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Um Sermão de S. Cesário de Arles (470-543)


Nota Introdutória e Tradução: Jean Lauand

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

São Cesário (470-543) viveu no período de transição da Antigüidade para a Idade Média, momento em que os povos
germânicos ocuparam progressivamente o sul da Gália e começaram a se misturar à população católica, galo-romana.
Tornou-se bispo de Arles em 503, a partir de quando se sucederam três regimes políticos: o visigótico de Alarico II
(503-507), o ostrogótico de Teodorico (508-536) e, finalmente, o franco (único católico dos três).

Mais voltado para a moral prática do que para especulações teológicas, Cesário devota-se à pastoral, às paróquias de
sua diocese e ao mosteiro de religiosas "São João", por ele fundado, e dirigido por sua irmã Cesária.

Como bispo, Cesário dirige-se aos rustici numa linguagem simples, compreensível e, na medida do possível,
compreensiva...

O sermão 13 [1] , apresentado a seguir, é típico da pregação para uma paróquia rural, para aquele povo - sobretudo o
do campo - inculto. Seu interesse particular reside no fato de que, nesse sermão, Cesário não se restringe a um tema
específico, mas aponta um quadro geral dos principais problemas morais e religiosos de seu meio.

Nota-se, a cada passo, a intenção educadora da Igreja, lutando contra os hábitos da embriaguez, rixas e outros
entulhos do paganismo ainda não totalmente desarraigado num povo rude e grosseiro que mistura devoção com
pancadaria, sinal da cruz com aguardente, piedade com superstição.

S. Cesário de Arles - Sermão 13 (para uma paróquia rural)


I

Eu vos rogo, irmãos caríssimos, que reflitamos sobre o significado de sermos cristãos e sobre o sinal da cruz de
Cristo que trazemos na fronte. Não nos basta - bem devemos saber - termos recebido o nome de cristãos se não
agimos como cristãos, conforme disse o próprio Senhor no Evangelho: "De que adianta dizer: <<Senhor, Senhor>>,
se não fazeis o que eu digo?" (Lc 6,46). Se mil vezes te proclamas cristão e fazes o sinal da cruz, mas não dás esmola
de acordo com tuas possibilidades e não queres ter amor, justiça e pureza, de nada te aproveitará o nome "cristão".

Sim, é uma grande coisa o sinal de Cristo e a cruz de Cristo, mas, precisamente por isso, grande e preciosa deve ser
também a realidade assinalada por tão precioso sinal. De que adianta fazer um selo de ouro, se o que está por dentro é
palha podre? De que adianta andar com o sinal de Cristo na fronte e na boca se o que ele encerra são nossos pecados
e delitos? Pois, quem pensa mal, fala mal e age mal e, se não quiser corrigir-se, a cada sinal da cruz seu pecado não
só não diminuirá como aumentará.

É o caso de muitos que, ao furtar, adulterar ou agredir a pontapés, fazem o sinal da cruz e nem por isso deixam de
fazer o mal. Ignoram esses infelizes que, com isso, atraem mais demônios para dentro de si em vez de expulsá-los.

Já quem, com a ajuda de Deus, afasta de si os vícios e os pecados, lutando por pensar o bem e realizar o bem, este
imprime de verdade o sinal da cruz sobre seus lábios: pois esse agir, sim, é digno de receber o sinal de Cristo. E já
que está escrito: "O reino de Deus não consiste em palavras mas em virtudes" (ICor. 4,20) e também: "A fé sem obras
é morta" (Tg 2,26), não usemos, pois, o nome de cristãos para nossa condenação, mas para nossa cura e dediquemo-
nos às boas obras enquanto ainda podemos lançar mão dos remédios.

