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HUBERTO ROHDEN

ASSIM DIZIA
O MESTRE
UNIVERSALISMO
ASSIM DIZIA O MESTRE

Assim Dizia o Mestre é o terceiro volume da coleção “Sabedoria do


Evangelho”, da qual fazem parte Filosofia Cósmica do Evangelho, O Sermão
da Montanha e O Triunfo da Vida sobre a Morte, todos de autoria do educador
e filósofo, professor Huberto Rohden.

São tentativas do autor para expor e explicar, numa linguagem filosófica e dos
nossos tempos, os “ditos de Jesus”, originariamente compilados e escritos
pelos evangelistas do primeiro século – Mateus, Marcos, Lucas e João.

As palavras do Mestre são, quase todas, alegóricas e simbólicas; para


compreendê-las devemos transcender a faculdade mental e atingir o nível
intuitivo da razão, ou Lógos, pois, a experiência do Evangelho representa a
mais estupenda verticalidade mística.

Rohden faz ver que o cristianismo não é uma ideologia espiritualística. O


profeta de Nazaré não ensinou uma doutrina “de fuga do mundo”. O
cristianismo não é ascético-espiritualista, nem epicureu-materialista. O
cristianismo é essencialmente cósmico, univérsico, afirmando a bipolaridade da
natureza, fora e dentro do homem – a complementaridade das coisas materiais
e espirituais. Aliás, como podemos observar, a própria vida do Cristo é
genuinamente cósmica; o que lhe mereceu, por parte dos espiritualistas
ascéticos da época, a alcunha de “comilão e bebedor de vinho, amigo de
publicanos e pecadores”.

Explica Rohden: “Até ao presente dia é muito mais importante,


pedagogicamente, proclamar o Evangelho do recusar do que o Evangelho do
usar, porque o abusar é ainda o grande pecado original desta humanidade
profana. É até perigoso recomendar a um abusador do mundo que use esse
mundo, porque ele confundirá fatalmente o uso correto com o abuso incorreto a
que está habituado; o seu complacente egoísmo facilmente lhe fará crer que é
um homem cósmico, quando não saiu ainda das baixadas do homem telúrico.

Isto, todavia, não invalida a nossa tese de que o cristianismo é, em sua íntima
essência, a religião do uso, ou seja, da afirmação do mundo – naturalmente
para os que já se libertaram da velha escravidão do abuso das coisas
materiais.

O homem cósmico ou crístico, tem que passar pela escola ascética da


disciplina espiritual, a fim de atingir a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.
Verdadeiramente, são estas as palavras e a mensagem deste livro.
ADVERTÊNCIA

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar


é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a


transição de uma existência para outra existência.

O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado.

Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.

A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se
aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa
mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer


convenções acadêmicas.
PRELÚDIO

A grande aceitação dos dois primeiros volumes desta série sobre a “Sabedoria
do Evangelho” – 1 – Filosofia Cósmica do Evangelho; 2 – O Sermão da
Montanha – evidenciou a necessidade de encararmos a mensagem do
Nazareno sob o ponto de vista puramente espiritual, independente de qualquer
teologia eclesiástica. A Era do Aquário em que acabamos de entrar exige uma
visão universalista do Evangelho, cujo caráter é essencialmente cósmico.

Dentro em breve, se Deus quiser, seguirá o quarto e último volume da série,


sob o título O Triunfo da Vida sobre a Morte, abrangendo as palavras
proferidas pelo divino Mestre na última semana da sua vida mortal e no período
após a sua ressurreição.

A grande dificuldade de compreendermos o espírito da Sabedoria do


Evangelho está na falta de vivência do seu conteúdo. Ninguém sabe e
compreende, de fato, senão aquilo que vive intimamente, ou melhor, aquilo que
ele é nas últimas profundezas do seu ser. Saber é ser. Só quando o homem se
despoja de vez do “homem velho”, que anda ao sabor das suas
concupiscências, e se reveste do “homem novo, feito em verdade, justiça e
santidade”, é que ele compreende realmente a alma do Evangelho. E, porque
poucos praticam esse misterioso “egocídio”, são muitos os chamados e poucos
os escolhidos.

Para que o homem cruze a invisível fronteira que medeia entre a simples
análise mental e teológica do Evangelho e sua intuição espiritual e cósmica, é
necessário que ele crie dentro de si um clima ético favorável, porque a vivência
ética é o preliminar indispensável para a experiência mística, sem a qual o
Evangelho continua um “tesouro oculto”.

Essa experiência íntima abrirá ao homem purificado as portas secretas para


novos mundos, nunca dantes sabidos nem saboreados.

A “via purgativa” precede necessariamente a “via iluminativa”, e esta é


precursora da “via unitiva”. Ninguém sabe o que é Deus e o Cristo sem esse
tríplice processo ascensional da purificação, iluminação e união.

“Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais entrou em coração
humano o que Deus preparou àqueles que o amam”.
“NINGUÉM VAI AO PAI A NÃO SER POR MIM.”

Nenhum judeu, nenhum muçulmano, nenhum chinês, nenhum persa estará


disposto a aceitar esta afirmação categórica de Jesus, no sentido em que
certos cristãos costumam tomá-la. A maioria da humanidade não pertence ao
cristianismo eclesiástico, organizado. Reconhecem como seus chefes
espirituais a Moisés, Maomé, Krishna, Buda, Zaratustra e outros.

Afirmação categórica como a que encima este capítulo, quando tomada no


sentido costumeiro, desune a humanidade, criando ódios sectários e guerras
de religião.

Entretanto, a culpa desses males não cabe ao inspirado autor destas palavras,
mas à falsa interpretação dos que se dizem seus discípulos, sem possuírem o
espírito do grande Iluminado.

Todo o mal está na confusão de dois elementos distintos: Jesus e o Cristo.

O Divino Logos, ou Verbo, se uniu inseparavelmente ao humano Jesus, mas


essa união não aniquilou a distinção entre os dois elementos, divino e humano.

O eterno Logos, depois de se unir a Jesus, filho de Maria, chama-se o


“Ungido”, ou, em grego, o “Christós”.

Nenhum homem que não receba essa mesma unção (“chrisma”) do espírito de
Deus pode ir ao Pai. Ninguém vai a Deus a não ser através da unção do
espírito de Deus. A nossa natureza humana deve ser tão penetrada e
permeada do espírito de Deus que possamos dizer com Jesus Cristo: “Eu e o
Pai somos um”.

É nisso que consiste a verdadeira redenção e salvação do homem: na


realização dessa suprema cristificação.

Por espaço de diversos anos fui discípulo de um grande mestre espiritual


oriental, e nunca ouvi de lábios cristãos maiores apoteoses ao Cristo do que da
parte desse gentio. Nas aulas de filosofia e nas funções litúrgicas, esse hindu
só falava no Cristo, e o volume de 101 orações por ele compostas só falavam
do Cristo como único caminho à comunhão com Deus. Nenhuma estranheza
nos causava a nós, discípulos do brâmane hindu, essa sua atitude
essencialmente cristã, porque todos nós sabíamos que pela palavra “Cristo”
não entendia ele algum indivíduo humano, fundador duma determinada religião
ou igreja: não entendia a Jesus de Nazaré, filho da Virgem Maria, mas sim o
eterno Lógos, o espírito de Deus de que fala o princípio do quarto Evangelho, o
espírito eterno, absoluto, infinito, que se fez carne e habitou – e continua a
habitar – em nós: “Eu estou convosco todos os dias até à consumação dos
séculos”, “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estou eu no
meio deles”.

