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ASSIM DIZIA
O MESTRE
UNIVERSALISMO
ASSIM DIZIA O MESTRE
São tentativas do autor para expor e explicar, numa linguagem filosófica e dos
nossos tempos, os “ditos de Jesus”, originariamente compilados e escritos
pelos evangelistas do primeiro século – Mateus, Marcos, Lucas e João.
Isto, todavia, não invalida a nossa tese de que o cristianismo é, em sua íntima
essência, a religião do uso, ou seja, da afirmação do mundo – naturalmente
para os que já se libertaram da velha escravidão do abuso das coisas
materiais.
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se
aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa
mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
A grande aceitação dos dois primeiros volumes desta série sobre a “Sabedoria
do Evangelho” – 1 – Filosofia Cósmica do Evangelho; 2 – O Sermão da
Montanha – evidenciou a necessidade de encararmos a mensagem do
Nazareno sob o ponto de vista puramente espiritual, independente de qualquer
teologia eclesiástica. A Era do Aquário em que acabamos de entrar exige uma
visão universalista do Evangelho, cujo caráter é essencialmente cósmico.
Para que o homem cruze a invisível fronteira que medeia entre a simples
análise mental e teológica do Evangelho e sua intuição espiritual e cósmica, é
necessário que ele crie dentro de si um clima ético favorável, porque a vivência
ética é o preliminar indispensável para a experiência mística, sem a qual o
Evangelho continua um “tesouro oculto”.
“Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais entrou em coração
humano o que Deus preparou àqueles que o amam”.
“NINGUÉM VAI AO PAI A NÃO SER POR MIM.”
Entretanto, a culpa desses males não cabe ao inspirado autor destas palavras,
mas à falsa interpretação dos que se dizem seus discípulos, sem possuírem o
espírito do grande Iluminado.
Nenhum homem que não receba essa mesma unção (“chrisma”) do espírito de
Deus pode ir ao Pai. Ninguém vai a Deus a não ser através da unção do
espírito de Deus. A nossa natureza humana deve ser tão penetrada e
permeada do espírito de Deus que possamos dizer com Jesus Cristo: “Eu e o
Pai somos um”.
***
Certamente não o Jesus humano, que não existia ainda, mas sim o Cristo
divino, que estava com Deus, e encarnou no filho de Maria.
“Ninguém vem ao Pai a não ser por mim.” Abraão, Moisés, Davi e muitos
outros foram ao Pai por meio do Cristo, muito antes que esse Cristo se tivesse
revelado em Jesus. A redenção vem do Cristo. “Eu sei que meu redentor vive!”
– exclama Jó, no meio dos seus sofrimentos, professando a fé no Cristo
Redentor, milênios antes do nascimento de Jesus.
***
Seria grotesco supor que Paulo acreditasse que a pessoa humana de Jesus
tivesse tomado posse dele, de maneira que nele houvesse uma duplicata de
personalidades, uma chamada Paulo e a outra chamada Jesus. O que o
apóstolo quer dizer é que nele acordou o Cristo que nele estivera dormente
tantos anos, o mesmo Cristo que em Jesus estava gloriosamente operante.
É, pois, necessário que todo homem que queira ir ao Pai acorde em si o Cristo
e o faça soberano da sua vida, porque a todos aqueles “que o recebem dá-lhes
ele o poder de se tornarem filhos de Deus”.
Ninguém alcança a redenção, o reino dos céus, a não ser que nasça de novo
pelo espírito.
“ALEGRAI-VOS, PORQUE OS VOSSOS NOMES ESTÃO
Com outras palavras: o alvo principal do apostolado não está nos resultados
visíveis da atividade externa, mas sim na invisível realidade da santidade
interna. Ser é mais importante que fazer.
Até os nossos dias, são bem mais numerosos os homens que põem maior
ênfase nas atividades externas do que na atitude interna; dificilmente
compreendem que esta é mais importante do que aquelas.
O convertido é aquele que pode, em verdade, dizer: “Eu e o Pai somos um”.
“Já não sou eu que vivo, o Cristo é que vive em mim.”
Pouco importa o que o que o homem diga, faça ou tenha – tudo importa o que
ele é. O que ele é refere-se à qualidade do seu íntimo Eu – o que ele diz, faz
ou tem refere-se às quantidades do seu externo ego.
Onde quer que exista um homem plenamente realizado pelo Amor, ali serão
realizadas grandes coisas, e essas coisas serão fecundas e benéficas; mas
onde não há realização pelo Amor, senão apenas caridade, ali se realizarão
ruidosos trabalhos externos, que, por melhores em si mesmo, correrão perigo
de colapso e desintegração, por falta de sacralidade interior.
Pouco importa o que o homem realize no mundo externo dos objetos – tudo
importa o que ele realiza em si mesmo. Uma única auto-realização supera
todas as alo-realizações.
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[1] A palavra grega “ángelos”, em latim “angelus” (anjo), quer dizer literalmente “emissário”, “arauto”,
“mensageiro”, designando entidades conscientes e livres revestidas de corpo imaterial e invisível. Quando
um ser desses de alta hierarquia cósmica se opõe a Deus chama-se “satã”, palavra hebraica para
“adversário”, em grego “diábolos”, que quer dizer “opositor”. Quando essa entidade superior harmoniza
com o espírito de Deus e lhe transmite a vontade aos planos inferiores do cosmos, chama-se
significativamente “mensageiro” ou “ángelos” (anjo). Tanto anjo como diabo são “lúcifer”, mas, enquanto
aquele é um “lúcifer” harmonizado com Deus, este é hostil a Deus.
Não há cristão, nem outro homem religioso, que não afirme amar a Deus do
modo como vem expresso nestas luminosas palavras do divino Mestre.
Entretanto, vai nisso, quase sempre, uma grande ilusão. Por quê?
O crente, quando muito, quer amar, mas não ama de fato. Querer amar é um
ato volitivo, uma prova de boa vontade, mas não é amar. O amor, assim como
Jesus o descreve nas palavras acima, não é apenas um ato de boa vontade,
mas é o resultado de uma profunda, misteriosa e fascinante experiência vital do
homem em toda a sua plenitude – alma, coração, mente e corpo. Ninguém
pode amar um ser ausente, do qual ouviu falar e no qual crê apenas
volitivamente. O Deus da nossa crença é um Deus longínquo, transcendente –
ao passo que o Deus do nosso amor é um Deus propínquo, imanente. Quem
apenas crê num Deus distante, transcendente, pode, sim, querer amá-lo, mas
não o pode amar de fato. O amor real é algo intensamente próximo, íntimo,
ardente; é uma verdadeira fusão do amante e do amado – “eu e o Pai somos
um”, “o Pai está em mim, e eu estou no Pai”.
Mas, como os verdadeiros místicos são raros, bem poucos são os homens que
realmente amam a Deus de acordo com as palavras de Jesus. Talvez que, até
a presente data, um só homem tenha atingido as culminâncias desse amor
integral. E era precisamente esta a razão por que possuía “todo o poder no céu
e na Terra”, porquanto o verdadeiro amor é onipotente por sua própria
natureza.
Compreender, amar e poder – essas três coisas são na realidade uma só.
E uma vez que o homem tudo compreende e tudo ama – que limite poderia
haver ainda para o seu poder?
Se sem limites é o seu compreender e o seu amor, sem limites tem de ser,
necessariamente, o seu poder.
***
Mas o que, à primeira vista, nos parece estranho é que o homem possa amar a
Deus também com o coração, com a mente e até com as forças do corpo.
Como posso amar afetiva, intelectiva e até fisicamente um Ser que é puro
espírito? Como podem o coração, a mente, o corpo atingir esse objeto de
amor?
Se Deus não fosse imanente em suas obras, ninguém o poderia amar com as
faculdades do coração, da mente e do corpo.
Ter – ou Ser?
Ter – ou Ser?
É a estes que Jesus se refere nas palavras que encimam o presente capítulo:
“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”
Quer dizer quer qualquer ter, ou posse de objetos externos, impede o homem
de ser discípulo do Cristo, ele, que não tinha onde reclinar a cabeça – nada
tinha porque tudo era; porque o seu ter descera ao ínfimo nadir, quando o seu
ser atingira o supremo zênite. Por fim, renunciou também ao ter mais
intimamente ligado ao ser, o corpo físico. E assim acabou ele de “entrar em sua
glória”.
Essa verdade libertadora sobre nós mesmos porém está na experiência íntima
da nossa essencial identidade com Deus – “eu e o Pai somos um” – e na
completa harmonia da nossa vivência cotidiana com essa verdade suprema.
***
Mas... não é necessário que o homem, aqui no mundo, possua certas coisas?
Poderá ele viver decentemente sem possuir nada? Bastará aqui na Terra o
simples e puro ser? E não é um certo ter compatível com esse ser?
Não há nada no Evangelho em que o divino Mestre insista com maior rigor e
frequência do que no espírito de absoluta e total renúncia aos bens terrenos;
por sinal que ele considera a posse desses bens como absolutamente
incompatível com o espírito do reino de Deus.
À primeira vista, parece possível e até necessário esse consórcio entre o ser e
o ter, razão por que os teólogos e moralistas cristãos de todos os tempos têm
tentado realizar esse congraçamento. Entretanto, continua a ser verdade
inconcussa que “ninguém pode servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro”.
Ter algo e ser alguém são duas antíteses tão inexoravelmente hostis que
nenhum tratado de paz é possível entre essa duas potências, assim como
impossível é um consórcio entre as trevas e a luz, entre o não e o sim, entre a
morte e a vida.
Lemos nos Atos dos Apóstolos que entre os primeiros discípulos do Cristo não
havia propriedade particular, mas que todos os bens eram comuns. Não existia
nenhuma lei externa que obrigasse os cristãos a socializarem os seus bens,
mas havia neles a lei interna do amor nascido da compreensão da grande
verdade de que todas as coisas do mundo são de Deus e que nenhum filho de
Deus tem o direito de arrogar a posse exclusiva duma parte desses bens. A
administração desses bens deve ser entregue a pessoas que tenham maior
capacidade, e sobretudo maior espírito de desapego, mas o usufruto dos bens
deve reverter sempre em prol da humanidade como tal. Se os homens se
considerassem administradores, em vez de possuidores dos bens materiais,
seria proclamado o reino de Deus sobre a face da Terra; cessariam guerras,
explorações, brigas, roubos, assassinatos, etc. “A cobiça é a raiz de todos os
males”, dizem os livros sacros.
***
O que eu considero meu só tem função enquanto ainda vive em mim a noção
do eu físico-mental; no momento em que o meu pequeno eu personal se afogar
nas profundezas do TU divino e no vasto NÓS da humanidade, deixa esse
conceito de meu ter razão de ser; é como um objeto suspenso no vácuo,
depois que se lhe foi subtraído o sujeito de inerência que lhe servia de base e
substrato.
