possivelmente


existente, abre expressamente a possibilidade de a autoridade fiscal deixar de lavrar o
Auto de Infração, em observância aos princípios da eficiência e razoabilidade.

Temos que essa disposição alinha-se ao quanto defendido linhas acima: a observância
da boa-fé do contribuinte, no sentido de, por exemplo, intimá-lo a regularizar um
eventual erro formal, ou a recolher um tributo inadimplido, total ou parcialmente, é
obrigação da Administração Tributária (por meio de seus agentes e órgãos de
fiscalização). Não se faculta, mas se exige. Não deve ser verificada em um segundo
momento, (como, por exemplo, em processo administrativo ou judicial) mas sim, antes
de qualquer autuação.

Não seria necessário dizer, mas para evitar dúvidas, estão fora desse contexto,
obviamente, aqueles contribuintes que, de má-fé, utilizam “erros formais” ou “dúvidas
razoáveis” para burlarem a legislação tributária e se locupletarem ilicitamente. Contudo,
25
a presunção deve ser sempre pela boa-fé do contribuinte, devendo ser comprovada a
má-fé do agente.

Esclarecemos, novamente, para que não haja misinterpretation de nossa proposta: a


necessidade de observância da boa-fé do contribuinte se apresenta naquelas situações
em que o fator de insegurança jurídica (desconhecimento ou incompreensão da
legislação) foi causado pelo próprio Estado (que tem a obrigação de dar segurança
jurídica), não a toda e qualquer situação de infringência à legislação tributária.
26
Utilizamo-nos, aqui, das lições de Klaus Tipke para ilustrar nossa posição. A boa-fé a
ser necessariamente considerada é a do contribuinte inexperiente, o “sujeito passivo
comum”, não do contribuinte homo oeconomicus ou do desgostoso com o Estado –
sujeitos estes que, por liberalidade, decidem não cumprir a legislação tributária.

Com relação à presunção de boa-fé do contribuinte, citamos os seguintes julgados do


Tribunal de Justiça de São Paulo:

“TRIBUTÁRIO E PROCESSO CIVIL TUTELA ANTECIPADA CRÉDITO TRIBUTÁRIO


SUSPENSÃO DE EXIGIBILIDADE INSCRIÇÃO NO CADIN DECLARAÇÃO DE
INIDONEIDADE DE DOCUMENTOS FISCAIS PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ DO CONTRIBUINTE.
1. A antecipação dos efeitos da tutela pretendida no pedido inicial pressupõe a
concorrência dos requisitos da verossimilhança da alegação em face da existência de
prova inequívoca e fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou,
alternativamente, caracterização de abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito
protelatório do réu (art. 273, I e II, CPC). 2. Cobrança de ICMS decorrente de compra e
venda com empresas consideradas inidôneas pelo Fisco. Declaração de inidoneidade
posterior às operações comerciais impugnadas. Presunção de boa-fé. Tutela antecipada
indeferida. Inadmissibilidade. Concorrência dos pressupostos legais. Decisão reformada.
27
Recurso provido.”

“TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL ICMS CREDITAMENTO PRINCÍPIO DA


NÃO-CUMULATIVIDADE AUTO DE INFRAÇÃO E IMPOSIÇÃO DE MULTA DECLARAÇÃO DE
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boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional

INIDONEIDADE DE DOCUMENTOS FISCAIS REALIZAÇÃO DAS OPERAÇÕES COMERCIAIS


COM EMPRESA POSTERIORMENTE DECLARADA INIDÔNEA PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ DO
CONTRIBUINTE. 1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal
(emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode
engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade,
porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua
publicação. 2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no
momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da
regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela
qual não incide, à espécie, o artigo 136 do CTN. Precedente do STJ em recurso
28
representativo de controvérsia. Sentença reformada. Recurso provido.”

“TUTELA ANTECIPADA. Ação declaratória de inexigibilidade de crédito fiscal. Créditos de


ICMS com base em notas fiscais consideradas inidôneas pela fiscalização. Necessidade
de esclarecer se corresponderam a operações efetivas. Presunção da boa-fé do
contribuinte por não caber presumir o contrário. Suspensão da exigibilidade do crédito
tributário e certidão positiva de débito com efeito de negativa, para participar de
concorrência pública e contratar com a Administração. Presentes os requisitos da
29
verossimilhança do direito e do perigo da demora. Recurso provido.”