Em tempo algum da história da humanidade deixou o divino Logos de habitar


em nós; mas nem sempre encontra veículos humanos assaz receptivos e puros
para se manifestar com tamanho esplendor como fez na pessoa de Jesus de
Nazaré, “cheio de graça e verdade”.

O divino Logos encarnou-se em Moisés, em Isaías, em Jó, em Krishna, em


Buda, em Zaratustra, em Maomé, em Gandhi, e muitos outros veículos
humanos. Quando colocamos uma luz sob um recipiente opaco, nada
percebemos dessa luz, embora ela esteja presente. Se lhe dermos um
invólucro translúcido, percebemos a sua presença de um modo indireto. Mas
se essa mesma luz dermos um cristal transparente, a veremos em toda a sua
claridade.

Em Jesus de Nazaré encontrou o divino Logos a mais perfeita expressão até


hoje conhecida aqui na Terra, e por isso nós cultuamos o Cristo em Jesus
como o apogeu das revelações da Divindade.

Grande parte da humanidade não consegue ainda compreender a verdade da


imanência de Deus no mundo, e a imanência do Cristo no homem. É bem mais
fácil, para o homem comum, compreender a transcendência de Deus e do
Cristo – o Deus para além do mundo, e o Cristo fora do homem – do que a sua
imanência no mundo e no homem. Muitos transcendentalistas receiam o
conceito da imanência porque lhes parece destruir a transcendência.
Entretanto, laboram em erro! A afirmação da imanência não nega a
transcendência: pelo contrário, esta inclui aquela, e aquela inclui esta. O Deus
que está para além do mundo está também dentro do mundo e o Cristo que
estava e está em Jesus está também em cada um de nós, uma vez que ele “é
a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo”. O Cristo
interno é o Cristo externo, assim como o Deus imanente é o Deus
transcendente.

Mas a compreensão dessa verdade supõe notável maturidade espiritual, que


nem todos os homens possuem ainda.

As formas visíveis do invisível Logos sucedem-se, no tempo e no espaço,


percorrendo diversos graus de perfeição ou imperfeição, consoante o maior ou
menor grau de receptividade de seus veículos humanos temporários. Mas o
eterno espírito de Deus, o Logos, paira acima dessas vicissitudes múltiplas e
multiformes – assim como as ondas na superfície do mar se sucedem em
formas várias sem que o oceano deixe de ser sempre um e o mesmo, assim
como a vida universal do cosmos se concretiza e visibiliza sem cessar em
milhares e milhões de organismos vivos individuais, sem aumentarem nem
diminuírem a Vida em si mesma.

***

Em véspera de sua morte, dirigindo-se ao Pai eterno, diz Jesus: “Glorifica-me,


ó Pai, com aquela glória que eu tinha em ti, antes que o mundo fosse feito!”

Quem tinha essa glória antes da creação do mundo?

Certamente não o Jesus humano, que não existia ainda, mas sim o Cristo
divino, que estava com Deus, e encarnou no filho de Maria.

“Ninguém vem ao Pai a não ser por mim.” Abraão, Moisés, Davi e muitos
outros foram ao Pai por meio do Cristo, muito antes que esse Cristo se tivesse
revelado em Jesus. A redenção vem do Cristo. “Eu sei que meu redentor vive!”
– exclama Jó, no meio dos seus sofrimentos, professando a fé no Cristo
Redentor, milênios antes do nascimento de Jesus.

***

O nosso tradicional dualismo ocidental opõe barreira à evolução dessa


consciência do nosso Cristo interno, imanente. Para a maioria dos cristãos, o
Cristo é apenas aquele homem que, há quase dois mil anos, viveu em terras
longínquas, e no qual se deve crer, sem jamais poder experimentá-lo
vitalmente, aqui na Terra, assim como Paulo de Tarso o vivia quando
exclamava: “Já não vivo eu – o Cristo é que vive em mim!”

Seria grotesco supor que Paulo acreditasse que a pessoa humana de Jesus
tivesse tomado posse dele, de maneira que nele houvesse uma duplicata de
personalidades, uma chamada Paulo e a outra chamada Jesus. O que o
apóstolo quer dizer é que nele acordou o Cristo que nele estivera dormente
tantos anos, o mesmo Cristo que em Jesus estava gloriosamente operante.

É, pois, necessário que todo homem que queira ir ao Pai acorde em si o Cristo
e o faça soberano da sua vida, porque a todos aqueles “que o recebem dá-lhes
ele o poder de se tornarem filhos de Deus”.

“Ninguém vem ao Pai senão por mim.”

Ninguém alcança a redenção, o reino dos céus, a não ser que nasça de novo
pelo espírito.
“ALEGRAI-VOS, PORQUE OS VOSSOS NOMES ESTÃO

ESCRITOS NO LIVRO DA VIDA ETERNA.”

Certo dia, regressaram os discípulos de Jesus de uma excursão apostólica e


referiram ao Mestre, cheios de jubiloso entusiasmo, que os próprios demônios
lhes estavam sujeitos. O Mestre, porém, replicou calmamente: “Não vos
alegreis pelo fato de que os demônios vos estejam sujeitos: alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos no livro da vida eterna.”

Com outras palavras: o alvo principal do apostolado não está nos resultados
visíveis da atividade externa, mas sim na invisível realidade da santidade
interna. Ser é mais importante que fazer.

Até os nossos dias, são bem mais numerosos os homens que põem maior
ênfase nas atividades externas do que na atitude interna; dificilmente
compreendem que esta é mais importante do que aquelas.

A atividade social não tem valor autônomo em si mesma, se não brotar da


atitude mística do homem. Pouco importa, afinal de contas, o que o homem
faça ou diga – o que importa, e muitíssimo, é o que o homem é. Podem os
trabalhos de Marta ser bons e louváveis em si mesmos, mas se não forem o
natural eflúvio e a manifestação espontânea da atitude interna de Maria, são
outros tantos zeros, pequenos e grandes, cuja soma ou produto será sempre
igual a zero. Somente o fator espiritual, o grande “1” vertical, é que pode
conferir valor e plenitude a essas vacuidades horizontais: 1.000.000.

Há nas atividades externas, quando dissociadas da realidade interna, dois


gravíssimos perigos.

1 – Essas atividades, facilmente, embalam seu autor numa falsa segurança,


criando nele uma complacente auto-suficiência em face dos resultados
colhidos, impedindo-o de passar para além daquilo que já realizou, ou julga ter
realizado. Essa suava auto-ilusão e complacente suficiência são o maior
desastre espiritual para o homem externamente ativo e internamente passivo,
porque o fazem entrar numa zona de estagnação espiritual. Ai do homem
plenamente satisfeito com seus trabalhos externos! O único fator que pode
preludiar a sua redenção é uma profunda insatisfação consigo mesmo.
Incomparavelmente mais importante que os mais gloriosos trabalhos no plano
horizontal é a intensificação do ser vertical. Pouco vale o fazer, o dizer e o ter
no mundo dos objetos quantitativos, se no mundo do sujeito qualitativo não
existir um profundo ser.