Por isso, o homem que atingiu a plenitude do seu ser, pelo despontar da
consciência cósmica, perde toda a noção de posse e propriedade. Nada
adquire e nada perde. O fluxo e refluxo incerto de lucros e perdas deixou de
existir para ele, e com isso foi eliminada a fonte principal da inquietação que
atormenta os profanos. Nada possui que o mundo lhe possa tirar, e nada
deseja possuir que o mundo lhe possa dar. Entretanto, se as circunstâncias
terrenas o nomearam administrador do patrimônio de Deus e da humanidade,
esse homem administra com a máxima solicitude esse patrimônio terrestre
universal.
Pela mesma razão, o homem que se despojou dos teres pela maturação do ser
não experimenta a menor dificuldade nem tristeza em passar a outras mãos a
gestão dos negócios temporários que lhe foi confiada.
Esse homem descobriu que nós não temos dinheiro algum, mas que todas as
coisas do mundo são de Deus; entretanto, pode o administrador dos bens de
Deus tirar para si uma pequena “comissão”. Le Tourneau, no princípio, tirava
uma comissão de 90% para si, dando 10% a Deus, para fins de altruísmo e
religião; por fim inverteu as quotas, dando 90% a Deus e guardando 10% para
si. Entretanto, mesmo desses 10%, Le Tourneau não se considerava
proprietário, senão apenas administrador, porque também esse dinheiro
pertencia a Deus e à humanidade.
“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”
“QUEM DE VÓS ME ARGUIRÁ DE UM PECADO?”
Ora, sendo o Cristo a Razão, o Logos, o Espírito divino – como poderia haver
pecado na zona da impecabilidade?
Mas não estamos separados de Deus, porque Deus está imanente em cada
uma das suas creaturas.
Não somos idênticos a Deus nem separados de Deus – mas somos distintos
dele, porque somos iguais a Deus pela essência divina universal – e somos
desiguais dele pela existência humana individual.
O intelecto separatista nos faz pecar – a razão unista nos redime do pecado.
Ninguém vai ao Pai a não ser pelo Cristo – o Cristo, porém, como diz o quarto
Evangelho, é o divino Logos, a Razão suprema, que fez carne e habitou entre
nós.
“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo” – dura era
essa linguagem da renúncia aos bens externos – duríssima é a exigência de
odiarmos a nossa própria vida.
Por quê?
Porque, para a maior parte das pessoas piedosas, a chamada meditação não
passa de um dulçoroso devaneio, uma espécie de cochilo devocional, um tal ou
qual namoro com o mundo espiritual, sem nenhum efeito radical decisivo sobre
a vida.
Enquanto o homem não descobrir o seu verdadeiro Eu, não pode abrir mão do
seu pseudo-eu, seu ego personal, porque esse ego é, para ele, o que há de
mais alto e perfeito em sua natureza. A natureza tem “horror ao vácuo”. Não é
possível realizarmos uma vacuidade de sentimentos e pensamentos, enquanto
não tivermos uma plenitude maior que substitua essa vacuidade. A renúncia
meramente negativa é impossível. É lei de psicologia que o homem não possa
renunciar a um bem enquanto não conseguir outro bem maior. Só na presença
de algo maior é que desaparece o menor. Ninguém pode perder a consciência
físico-mental enquanto não adquirir a consciência espiritual. Ninguém, pode
abandonar o 10 enquanto não tiver a certeza de alcançar 15 ou 20 ou mais. A
renúncia é um ato eminentemente positivo. O seu fim não é empobrecer, mas
enriquecer o renunciante. Pela renúncia o homem “morre”, é verdade, mas
morre para o pouco a fim de viver para o muito; morre para uma vacuidade a
fim de viver para uma plenitude. Pela renúncia, o homem transcende o que ele
é, a fim de ascender ao que pode vir a ser; ultrapassa uma colina a fim de
atingir as alturas do Himalaia. Quem se agarra ao pouco não pode possuir o
muito – por falta de renúncia creadora!
Ninguém pode razoavelmente sacrificar a sua vida física enquanto não houver
compreendido, com suficiente nitidez e firmeza, que existe uma vida maior e
mais abundante do que a do corpo, e que a perda desta não é uma perda real,
uma vez que a pequena vida perdida está contida na grande vida recém-
adquirida.
Ninguém pode, por exemplo, renunciar ao impulso erótico enquanto não tiver
saboreado as glórias da mística, como “eunuco do reino de Deus”. Depois de
conhecer a mística por vivência própria, pode o homem abandonar a erótica,
porque já não representa uma perda em face daquele lucro maior. O menor
está sempre contido no maior. O menor sacrificado por causa do maior é uma
perda aparente, mas um lucro real, porque o menor integrado no maior adquire
maior realidade do que antes tinha, quando separado.
Renunciar aos teres do ego humano a fim de ser o grande EU crístico é lucro e
grande riqueza.
EM MIM TAMBÉM!”
Há, nos livros sacros, duas palavras que, em nossos dias, são de uso e abuso
diário, mas perderam o seu sentido primitivo, que foi substituído, através dos
séculos, por outro, incomparavelmente inferior. Mas os que nada sabem dessa
paulatina deturpação do sentido inicial continuam a usar essas palavras e
chegam a conclusões totalmente errôneas. Ficou o invólucro externo, mudou o
conteúdo interno.
O que os teólogos, por via de regra, chamam crer, ter fé, está para a fé real
assim como um fogo pintado está para o fogo real. Um fogo artificial, pintado
na tela, embora com absoluta fidelidade e arte incomparável, não dá luz nem
calor; com ele não se pode atear fogo em matéria alguma, por mais
combustível – ao passo que um fogo real, embora pequenino como uma chama
de fósforo, pode atear gigantescos incêndios, iluminar e acalentar o mundo
inteiro.
A fé verdadeira, como aparece nas páginas dos livros sacros, não é adesão a
uma determinada doutrina, nem a lealdade a esta ou àquela pessoa que
representa certa teologia; mas é uma experiência íntima, um compreender e
saber intuitivo, uma invasão ou eclosão do mundo divino no homem, uma como
que linha vertical que vem de ignotas alturas e vai a misteriosas profundidades;
a fé é um contato direto entre Deus e o homem, por mais inexplicável que seja
esse contato. Tudo que é anterior a essa fé e, por assim dizer, horizontal,
humano: nesse plano preliminar é o homem que age e produz; mas, quando a
misteriosa vertical corta a horizontal, é Deus mesmo que age e produz, suposto
que o homem se tenha tornado receptivo para essa invasão do mundo divino.
Tanto essa receptividade prévia como essa mesma experiência divina é que os
livros sacros chamam fé (em latim fides, em grego Pistis).
Debaixo duma folha verde se acha um ovinho de borboleta. Esse ovinho é uma
borboleta?
É – e não é.
Ora, que é que faz com que o ovo se transforme em lagarta, esta em crisálida,
e esta em borboleta?
***
***
Há para mim, e para todos os homens, dois grandes perigos nesse caminho de
evolução rumo ao Cristo: 1) o dualismo; 2) o panteísmo. Quem, em vista das
diferenças existenciais, não crê na sua identidade essencial com Deus não
pode chegar à “plena madureza com o Cristo”, porque cortou a linha vital da fé;
quem, por outro lado, em face da sua identidade essencial com Deus, perde de
vista as suas diferenças existenciais, identificando-se simplesmente com Deus,
esse não pode progredir rumo ao Cristo, porque já se julga temerariamente no
fim da jornada.
Se um ovinho não crê que possa vir a ser borboleta, ou acha que já é borboleta
atualizada – nunca virá a ser borboleta. É necessário crer tanto na identidade
da essência como na diversidade da existência, para que a alma daquela
possa vivificar o corpo desta.
***
A UM FERMENTO.”
As “três medidas” da massa humana – isto é, alma, mente e corpo – têm de ser
totalmente levedadas, permeadas e vitalizadas pelo misterioso agente.
***
***
***
O homem intelectual julga poder traçar o itinerário da sua vida; o seu estreito
luciferismo se arroga à competência de poder dirigir a sua vida. Só depois de
muitos sofrimentos e derrotas trágicas é que ele aprende, finalmente, que só
Deus pode traçar o itinerário da sua vida.
A SUA SEMENTE.”
Afirma o Mestre que o semeador – isto é, ele mesmo, o Cristo encarnado – foi
semear a boa semente da palavra de Deus – onde?
Parte à beira da estrada, onde nem sequer germinou, mas foi calcada aos pés
pelos transeuntes e devorada pelos passarinhos. Parte caiu em terreno
pedregoso, onde brotou, mas não tardou a morrer, por falta de umidade. Outra
parte caiu no meio dos espinhos, onde brotou, cresceu precariamente, foi
sufocada pelos espinheiros, e não frutificou.
Apenas pequena parte – talvez 25% – caiu em terreno bom, brotou, cresceu,
floresceu e frutificou. Mas nem essa semente produziu toda o mesmo fruto;
parte dessa sementeira deu trinta, outra parte sessenta e ainda outra cem
grãos por um.
Mas, porque não escolheu o semeador somente terra boa? Por que desperdiça
uns 75% da divina semente à beira do caminho, entre pedras e espinheiros?
Não sabia ele, de antemão, que em nenhum desses terrenos ia a semente
produzir fruto?
Segundo certas teorias nossas, Deus creou todas as almas iguais e deu a
todos os homens a mesma possibilidade de evolução. Afirmamos afoitamente
que a diferença da frutificação vem unicamente do homem – mas o teor dessa
parábola parece desmentir semelhante postulado. Não parece ter havido,
desde o início, terrenos de diferente receptividade? Efeito do uso ou abuso da
liberdade humana? Mas por que é que alguns homens usam e outros abusam
da sua liberdade, se, no princípio, todos eram perfeitamente iguais, com a
mesma facilidade de praticar o bem? Por que uns fizeram da sua alma terreno
estéril, outros semi-estéril e outros plenamente fecundo?...
Há quem descubra “injustiça” neste fato de haver Deus creado seres com
diversas possibilidades de evolução; acham que, para evitar “injustiça”, todos
os seres deveriam ter a mesma possibilidade de aperfeiçoamento; que todos
os minerais deveriam ter a potência de, um dia, passar a ser vegetais, estes
deveriam poder evolver para animais, estes para homens, e os homens
deveriam desenvolver-se em anjos, arcanjos, etc.
Nenhum mineral tem o direito de reclamar, dizendo “por que não me fizeste
vegetal, animal ou homem?”
***
Voltando à parábola do semeador, não é provável que todos os terrenos nela
mencionados fossem simples creação do livre-arbítrio do homem. Todos
tinham, de início, graus diversos de facilidade ou dificuldade para fazer frutificar
a semente da palavra de Deus. Não há liberdade completa em nenhuma
creatura; só o Creador é que é absolutamente livre. Liberdade é potência,
plena liberdade é plena potência ou onipotência. Se o homem fosse totalmente
livre seria onipotente igual a Deus. Os diversos graus de liberdade são herança
inicial de cada indivíduo, e essa herança, na primeira etapa, não corre por
conta da liberdade dele; é dom gratuito de Deus, é graça divina. Deus dá a
cada homem o grau de liberdade que lhe apraz. O homem é suficientemente
livre para ser responsável por seus atos conscientes, sendo por isso autor
responsável pelo bem e pelo mal que praticar; mas o grau de liberdade e
responsabilidade ética não é o mesmo em todos os homens.
