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Keywords: Tax law - Good Faith - Legal certainty - Tax Assessment - Tolerance.
Sumário:
1 Introdução
Com efeito, havia no Brasil uma cultura arraigada, em parte da comunidade jurídica, em
analisar as infrações à legislação tributária sob uma ótica dita objetiva, no sentido de
que, verificada a infração, deve necessariamente ser aplicada a respectiva penalidade,
independentemente das circunstâncias nas quais ela ocorreu. Não havia espaço para
subjetivismos, análise de circunstâncias de fato, etc.
A melhor doutrina sempre alertou para o fato de que essa responsabilidade por infrações
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não deveria ser interpretada objetivamente. Nesse sentido Hugo de Brito Machado
afirma que “O art. 136 do CTN não estabelece a responsabilidade objetiva em matéria de
penalidades tributárias, mas a responsabilidade por culpa presumida do agente”. E
segue o ilustre professor piauiense demonstrando a diferença entre a responsabilidade
por culpa presumida do agente e a tantas vezes propagada “responsabilidade objetiva”:
Mais recentemente, por influência do Superior Tribunal de Justiça, essa visão passou a
ser um pouco abrandada. Destacamos, nesse sentido, o Recurso Especial 1.148.444/MG,
de relatoria do então Ministro Luiz Fux, que, tratando de infrações relativas ao
recebimento de mercadorias de fornecedores posteriormente declarados inidôneos pela
fiscalização, garantiu aos adquirentes o direito ao creditamento do ICMS incidente
nessas aquisições. Confira-se a ementa:
1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela
empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o
aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez
demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da
inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (Precedentes das Turmas
de Direito Público: (...) 2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na
exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à
assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco,
razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual "salvo
disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária
independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e
extensão dos efeitos do ato" (norma aplicável, in casu, ao alienante). 3. In casu, o
Tribunal de origem consignou que: "(...)os demais atos de declaração de inidoneidade
foram publicados após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notas
fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque do
ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). No
que toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento às
empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204),
sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho de
Contribuintes ." 4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas
inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado),
uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS. 5. O óbice da
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Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da
boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional
Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a insurgência especial fazendária reside
na tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas
fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máxime
tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN. 6. Recurso especial desprovido. Acórdão
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submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.”
(destacamos)
Tais autuações foram muito frequentes há alguns anos em todos os Estados. Nelas, o
Fisco glosava o crédito escriturado pelo adquirente das mercadorias, aplicando-lhe
pesadas multas, sob o fundamento de que não importaria a sua boa-fé na aquisição das
mercadorias, uma vez que a responsabilidade por infrações seria objetiva, a teor do
indigitado art. 136 do CTN.
Em nosso entender, não poderia ter maior acerto o E. STJ, uma vez que, se o próprio
Fisco, com todo o seu aparato, tem dificuldades em determinar a idoneidade dos
fornecedores, o que se dirá dos adquirentes dessas mercadorias.
Pela reiteração da matéria, o STJ editou a Súmula 509, com o seguinte teor: “É lícito ao
comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal
posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e
venda”.
Não vamos entrar nos detalhes de cada caso, os quais, obviamente, podem ter
particularidades que levaram os julgadores a entender por um ou outro desfecho. Basta,
no entanto, sabermos que a tese da responsabilidade objetiva do contribuinte por
infrações já foi mais forte, contudo, ainda existe em nossos Tribunais, notadamente em
matérias ainda não analisadas pelo STJ.
Com efeito, entendemos ser dever das autoridades fiscais perquirir a boa-fé do
contribuinte na aplicação da legislação tributária, antes de lhe aplicar qualquer punição,
como forma de consagrar o princípio da segurança jurídica. Equivale dizer, a boa-fé é
elemento relevante nas relações entre Estado-Fisco e contribuintes, e, mais do que isso,
em alguns casos chega a ser de observância cogente pelas autoridades fiscais, sob pena
de invalidade da autuação.
“De fato, como o Direito visa à obtenção da res justa, de que nos falavam os antigos
romanos, todas as normas jurídicas, especialmente as que dão efetividade às garantias
constitucionais, devem procurar tornar segura a vida das pessoas e das instituições.