II

E para que, com o auxílio de Deus, possais seguir esse caminho, convivei em paz e chamai à concórdia os que estão
em discórdia. Fugi da mentira e temei o perjúrio como a morte perpétua. Não digais falso testemunho e não furteis. E,
sobretudo, como já dissemos, dai esmolas aos pobres de acordo com vossas possibilidades. Apresentai vossas
oferendas ao altar: um homem abastado deveria ter vergonha de agregar-se à oferenda do outro, dispensando-se de
sua própria oferenda. Os que podem ofereçam círios ou óleo para as lâmpadas. Memorizai o Símbolo e o Pai-Nosso,
e ensinai-os a vossos filhos, pois não sei como pode alguém dizer-se cristão e não se empenhar sequer em saber os
poucos artigos do Símbolo e o Pai-Nosso.

Sabei que sois responsáveis diante de Deus pelos filhos, que trouxestes ao Batismo: deveis ensinar e corrigir tanto os
vossos próprios filhos como os afilhados para que vivam uma vida pura, justa e sóbria. E vós mesmos agi de tal
maneira que, querendo vossos filhos imitar-vos, não acabem ardendo convosco no fogo eterno mas, a vosso lado,
atinjam o prêmio da vida eterna.

Que os juízes julguem justamente e não aceitem presentes para decidir contra os inocentes, "pois os presentes cegam
os corações dos sábios e corrompem as palavras dos justos" (Dt 16,19), e temam ganhar dinheiro à custa de perder a
alma. Ninguém obtém um lucro injusto sem a justa perda: onde o lucro, aí a perda - lucro para os cofres, perda para a
consciência...

Que ninguém se embebede ou induza outros, num repasto, a beber mais do que convém: não venha a perder sua alma
pela bebedeira própria ou alheia.

III

Aos domingos, reuni-vos na igreja. Se os infelizes judeus celebram o sábado com tamanha devoção que nesse dia não
realizam nenhum trabalho, quanto mais não deve o cristão dedicar o domingo somente a Deus e vir à igreja em
benefício de sua alma? Quando vierdes às reuniões da igreja, orai por vossos pecados e não entreis em discussões
nem provoqueis discórdias ou escândalos. Quem vem à igreja para tais coisas agrava a ferida de sua alma,
precisamente onde, pela oração, poderia curá-la.

Na igreja, não fiqueis tagarelando, mas ouvi pacientemente as leituras da palavra de Deus. Quem fica conversando na
igreja deverá prestar contas, não só do mal que causa a si mesmo, mas também do que causa aos outros: pois nem ele
ouve a palavra de Deus nem deixa que os outros a ouçam.

Dai o dízimo de vossos proventos à Igreja. Aquele que foi soberbo seja humilde; o que era adúltero seja casto; o que
costumava furtar ou apropriar-se das coisas alheias que comece a dar de seu próprio patrimônio aos pobres. Quem foi
invejoso seja benevolente; seja paciente o iracundo, quem ofendeu apresse-se a pedir perdão e o ofendido apresse-se
em ser misericordioso.

Toda vez que sobrevier uma doença, o que a sofre receba o corpo e o sangue de Cristo; peça humildemente e com fé
ao sacerdote a unção com o óleo bento a fim de que se cumpra nele o que está escrito: "Algum de vós está doente?
Chame os presbíteros para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo, e a oração da fé salvará o enfermo, elevando-o
ao Senhor. Se tiver cometido pecados, ser-lhe-ão remitidos" (Tg 5,14-15).

Vede, irmãos, como quem recorre à Igreja em sua doença obtém a saúde do corpo e a remissão dos pecados. Se é
possível, pois, encontrar este duplo benefício na Igreja, por que há infelizes que se empenham em causar mal a si
mesmos, procurando os mais variados sortilégios: recorrendo a encantadores, a feitiçarias em fontes e árvores,
amuletos, charlatães, videntes e adivinhos?

IV

Como disse há pouco, exortai vossos filhos e parentes a viver uma vida pura, justa e sóbria. Não só com palavras mas
também com a força do bom exemplo.

Antes de mais nada, onde quer que estejais, em casa, em viagem, comendo ou em reuniões, não profira vossa boca
palavras torpes e obscenas, e exortai os vizinhos e vossos próximos a que falem sempre o que é bom e belo, e não
palavras más ou maledicência. Evitai as danças organizadas nas festas religiosas, com suas canções torpes e
obscenas: a língua, com a qual o homem deveria louvar a Deus, é então usada para ferir a si mesmo.