2 – O segundo perigo está em que esse homem exteriorizado julgue influir


sobre seus semelhantes com o que faz e diz – quando é impossível promover a
verdadeira conversão de outrem se eu mesmo não sou um genuíno e autêntico
convertido, isto é, um homem intimamente unido a Deus. Só o meu ser é que
pode influir sobre o ser de outros; mas, se o meu ser é fraco, não poderá dar
força aos fracos. Só um poderoso positivo é que pode atuar sobre os negativos
em derredor; se eu mesmo não for 100% positivo, por uma intensa e profunda
experiência de Deus, não poderei exercer influência real sobre os outros,
igualmente negativos. Podem os meus ouvintes ou leitores admirar-me, sim, e
aplaudir-me; mas não se sentirão com forças para abandonar o mundo noturno
das suas misérias morais e entrar no mundo diurno da virtude e santidade,
porque não veem esse mundo concretizado em minha pessoa. E mesmo no
caso favorável que julgassem esse mundo divino realizado em mim, não se
converteriam realmente a Deus, pois não são as aparências que atuam, mas
sim a realidade, realidade essa que, nesse caso, estaria ausente de mim.
Posso, sim, dizer mil vezes, com grande eloquência, que esse mundo do
espírito é grandioso e belo, e os meus ouvintes ou leitores, na melhor das
hipóteses, crerão nas minhas palavras – mas do crer ao ser vai distância
enorme. Crer é uma teoria longínqua e vaga – ser é uma realidade propínqua e
forte. É dificílima a transição do crer para o ser, e se ninguém vir esse ser
concretizado numa pessoa humana, dificilmente passará a encarnar o seu
longínquo crer num propínquo ser, isto é, não se converterá porque não me vê
convertido.

O convertido é aquele que pode, em verdade, dizer: “Eu e o Pai somos um”.
“Já não sou eu que vivo, o Cristo é que vive em mim.”

As minhas palavras de não-convertido eloquente, possivelmente, darão muita


luz aos ouvintes ou leitores: mas falta força, que não vem das palavras, mas da
realidade espiritual do indivíduo humano, no qual o “Verbo” se tenha feito carne
e habite substancialmente, “cheio de graça e de verdade”.

Pode ser que um determinado homem tenha a missão de pregar às multidões,


escrever livros ou exercer outro trabalho social qualquer – e deve cumprir esta
sua missão do melhor modo possível.

Mas ai dele se vir nessas atividades a principal tarefa da sua vida!

Há outra coisa, infinitamente mais importante, do que qualquer trabalho externo


– é o próprio homem, a sua plena realização crística, para o qual aqueles
trabalhos estão como meios para um fim. Atividades externas nunca devem ser
outra coisa a não ser um como que transbordamento espontâneo de uma
plenitude interior. Se essa plenitude não existe – que é que pode transbordar?
Alguma vacuidade camuflada em plenitude, isto é, uma grande mentira
apresentada com sendo verdade?... Fogo pintado não dá luz nem calor – ao
passo que a menor parcela de fogo real pode atear incêndios e iluminar
mundos inteiros.

Pouco importa o que o que o homem diga, faça ou tenha – tudo importa o que
ele é. O que ele é refere-se à qualidade do seu íntimo Eu – o que ele diz, faz
ou tem refere-se às quantidades do seu externo ego.

Referem os Atos dos Apóstolos que, quando os chefes espirituais da primitiva


igreja cristã perceberam que se iam dispersando em atividades externas e
trabalhos sociais de organização, disseram: “Não convém que nós sirvamos as
mesas; vamos nomear auxiliares idôneos para essa tarefa; nós, porém, vamos
dedicar-nos à oração e à pregação da palavra do Senhor.”

Sabiam esses discípulos do Cristo que o fator decisivo, em qualquer trabalho


de caráter espiritual, é a espiritualidade de quem preside a esse trabalho,
aquilo que ele é no seu íntimo ser, e não aquilo que ele realiza ou organiza no
plano externo.

A caridade social realiza grandes obras – mas só o Amor espiritual realiza o


homem.

Onde quer que exista um homem plenamente realizado pelo Amor, ali serão
realizadas grandes coisas, e essas coisas serão fecundas e benéficas; mas
onde não há realização pelo Amor, senão apenas caridade, ali se realizarão
ruidosos trabalhos externos, que, por melhores em si mesmo, correrão perigo
de colapso e desintegração, por falta de sacralidade interior.

Pouco importa o que o homem realize no mundo externo dos objetos – tudo
importa o que ele realiza em si mesmo. Uma única auto-realização supera
todas as alo-realizações.

“Se um único homem chegar à plenitude do Amor, neutralizará o ódio de


milhões” (Mahatma Gandhi).

Ainda que todos os demônios da Terra, todo o mundo material e astral, me


estivessem sujeitos, mas se o meu nome não estivesse escrito no livro da vida
eterna, não haveria redenção para mim.
“DEUS É DEUS DOS VIVOS, E NÃO DOS MORTOS,

PORQUE PARA ELE TODOS SÃO VIVOS.”

Na memorável dissertação que Jesus teve com os saduceus, que negavam a


ressurreição, profere ele palavras tão profundas que, por si sós, valem por uma
inteira filosofia cósmica.

Em primeiro lugar, desmascara o erro dos seus tentadores, fazendo-os ver


que, na futura “eternidade” (em grego: aion, ciclo de longa duração), não se
casa nem se dá em casamento, porque os que forem achados dignos dessa
futura “eternidade” são como os anjos de Deus nos céus, por serem filhos da
ressurreição; quer dizer, revestidos de corpo imortal e incorruptível. E, por isso,
não necessitam de casamento, porquanto já não há necessidade de
procriação, fim biológico do casamento. Num mundo onde cessou a destruição
do corpo pela morte não há razão para a construção de novos corpos, uma vez
que a existência do corpo se acha definitivamente estabilizada e garantida pela
incorruptibilidade. Só há necessidade de multiplicação quantitativa de corpos
enquanto o corpo não houver atingido o seu estágio definitivo de perfeição
qualitativa.

Quanto menos perfeito ou espiritual é um corpo, tanto maior é nele o instinto


sexual, que é a voz da mortalidade, a qual, sabendo serem os corpos dos
genitores mortais, procura criar outro corpo a fim de fugir à mortalidade. Onde
não há imortalidade individual reina a tendência de criar mortalidade racial; a
imortalidade da espécie ou raça tem de suprir a falta de imortalidade do
indivíduo. Mas onde esta se tornou gloriosa realidade, cessa a tendência
sexual da procriação de novos indivíduos. A grande vertical da imortalidade
individual suplantou a extensa horizontal das individualidades mortais. Por isso,
nos grandes gênios espirituais da história é mínimo ou nulo o instinto sexual; a
horizontal da espécie foi absorvida pela vertical do indivíduo. A mística
substituiu a erótica, nesses “eunucos do reino de Deus”.

Certas igrejas, seitas ou grupos religiosos compreenderam essa verdade; mas,


como os seus adeptos não haviam atingido a necessária maturidade espiritual
para neutralizar a horizontal do sexo pela vertical do indivíduo, essas
sociedades legislaram sobre o assunto, criando artificialmente a “lei do
celibato”, imposta a indivíduos espiritualmente imaturos, dando ensejo a um
doloroso dualismo de permanente hipocrisia: devem fazer o que fazer não
podem.
Quer dizer que nascimento e morte não fazem parte da natureza humana
quando ela atingir a sua perfeição suprema, mas são funções temporárias do
corpo humano em estado primitivo, material. Quem é “filho da ressurreição” é
como os “anjos de Deus nos céus”, isto é, realizou a transformação do seu
corpo material, corruptível, num corpo imaterial, incorruptível. A “ressurreição”
não é a revivência do corpo material, mas é a potencialização dinâmica do
corpo material num corpo espiritual, como é o das inteligências sobre-humanas
que comumente chamamos “anjos”, isto é, “emissários” [1].