Sentimos, ainda, a necessidade de esclarecermos que nossa posição não representa


afronta à chamada teoria imperativa do direito, um dos fundamentos do positivismo
jurídico. É a regra clássica de que ninguém poderá se escusar de cumprir a lei alegando
30
desconhecimento. Sobre essa teoria, confira-se Renato Lopes Becho:

“Na teoria imperativa do direito podemos destacar a circunstância de que o direito é


fundado sobre o pressuposto, mesmo que não fático, de amplo conhecimento das
normas jurídicas por parte de todos aqueles que estão sujeitos à sua sanção. Todos os
súditos conhecem as leis. Ou, por outro giro verbal, ninguém se escusa de respeitar as
leis alegando desconhecê-las. Eis uma ficção, mas imprescindível para o império do
direito. Essa teoria nos parece a mais forte, sem correspondência – ao menos para nós –
nos sistemas normativos social e religioso. Ao que nos parece, as pessoas são educadas
para conhecerem as normas sociais, sendo muitas vezes naturalmente escusável o
descumprimento pelo desconhecimento. Assim também ocorre com as normas
religiosas, notadamente menos numéricas e mais conhecidas pelos fiéis do que as
normas legais. Por isso, vemos a teoria imperativa do direito como única e como a mais
significativa das construções positivistas.”

Não se nega a obrigatoriedade do cumprimento da lei, nem tampouco se contraria a


afirmação de que a simples alegação de desconhecimento não basta para eximir o
contribuinte do cumprimento da legislação tributária. O que se afirma é que a aplicação
de sanções deve passar pelo filtro da boa-fé do contribuinte, uma vez que se está diante
da mais volumosa e complexa legislação que se tem notícia.

Retomando nossa análise ao Estado de São Paulo, a previsão, pela Coordenadoria de


Administração Tributária, de hipóteses de não lavratura de autos de infração é histórica,
remetendo à Instrução CAT 10/1968. Atualmente, a Portaria CAT 115/2014, regula uma
das hipóteses nas quais, havendo boa-fé do contribuinte, notadamente em infrações
relativas a obrigações acessórias, o auto de infração poderá deixar de ser lavrado.
Confira-se:

“Artigo 10 – Mediante análise e decisão da Comissão de Controle de Qualidade e em


obediência aos princípios da eficiência administrativa e razoabilidade, o AIIM poderá
deixar de ser lavrado quando, cumulativamente:

I – a infração não implicar falta ou atraso no recolhimento do imposto;

II – não existirem indícios de dolo, fraude ou simulação;

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Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da
boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional

III – ficar constatado que a infração não trouxe prejuízos à fiscalização, assim entendida
qualquer ação ou omissão que:

a) implique embaraço, atraso ou dificuldade à ação fiscal, inclusive o descumprimento a


notificação fiscal específica;

b) prejudique o controle fiscal sobre as operações ou prestações;

c) prejudique a utilização das informações dos bancos de dados da Secretaria da


Fazenda;

IV – o contribuinte não for reincidente, assim considerado aquele que, em relação a


qualquer dos seus estabelecimentos, nos últimos cinco anos, não tiver sido autuado pela
prática da mesma infração ou notificado nos termos do item 2 do § 4º;

V – o contribuinte não possuir débitos, inscritos ou não em dívida ativa, ou, caso possua,
estiverem com exigibilidade suspensa, observado o disposto no item 2 do § 2º.
(destacamos)

Conforme se observa, existem hipóteses expressamente previstas nas quais a


fiscalização é orientada a deixar de lavrar autos de infração. Contudo, entendemos que a
Portaria CAT 115/2014 representa apenas uma hipótese, mas não a única.

O Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo já adotou entendimento semelhante ao


aqui defendido, cancelando exigência fiscal em razão de o contribuinte não ter sido,
primeiramente, intimado a regularizar sua escrita fiscal. Confira-se:

“Ementa: ICMS. Transferência de saldo credor de ICMS para estabelecimento


centralizador já detentor de saldo credor. Hipótese vedada pela legislação. RECURSO DE
OFÍCIO DESPROVIDO.