***
***
A explicação que o próprio Jesus dá desta parábola não alude a esse aspecto
metafísico, que o auditório não comportava; limita-se a encarar o sentido ético
da parábola.
Há homens que não produzem fruto espiritual, porque o seu terreno interior é
por demais profano e devassado, como uma estrada pública, onde a semente
da palavra de Deus é logo calcada aos pés dos transeuntes e devorada por
entidades estranhas ao mundo espiritual. Nem sequer chega a brotar.
O que, em geral, se diz desta parábola, nas igrejas e nos colégios, é apenas o
aspecto moral da mesma – mas por debaixo dessa conhecida superfície se
estende a incomensurável profundidade cósmica que só uma intensa intuição
espiritual pode atingir em silenciosa vivência.
Quem é esse pai que não tenta dissuadi-lo do seu intento com uma só palavra?
E por que não aparece nenhuma mãe a chorar?
E que significa essa “porção de substância” a que o filho mais jovem diz ter
direito?
Por que o pai não pede ao menos que o jovem aventureiro lhe deixe o
endereço do seu paradeiro? Por que, durante a longa ausência, não lhe manda
um mensageiro para saber da sua situação?
O “filho mais jovem” do pai reclama a “porção da substância” a que tem direito,
diz a Vulgata latina; o texto grego do primeiro século diz que o jovem reclamou
o “epibállon tés ousías”, literalmente: “o que convém à natureza”. Que
conveniência é essa que o jovem reclama? É aquela parte da sua “ousia”
(natureza) que exige evolução longe da casa paterna, isto é, o ego personal, o
ego separatista, o Lúcifer, dormente na natureza humana.
Mas esse velho cidadão satisfeito consigo mesmo, graças a sua obtusidade
espiritual, não pôde transferir a sua infeliz satisfação para o infeliz insatisfeito
que a ele se agarra; neste grande naufrágio, esse jovem não estava ainda
suficientemente fossilizado no seu egoísmo para não sentir a sua profunda
infelicidade. O velho egoísta satisfeito manda o jovem egoísta insatisfeito para
sua granja, com a ordem de lhe guardar os porcos. Mas as vagens indigestas
que os porcos comiam não eram alimento para a fome do jovem. Por algum
tempo, sentado no meio da imunda manada, andou ele invejando o crepitante
apetite com que os suínos mastigavam o seu grosseiro repasto – e veio-lhe o
desejo de pelo menos “encher a barriga” – implere ventrem suum, como diz
cruamente o texto – já que não podia matar a fome com as vagens que davam
plena satisfação aos irracionais. Talvez os porcos não fossem felizes, cismava
o jovem, mas ao menos não eram infelizes como ele. Tenta então camuflar
com ilusões temporárias a sua infelicidade e narcotizar artificialmente uma voz
interna que não lhe dava sossego. Mas não havia quem lhe desse essas
vagens dos irracionais. Ele, o ser humano, não podia involver, regredir ao plano
dos seres inconscientes, e gozar da infeliz felicidade que eles gozavam...
Seria de esperar que aquele cidadão que o contratara lhe desse pelo menos
como passadio as vagens que os porcos comiam, mas, diz o Mestre
admiravelmente, tal não aconteceu. Nem podia acontecer! Ninguém dá o que
não tem. Como podia aquele velho egoísta, autocomplacente e satisfeito
consigo, dar satisfação ao jovem egoísta, insatisfeito com o que era?...
“Entrou em si mesmo”, pela primeira vez na vida, porque até essa data tinha
ele estado fora de si, andando num círculo vicioso ao redor de si, pelas
periferias do ego físico-mental. Depois de tantas evasões centrífugas, o jovem
iniciando realiza, finalmente, a feliz invasão centrípeta; ultrapassa o ego
humano e encontra-se com seu Eu divino!...
E fez-se a luz... O jovem viu claramente que ele não era escravo daquele tirano
que o mandara guardar os porcos, nem era pastor de animais imundos; viu que
isso não passava de funções temporárias e fictícias da sua humana
personalidade, mas não era a verdadeira natureza da sua divina
individualidade, do seu ser real... Verificou, com exultante surpresa, que ainda
não esbanjara totalmente o “quinhão da sua natureza”, era ainda filho daquele
pai que abandonara; a centelha divina, que tanto tempo dormia sob as cinzas,
acabava de romper em vívida chama, ao sopro da tempestade...
Nisto chega do campo o filho mais velho e, sabendo do que se tratava, recusa-
se a tomar parte nos festejos. Tenta o pai persuadi-lo da conveniência da
solenidade, mas o filho continua inflexível; nada compreende do lado positivo
do acontecimento; enxerga apenas o aspecto negativo e lembra que ele, há
tantos anos, serve ao pai em perfeita obediência, e este nunca lhe dera um
cabrito para ele celebrar um banquete com seus amigos.
O pai lhe fala no “irmão” dele; o despeitado, porém, só lhe chama “teu filho”. E
não tem ele razão? Já não existe afinidade entre os dois, entre o profano e o
iniciado, entre o homem que espera recompensa por ser bom e aquele que é
bom por amor.
Não basta cumprir os mandamentos do Pai, não basta evitar o mal e praticar o
bem – tudo isso é necessário, mas não é suficiente para a plena realização do
Eu – é necessário ser bom, que é incomparavelmente mais do que fazer o
bem. Fazer o bem é do plano moral, indispensável como preliminar; é ainda a
ética pré-mística sacrificial mercenária, que espera ser recompensada – o
iniciado, porém, que é intimamente bom, não espera nada disto – ama
simplesmente e é feliz nesse amor.
Eros tem de emprestar as suas vestes multicores para solenizar a luz incolor
da experiência mística.
Era costume, por ocasião das festas nupciais no Oriente, que o chefe da casa
entregasse a cada convidado uma preciosa veste.
O interpelado emudeceu, porque não tinha palavras com que justificar a sua
entrada ilegal. E o dono da casa deu ordem para que esse homem fosse atado
de pés e mãos e lançado nas trevas de fora.
Como entrara esse homem na sala do banquete? Ele que, internamente, não
estava onde externamente se achava? Ele, completamente fora do seu
ambiente evolutivo?
Mas ninguém pode entrar no reino dos céus nem pelas forças do ego personal
nem em virtude de algum ritualismo externo; só a verdadeira e genuína
maturidade espiritual é que lhe pode dar o direito de tomar parte no banquete
nupcial com o divino Esposo. Esse homem estava – ou fingia estar –
externamente onde internamente não estava, nem podia estar.
***
A fim de que o homem seja digno e idôneo para tomar parte nesse banquete, é
necessário que sua alma se ache ornada de uma veste especial, nova e
imaculada, dada como dom gratuito pelo senhor das núpcias. Não se admite
homem algum em trajo profano. A profanidade é do ego físico-mental, a
sacralidade é do Eu espiritual. Nem pela magia mental, nem pelo ritualismo
eclesiástico pode o homem merecer essa vestimenta; ela é essencialmente
uma “graça”, e por isso mesmo de graça.
Verdade é que uma moral sincera e pura pode e deve servir de estágio
preliminar para essa entrada no reino dos céus – mas nem toda moral é
suficiente para garantir ao homem essa entrada. Ela não é causa, é apenas
condição.
A essência do homem crístico não é a soma total dos seus atos virtuosos, que,
em última análise, são outras tantas linhas horizontais, cuja multiplicação,
embora indefinida, nunca dará a vertical. Os atos morais são outros tantos
zeros, de todos os tamanhos e cores, quer dizer, fatores espiritualmente
negativos, e vácuos; mas a soma total de zeros negativos, ou vácuos, nunca
dará algo positivo ou pleno.
Quem não cruzou essa fronteira interna, quem não passou por essa profunda
transmutação interior, não possui a veste nupcial, embora esteja,
externamente, na sala do banquete; não é ali o seu lugar; está desambientado;
não está sintonizado com seus colegas de veste nupcial; não está no céu,
internamente, e por isso é justo que nem externamente seja tolerado na sala do
banquete. Essa alma é uma das cinco virgens tolas que não tinham óleo nas
suas lâmpadas, e por isso estas se extinguiam, logo depois de acesas.
DE DIA E DE NOITE.”
É esta, sem dúvida, uma das parábolas mais misteriosas de Jesus. Focaliza a
vitalidade imanente da planta, que se desentranha, aos poucos, numa grande
variedade de formas e cores, sem a necessidade de uma intervenção de fora.
Assim acontece também com o reino de Deus, cuja marcha vitoriosa através da
humanidade ninguém pode sustar.
Não era possível que o “grãozinho de trigo” que era o cristianismo no ano 33 da
nossa era continuasse a ser, externamente, o mesmo no século 20. O seu
destino era crescer, evolver, expandir gradualmente todas as suas forças
latentes.
A imaturidade não é repugnante quando aparece como tal e não pretende ser
outra coisa do que é. Uma criança com modos infantis não é repugnante; pelo
contrário, pode ser até encantadora, com todas as ingenuidades e
infantilidades de sua idade; mas, quando assume ares de pessoa madura,
causa impressão ridícula, grotesca e até revoltante. Uma criança que se porta
infantilmente é agradável, uma criança que se porta adultamente é
desagradável – como, por outro lado, também seria grotesco o comportamento
infantil de um homem adulto.
Pode o símbolo ser útil para que, através dele, o homem profano chegue ao
simbolizado. O mal das igrejas e seitas não está em se servirem de símbolos; o
mal aparece quando alguma dessas sociedades organizadas proíbe seus
adeptos de ultrapassar a fronteira dos dogmas e símbolos e alcançar
simbolizado. Que diríamos de um condutor que obrigasse o viandante a parar
diante dum marco quilométrico à beira da estrada e olhasse apenas para a
flecha colocada na bifurcação ou encruzilhada do caminho, em vez de seguir o
rumo indicado? Não obedece ao sentido da flecha quem para ao pé dela, mas
sim aquele que se afasta da flecha, seguindo o rumo por ela indicado. Certas
igrejas ou seitas que levam a mal que seus adeptos ultrapassem esses
símbolos são como indicadores que não indicam, mas que exigem do
viandante a idolatria duma adoração do próprio marco. Quebraram a ponta da
flecha indicadora, para impedir que o viajor siga avante, ultrapassando o
símbolo indicador.
Assim, por exemplo, certa teologia ensina que o rito sacramental funciona ex
opere operato, isto é, automaticamente, quando isso é uma evidente negação
da alma da cristicidade para conservar o corpo da teologia. Jesus não deu a
nenhum objeto nem a uma fórmula mágica o poder de produzir efeito espiritual,
automaticamente, como um computador mecânico. Isso é uma reminiscência
dos “mistérios esotéricos” de Delfos, Elêusis etc. do tempo do paganismo
romano, que contaminou o cristianismo eclesiástico.
***
***
É uma ideia ingenuamente infantil que Deus tenha creado um mundo de pura
luz sem trevas – mas convém que tal coisa se diga em todos os jardins de
infância e escolas primárias, em todas as igrejas e colégios da nossa
humanidade primitiva. Ainda por muitos milênios necessitará a humanidade-
massa dessa ideologia horizontal para andar “bem comportada”. Imaginem! Se
tão malcomportados andamos com essa moral, o que seria de nós se esse
freio nos faltasse!...