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[1] A palavra grega “ángelos”, em latim “angelus” (anjo), quer dizer literalmente “emissário”, “arauto”,
“mensageiro”, designando entidades conscientes e livres revestidas de corpo imaterial e invisível. Quando
um ser desses de alta hierarquia cósmica se opõe a Deus chama-se “satã”, palavra hebraica para
“adversário”, em grego “diábolos”, que quer dizer “opositor”. Quando essa entidade superior harmoniza
com o espírito de Deus e lhe transmite a vontade aos planos inferiores do cosmos, chama-se
significativamente “mensageiro” ou “ángelos” (anjo). Tanto anjo como diabo são “lúcifer”, mas, enquanto
aquele é um “lúcifer” harmonizado com Deus, este é hostil a Deus.

A nossa teologia fala na imortalidade da alma, ao passo que os livros sacros


consideram imortal o homem todo; verdade é que o grosso da humanidade não
alcançou ainda a imortalidade corpórea atual, o que não obsta a que essa
imortalidade do corpo exista, agora mesmo, em estado potencial. O corpo
humano, potencialmente imortal, pode tornar-se atualmente imortal; essa
transição da potência para o ato depende da maturação espiritual da alma.
Toda alma que tenha atingido, digamos, 100% da consciência espiritual
confere imortalidade atual a seu corpo. A alma imortal unida a um corpo imortal
é o estado natural do homem completo, do homem cósmico ou crístico.

O corpo espiritual é essencialmente idêntico ao corpo material; apenas o seu


modo de ser é diferente. A identidade é perfeita. O homem não terá diversos
corpos, sucessivos, mas um só corpo, com diversos graus de perfeição,
consoante o grau de consciência da alma. O corpo é um “templo em que habita
o espírito de Deus”, na expressão de Paulo; e nunca deixará de habitar nesse
santuário.

Quando os discípulos de Jesus, vendo o Mestre redivivo, cuidaram ver um


fantasma, apressou-se ele a provar-lhes a perfeita identidade do corpo do
ressuscitado com o corpo do crucificado, mostrando-lhes os sinais dos cravos e
da lança.

Ora, o que aconteceu com o corpo de Jesus acontecerá com os corpos de


todos os homens quando estes tiverem alcançado suficiente grau de
cristificação. Elias e Moisés, consoante as Escrituras, não passaram pela morte
física, mas transformaram os seus corpos materiais em corpos imateriais,
desaparecendo assim dos olhos que apenas percebem objetos materiais.
Quando a matéria se desmaterializa, passa, primeiramente, pelo estado de
energia luminosa, ainda focalizada e, por isso, visível; depois, essa mesma
energia luminosa se torna invisível, porque desfocalizada. Refere o texto que o
profeta Elias ascendeu às alturas arrebatado num “carro de fogo”; quer dizer
que o seu corpo desmaterializado pela força da alma foi visto como uma
nuvem, luminosa, passando depois ao estado da luz cósmica, invisível. De
Moisés refere o texto que foi levado por Deus às alturas do monte Nebo e ali
desapareceu misteriosamente, sem que jamais fosse encontrado vestígio do
corpo dele. Houve, pois, uma desmaterialização instantânea do corpo de
Moisés, de maneira que nem o estágio intermediário da energia luminosa foi
verificado. Durante a transfiguração de Jesus, reaparecem, visibilizados, os
corpos imateriais de Elias e Moisés, ao lado do corpo de Jesus, também em
estado de energia luminosa. Jesus, desde o início, possuía o poder de
desmaterializar e rematerializar o seu corpo, como mostrou diversas vezes
durante a sua vida mortal; afirma categoricamente: “Ninguém me tira a vida; eu
deponho a minha vida (física) e retomo a minha vida quando quero; porque
este poder me foi dado pelo meu Pai”. O que ele chama o “Pai” é o elemento
divino dele: “O Pai está em mim e eu estou no Pai”.

Há, sobretudo na Índia, diversos casos em que homens de alta espiritualidade


transformaram o seu corpo material em corpo imaterial, desaparecendo da
zona do visível sem terem morrido, e reaparecendo periodicamente, durante
séculos.

A ressurreição, ou transformação do corpo, é um ato do “poder de Deus”. Esse


poder de Deus está dentro de cada homem em forma de sua alma, o “espírito
de Deus que nele habita”, o nosso “Cristo interno”. Mas só quando a alma,
superando o testemunho dos sentidos e da mente, alcançar plena consciência
da sua essencial identidade com Deus, e viver essa sua divina identidade pelo
amor universal, é que ela conquista o “poder de se tornar filho de Deus”, e esse
poder divino, saturando todas as células do corpo, confere incorruptibilidade à
matéria corruptível. “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, porque para
ele todos são vivos”...
“AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, COM TODO O TEU CORAÇÃO,

COM TODA A TUA ALMA, COM TODA A TUA MENTE

E COM TODAS AS TUAS FORÇAS.”

Não há cristão, nem outro homem religioso, que não afirme amar a Deus do
modo como vem expresso nestas luminosas palavras do divino Mestre.

Entretanto, vai nisso, quase sempre, uma grande ilusão. Por quê?

Porque é absolutamente impossível amar, real e intensamente, um Ser do qual


não se tenha experiência direta e imediata. A imensa maioria dos homens
religiosos apenas crê em Deus. Ora, o objeto da nossa crença ou fé nunca
pode ser objeto de um verdadeiro amor. Ninguém pode amar uma doutrina, um
dogma, um artigo de fé.

O crente, quando muito, quer amar, mas não ama de fato. Querer amar é um
ato volitivo, uma prova de boa vontade, mas não é amar. O amor, assim como
Jesus o descreve nas palavras acima, não é apenas um ato de boa vontade,
mas é o resultado de uma profunda, misteriosa e fascinante experiência vital do
homem em toda a sua plenitude – alma, coração, mente e corpo. Ninguém
pode amar um ser ausente, do qual ouviu falar e no qual crê apenas
volitivamente. O Deus da nossa crença é um Deus longínquo, transcendente –
ao passo que o Deus do nosso amor é um Deus propínquo, imanente. Quem
apenas crê num Deus distante, transcendente, pode, sim, querer amá-lo, mas
não o pode amar de fato. O amor real é algo intensamente próximo, íntimo,
ardente; é uma verdadeira fusão do amante e do amado – “eu e o Pai somos
um”, “o Pai está em mim, e eu estou no Pai”.

De maneira que, em última análise, há só uma classe de homens que, de fato,


amam a Deus – são os verdadeiros místicos, os intuitivos, os videntes do
mundo da Divindade, os que têm de Deus uma experiência vital, imediata; são
os que sabem o que é Deus em virtude de um contato direto, de uma vivência
onipenetrante. São estes os únicos que amam a Deus de todo o coração, de
toda a alma, de toda a mente e com todas as forças do seu corpo.

Mas, como os verdadeiros místicos são raros, bem poucos são os homens que
realmente amam a Deus de acordo com as palavras de Jesus. Talvez que, até
a presente data, um só homem tenha atingido as culminâncias desse amor
integral. E era precisamente esta a razão por que possuía “todo o poder no céu
e na Terra”, porquanto o verdadeiro amor é onipotente por sua própria
natureza.