Muito bem, o Direito, com sua positividade, confere segurança às pessoas, isto é, ‘cria
condições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de seus
próprios atos e dos atos dos outros’.
Como visto, a segurança jurídica deve ser objetivada como um dos próprios fins do
sistema constitucional tributário. Equivale afirmar que todo e qualquer ato deve ser
pensado tendo em vista esse fim.
Nesse momento, no entanto, nos interessa focarmos em um fator específico, qual seja, a
quantidade e complexidade da legislação tributária. Com efeito, sabemos que a
quantidade e complexidade da legislação tributária são um problema global. Contudo, no
Brasil, esse fator toma proporções astronômicas.
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Com efeito, de acordo com um levantamento realizado pela KPMG, o Brasil ocupa a
pior colocação entre os países da América Latina na quantidade de horas gastas para o
cumprimento das obrigações tributárias, chegando ao estonteante número de 2.600
horas gastas anualmente apenas para o cumprimento dessas obrigações.
Imagine o leitor, o robusto aparato administrativo que uma empresa precisa ter para
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cumprir com todas essas obrigações! Ainda, rememore-se que todo o dinheiro gasto
para a manutenção desse aparato não é dedutível para fins de apuração fiscal.
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Em agravamento a esse cenário, segundo levantamento do SEBRAE, 99,2% das
empresas no comércio e 95,5% das indústrias são Micro e Pequenas empresas,
sabidamente sem grandes estruturas administrativas e fiscais.
Para fechar esse crítico cenário de insegurança jurídica, atentamos ao fato de que, cada
dia mais, é o contribuinte o interprete primeiro da legislação tributária. Com efeito, pelo
chamado “lançamento por homologação”, aplicado à grande maioria das situações
tributárias, deve o contribuinte interpretar a norma e, a partir dela, verificar a ocorrência
do fato imponível, calcular a base imponível, determinar a alíquota aplicável e recolher
os valores eventualmente devidos aos cofres públicos.
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Heleno Taveira Torres atribuindo o nome de “comunidade de intérpretes” (ao fato de o
contribuinte integrando o conjunto de interpretes da legislação tributária, junto com o
administrador público e o juiz), confirma a ocorrência de lesão à segurança jurídica.
Confira-se:
“No Direito Tributário, isso significa que há segurança quando o contribuinte tem
condições de, em elevada medida, conhecer o Direito, confiar nele e calcular os seus
efeitos. A exigência de determinabilidade será tanto maior, quanto mais intensamente
forem restringidos os direitos fundamentais de liberdade, de propriedade e igualdade.
Esse é, precisamente, o caso do Direito Tributário, pela eficácia oneratória e indutora das
normas tributárias.”
No entanto, para as diversas outras situações, a boa-fé do contribuinte deve ser utilizada
como ferramenta de retorno ao estado de segurança jurídica, por meio de sua
consideração (inclusive obrigatória, por vezes) no momento de autuações fiscais.
4 A relevância da boa-fé do contribuinte em autuações fiscais
Seria o mesmo que admitirmos que a sanção deva ser aplicada à revelia do próprio
motivo de existência do sistema constitucional tributário – unicamente por estar
formalmente prevista em lei. Sob outro foco de análise, não é mais razoável, diante da
abundância e complexidade da legislação tributária, que se autue o contribuinte sem se
considerar efetivamente a sua boa-fé.
Voltando ao nosso escopo de observação, há, no Estado de São Paulo, disposição legal
que se coaduna com o nosso entendimento acima exposto. Com efeito, a Lei Estadual
(SP) 6.374/89, assim dispõe em seu art. 72, § 2.°:
(…)
Temos que essa disposição alinha-se ao quanto defendido linhas acima: a observância
da boa-fé do contribuinte, no sentido de, por exemplo, intimá-lo a regularizar um
eventual erro formal, ou a recolher um tributo inadimplido, total ou parcialmente, é
obrigação da Administração Tributária (por meio de seus agentes e órgãos de
fiscalização). Não se faculta, mas se exige. Não deve ser verificada em um segundo
momento, (como, por exemplo, em processo administrativo ou judicial) mas sim, antes
de qualquer autuação.