Mas quando o homem chega à plena maturidade e adultez do espírito e
experimenta o Deus do Universo em si mesmo, verificará que ele não é bom
nem mau, no tradicional sentido disjuntivo da nossa teologia, mas que Deus
simplesmente “É”, sem nenhum aditamento positivo ou negativo. O SER não é
nenhuma das duas antíteses disjuntivas nem mesmo a síntese conjuntiva do
existir.
Deus não é bom nem mau, no sentido moral – Deus É, no sentido metafísico.
***
Não sabia Deus, de antemão, que Lúcifer havia de satanizar-se muitas vezes?
Sabia, certamente. Por que então creou um ser dessa natureza? Porque a
plenitude da natureza divina inclui tudo isso, porque é o Ser Universal,
onilateral, e não apenas este ou aquele aspecto unilateral do existir.
Dizer ao homem moralmente bom que Deus é tanto luz como sombra, positivo
e negativo, Cristo e Satã, seria horripilante blasfêmia – e por isso não o
dizemos a nenhum dos nossos leitores; só o poderíamos dizer a alguém que
tivesse ultrapassado o plano horizontal da nossa bondade moral e tivesse
mergulhado nos abismos verticais da metafísica absoluta – mas onde está
esse “alguém”?...
Não! Deixai crescer tanto o trigo como o joio até o tempo da colheita.
Para que não aconteça que, arrancando o joio, o operário arranque juntamente
com ele também algum pé de trigo, ou lhe desloque as raízes. Quer dizer que
os maus não devem ser exterminados por algum agente externo para que os
bons progridam e tenham mais oportunidade de ação e evolução. Assim,
porém, não pensam os organizadores de cruzadas, inquisições e excomunhões
– não! Para Jesus, os maus devem crescer ao lado dos bons, porque eles se
exterminarão a si mesmos, em virtude de um processo intrínseco de involução,
de amadurecimento negativo, se persistirem na sua orientação. A separação
será feita não por um agente externo, mas por um processo interno.
Coisa estranha! A eliminação violenta dos maus do meio dos bons não seria
vantagem, mas desvantagem, para estes últimos! Quão exata e profunda era a
intuição crística de Mahatma Gandhi, quando recomendava a ahimsa – e quão
anticristã é a doutrina de Tomás de Aquino e sua igreja, quando apregoam o
extermínio violento dos “hereges”...
O íntimo “ser” do homem produz aos poucos o seu externo “agir”. A separação
visível entre o trigo e o joio não é obra de Deus, mas do homem, que realizou a
separação invisível, pelo uso ou abuso da sua liberdade; o processo externo é
o simples corolário e a confirmação subsequente de algo já realizado pelo
próprio homem. Qualquer intervenção violenta de fora é anticósmica, antidivina.
Deus, que está “para além do bem e do mal”, tem aqui os seus agentes,
positivos e negativos, incumbidos de executar o grandioso plano cósmico do
SER ABSOLUTO. Ninguém pode frustrar um só átomo dos planos de Deus. A
creatura consciente e livre não tem a escolha entre realizar ou não realizar o
drama cósmico de Deus – só tem a escolha entre o modo de o realizar; pode
realizar os planos eternos gozando e pode realizá-los sofrendo – é esta a única
alternativa em poder do homem. Se uma creatura qualquer pudesse frustrar um
só dos planos de Deus, teria o finito prevalecido contra o Infinito, estaria o
Creador derrotado por sua creatura...
Parábolas profundas como esta não devem ser analisadas com o intelecto,
mas vividas com a alma...
Nestas parábolas brevíssimas, frisa Jesus dois aspectos típicos do reino dos
céus e de sua conquista pelo homem: o seu caráter oculto e a sua
preciosidade.
Esse crer não torna o homem sábio nem iniciado na Suprema e Única
Realidade, mas aplaina o caminho e remove os obstáculos que o obstruem.
Por isso, o homem crente experimenta um senso profundo de paz e
tranquilidade no caminho da sua crença; sente nitidamente que é bom crer,
porque é o caminho certo rumo à meta, que é o saber intuitivo da verdade,
essa verdade que liberta o homem e o torna feliz.
Diz o Mestre que esse tesouro se acha oculto num “campo”. É uma espécie de
mina de ouro ainda não explorada. Alguém descobre essa mina, guarda
segredo sobre o achado, adquire o campo e vai explorar o precioso metal.
O campo é o próprio homem, porquanto “o reino dos céus está dentro de vós”.
Antes de tudo, deve o homem “adquirir” esse campo; enquanto não o possui,
não pode apoderar-se do tesouro nele oculto. Enquanto o homem não for dono
de si mesmo, mas escravo das circunstâncias, não está em condições de
descobri o tesouro oculto no seu próprio interior. Tem de cavar fundo, rumo a
seu próprio centro, rumo a seu Eu divino e eterno. “Homem, conhece-te a ti
mesmo!” Quando o filho pródigo “entrou em si”, descobriu quem ele era! Não
escravo de um tirano cruel nem pastor de animais imundos, mas o filho de um
pai cheio de amor.
Quanto mais fundo o homem cava nesse campo do seu próprio ser, tanto mais
perde de vista a superfície do seu ego físico-mental e tanto mais se aproxima
do centro do seu Eu racional (espiritual). É dificílimo esse processo de
descobrimento do verdadeiro Eu; é, no dizer do Mestre, “um caminho estreito”
e uma “porta apertada”, como os acanhados corredores do interior de uma
mina. Chega o Mestre a comparar essa disciplina espiritual ao “fundo duma
agulha”. É, pois, necessário que o homem invoque todas as suas energias,
sobretudo as que se acham para além do seu ego consciente, porquanto “o
reino dos céus é alvo de violência, e os que usam violência o tomam de
assalto”.
É que temos de trabalhar com uma faculdade que se acha ainda, total ou
parcialmente, em estado de latência ou simples potencialidade. Despertar em
nós essa faculdade dormente, a razão, a alma, exige fé e vida, ou melhor, uma
fé plenamente vivida. Muitos têm fé nesse tesouro oculto, mas poucos
harmonizam a sua vida com sua fé, porque essa vivência da fé exige grandes
sacrifícios, exige a ultrapassagem do ego personal, egoísta, e o contato com o
Eu individual, que é amor e solidariedade universal. O nosso Eu espiritual nos
é, praticamente, desconhecido, ao passo que o ego físico-mental nos é muito
familiar. Temos de trabalhar, por ora, com uma ferramenta, a intuição espiritual,
que mais adivinhamos do que conhecemos.
Diz Jesus que o homem que encontra esse tesouro oculto guarda o segredo
sobre o seu achado – e esta observação é de uma importância fundamental. O
tesouro espiritual do reino dos céus é tão grande sacralidade que só o mais
reverente silêncio pode preservá-lo da profanação.
Quando alguém tem uma iluminação interior, uma revelação divina, deve ele
ser extremamente cauteloso e não expor o delicado tesouro à devassa de
olhos profanos. Somente com algum irmão espiritual, algum sócio de
experiência íntima, poderá falar, a meia-voz, sobre esse tesouro – ou calar-se,
mesmo em companhia dele... As essências preciosas se volatilizam facilmente;
por isso, convém manter o recipiente bem fechado...
***
Aquele jovem rico do Evangelho foi convidado por Jesus para se apoderar
desse “tesouro nos céus”, mas ele não teve suficiente fé e vida para vender
tudo que tinha, e possuir plenamente aquilo que ele era, e por isso “triste”, se
retirou da presença do Mestre. Os seus “teres” eram tão grandes que o jovem
era por eles possuído; o seu “ser” era ainda tão pequeno que não possuía
plenamente o jovem. Não descobriu o “tesouro nos céus”, porque ainda andava
apegado aos pseudotesouros da Terra. “Ninguém pode servir a dois senhores,
a Deus a ao dinheiro”...
Aquele jovem não era bastante aventureiro para perder de vista as praias e os
verdes litorais dos seus “objetos” e mergulhar no profundo oceano do seu
“sujeito” – e por isso não achou a pérola preciosa do reino dos céus... Depois
de realizar muitas coisas ao redor de si, não consegui realizar-se a si mesmo...
De tanto “ter” o que não era, não conseguiu “ser” o que era...
“ROUBASTES A CHAVE DO CONHECIMENTO
DO REINO DE DEUS.”
Os ouvintes não sabem definir o estranho sortilégio que lhes acontece; sentem
algo que não podem nomear... Têm a impressão de sair de um escuro
subterrâneo escassamente iluminado por fumegantes lâmpadas, e entrar
subitamente na imensa claridade solar.
Não há maior crime do que arvorar-se alguém em guia espiritual de outros sem
ter experiência pessoal com Deus e do mundo invisível. O profano conhecido
como tal pouco mal faz a seus semelhantes, porque ninguém o toma por guia
nas veredas incertas do universo espiritual; mas o profano que se arvora em
iniciado é um perigo para outros profanos que o tomam por um iluminado.
“Guia cego conduzindo outros cegos”...
Ultimamente, o Ocidente cristão foi invadido por gurus orientais, que se cercam
de mistérios e vestem roupagens iniciáticas, desorientando sobretudo a
juventude; usam certas técnicas exóticas e termos sânscritos, fazendo crer aos
incautos que com isso entram em contato direto com Deus. Alguns chegam a
recomendar o uso de drogas para produzir samadhi e experiência do mundo
espiritual.
Quem exerce o ritual sem possuir o espiritual é falso profeta; roubou a chave
do conhecimento do reino de Deus. Iludido, ilude os outros. Cego, conduz
outros cegos, e acabarão todos por cair na cova.
***
É necessário que o guia espiritual compreenda que a única possibilidade de
guiar os outros está em que ele se deixe guiar por Deus, e que nenhuma igreja
ou seita lhe pode dar essa experiência. Todas as igrejas e seitas são como
outros tantos marcos colocados à beira do caminho da vida, nas encruzilhadas
dúbias; quem parasse ao pé desses marcos ou se contentasse com olhar na
direção indicada pelas flechas não chegaria jamais ao termo da jornada. O
marco não deve ser adorado como fim, deve apenas ser olhado como meio de
orientação, e depois ultrapassado. Quem não ultrapassa os marcos dogmáticos
da sua seita não cumpre o seu destino.
Todo e qualquer guia que não me prepare para que eu possa, um dia, ter, por
mim mesmo e sem ninguém, esse encontro pessoal com Deus é guia cego,
não é condutor, mas sedutor.
O dia mais glorioso para o verdadeiro mestre é o dia em que ele se torna
supérfluo e dispensável, o dia glorioso em que a alma por ele guiada já não
necessita de guia, por se ter tornado espiritualmente autônoma e
independente, para andar segura e firme nos caminhos de Deus.