Quem tudo compreende tudo ama.

Quem tudo ama tudo pode.

Compreender, amar e poder – essas três coisas são na realidade uma só.

Enquanto o homem ignora qualquer coisa não ama ainda integralmente,


porque o seu amor está limitado àqueles seres que se acham dentro do
luminoso círculo da sua compreensão, ao passo que os outros seres que ficam
fora dessa zona de compreensão não são nem podem ser objetos do seu
amor.

Amor universal supõe compreensão universal.

E uma vez que o homem tudo compreende e tudo ama – que limite poderia
haver ainda para o seu poder?

Se sem limites é o seu compreender e o seu amor, sem limites tem de ser,
necessariamente, o seu poder.

Onicompreensão é oniamor e onipotência!

***

O que no Evangelho de Jesus se chama “fé” é, de fato, uma experiência e uma


direta vivência da Suprema Realidade, mas o que as nossas teologias,
geralmente, entendem por “fé” não passa de um entender intelectivo ou de um
querer volitivo. E esse entender e esse querer, esse crer, ou esse querer-crer,
não podem deixar de ser fracos e insatisfatórios; nada têm da força irresistível
de um profundo e fascinante compreender e viver.

No momento em que o homem transpõe a fronteira do seu velho e débil “crer”,


entrando na zona de um novo e forte “compreender”, sabe ele pela primeira
vez o que Jesus quis dizer com as tão conhecidas e tão desconhecidas
palavras: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua
alma, de toda a tua mente e com todas as tuas forças.”

Alma, coração, mente, forças corpóreas – o homem integral!

Compreendemos que o homem possa amar a Deus com a alma, o espírito,


porque Deus é espírito.

Mas o que, à primeira vista, nos parece estranho é que o homem possa amar a
Deus também com o coração, com a mente e até com as forças do corpo.
Como posso amar afetiva, intelectiva e até fisicamente um Ser que é puro
espírito? Como podem o coração, a mente, o corpo atingir esse objeto de
amor?

De fato, se Deus fosse apenas um Deus transcendente, puro espírito abstrato,


só os puros espíritos o poderiam amar; mas, sendo Deus, além de
transcendente às suas obras, também imanente em cada uma das suas
creaturas, é possível que o amemos também com o coração, com a mente e
com o corpo.

Deus é inconsciente no mineral.

Deus é subconsciente no vegetal.

Deus é semiconsciente no animal.

Deus é egoconsciente no intelectual.

Deus é pleniconsciente no espiritual.

Deus é oniconsciente em si mesmo.

Se Deus não fosse imanente em suas obras, ninguém o poderia amar com as
faculdades do coração, da mente e do corpo.

Como Verdade, Deus é Transcendente.

Como Beleza, Deus é Imanente.

Quando a Verdade e a Beleza se fundem numa grandiosa sinfonia, surge a


estupenda Poesia do Cosmos, síntese de Verdade e Beleza.

A Verdade é infinitamente bela.

A Beleza é profundamente verdadeira.

Por isso, a Vida Eterna é necessariamente a eterna Beatitude, porque nasce do


consórcio do Verdadeiro e do Belo, que é Amor.

Enquanto o “amar Deus” é apenas um preceito ético, um dever, um imperativo


categórico da consciência moral, não despertou ainda a alma do amor; só
quando esse “amar a Deus” deixa de ser um compulsório dever e se
transforma num espontâneo querer, numa luminosa compreensão, num
irresistível entusiasmo – então é que o homem entra no “gozo do seu Senhor”.

Então sabe ele que é amor.

Sabe o que é o Cristo.

E sabe o que é ele mesmo.


“QUEM NÃO RENUNCIAR A TUDO QUE TEM

NÃO PODE SER MEU DISCÍPULO.”

Ter – ou Ser?

É a esses dois monossílabos que se reduz, em última análise, toda a filosofia


do Evangelho e toda a sabedoria dos séculos.

Ter – ou Ser?

Duas atitudes eternamente incompatíveis.

“Ninguém pode servir a dois senhores.”

O homem que tem algo não pode ser alguém e vice-versa.

O homem profano só conhece o ter, ou os teres, isto é, certo numero de


objetos quantitativos, que estão ao redor dele, no plano horizontal, e que ele
considera ingenuamente como sendo seus bens. O profano total nada sabe do
seu intimo ser, de algo que não é dele, mas que é ele mesmo. Pode alguém
ser milionário no plano horizontal dos seus teres, e ser ao mesmo tempo
mendigo indigente na zona vertical do seu ser. De tanto ter não chega a ser
alguém.

Outros, mais avisados, resolvem renunciar a todos os seus teres e se isolam


no puro ser, isto é, na divina essência do seu eterno Eu, sua alma, seu Cristo
interno. E, de tão enamorados desse seu verdadeiro ser, desprezam
soberanamente todos os ilusórios teres dos profanos. São os ascetas, os
místicos, os iogues, os austeros desertores de todas as coisas periféricas, os
impávidos bandeirantes da verdade central. E, por mais tenebrosa que a outros
pareça essa noite da renúncia absoluta e incondicional, ela é solene e
grandiosa, porque possui a fascinante sacralidade das noites estreladas...

É a estes que Jesus se refere nas palavras que encimam o presente capítulo:

“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”

Quer dizer quer qualquer ter, ou posse de objetos externos, impede o homem
de ser discípulo do Cristo, ele, que não tinha onde reclinar a cabeça – nada
tinha porque tudo era; porque o seu ter descera ao ínfimo nadir, quando o seu
ser atingira o supremo zênite. Por fim, renunciou também ao ter mais
intimamente ligado ao ser, o corpo físico. E assim acabou ele de “entrar em sua
glória”.

Pode parecer estranho e humanamente inexequível esse inexorável


radicalismo do Mestre. E não faltou quem mobilizasse contra essa sangrenta
verdade da renúncia absoluta e incondicional todas as legiões da dialética
mental, a ver se conseguia salvar do naufrágio ao menos alguns dos seus
queridos ídolos, a ver se conseguia passar pelo “fundo da agulha” pelo menos
com uma parte da bagagem que o profano costuma levar de reboque, nessa
jornada terrestre; habituado em todos os paraísos da Terra, tentam eles aplicar
essa sua política e diplomacia também ao Evangelho do reino de Deus.

Entretanto, as palavras do Mestre não admitem vestígio de dúvida; são


inexoravelmente claras: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser
meu discípulo” – tudo, sem exceção de coisa alguma! O episódio trágico do
jovem rico é uma ilustração clássica para essa verdade austera.

Tudo quanto o homem possui em bens terrestres torna-o dependente e


escravo; mas o reino dos céus é somente para as almas completamente livres.
Enquanto o homem tem algo que o mundo lhe possa tirar, ou deseja algo que o
mundo lhe possa dar, não é definitivamente livre, e por isso discípulo do Cristo.
Os nossos teres quantitativos nos excluem do reino dos céus – o nosso ser
qualitativo nos faz entrar no reino de Deus. Aproximamo-nos de Deus na razão
direta do que somos, e na razão inversa do que temos. O ter é nosso, o ser é
de Deus.

Mas, em que consiste esse ser?