Relatório e Voto:

No caso dos autos, muito embora o contribuinte tenha agido em desconformidade com o
estabelecido na legislação tributária, entendo que não seria desarrazoado notificá-lo
previamente a fim de que regularizasse sua situação, mediante o estorno dos créditos
transferidos em excesso. Creio que a Administração Tributária deve evoluir no sentido
não de privilegiar o incumpridor, mas sim de acercar-se de seus contribuintes,
perseguindo o cumprimento voluntário da obrigação tributária, seja principal, seja
acessória, ainda que esse cumprimento voluntário seja induzido por comunicações fiscais
para que o contribuinte caminhe para a conformidade. É o caso dos autos. Em meu
sentir, a notificação prévia evitaria o desgaste de uma autuação, tanto para o Fisco
como para o contribuinte e caminharia de forma mais eficiente na direção do que deve
ser o verdadeiro fim a ser perseguido pela Administração Tributária, que é o
cumprimento das obrigações tributárias, repito, ainda que de forma induzida.

Cumprimento o d. juiz com vista, Dr. Flávio Nascimbem de Freitas, pelo voto proferido
acerca da Instrução Normativa CAT 10/68, com o qual concordo no sentido de que não
obriga o Fisco.

Não obstante, como expus, creio que a Administração Tributária deve caminhar nesse
sentido nos casos em que não se vislumbra redução ou supressão de imposto.

Nesse sentido, meu voto é para acompanhar o voto de relatoria proferido pelo i. Dr.
Osvaldo Zorzeto, para negar provimento ao Recurso de Ofício, considerando ainda haver
tempo para o que se propõe em seu voto, qual seja, que o Fisco realize a notificação ao
contribuinte para fins de estorno, sob pena de autuação.
31
É como voto.” (destacamos)

Observe que o julgado acima ilustra bem o ponto que defendemos. Bastaria uma ação
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Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da
boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional

educativa prévia da fiscalização para que se evitassem lavraturas de autos de infração,


processos administrativos, enfim, toda uma movimentação do aparato administrativo,
financiado às custas dos próprios tributos buscados pela Fiscalização.
32
O que se cobra é uma postura de tolerância fiscal pelas autoridades, diante do patente
fator de insegurança jurídica representado pela complexidade e abundância da
33
legislação. Devem ser abandonadas as figuras do Fiscal-Pilatos e Fiscal-Cruzado – ou
seja, a análise das situações sob o prisma do contribuinte-infiel, pecador, que deverá ser
a todo custo punido, bem como a da escusa sob o véu do princípio da legalidade, mesmo
diante de situações manifestamente injustas, respectivamente.

Com a tolerância, cobra-se uma postura de aproximação entre fisco e contribuinte, do


afrouxamento da relação antagonista entre as partes, de modo a reconhecer a
complexidade das relações jurídicas e suas causas, notadamente o descumprimento da
legislação a pretexto de cumpri-la. Ao encarar o contribuinte como humano,
naturalmente sujeito a falhas, ou, simplesmente, interpretações diversas, fica fácil
entender a necessidade de consideração subjetiva de sua conduta quando se trata de
aplicação de penalidades tributárias.

Assim, em nosso sentir, a análise da boa-fé do contribuinte é etapa obrigatória para


legitimar a lavratura de todo e qualquer auto de infração, e deve ser devidamente
demonstrada, por exemplo, nos relatórios fiscais que acompanham essas autuações, sob
pena de insubsistência da exigência fiscal.
5 Conclusão

Assim sendo, entendemos estar devidamente comprovada a necessidade de que a


fiscalização observe a boa-fé do contribuinte na lavratura de autos de infração, assim
entendida a demonstração, nos relatórios fiscais, que o contribuinte foi prévia e
devidamente orientado ao cumprimento espontâneo da obrigação tributária, que é
infrator reiterado ou que agiu de má-fé, entre outros, sob pena de insubsistência da
exigência fiscal.

Tal se justifica em razão da quantidade e da complexidade da legislação tributária, aliada


à condição de primeiro interprete do contribuinte, com vistas a dar segurança jurídica às
relações tributárias, segurança esta que é a própria finalidade do sistema constitucional
tributário.

Em caso de descumprimento, os órgãos administrativos judicantes ou, ainda, o próprio


Poder Judiciário poderá cancelar a exigência fiscal, unicamente em razão da não
observância da boa-fé do contribuinte.
6 Referências bibliográficas

ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre a permanência, mudança e realização no


Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011.

BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.

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Paulo: Malheiros, 2015.

DANIEL NETO, Carlos Augusto. Dialética da Tolerância Fiscal. Defesa em 25/08/2014.


255 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 225/08/2014.
Suporte digital.