“QUEM NÃO TEM PERDERÁ ATÉ
Aquele servo preguiçoso possuía o capital recebido, que não era dele, mas de
seu senhor. Devolveu a importância – e ficou sem nada! Não tinha nada de
“seu”. Os outros dois servos trabalharam e devolveram a seu senhor a
importância recebida, mas, além disso, possuíam de “seu” outro tanto, os juros
do capital, fruto de seu trabalho. Estes dois são chamados “servos bons e
fiéis”, e entraram no “gozo de seu senhor”.
Nesta parábola, genuinamente esotérica, aparece uma das mais profundas leis
da Constituição Cósmica.
Assim, quem possui 1 grau de potência e a atualiza na vida prática por 1 grau,
adquire o poder de atingir 2 graus de potência; se ele atualizar esses 2 graus,
adquirirá uma potência dupla de 4 graus. E assim por diante,
progressivamente.
O que Deus nos confiou em talentos ou potências é dele; mas o que nós
fizermos desse cabedal é nosso. O capital é de Deus – os juros são do homem.
Quem devolve apenas o capital sem juros não cumpriu a sua missão, e corre
perigo de não evolver rumo a um plano superior.
Quanto mais o homem realiza, tanto maior potencialidade receba para realizar
coisas ulteriores – “quem tem receberá mais”.
Real é só Deus.
Irreal é o nada.
***
O que deve morrer não é, pois, o grão como tal, a sua essência viva, mas tão-
somente seu invólucro externo, a casca, que, em tempos idos, foi necessária
como proteção da vida, mas que agora tem de ceder, a fim de que a vida possa
iniciar novo estágio evolutivo.
Rejeita o que tens e demanda outra coisa! – assim diz o revolucionário, que
sempre renega o passado para afirmar o futuro.
Evolução não é nem estagnação nem revolução; não afirma o passado para
negar o futuro, nem nega o passado para afirmar o futuro. A evolução
verdadeira afirma tanto passado como o futuro; conserva todos os valores reais
da tradição e procura alcançar valores novos numa visão do futuro.
***
“Quem quiser ganhar a sua vida perdê-la-á – mas quem perder a sua vida, por
minha causa, ganhá-la-á.”
Em última análise, todo o mistério da vida espiritual está nesse “perder para
ganhar”, nesse “morrer para viver”...
Fé – que é isso?
“Se tiverdes fé, como um grão de mostarda que seja, e disserdes a este monte
„Sai daqui e lança-te ao mar!‟ e se não duvidardes em vosso coração, crede
que assim acontecerá.”
Não é possível falar de modo mais categórico. Não diz o Mestre que muitas
coisas são possíveis a quem tem fé, mas todas, todas sem exceção, mesmo no
plano físico, como o transporte instantâneo de um monte. Frisa, porém, um
ponto essencial: “Se não duvidardes em vosso coração”. Qualquer resquício de
dúvida, por mais oculto e inconsciente, na possibilidade do efeito, quebrará a
força da fé. E é precisamente aqui que está a maior das nossas dificuldades e
a razão única por que a nossa fé não realiza o que Jesus garante com tamanha
afoiteza. Raríssimo o homem que consiga ter 100% de fé, sem pelo menos
falhar 1%. Estamos habituados aos impossíveis dos sentidos e do intelecto;
sabemos, ou julgamos saber, que um simples ato invisível como a fé não pode,
de forma alguma, produzir um efeito visível, nem sequer deslocar um lápis
sobre a mesa – e como ia remover do seu lugar algum Corcovado ou Itatiaia?
Como é que uma causa imponderável pode mover milhões de toneladas, e isso
sem máquina alguma, e instantaneamente?
Para que um alavanca possa funcionar, é essência que o seu ponto de apoio
se ache fora do objeto a ser movido.
Da mesma forma, para que a fé possa atuar poderosamente, deve ela ter o seu
ponto de apoio fora de todos os mundos a serem postos em movimento. Quem
crê porque vê, ou ouve, ou entende intelectualmente não assenta a alavanca
num ponto imóvel fora dos mundos a serem movidos; comete a falácia que, em
lógica, se chama “petitio principii” (petição de princípio), supondo como prova
aquilo que deve ser provado; quem quer mover algo tem de admitir algo imóvel.
Em última análise, só o imóvel pode mover algo. Mas o mundo dos sentidos e
da mente fazem parte dos “mundos móveis”, isto é, dos efeitos derivados, e
não são a causa inderivada. Deus é o “movente imóvel”, diz Aristóteles. “Ver
para crer”, ou “entender para crer” representam caricaturas de fé, mas não são
fé verdadeira. A Última e suprema razão da fé deve ser a experiência direta e
imediata da Realidade Absoluta, Eterna, Infinita. Essa experiência, porém,
ultrapassa todos os mundos dos sentidos e do intelecto. Desse centro imóvel
da experiência espiritual, pode o homem mover, sem a menor dificuldade,
todas as periferias dos mundos em movimento.
“Fé como um grão de mostarda”, diz o Mestre – não como um grão de areia.
Quer dizer, uma fé viva, que encerre em si, ainda que potencialmente apenas,
a vida espiritual, assim como um grão de mostarda encerra em si uma planta
inteira.
Para o homem que tem essa fé genuína, não é mais difícil mover um Himalaia
do um lápis, porque as categorias de peso e dimensão pertencem ao mundo da
matéria ou quantidade, que, em face do mundo indimensional do espírito e da
qualidade não existem, são um puríssimo nada. Ora, um nada grande não é
maior do que um nada pequeno, um zero de um quilômetro de diâmetro vale
exatamente o mesmo que um zero de milímetro – ambos estão perfeitamente
nivelados no plano da sua nulidade. A fé é, por assim dizer, um algarismo
positivo, de valor intrínseco, como, por exemplo, “1”. Nenhuma quantidade de
zeros, somados ou multiplicados, pode produzir esse “1”; esse “1”, porém, pode
“mover” todos os zeros, ainda que seja milhões e bilhões; pode fazer deles o
que quiser, enriquecê-los indefinidamente, sem que o “1” perca algo do seu
valor 1.000.000.000.000.000. Cada um desses zeros à direita do “1” recebe
valores do valor positivo, mas este não perde nada, porque se acha fora do
plano dos zeros, num ponto fixo, imóvel, por assim dizer. Se, porém,
invertemos essa ordem, e colocarmos os zeros à esquerda do “1”, então esse
fator positivo perde do seu valor na medida que lhe dermos novos zeros; 01.
001, 0001, 000 000 000 000 1.
Quem tem inteireza de fé domina tudo – quem tem falta de fé é dominado por
tudo.
Tudo é possível àquele que tem fé – nada é possível àquele que não tem fé.
Ainda que a fé tenha a ver, em primeiro lugar, com o mundo espiritual, invisível,
os seus efeitos se refletem poderosamente também sobre o mundo material
visível. A firmeza, clareza, tranquilidade e paz que a fé confere ao homem,
cedo ou tarde cingem dum halo de serena felicidade a zona da sua vida
cotidiana. O seu superconsciente ilumina o consciente, e até o subconsciente.
A Verdade é sempre libertadora, ainda que nos obrigue a andar pelo “caminho
estreito” da disciplina.
Estou em São Paulo. Quero falar com um amigo em Brasília, há mais de 1.000
quilômetros daqui; ou mesmo em Tóquio, do outro lado do globo. Por mais que
eu grite, nunca minha voz será ouvida, porque as vibrações aéreas produzidas
por minha voz morrem depois de 100 ou 200 metros.
Como?
Abandonando a zona das vibrações aéreas e entrando no âmbito das ondas
eletrônicas, sentando-me ao microfone duma estação telefônica e falando
tranquilamente. E serei perfeitamente ouvido, como se falasse a uma pessoa
em minha casa.
***
Quem afirma a vida sem jamais a ter negado é escravo da vida e de seus
prazeres fáceis, e por isso mesmo não pode gozar realmente a vida, porque o
gozo real é das almas livres, e não dos escravos.
Quem nega a vida sem a afirmar é livre da escravidão da vida desregrada, mas
sua liberdade é uma pobreza e uma fuga, porque baseada na consciência do
medo e na necessidade da fuga.
Nesse sentido disse o Mestre: “Eu vim para que os homens tenha a vida, e a
tenham com maior abundância”. Ninguém vive vida tão rica e fascinante como
o homem plenamente realizado em sua íntima essência espiritual e divina, o
homem crístico, integral, univérsico.
A vida sem disciplina acaba por se tornar aos poucos tão insípida e
insuportável que o homem escravizado por seu caprichos arbitrários procura
intensificar progressivamente os seus gozos, a fim de os poder sentir ainda,
porque a sua sensibilidade vai-se embotando progressivamente e, por fim,
nada mais o satisfaz. O homem indisciplinado necessita de veementes
estímulos, chicotadas nos nervos calejados para os pôr em vibração, ao passo
que o homem disciplinado se enche de pura alegria e delicado gozo com os
acontecimentos mais singelos da vida cotidiana, uma florzinha à beira da
estrada, o encontro fortuito com um amigo, o sorriso de uma criança, as
melodias de um hino sacro, os gorjeios de um passarinho, uma noite de luar, a
sinfonia noturna dos grilos na grama ou dos sapos no brejo – tudo lhe é motivo
de satisfação, porque os seus nervos se acham afinados por uma frequência
vibratória sutil, que só a disciplina pode dar.
Nunca homem algum deste mundo levou vida tão abundante como Jesus de
Nazaré – embora certa literatura religiosa queira fazer-nos crer que ele tenha
sido apenas “varão das dores”, e que sua vida tenha sido sofrimento e miséria.
O seu sofrimento físico, durante 33 anos, não abrange o total de 15 horas; e
mesmo este foi 100% voluntário. O seu sofrimento moral vinha iluminado
constantemente pela consciência da grande missão que o trouxera à Terra,
conferindo a todos os seus sofrimentos um halo de divina poesia e profunda
felicidade. “Eu vos dou a paz, eu vos deixo a minha paz – diz ele em vésperas
da sua morte – para que a minha alegria esteja em vós, e seja perfeita a vossa
alegria.” Quem assim fala, das profundezas da alma, possuía vida abundante e
podia fazer transbordar nas almas humanas que fossem receptivas para
recebê-la. E sua vida era abundante não apenas no espírito, senão também na
mente e no corpo: perfeita santidade, sapiência e sanidade, perfeita felicidade
da alma pelo amor, da mente pelo conhecimento de todas as leis da natureza e
do corpo, graças a uma saúde jamais afetada pela mais ligeira moléstia.
Diz o Mestre que o homem que desejar construir uma torre elevada (nós
diríamos, um “arranha-céu”) deve, antes de tudo, calcular criteriosamente se
possui os recursos necessários para ultimar a obra, para que não seja obrigado
a deixar o trabalho a meio caminho, com prejuízo próprio e zombaria dos
outros.
Diz ainda que um rei, em vésperas de declarar guerra a outro rei, deve
ponderar judiciosamente se com 10.000 soldados pode derrotar seu adversário
que dispõe de 20.000; do contrário, fará melhor em desistir do empreendimento
para que, a meio caminho das operações bélicas, não se veja obrigado a
solicitar convênios de armistício ou paz, com grande humilhação e prejuízo.