Esses infelizes e miseráveis que, sem vergonha e sem temor, promovem seus bailes e danças bem diante das próprias
basílicas dos santos, tendo vindo à igreja como cristãos, dela saem como pagãos: pois tais bailes são restos de
paganismo. E dizei-me que tipo de cristão é esse que veio à igreja para orar, mas se esquece da oração e não se
envergonha de entoar cânticos sacrílegos pagãos. Considerai ainda, irmãos, se é justo que a boca cristã, que recebe o
próprio corpo de Cristo, entoe cânticos obscenos, um veneno do diabo.

E, principalmente, fazei aos outros tudo o que quiserdes que os outros vos façam, e não façais aos outros o que não
quiserdes que vos façam. Se cumprirdes isto, podereis preservar vossas almas de todo o pecado. E todos, mesmo
aqueles que são analfabetos, devem guardar estas duas sentenças na memória e, com a ajuda de Deus, podem e
devem pô-las em prática.

E ainda que eu creia que, com a ajuda de Deus e graças a vossos esforços, erradicados estão daqui aqueles
desgraçados costumes herdados do paganismo, no entanto, se ainda souberdes de alguém que pratique a torpeza
sordidíssima das annicula ou do cervulus [2] , repreendei-o severamente para que se arrependa de ter cometido
sacrilégio. E, se conhecerdes quem ainda lança clamores à lua nova, exortai-o e mostrai-lhe quão grande é este
pecado de ousar confiar-se à proteção da lua - que, simplesmente, por ordem de Deus, esconde-se de tempos em
tempos - por meio de seus gritos e imprecações sacrílegas.

E se virdes alguém dirigir votos junto a fontes ou a árvores e ir procurar, como já dissemos, charlatães, videntes e
adivinhos, pendurar no próprio pescoço - ou no de outros - amuletos diabólicos, talismãs, ervas ou âmbar, repreendei-
o duramente, dizendo que quem cometer estes males perderá a consagração do Batismo.

Ouvi dizer que ainda há certos homens e mulheres tão assolados pelo diabo que, às quintas-feiras, não fazem eles
seus trabalhos nem elas fiam. Diante de Deus e de seus anjos, nós os admoestamos: todo aquele que persistir nessas
observâncias, e não expiar por dura e longa penitência esse grave sacrilégio, será condenado ao fogo em que arde o
demônio. Esses infelizes e miseráveis que não trabalham às quintas-feiras, em honra de Júpiter, são os mesmos, não
duvido, que não temem nem se envergonham de trabalhar aos domingos. Se conhecerdes algum desses tais,
repreendei-o duramente e, se ele não quiser se emendar, não o admitais em vossa mesa nem em vosso trato. Se são
vossos escravos, castigai-os com o açoite: que temam a chaga do corpo, já que não se preocupam com a salvação de
sua alma.

Nós, caríssimos irmãos, conscientes de nossa responsabilidade, advertimo-vos com solicitude paterna: se de bom
grado nos ouvirdes, dar-nos-eis uma grande alegria e chegareis felizmente ao reino de Cristo. Que Ele se digne vo-lo
conceder, Ele que, com o Pai e o Espírito Santo, vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

[1] . O texto latino encontra-se em CCL 103, Sermones Sancti Caesarii Arelatensis - Pars Prima, studio D. Germani
Morin O.S.B., ed. altera, Turnholti, Brepols, 1953.

[2] . Cervulus e annicula - facere ou exercere cervulum ou agniculas -eram práticas pagãs que envolviam fantasias
(de cervo/cordeirinha). Em outro sermão - 129,2 - , Cesário investe duramente contra o hábito - próprio das calendas
de janeiro - de fazer cervulum: os que assim procedem, querem não só se vestir de animal, mas transformar-se em
animal ("Qui cervulum facientes in ferarum se uelini habitus commutari").

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