Não seria necessário dizer, mas para evitar dúvidas, estão fora desse contexto,
obviamente, aqueles contribuintes que, de má-fé, utilizam “erros formais” ou “dúvidas
razoáveis” para burlarem a legislação tributária e se locupletarem ilicitamente. Contudo,
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a presunção deve ser sempre pela boa-fé do contribuinte, devendo ser comprovada a
má-fé do agente.
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III – ficar constatado que a infração não trouxe prejuízos à fiscalização, assim entendida
qualquer ação ou omissão que:
V – o contribuinte não possuir débitos, inscritos ou não em dívida ativa, ou, caso possua,
estiverem com exigibilidade suspensa, observado o disposto no item 2 do § 2º.
(destacamos)
Relatório e Voto:
No caso dos autos, muito embora o contribuinte tenha agido em desconformidade com o
estabelecido na legislação tributária, entendo que não seria desarrazoado notificá-lo
previamente a fim de que regularizasse sua situação, mediante o estorno dos créditos
transferidos em excesso. Creio que a Administração Tributária deve evoluir no sentido
não de privilegiar o incumpridor, mas sim de acercar-se de seus contribuintes,
perseguindo o cumprimento voluntário da obrigação tributária, seja principal, seja
acessória, ainda que esse cumprimento voluntário seja induzido por comunicações fiscais
para que o contribuinte caminhe para a conformidade. É o caso dos autos. Em meu
sentir, a notificação prévia evitaria o desgaste de uma autuação, tanto para o Fisco
como para o contribuinte e caminharia de forma mais eficiente na direção do que deve
ser o verdadeiro fim a ser perseguido pela Administração Tributária, que é o
cumprimento das obrigações tributárias, repito, ainda que de forma induzida.
Cumprimento o d. juiz com vista, Dr. Flávio Nascimbem de Freitas, pelo voto proferido
acerca da Instrução Normativa CAT 10/68, com o qual concordo no sentido de que não
obriga o Fisco.
Não obstante, como expus, creio que a Administração Tributária deve caminhar nesse
sentido nos casos em que não se vislumbra redução ou supressão de imposto.
Nesse sentido, meu voto é para acompanhar o voto de relatoria proferido pelo i. Dr.
Osvaldo Zorzeto, para negar provimento ao Recurso de Ofício, considerando ainda haver
tempo para o que se propõe em seu voto, qual seja, que o Fisco realize a notificação ao
contribuinte para fins de estorno, sob pena de autuação.
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É como voto.” (destacamos)
Observe que o julgado acima ilustra bem o ponto que defendemos. Bastaria uma ação
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jurídica do sistema tributário nacional
BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2015.
FOLLONI, André. Reflexões sobre complexity science no direito tributário. In: MACEI,
Demetrius Nichele et. al. (coord.). Direito tributário e filosofia. Curitiba: Instituto
Memória, 2014, p. 24-37.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros,
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Segurança jurídica e autuação fiscal: A relevância da
boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional
2010.
TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução Luiz Dória
Furquim. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2012.
1 FOLLONI, André. Reflexões sobre complexity science no direito tributário. In: MACEI,
Demetrius Nichele et. al. (coord.). Direito tributário e filosofia. Curitiba: Instituto
Memória, 2014, p. 24-37.
2 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros,
2010, p. 171.
3 STJ Recurso Especial 1.148.444/MG, Relator Ministro LUIZ FUX, 1.ª Turma.
6 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30.ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2015. p.455.
7 Ibidem. p. 455-456.
9 Ibidem. p. 193.
10 Ibidem. p. 187.
13 Ibidem, p. 255-256.
14 Ibidem, p. 256-362
15 Ibidem, p. 264-265.
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boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança
jurídica do sistema tributário nacional
22 Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções
internacionais e dos decretos:
I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;
Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de
penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de
cálculo do tributo.
23 Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades,
interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I – à capitulação legal do fato;
24 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
304.
26 TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução Luiz Dória
Furquim. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2012, p. 103 a 111.
30 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
187.
33 Idem. p. 226-227.
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