Até aqui, as duas alegorias nada parecem ter de extraordinário; temos até a
impressão de ouvir falar de um homem do nosso século interessado na
construção de edifícios, ou um beligerante profano dotado de certo tino
estratégico e senso diplomático. E, com isso, nos sentimos quase reconciliados
com o Nazareno, considerando-o como um dos “nossos” – quando, de
improviso, ele passa do símbolo para o simbolizado, recorrendo a uma
conclusão diametralmente oposta aos nossos cálculos e à nossa expectativa:
“Assim, vos digo eu, não pode ninguém ser discípulo meu se não renunciar a
tudo quanto possui”.
Quanto mais cresce o “ser” do homem, mais decresce o seu desejo de “ter”.
RIQUEZAS DA INIQUIDADE.”
Essa parábola é a cruz dos intérpretes, e não falta quem duvide que ela seja de
autoria de Jesus.
Esse capataz, como se vê, era mestre perito nos conchavos desleais que, hoje
em dia, são praticados a varejo e por atacado entre nós a alhures. Se o Cristo
tivesse aprovado e recomendado esse procedimento, teria ele imensa legião
de discípulos.
À primeira vista, parece de fato, que Jesus nos incita à imitação desse perverso
administrador: “Também eu vos digo: Granjeai-vos amigos com as riquezas da
iniquidade, para que, quando vierdes a falecer, vos recebam nos eternos
tabernáculos.”
Em face disso, não faltou quem se horrorizasse por ter Jesus recomendado
meios desonestos para um fim espiritual.
Mas... será possível que pelo abuso de bens materiais – pela fraude –
possamos alcançar bens espirituais?
Certo que não. Nem é isso que o Mestre recomenda. Diz que devemos
granjear amigos no mundo espiritual mediante o emprego das “riquezas da
iniquidade” ou “injustiça”; não diz o Mestre “pela iniquidade das riquezas”, mas
sim “pelas riquezas da iniquidade”; quer dizer, as mesmas riquezas que levam
outros a cometerem iniquidade, como o feitor, podem servir a nós para
praticarmos obras de espiritualidade. Não existem “riquezas iníquas”. A riqueza
consiste no uso de determinados objetos materiais; mas nenhum objeto é
“iníquo” em si mesmo, porque é eticamente neutro, nem bom nem mau; a
“iniquidade” não está no objeto, mas vem do sujeito que, em vez de usar,
abusa do objeto. O objeto é, por assim dizer, incolor; quem lhe dá cor ou
colorido é o homem. O mesmo objeto pode servir para fins bons e fins maus –
tudo depende do uso que dele fizer o homem, bom ou mau. Com uma faca
afiada posso destruir uma vida humana – e posso também salvar uma vida;
não depende da faca, mas de quem a usa ou dela abusa. Assim como o feitor
infiel usou para fins iníquos o objeto eticamente neutro e incolor, assim pode
um administrador fiel usar os mesmos objetos materiais para fins eticamente
bons.
Quem serve ao dinheiro é escravo da matéria morta – mas aquele que põe o
dinheiro a serviço de Deus é livre e soberano pelo espírito. O administrador fiel
é senhor e soberano do dinheiro, porque o dinheiro lhe serve – mas o
administrador infiel é escravo do dinheiro, porque serve à matéria. Só podemos
servir a quem é superior a nós; do contrário nos degradamos. Podemos servir a
Deus tanto em si mesmo como também em sua imagem humana, nossos
semelhantes.
“OS PRIMEIROS SERÃO OS ÚLTIMOS E OS
Com estas palavras termina o Mestre uma das mais enigmáticas das suas
parábolas sobre o reino de Deus, a que trata dos “trabalhadores da vinha”.
Mais tarde encontra outros e mais outros homens, sem fazerem nada, às 9 e
às 12 horas, e outra vez às 3 horas e, finalmente, às 5 horas da tarde. Convida-
os todos para a sua vinha, mas sem estipular preço certo; diz apenas que lhes
dará “o que for justo”. Às 6 horas manda chamar todos os trabalhadores e
começa a fazer os pagamentos: dá um denário a cada um da turma das 5
horas, que haviam trabalhado só uma hora. Vendo isso, esperavam os outros
que ganhariam mais, embora lhes tivesse sido prometido apenas 1 denário.
Mas também eles receberam apenas 1 denário. Ao que murmuraram contra o
senhor, alegando que haviam suportado “o peso e o calor do dia”, e tinham
sido igualados aos outros, que haviam trabalhado apenas uma hora. O senhor,
porém, lhes faz ver que não os trata com injustiça, porquanto combinou com
eles o salário de 1 denário por dia. “Será que o teu olho é mau porque eu sou
bom? Não tenho eu o direito de fazer dos meus bens o uso que quero?” Volta
aqui a misteriosa expressão do “olho mau”, que parece um eco daquilo que o
Mestre disse em outra ocasião: “Se o teu olho for simples, está em luz todo o
teu corpo; mas se o teu olho for mau, está em trevas todo o teu corpo”. A visão
espiritual ilumina, a visão material entenebrece a vida do homem.
Resposta: Não deve ser explicada de forma alguma, deve ser espiritualmente
vivida, e não intelectualmente analisada. De fato, não há nenhuma
possibilidade, no plano analítico da inteligência, de explicar decentemente tão
estranho procedimento. Nas seguintes páginas não tentaremos explicar a
parábola, mas apenas indigitar ao leitor o rumo certo onde, numa hora de
profunda vivência espiritual, possa encontrar solução satisfatória.
Entretanto, assim diz o Senhor aos homens: “Os vossos caminhos não são os
meus caminhos, e o vosso pensamento não é o meu pensamento”.
Deus concede a um homem dez graus de graça, a outro cem, a outro mil – é
isso “justo”?
Deus é livre na distribuição dos seus dons, por mais que nós o queiramos
reduzir à escravidão dos nossos esquemas intelectuais.
***
A razão principal por que esta parábola é, para nós, enigma está em uma falsa
perspectiva fundamental; admitimos tacitamente uma premissa visceralmente
errônea, e sobre ela construímos conclusões, que, naturalmente, não podem
deixar de ser errôneas também. Projetamos para dentro da ordem divina e
espiritual os nossos costumados conceitos humanos, jurídicos, sobre justiça,
direito e obrigação. Tratamos a Deus como se ele fosse um empregador, e nós
os seus empregados, com direito a certo salário. Entre empregador e
empregado vigora, certamente, uma relação jurídica de dar e receber, de
trabalho e pagamento; depois que o empregado prestou o seu serviço, o
empregador tem de lhe pagar esse serviço; é questão de justiça. O dinheiro
que o empregador paga ao empregado é o equivalente ao trabalho por este
prestado – e assim os dois estão quites.
É muita ingenuidade transferir esta relação para Deus. A noção jurídica vigora
no plano horizontal, de indivíduo a indivíduo, de finito a finito; mas não pode de
forma alguma ser transferida para o plano vertical. Supomos tacitamente que a
mesma relação que vigora de finito a finito, de homem a homem, deva vigorar
também entre finito e Infinito, entre o homem e Deus.
A única coisa que o homem pode e deve fazer em face de Deus e do mundo
espiritual é crear uma condição propícia, isto é, um ambiente, uma disposição
interna, uma atmosfera ou receptividade que possibilite o advento da graça;
mas essa condição externa nunca equivale a uma causa interna. O homem
pode, por assim dizer, abrir uma janela em sua alma, e a luz solar da graça
entrará por essa janela, mas isso não quer dizer que a janela tenha causado a
iluminação da sala; se lá fora não houvesse sol, nada adiantaria abrir a janela.
O abrimento da janela é apenas uma condição indispensável para que a luz
solar possa entrar na sala.
Uma linda rosa não tem o direito de ser bela, e Deus não tem obrigação
alguma de lhe dar essa beleza – tudo que ela tem é graça e nada mais. Se
assim não fosse, a humilde violeta seria cerceada nos seus direitos e Deus não
teria cumprido a sua obrigação para com ela; mas isso é ridículo, porque a
beleza modesta que a violeta tem também é graça, e nada mais.
“Quando tiverdes feito tudo que devíeis fazer, dizei: Somos servos inúteis,
fizemos o que tínhamos de fazer; nenhum prêmio merecemos por isso.”
E, embalado nessa ilusão, o homem pergunta a Deus: será justo que os que
trabalharam doze horas não recebam mais do que os que trabalharam apenas
uma hora?
Como se perguntassem a Deus: será que doze zeros não valem muito mais
que um zero? Será que não percebes, Senhor, que o valor representado por
“000 000 000 000” é muito maior do que o valor representado por “0”? E, se
Deus não enxerga a diferença entre essas nulidades, o homem acha que Deus
é injusto! Tão grande é a ignorância do homem intelectualmente erudito – e
espiritualmente analfabeto!
***
Em suas magníficas epístolas aos Romanos e aos Gálatas, São Paulo trata,
por extenso, dessa grande verdade: da gratuidade dos dons de Deus.
“UM HOMEM PREPAROU UM GRANDE BANQUETE
Um terceiro replicou: “Casei-me, e por isso não posso ir”. Este nem sequer
pediu desculpas.
Os mensageiros relataram tudo isso a seu senhor. Ao que este lhes ordenou:
“Ide pelos povoados e aldeias e convidai todos os que encontrardes, cegos,
coxos, aleijados, para que se encha a minha casa.”
E assim se fez.
Mas nenhum daqueles que haviam sido convidados em primeiro lugar provou o
banquete.
Todos são convidados para a grande solenidade, mas nem todos atendem ao
convite.
Muitos homens acham que têm coisa mais importante a fazer do que encontrar
a “parte boa” que Maria encontrara; andam por demais atarefados com a parte
de Marta. Conhecem muitos objetos, mas ignoram o seu próprio sujeito.
Realizam tudo – menos a si mesmos...
Longo e árduo é o caminho para esse misterioso Além de dentro... Sem conta
são os percalços que o homem-ego criou no caminho para o homem-Eu...
Todos os homens são convidados pelo Cristo interno – e, não raro, pelos
arautos do Cristo externo – para tomar parte na festa nupcial de sua alma, no
consórcio místico entre sua alma e o divino Esposo. Todos, seja qual for a sua
profissão ou condição social – lavradores, criadores de gado, homens e
mulheres, solteiros e casados, sábios e ignorantes –, porquanto “a luz ilumina a
todo homem que vem a este mundo”.
Muitos homens, porém, não querem escutar a voz silenciosa da sua própria
alma. Não conhecem o tesouro oculto e a pérola preciosa de seu próprio Eu
espiritual; só conhecem a ganga de seu ego físico-mental. A luz do Logos, é
verdade, ilumina a todos, mas somente aos que recebem em si essa luz é-lhes
dado o poder de se tornarem filhos de Deus. Não basta que a luz divina esteja
presente no homem, é necessário que também o homem se torne presente a
essa luz.
O homem profano se impressiona muito mais com o que tem do que com o que
é, os seus teres – campos, animais, mulheres – lhe são visíveis; o seu ser lhe é
invisível.
***
***
Ser grande! Quem não desejaria ter uma vida cheia de verdadeira grandeza e
felicidade? Quem não desejaria ter abundância de tudo que faz a vida próspera
e digna de ser vivida? Próspero na saúde, no conhecimento, no poder, na
propriedade, no amor, na alegria?