Consiste na consciência da verdade sobre nós mesmos. Se conhecermos a


verdade sobre nós mesmos, seremos livres. “Conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará. E, se o Filho do homem vos libertar, sereis realmente
livres.”

Essa verdade libertadora sobre nós mesmos porém está na experiência íntima
da nossa essencial identidade com Deus – “eu e o Pai somos um” – e na
completa harmonia da nossa vivência cotidiana com essa verdade suprema.

***

Mas... não é necessário que o homem, aqui no mundo, possua certas coisas?
Poderá ele viver decentemente sem possuir nada? Bastará aqui na Terra o
simples e puro ser? E não é um certo ter compatível com esse ser?

É este, talvez, o ponto em que o cristianismo organizado falhou mais


deploravelmente, e, o que é pior, as próprias igrejas cristãs procuram justificar
esse espírito de possessividade de seus filhos – tanto mais que os próprios
chefes espirituais são, não raro, os maiores possuidores de bens materiais.
Será que a muitos desses chefes não caberiam as palavras veementes com
que o Cristo fulminou os guias de Israel? “Guias cegos guiando outros cegos,
mas se um cego guiar outro cego ambos acabarão por cair na cova! Ai de vós
doutores da lei! Roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus! Vós
não entrais nem permitis que outros entrem!”

Não há nada no Evangelho em que o divino Mestre insista com maior rigor e
frequência do que no espírito de absoluta e total renúncia aos bens terrenos;
por sinal que ele considera a posse desses bens como absolutamente
incompatível com o espírito do reino de Deus.

À primeira vista, parece possível e até necessário esse consórcio entre o ser e
o ter, razão por que os teólogos e moralistas cristãos de todos os tempos têm
tentado realizar esse congraçamento. Entretanto, continua a ser verdade
inconcussa que “ninguém pode servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro”.
Ter algo e ser alguém são duas antíteses tão inexoravelmente hostis que
nenhum tratado de paz é possível entre essa duas potências, assim como
impossível é um consórcio entre as trevas e a luz, entre o não e o sim, entre a
morte e a vida.

Entretanto, sem revogar o que acabamos de dizer, passaremos a explicar dois


termos: possuir e administrar. É possível que o homem seja discípulo do Cristo
e ao mesmo tempo administre parte dos bens de Deus em benefício dos outros
filhos de Deus, seus irmãos. Deus é o único dono, proprietário e possuidor de
todas as coisas que ele creou; nenhum homem é dono de coisa alguma e, se
ele se arroga o direito de ser proprietário disso ou daquilo, comete crime de
“apropriação indébita”, roubando a Deus e aos filhos de Deus algo que lhe não
pertence. Por isso, nenhum genuíno discípulo do Cristo se considera
possuidor, dono ou proprietário do dinheiro ou de quaisquer bens materiais
que, casualmente, estejam sob a sua administração; considera-se
invariavelmente como simples administrador desses bens, de cujo emprego
terá de dar estreitas contas ao legítimo senhor e proprietário.

Lemos nos Atos dos Apóstolos que entre os primeiros discípulos do Cristo não
havia propriedade particular, mas que todos os bens eram comuns. Não existia
nenhuma lei externa que obrigasse os cristãos a socializarem os seus bens,
mas havia neles a lei interna do amor nascido da compreensão da grande
verdade de que todas as coisas do mundo são de Deus e que nenhum filho de
Deus tem o direito de arrogar a posse exclusiva duma parte desses bens. A
administração desses bens deve ser entregue a pessoas que tenham maior
capacidade, e sobretudo maior espírito de desapego, mas o usufruto dos bens
deve reverter sempre em prol da humanidade como tal. Se os homens se
considerassem administradores, em vez de possuidores dos bens materiais,
seria proclamado o reino de Deus sobre a face da Terra; cessariam guerras,
explorações, brigas, roubos, assassinatos, etc. “A cobiça é a raiz de todos os
males”, dizem os livros sacros.

***

Esse conceito de administração, em vez de propriedade, é um simples e


espontâneo corolário da realização crística do homem. Em face do nascimento
do sol do ser empalidecem todas as estrelas noturnas do ter. O homem crístico
sente intuitivamente a total incompatibilidade entre o “ser discípulo do Cristo” e
“possuir bens terrenos”. Essa alternativa representa para ele um dilema de
lógica inexorável; ou isto – ou aquilo! Uma vez que ele conhece a sua sublime
dignidade em Cristo Jesus, como poderia ainda degradar-se ao ponto de
colocar a mão, pesadamente, sobre algum pedaço de matéria morta e declarar
enfaticamente: “Isto aqui é meu, e de mais ninguém!” Semelhante atitude lhe
pareceria tão incrivelmente ridícula e vergonhosa que ele não a perdoaria a si
mesmo. E se, pelas forças das circunstâncias, esse homem for obrigado a
assinar em cartório, com firma reconhecida, algum documento de propriedade,
tem ele plena constância de que esse instrumento de posse vigora apenas no
plano horizontal das pobres relações humanas, mas que nada significa na zona
vertical da sua atitude espiritual e ética perante Deus e seus irmãos humanos;
esse homem sabe que a despeito do que ele assinou sobre as infalíveis
estampilhas, testemunhas da humana desconfiança e inconfidência, continua a
não ser dono e proprietário de coisa alguma.

Também, como poderia um genuíno discípulo do Cristo declarar de boa fé


“este objeto me pertence”, quando ele mesmo já não se pertence, uma vez que
pertence a Deus e à humanidade? Como apropriar-se de um objeto, se ele já
desapropriou o próprio sujeito? Com o voluntário naufrágio do meu falso eu, do
ego personal, naufragaram também todos os bens que eu chamava falsamente
meus. A ideia do meu nasceu com a ideia do eu; quando esse eu morre,
morrem necessariamente todas as ilusões relacionadas com o meu. O EU
verdadeiro, divino, nada sabe de meus, porque o zênite do ser provoca o nadir
do ter; quem tudo é nada tem; a intensa luminosidade do ser aniquila todas as
trevas do ter. Quem de fato é discípulo do Cristo nada tem nem quer ter, para
si mesmo, embora possa prestar-se para administrador duma parte dos bens
de Deus em prol de seus irmãos.

O que eu considero meu só tem função enquanto ainda vive em mim a noção
do eu físico-mental; no momento em que o meu pequeno eu personal se afogar
nas profundezas do TU divino e no vasto NÓS da humanidade, deixa esse
conceito de meu ter razão de ser; é como um objeto suspenso no vácuo,
depois que se lhe foi subtraído o sujeito de inerência que lhe servia de base e
substrato.

Por isso, o homem que atingiu a plenitude do seu ser, pelo despontar da
consciência cósmica, perde toda a noção de posse e propriedade. Nada
adquire e nada perde. O fluxo e refluxo incerto de lucros e perdas deixou de
existir para ele, e com isso foi eliminada a fonte principal da inquietação que
atormenta os profanos. Nada possui que o mundo lhe possa tirar, e nada
deseja possuir que o mundo lhe possa dar. Entretanto, se as circunstâncias
terrenas o nomearam administrador do patrimônio de Deus e da humanidade,
esse homem administra com a máxima solicitude esse patrimônio terrestre
universal.

Pela mesma razão, o homem que se despojou dos teres pela maturação do ser
não experimenta a menor dificuldade nem tristeza em passar a outras mãos a
gestão dos negócios temporários que lhe foi confiada.