FOLLONI, André. Reflexões sobre complexity science no direito tributário. In: MACEI,
Demetrius Nichele et. al. (coord.). Direito tributário e filosofia. Curitiba: Instituto
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MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros,
Página 11
Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da
boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
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2010.

SAMPAIO, Carlos Alberto Alves. A boa-fé no direito tributário. Defesa em 11/02/2015.


131 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 11/02/2015.
Suporte digital.

TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução Luiz Dória
Furquim. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2012.

TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –


Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2011.

1 FOLLONI, André. Reflexões sobre complexity science no direito tributário. In: MACEI,
Demetrius Nichele et. al. (coord.). Direito tributário e filosofia. Curitiba: Instituto
Memória, 2014, p. 24-37.

2 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros,
2010, p. 171.

3 STJ Recurso Especial 1.148.444/MG, Relator Ministro LUIZ FUX, 1.ª Turma.

4 TJ/SP, Apelação 0013469-29.2009.8.26.0510. Relator: Coimbra Schmidt; Comarca:


Rio Claro; Órgão julgador: 7.ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento:
23.11.2015; Data de registro: 23.11.2015.

5 TJ/SP, Apelação 0001810-14.2011.8.26.0264, 1.ª Câmara. Relator(a): Danilo Panizza;


Comarca: Novo Horizonte; Órgão julgador: 1.ª Câmara de Direito Público; Data do
julgamento: 10.11.2015; Data de registro: 12.11.2015.

6 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30.ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2015. p.455.

7 Ibidem. p. 455-456.

8 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –


Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2011, p. 184.

9 Ibidem. p. 193.

10 Ibidem. p. 187.

11 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –


Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2011, p. 188-189.

12 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre a permanência, mudança e realização


no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 255.

13 Ibidem, p. 255-256.

14 Ibidem, p. 256-362

15 Ibidem, p. 264-265.

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Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da
boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional

16 Notícia veiculada em diversos periódicos, disponível, por exemplo, em:


http://www.infomoney.com.br/negocios/tributos-de-empresas/noticia/2579531/empresas-brasileiras-ga
Acesso em 27.11.2015.

17 Participação das Micro e Pequenas Empresas na Economia Brasileira (2009/2011),


disponível em
http://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Estudos%20e%20Pesquisas/Participacao%20das%
Acesso em 27.11.2015.

18 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –


Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2011, p. 171-172.

19 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre a permanência, mudança e realização


no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 266.

20 Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão


administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa
no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito
passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

21 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica –


Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2011, p. 266.

22 Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções
internacionais e dos decretos:
I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a


lei atribua eficácia normativa;

III – as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas;

IV – os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os


Municípios.

Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de
penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de
cálculo do tributo.

23 Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades,
interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I – à capitulação legal do fato;

II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos


seus efeitos;

III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

24 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
304.

25 SAMPAIO, Carlos Alberto Alves. A boa-fé no direito tributário. Defesa em 11-2-2015.


131 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 11-2-2015.
Suporte digital, p. 109/110. Em competente dissertação acerca da boa-fé no direito
Página 13
Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da
boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional

tributário, Carlos Alberto Alves Sampaio contesta a máxima da presunção da boa-fé,


diferenciando situações de boa-fé objetiva e subjetiva. No entanto, não faremos, aqui,
essa distinção.

26 TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução Luiz Dória
Furquim. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2012, p. 103 a 111.

27 TJ/SP Agravo de Instrumento nº 0262754-77.2012.8.26.0000, Relator DÉCIO


NOTARANGELI, 9ª Câmara de Direito Público, DJe 28/02/2013.

28 TJ/SP Apelação nº 0048179-02.2009.8.26.0405, Relator DÉCIO NOTARANGELI, 9ª


Câmara de Direito Público, DJe: 08/05/2013.

29 Agravo de Instrumento 0583956-08.2010.8.26.0000, 12.ª Câmara de Direito Público.


Relator Des. EDSON FERREIRA DA SILVA, DJ de 28/02/2011.

30 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
187.

31 AIIM 4.007.428-6, 5.ª Câmara Julgadora, julgamento em recurso ordinário, voto de


preferência do juiz Fábio Henrique Bordini Cruz (Presidente).

32 DANIEL NETO, Carlos Augusto. Dialética da Tolerância Fiscal. Defesa em 25.8.2014.


255 páginas. Dissertação (Mestrado em direito) – PUC/SP. São Paulo, 225/08/2014.
Suporte digital. 217-237.

33 Idem. p. 226-227.

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