Aparentemente, a objeção procede, porque o que vemos cada dia é que os que
servem são, em geral, os homens menos evolvidos e adiantados.
Todo homem que se esquece da sua felicidade pessoal a fim de tornar felizes
os outros se torna verdadeiramente feliz.
E perguntarão os da direita: Quando foi, Senhor, que te vimos com forme, com
sede, estranho, nu, doente ou preso e te acudimos?
Perguntarão também eles: Quando foi, Senhor, que te vimos com fome, com
sede, estranho, nu, doente ou preso, e não te acudimos?
E ele lhes dirá: Em verdade, vos digo, tudo que deixastes de fazer a um desses
mais pequeninos, a mim é que deixastes de fazer.
E irão estes para a morte eterna – os justos, porém, para a vida eterna.”
Aqui está a Carta Magna da verdade fundamental da nossa vida: Não podemos
realizar dentro de nós o Cristo se não lhe servirmos na pessoa de nossos
semelhantes. O Cristo interno não ressuscita em nós se não ajudarmos o
Cristo externo nos outros – é essa a grande lei da polaridade cósmica! Os bons
samaritanos, os Cireneus, as Verônicas, os Francisco de Assis, os Gandhi, os
Schweitzer, etc., encontrando o Cristo nos outros, encontram-no dentro de si
mesmos; se recusarem a vê-lo nos indigentes e nos doentes, nos cegos, nos
surdos, nos mudos, nos leprosos, nunca o verão em sua glória. Ninguém pode
ver o Cristo glorioso no Pai quem não o viu chagado em seus irmãos, no
“menor de seus irmãos”.
Outros acham que é inútil ocuparmo-nos com as misérias alheias, uma vez
que, via de regra, o sofrimento humano é sofrimento-débito, cada um sofre as
consequências dos seus erros cometidos, nesta ou em existências anteriores,
e é justo que ele pague os seus débitos, que se liberte do seu “carma
negativo”; se o não fizer agora, terá de o fazer mais tarde.
Nem esta nem aquela atitude fazem pleno jus à passagem em apreço. O
principal da caridade não é socorrer ao sofredor, ao necessitado, ao doente.
Deus poderia, num só instante, acabar com todas as misérias e sofrimentos da
humanidade, mesmo sem a nossa intervenção. Por que não o faz? E, se ele
não o faz, por que devemos nós fazê-lo?
Mas é que existe, para além de todas as caridades éticas, um grande mistério
metafísico e místico...
O principal beneficiado da nossa caridade não é aquele que recebe, mas sim
aquele que dá o benefício – “Há mais felicidade em dar do que em receber”. O
sujeito ou autor do benefício é mil vezes mais favorecido do que o objeto ou
beneficiado. Deus pode fazer o bem que eu faço – mas Deus não pode ser
bom em meu lugar. Muito mais importante do que fazer o bem é ser bom. O
beneficiado recebe o bem que eu faço – mas o benfeitor se torna bom pelo
bem que ele faz; logo, o principal beneficiado é o benfeitor; antes de realizar
qualquer bem no outro, ele o realiza em si mesmo, pelo fato de ser bom; pelo
fato de realizar nos outros os dons de Deus, esse homem realiza em si mesmo
o próprio Deus...
Pode ser que os pobres e doentes não necessitem de mim – mas eu necessito
deles. Pode ser que eu não os “realize”, que não lhes dê saúde e bem-estar –
mas é certo que eu me realizo e conquisto grande saúde e bem-estar
espirituais.
Pode ser que nenhuma dessas ruínas humanas aproveite com os meus
benefícios, que todos continuem pobres, doentes, ingratos – mas isso não é da
minha conta. Um homem, pelo menos, aproveitou da minha desinteressada
caridade – e esse homem sou eu mesmo.
Tenho de servir ao Cristo nos outros para que o Cristo possa acordar em mim –
só isso depende de mim, o resto fica para além do meu alcance...
“A vós vos é dado conhecer os mistérios do reino dos céus – diz Jesus ao
pequeno grupo de seus apóstolos – enquanto ao povo só lhe falo em parábolas
de maneira que, ouvindo, não compreendem.”
Todas as grandes religiões têm esses dois grupos, não em virtude de uma
divisão arbitrária, mas em consequência dos variados graus de evolução
espiritual que existem, inevitavelmente, no seio da humanidade. Paulo de
Tarso escreve aos cristãos de Corinto que a alguns deles só lhes deu leite para
beber, por serem ainda “infantes em Cristo”, ao passo que aos “adultos em
Cristo” lhes deu comida sólida para comer.
***
Se a um servidor foram dados dez talentos, a outro cinco, e a outro apenas um,
não vai nessa distribuição injustiça alguma, como já dissemos, porque nenhum
dos três tinha direito ao que recebeu, todos receberam de graça os seus
talentos. Mas o modo de fazerem frutificar ou de esterilizarem os seus talentos,
isso depende da consciente liberdade de cada um.
“Muito será exigido a quem muito foi dado – e pouco será exigido a quem
pouco foi dado.” Essa rigorosa equivalência entre o que “foi dado” e o que “será
exigido” revela uma lei cósmica, não menos gloriosa do que perigosa. Um ser
livre dotado de grandes potencialidades – digamos 50 – tem dez vezes mais
reponsabilidade do que outro cuja potencialidade máxima representa apenas 5.
Com o valor da doação, cresce, proporcionalmente, a obrigação da frutificação.
Quanto maior a potencialidade, tanto maior tem de ser também a sua
atualização – sob pena de o homem perder a própria potencialidade deixada
infrutífera.
De maneira que os “escolhidos” para “conhecerem os mistérios do reino dos
céus” são onerados duma responsabilidade espiritual muito maior do que os
que foram “chamados” para ouvir as grandes verdades apenas em parábolas.
Quem se envaidece pelo fato de ser um dos “escolhidos”, mostraria com isso
mesmo que não é realmente escolhido, porque ninguém se pode envaidecer de
algo que não é dele, mas de Deus; os dons espirituais, porém, não vêm do ego
humano, mas sim do Eu divino.
A UM DESSES PEQUENINOS.”
Afirma Jesus que aquelas crianças “têm fé nele” e que, por isso, é tão grave
dar-lhes incentivo para pecado.
Evidentemente, esse “ter fé” não é um ato de fé consciente, explícito, mas sim
uma atitude de fé, implícita. Esse “ter fé” é um estado da alma desses
pequeninos, isto é, um estado crístico, é aquilo que, mais tarde, o escritor
cristão de Cartago, Tertuliano, vazou nas conhecidas palavras sobre a “anima
naturaliter christiana”, a alma humana é crística por sua própria natureza. Se
aquelas crianças hebreias possuíam uma atitude crística, em virtude da sua
própria natureza humana, será que se achavam em estado de pecado original,
como afirmam os teólogos das igrejas cristãs? De que modo se coadunava
esse fides, essa atitude crística da alma, com o estado de pecado em que elas
teriam sido concebidas? Nenhuma dessas crianças era “batizada”; os meninos
eram circuncidados, mas a circuncisão não tirava o pecado original. E as
meninas, para as quais não existia circuncisão? É evidente que todas essas
crianças, que “creem em Jesus”, se achavam no estado em que foram
concebidas e nascidas. Se eram pecadoras por natureza e herança, como é
que se achavam em estado crístico? E se os adultos são prevenidos para não
lhes darem incentivo ao pecado (skándalon, em grego, isto é, “motivo de
tropeço”), não faz isso supor que esses pequenos estavam ainda em estado de
perfeita pureza, sem pecado?
***
O vocábulo grego ángelos (em latim angelus, em português anjo) quer dizer
literalmente “mensageiro”, “arauto”, designando entidade consciente e livre, de
corpo invisível, que executa a vontade de Deus em diversos planos do cosmos;
no caso em que contrarie a vontade de Deus, é o chamado “adversário” (em
grego diábolos, em latim diábolus, em hebraico satan, em português, diabo).
Se cumpre a vontade de Deus é anjo.
Uma mulher que, havia longos anos, sofria dum fluxo de sangue incurável, toca
de leve numa das borlas do manto do Nazareno, e sente o corpo penetrado de
força e saúde, como se entrara em contato com uma bateria elétrica.
Jesus pára, olha em derredor e insiste em saber quem foi que o tocou. Os
discípulos, estranhando esse gesto, fazem ver ao mestre que todo o povo ao
redor dele o está empurrando. Ele, porém, insiste no fato de ter sido tocado por
alguém, não de um modo geral e fortuito, mas com uma intenção particular,
que dele “saiu uma força”.
Mas quando a corrente elétrica toca num metal, em água ou outras substâncias
dotadas de condutibilidade, a força entra nessas substâncias.
Crer, ter fé, é criar idoneidade em face do mundo divino. E é difícil ao homem
profano a criação dessa idoneidade receptiva, porque a inteligência do ego
personal aceita somente causas que ela possa provar analiticamente, e a
causa divina não é objeto de provas científicas.
***
No caso presente, serviu o Cristo – o divino Verbo feito carne humana – como
intermediário entre Deus e a hemorroíssa; era ele uma espécie de canal ou
catalisador que veiculou a plenitude de Deus para dentro da vacuidade
humana.
Posso expor ao Sol uma acha de lenha seca, mas ela não será incendiada. Se,
porém, aproximar da lenha seca uma chama de fogo, dar-se-á a ignição do
combustível. Por quê? Porque a chama é fogo solar em forma individualizada,
e funciona aqui como uma espécie de mediadora entre a lenha e o Sol. Da
mesma forma, se expuser à luz solar uma lente e fizer sobre ela incidir o calor
do Sol, o fogo solar, antes difuso e fraco, se condensa num só ponto, e este
ponto focal transmitirá ao combustível a força solar condensada e intensificada.
AOS PORCOS!”
“Não deis as coisas sacras aos cães, nem lanceis as vossas pérolas aos
porcos!”...
A vida espiritual é mais sagrada e divina ainda, e por isso deve estar envolta
também em mistério, sobretudo a sua origem, ainda frágil e delicada. O
encontro da alma humana com Deus é uma espécie de núpcias, como
testificam todos os livros sacros da humanidade; a alma “concebe” uma prole
pela virtude do Altíssimo, fecundada pelo Verbo de Deus. E essas núpcias
divino-humanas devem ficar envoltas em mistério e cercadas de pudor. Aqui, a
publicidade ou prostituição seria muito mais deletéria ainda do que no plano da
profanação dos corpos. Tão grande é a sacralidade da vida espiritual que até a
menor profanação equivale a um sacrilégio.
Por isso previne Jesus os seus discípulos para que não deem as coisas sacras
aos cães, nem lancem as suas pérolas aos porcos, “para que estes não lhes
metam as patas e, voltando-se contra vós, vos dilacerem”.