O grande industrial norte-americano R. G. Le Tourneau, fabricante de


possantes máquinas de terraplenagem, mandou colocar sobre a entrada de
uma das suas fábricas o seguinte letreiro:

“Não digas: Quanto do meu dinheiro eu dou a Deus?

Dize antes: Quanto do dinheiro de Deus eu guardo para mim?”

Esse homem descobriu que nós não temos dinheiro algum, mas que todas as
coisas do mundo são de Deus; entretanto, pode o administrador dos bens de
Deus tirar para si uma pequena “comissão”. Le Tourneau, no princípio, tirava
uma comissão de 90% para si, dando 10% a Deus, para fins de altruísmo e
religião; por fim inverteu as quotas, dando 90% a Deus e guardando 10% para
si. Entretanto, mesmo desses 10%, Le Tourneau não se considerava
proprietário, senão apenas administrador, porque também esse dinheiro
pertencia a Deus e à humanidade.

“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”
“QUEM DE VÓS ME ARGUIRÁ DE UM PECADO?”

O pecado só é possível na penumbra da egoconsciência, criada pelo intelecto.


Não é possível nas trevas da inconsciência, que envolve o mundo dos sentidos
materiais; nem é possível na luz meridiana da pleni-consciência, que ilumina as
alturas espirituais da razão, do Logos, que, em sua forma encarnada, se chama
o Cristo.

Nem a inconsciência nem a pleni-consciência conhecem o pecado. O pecado é


um fenômeno privativo da semi-consciência. Nem os sentidos nem a razão
podem pecar; nem o corpo nem a alma pecam – tão-somente a inteligência,
esse lúcifer do ego mental.

Ora, sendo o Cristo a Razão, o Logos, o Espírito divino – como poderia haver
pecado na zona da impecabilidade?

Deus é transcendente a tudo e imanente em tudo.

Na sua essência, é Deus totalmente presente e imanente em todas as coisas –


mas no plano da manifestação dessa sua essência há grandes diferenças.
Deus, embora imanente em cada ser, não se manifesta do mesmo modo em
todos os seres. A sua essência é invariável, mas a sua manifestação é variável.
Repetimos:

Deus é inconsciente no mineral.

Deus é subconsciente no vegetal.

Deus é semiconsciente no animal.

Deus é egoconsciente no intelectual.

Deus é pleniconsciente no racional.

Deus é oniconsciente em si mesmo.

Só na zona penumbral da egoconsciência é que é possível o pecado.

O pecado supõe consciência, porém uma consciência imperfeita.

O pecado consiste na ilusão da nossa separação de Deus, ilusão essa creada


pelo intelecto.
Somos distintos de Deus, é certo, porque Deus é transcendente a cada uma
das suas creaturas.

Mas não estamos separados de Deus, porque Deus está imanente em cada
uma das suas creaturas.

Não somos idênticos a Deus nem separados de Deus – mas somos distintos
dele, porque somos iguais a Deus pela essência divina universal – e somos
desiguais dele pela existência humana individual.

O dualista afirma a transcendência e nega a imanência.

O panteísta nega a transcendência e afirma a imanência.

O monoteísta absoluto, o monista ou universalista, afirma tanto a


transcendência como a imanência, atingindo assim a verdade total.

O intelecto separatista nos faz pecar – a razão unista nos redime do pecado.

O intelecto é o precursor da razão – a razão integra em si o intelecto.

Só nos pode redimir o que é remido.

Só o impecável nos pode purificar do pecado.

Ninguém vai ao Pai a não ser pelo Cristo – o Cristo, porém, como diz o quarto
Evangelho, é o divino Logos, a Razão suprema, que fez carne e habitou entre
nós.

Habitou entre nós, historicamente, na pessoa de Jesus de Nazaré – e habita


em cada um de nós, permanentemente, na forma daquela “luz que ilumina a
todo homem que vem a este mundo... e dá àqueles que a recebem o poder de
se tornarem filhos de Deus”; porque esse mesmo Cristo do passado está
presente em cada um de nós, “eu estou convosco todos os dias até à
consumação dos séculos”.

“Quem de vós me arguirá de pecado?” – assim poderá dizer todo homem no


qual o Cristo interno tenha despertado plenamente, redimindo a
egoconsciência pecadora de seu velho egoísmo e penetrando-a toda do amor
universal.
“QUEM NÃO ODIAR A SUA PRÓPRIA VIDA

NÃO PODE SER MEU DISCÍPULO.”

“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo” – dura era
essa linguagem da renúncia aos bens externos – duríssima é a exigência de
odiarmos a nossa própria vida.

Há milhares de homens que fazem a sua meditação diária – entretanto,


pouquíssimos são os que conseguem cruzar a misteriosa fronteira que medeia
entre a consciência telúrica do profano e a consciência cósmica do iniciado: o
grande “Pentecostes”, o “renascimento pelo espírito”, a entrada no “terceiro
céu”.

Por quê?

Porque, para a maior parte das pessoas piedosas, a chamada meditação não
passa de um dulçoroso devaneio, uma espécie de cochilo devocional, um tal ou
qual namoro com o mundo espiritual, sem nenhum efeito radical decisivo sobre
a vida.

A verdadeira meditação, ou cosmo-meditação, porém, não é nada disso; é um


trabalho imensamente sério, doloroso e árduo, pelo menos no princípio, porque
é o rompimento duma barreira multissecular, ou, no dizer do divino Mestre, um
“caminho estreito e uma porta apertada”. O cochilo devocional é uma descida
para o plano subconsciente, ao passo que a verdadeira meditação é uma
subida ao plano superconsciente, uma entrada no misterioso mundo da
Divindade. “O reino dos céus sofre violência, e os que usam de violência o
tomam de assalto.”

Quem de fato entra em meditação ultrapassa não somente o mundo dos


objetos, físicos e mentais, sentimentos e pensamentos dos sentidos e do
intelecto, mas transcende também o próprio sujeito personal, o seu ego físico-
mental.

Ora, é precisamente essa ultrapassagem do sujeito personal que é


extremamente difícil, uma vez que esse ego personal se nos apresenta como
sendo o nosso verdadeiro Eu individual, o nosso Cristo interno, o espírito de
Deus em nós, a nossa alma.

Enquanto o homem não descobrir o seu verdadeiro Eu, não pode abrir mão do
seu pseudo-eu, seu ego personal, porque esse ego é, para ele, o que há de
mais alto e perfeito em sua natureza. A natureza tem “horror ao vácuo”. Não é
possível realizarmos uma vacuidade de sentimentos e pensamentos, enquanto
não tivermos uma plenitude maior que substitua essa vacuidade. A renúncia
meramente negativa é impossível. É lei de psicologia que o homem não possa
renunciar a um bem enquanto não conseguir outro bem maior. Só na presença
de algo maior é que desaparece o menor. Ninguém pode perder a consciência
físico-mental enquanto não adquirir a consciência espiritual. Ninguém, pode
abandonar o 10 enquanto não tiver a certeza de alcançar 15 ou 20 ou mais. A
renúncia é um ato eminentemente positivo. O seu fim não é empobrecer, mas
enriquecer o renunciante. Pela renúncia o homem “morre”, é verdade, mas
morre para o pouco a fim de viver para o muito; morre para uma vacuidade a
fim de viver para uma plenitude. Pela renúncia, o homem transcende o que ele
é, a fim de ascender ao que pode vir a ser; ultrapassa uma colina a fim de
atingir as alturas do Himalaia. Quem se agarra ao pouco não pode possuir o
muito – por falta de renúncia creadora!