Que valor tem para o profano uma hora de meditação espiritual, ou uns
momentos de fervoroso colóquio com Deus? Que valor dá ele ao conhecimento
de si mesmo, ao estudo do livros sacros ou à intuição mística da Suprema
Realidade? Essas pérolas são para ele coisas insípidas, fastidiosas, indigestas
– se ao menos fosse um punhado de notas de banco, uma noitada de orgias
sexuais ou a eleição para um rendoso cargo público!... Essas coisas, sim, têm
valor para ele, porque satisfazem a fome do seu ego humano, ao passo que
aquelas outras que se referem aos anseios do Eu divino são, para o profano,
insípidas e absurdas. É que cada um pensa e age consoante a medida do seu
conhecimento ou da sua ignorância...
Por isso, o mestre espiritual sensato não revela indistintamente aos outros o
que Deus lhe revelou. Mede cuidadosamente a capacidade de cada um... Sabe
quais são os avançados, e quais os atrasados, os esotéricos e os exotéricos.
Fala, muitas vezes, em parábolas e alegorias, para que cada um interprete os
símbolos materiais segundo a sua capacidade evolutiva e perceba do
simbolizado espiritual precisamente aquilo que corresponde ao estado atual da
sua evolução. “Àqueles dentre vós que ainda são infantes em Cristo – escreve
São Paulo aos coríntios – dei-lhes leite para beber; mas aos que são adultos
em Cristo dei-lhes comida sólida.”
“O mestre versado nas coisas do reino de Deus – diz Jesus – tira do tesouro do
seu coração coisas velhas e coisas novas.” Muitos sabem assimilar as “coisas
velhas” da tradição secular, sabem andar com segurança nos caminhos batidos
do passado, por onde milhares e milhões transitam – poucos sabem aproveitar-
se das “coisas novas” da evolução espiritual, poucos sabem orientar-se nas
veredas ignotas e estreitas da experiência mística, por onde pouquíssimos
passam, em solidão e silêncio...
EM SUAS OBRAS.”
João Batista era considerado por alguns dos seus contemporâneos, diz Jesus,
como “possesso do demônio”, pelo fato de não levar vida social como os outros
nem se alimentar como eles; era um homem “anormal”.
Esses descontentes de parte a parte, diz Jesus, são como crianças a brincar
em praça pública; uns querem brincar de enterro, cantando lamentações;
outros querem brincar de casamento, cantando canções alegres – e os dois
grupos não se entendem; uns acusam os outros de tristonhos, e são por estes
acoimados de galhofeiros.
O Nazareno, porém, não está disposto a se guiar por opiniões alheias. Possui
dentro de si mesmo a sapiência do reino dos céus, e não necessita orientar-se
pela insipiência dos que ignoram essa norma interna. Os seus inimigos se
guiam por caprichos pueris, ele se guia pela sabedoria de adulto. “Está a
sabedoria justificada em suas obras” (a Vulgata diz “Filhos”, em vez de “obras”,
mas esta última leitura merece mais crédito, embora também existam alguns
códices gregos com leitura da Vulgata latina).
A todos nós que aqui estamos, escritor e leitores, já nos “aconteceu” o nascer,
e dentro em breve nos “acontecerá” o morrer, seguido pelo sobreviver – mas
nem o nascer, nem o morrer nem o sobreviver conferem o sempre-viver, a
imortalidade. A imortalidade potencial, é verdade, existe em cada um de nós, é
um presente de berço, oferecido a todo ser humano – porém a imortalidade
atual não existe automaticamente, mas deve ser conquistada livremente; não é
algo que nos “acontece” de fora, mas é algo que deve ser “produzido” de
dentro. É esse o “novo nascimento pelo espírito”, é essa a “entrada no reino
dos céus”.
***
Esse “ter fé” deve ser algo imensamente poderoso, uma vez que crea vida
eterna, para além de todas as vidas, mortes e sobrevivências temporárias.
“Ter fé”, na linguagem de Jesus, não é crer, é ter experiência vital de Deus; é
conhecer e compreender a Deus por meio de uma atitude de intuição ou
vivência íntima, divina. Quem teve essa vivência sabe o que ela é; quem não a
teve não sabe o que é, porque nenhuma definição externa pode dar ideia exata
da experiência interna. Aqui é “ser para saber”. “A vida eterna – diz o Mestre –
é esta: que os homens te conheçam, o Pai, como o único Deus verdadeiro, e o
Cristo, teu Enviado.”
Sendo que Deus é imortal por sua íntima essência, o homem só terá
imortalidade individual se se unir intimamente à Imortalidade Universal de
Deus.
“Unir” quer dizer tornar uno, ter a consciência vital de que o nosso íntimo ser
coincide com o Ser da Divindade – “Eu e o Pai somos um” – embora o nosso
externo existir seja diferente de Deus – “mas o Pai é maior do que eu”.
Isso é “ter fé no Cristo” – saber que “já não sou eu que vivo, mas o Cristo vive
em mim”.
“EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA.”
Não se compreende por que a humanidade em peso não se prostra aos pés
dum homem que tais palavras proferiu e lhes provou a verdade com sua
própria vida.
Não é que todos querem saber o que haverá para além dos negros bastidores
da morte?
“Ter fé” é, para Jesus, uma atitude profundamente vital e experiencial; é uma
total submersão da nossa individualidade no mar imenso da Divindade; é uma
radical renúncia ao pequeno ego humano e uma integral entrega do mesmo ao
Espírito Infinito.
“Ter fé” é a mais arrojada aventura cósmica do homem. É fechar os olhos dos
sentidos e do intelecto e lançar-se ao tenebroso abismo do desconhecido, na
certeza de que esse imenso vácuo de trevas é a plenitude da luz, e que essa
morte total é a vida integral. É desnascer para tudo que sabemos e renascer
para tudo que ignoramos. É ultrapassar todas as horizontais do ego e entrar na
grande vertical de Deus.
No princípio, é verdade, o “crer” não passa de um simples “querer” de um ato
de boa vontade, de um ingênuo “querer crer”. Nem jamais deixará de ser esse
débil “querer” enquanto não for fecundado pelo “viver”, isto é, por uma vida
diária em perfeita harmonia com a fé. Deve o crente viver como se já possuísse
experiência de Deus – e é precisamente nesse “como se” que está todo o
tormento... Trilhar o caminho da vivência ética antes de atingir o mundo da
experiência mística – isso é imensamente difícil, isso é martírio de cada dia, é o
“caminho estreito e a porta apertada”, é o “fundo da agulha” de que nos fala o
divino Mestre. Transcender o pequeno ego antes de atingir o grande Eu,
renunciar ao Lúcifer antes de encontrar o Cristo – isso é uma espécie de salto
ao abismo, ou uma suspensão no vácuo.
Como pode o homem negar a vida horizontal antes de afirmar a vida vertical? É
da íntima natureza da psicologia humana que não abra mão de um valor antes
de descobrir outro valor, maior ou, pelo menos, igual ao primeiro. Só quem
descobriu o “reino dos céus, que não é deste mundo” é que pode renunciar a
“todos os reinos do mundo e a sua glória”.
Quem não morreu não vive plenamente – e quem não tem vida plena não tem
fé. Morrer para viver – é esta a grande verdade! Não basta ser morto
compulsoriamente – é necessário morrer espontaneamente, para poder crer.
Só um voluntariamente morto é que é um verdadeiro crente, e, neste caso, o
seu “crer” é um verdadeiro “saber” e “saborear”. Esse “saber” e “saborear”,
após a morte mística do egocídio voluntário, é que introduz o homem na vida
eterna, numa vida que ultrapassou o precário nascer e o precário morrer e é
um firmíssimo viver. Vida que ainda conheça nascer e morrer não é vida plena,
é apenas uma pseudovida ou uma agonia prolongada, um ligeiro parêntese de
luz entre duas trevas, um subitâneo lampejo em noite escura. Somente uma
vida que brotou duma morte voluntária é que é vida integral.
Isso é “ter fé no Cristo” – e essa fé, que é um saber vital, é que garante vida
eterna.
***
Se esse Cristo que nos garante vida eterna fosse um Cristo ausente e
longínquo, como poderíamos ter fé vitalmente nele? Como poderia o meu
Cristo vitalizante estar fora de mim? Como poderia a minha vida sem morte ser
algo transcendente? Não é a vida a coisa mais imanente que em mim existe?
Não sou eu mesmo, potencialmente, essa vida que me vitaliza?...
Tão profundamente imanente em mim é esse Cristo vitalizante que até parece
ausente, porque o abismo da minha tenebrosa imanência é, para mim, para
meu velho ego, uma ausência, uma inexistência, uma irrealidade.
Quando então esse meu Cristo ignoto se torna um Cristo noto, quando o Deus
desconhecido passa a ser um Deus conhecido – então tenho eu a impressão
de que o Cristo desceu dos céus e entrou em mim. De fato ele veio dos céus,
dos céus profundos que em mim estão, cobertos pelas espessas nuvens da
minha ignorância. Mas quando as nuvens se dissipam e o que estava
objetivamente presente e subjetivamente ausente se torna também
subjetivamente presente, graças à transição da ignorância para a sapiência –
então eu recebo o Deus do Universo de fora como idêntico Deus do meu
Universo de dentro.
E esse “Universo de dentro” se chama minha “alma”, o meu divino “Eu”, o meu
“Cristo interno”.
E então eu tenho fé no Cristo, no meu Cristo... Já não vivo eu, mas vive em
mim o Cristo; sou plenamente vivido; vivificado e vitalizado pelo meu Cristo,
externo e interno, porque eterno.
.............................................................................................................................
Viverá eternamente”...
ÍNDICE
PRELÚDIO
“DEUS É DEUS DOS VIVOS, E NÃO DOS MORTOS, PORQUE PARA ELE
TODOS SÃO VIVOS.”
“QUEM NÃO RENUNCIAR A TUDO QUE TEM NÃO PODE SER MEU
DISCÍPULO.”
“QUEM NÃO ODIAR A SUA PRÓPRIA VIDA NÃO PODE SER MEU
DISCÍPULO.”
Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).
Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.
Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University
(ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e
Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.
Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.
À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”.
A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
O SERMÃO DA MONTANHA
O NOSSO MESTRE
ÍDOLOS OU IDEAL?
ESCALANDO O HIMALAIA
O CAMINHO DA FELICIDADE
DEUS
EM ESPÍRITO E VERDADE
PORQUE SOFREMOS
LÚCIFER E LÓGOS
A GRANDE LIBERTAÇÃO
FILOSOFIA DA ARTE
ORIENTANDO
ROTEIRO CÓSMICO
A METAFÍSICA DO CRISTIANISMO
A VOZ DO SILÊNCIO
A NOVA HUMANIDADE
O HOMEM
ESTRATÉGIAS DE LÚCIFER
O HOMEM E O UNIVERSO
IMPERATIVOS DA VIDA
PROFANOS E INICIADOS
NOVO TESTAMENTO
LAMPEJOS EVANGÉLICOS
A EXPERIÊNCIA CÓSMICA
MARAVILHAS DO UNIVERSO
ALEGORIAS
ÍSIS
COLEÇÃO BIOGRAFIAS:
PAULO DE TARSO
AGOSTINHO
MAHATMA GANDHI
JESUS NAZARENO
PASCAL
MYRIAM
COLEÇÃO OPÚSCULOS:
CENTROS DE AUTO-REALIZAÇÃO