Na verdade, não há nada mais positivo e creador do que a renúncia voluntária.

A renúncia espontânea é o teste da força do homem. Só o forte não tem medo


de parecer fraco – renunciando.

O fraco tem de aparentar força – não renunciando.

Uma vez claramente visualizado um bem maior, pode o homem abandonar


tranquilamente o bem menor, na certeza de que esse abandono não significa
empobrecimento, mas enriquecimento.

Toda renúncia supõe, portanto, a compreensão e posse de algo maior e mais


perfeito do que o objeto da renúncia.

Ninguém pode razoavelmente sacrificar a sua vida física enquanto não houver
compreendido, com suficiente nitidez e firmeza, que existe uma vida maior e
mais abundante do que a do corpo, e que a perda desta não é uma perda real,
uma vez que a pequena vida perdida está contida na grande vida recém-
adquirida.

Ninguém pode, por exemplo, renunciar ao impulso erótico enquanto não tiver
saboreado as glórias da mística, como “eunuco do reino de Deus”. Depois de
conhecer a mística por vivência própria, pode o homem abandonar a erótica,
porque já não representa uma perda em face daquele lucro maior. O menor
está sempre contido no maior. O menor sacrificado por causa do maior é uma
perda aparente, mas um lucro real, porque o menor integrado no maior adquire
maior realidade do que antes tinha, quando separado.

A mística não é uma virtude, no sentido comum do termo; é uma experiência,


uma sabedoria, a compreensão vital da Suprema Realidade. Enquanto o
homem ainda tem sentimentos de heroísmo e virtuosidade, por ser bom, não é
perfeito. A perfeição ignora esses complexos de heroísmo e virtuosidade,
porque é inteiramente natural e espontânea.

A plenitude do ser eclipsa todo o desejo de ter.

Todos os pequenos teres estão contidos no grande ser.

Renunciar aos teres do ego humano a fim de ser o grande EU crístico é lucro e
grande riqueza.

“Quem puder compreendê-lo, compreenda-o!”


“TENDE FÉ EM DEUS – E TENDE FÉ

EM MIM TAMBÉM!”

Há, nos livros sacros, duas palavras que, em nossos dias, são de uso e abuso
diário, mas perderam o seu sentido primitivo, que foi substituído, através dos
séculos, por outro, incomparavelmente inferior. Mas os que nada sabem dessa
paulatina deturpação do sentido inicial continuam a usar essas palavras e
chegam a conclusões totalmente errôneas. Ficou o invólucro externo, mudou o
conteúdo interno.

Essas duas palavras são fé e caridade. No presente capítulo trataremos


apenas do sentido da palavra “fé”.

O que, geralmente, se entende por esta palavra, em nossos dias, é um


sentimento intelectivo e volitivo, mais ou menos vago ou incerto, e uma
determinada doutrina, ou a confiança numa pessoa. Assim, por exemplo,
quando alguém deixa de pertencer a este ou àquele grupo religioso – digamos,
a certa igreja hierárquica – dizem os teólogos dessa igreja que fulano “perdeu a
fé”. Que foi que ele perdeu? Perdeu a crença numa determinada teologia ou
exegese engendrada por um grupo de homens. Em geral, essa “perda de fé” é
uma etapa necessária para a evolução do homem rumo à verdadeira fé.
Entretanto, o egoísmo sectário não tolera facilmente que alguém ultrapasse o
estágio evolutivo em que os adeptos dessa etapa se encontram. Para os
sacerdotes da sinagoga de Israel, Jesus tinha renegado a fé, quando afirmou
que o reino de Deus vinha de dentro do próprio homem, e não das mãos dos
doutores da Lei e sacerdotes.

O que os teólogos, por via de regra, chamam crer, ter fé, está para a fé real
assim como um fogo pintado está para o fogo real. Um fogo artificial, pintado
na tela, embora com absoluta fidelidade e arte incomparável, não dá luz nem
calor; com ele não se pode atear fogo em matéria alguma, por mais
combustível – ao passo que um fogo real, embora pequenino como uma chama
de fósforo, pode atear gigantescos incêndios, iluminar e acalentar o mundo
inteiro.

O fogo real tem a propriedade dinâmica de produzir “reação em cadeia”,


apoderando-se sucessivamente de todos os combustíveis ao seu alcance, ao
passo que o fogo artificial é essencialmente estático e inerte e não tende a
comunicar-se ao ambiente.
O que nós, geralmente, entendemos por crer, ter fé, consiste em atos do
intelecto e da vontade; mas o que Jesus e os gênios espirituais da humanidade
chamam fé é uma experiência direta e imediata do mundo espiritual, do mundo
invisível de Deus, é um contato vital com o Infinito, o Absoluto, o Eterno.

A fé verdadeira, como aparece nas páginas dos livros sacros, não é adesão a
uma determinada doutrina, nem a lealdade a esta ou àquela pessoa que
representa certa teologia; mas é uma experiência íntima, um compreender e
saber intuitivo, uma invasão ou eclosão do mundo divino no homem, uma como
que linha vertical que vem de ignotas alturas e vai a misteriosas profundidades;
a fé é um contato direto entre Deus e o homem, por mais inexplicável que seja
esse contato. Tudo que é anterior a essa fé e, por assim dizer, horizontal,
humano: nesse plano preliminar é o homem que age e produz; mas, quando a
misteriosa vertical corta a horizontal, é Deus mesmo que age e produz, suposto
que o homem se tenha tornado receptivo para essa invasão do mundo divino.
Tanto essa receptividade prévia como essa mesma experiência divina é que os
livros sacros chamam fé (em latim fides, em grego Pistis).

Para concretizarmos essa grande verdade, seja-nos permitido usar uma


comparação ingênua tirada da natureza orgânica.

Debaixo duma folha verde se acha um ovinho de borboleta. Esse ovinho é uma
borboleta?

É – e não é.

Atualmente não é borboleta – potencialmente, é. Em sua íntima essência, esse


minúsculo ovinho é uma borboleta; em sua existência externa, não é. Quer
dizer que a íntima essência ou potência do ovinho e da borboleta são idênticas;
a sua verdadeira natureza é uma só. Mas no plano evolutivo da existência ou
atualidade, há uma grande diferença entre o ovo e a borboleta nele contida
potencialmente. O lepidóptero adulto possui um maravilhoso corpo
trissegmentado, meia dúzia de perninhas duplamente articuladas; um par de
grandes olhos hemisféricos, cada um com diversos milhares de facetas visuais;
possui uma boca artística em forma de delicada espiral contrátil, com a qual
suga o néctar das flores; dispõe de dois pares de asas, que são obras-primas
de resistência, leveza e estética – nada disso se encontra, aparentemente, no
ovinho, que consiste apenas numa casquinha de quitina sólida e num conteúdo
líquido ou viscoso, sem nenhuma diferenciação visível.

No plano externo da existência, é enorme a diferença entre o ovinho e a


borboleta – mas no plano interno da essência não há diferença alguma; existe
perfeita identidade; a natureza do ovinho é a natureza da borboleta. De
maneira que o ovinho, animado de uma “fé” biológica intuitiva, poderia afirmar:
“Eu e a borboleta somos um”.
Coisa análoga poderíamos dizer do próximo estágio evolutivo desse inseto, a
lagarta, que, no plano existencial, não é nada parecida nem com o ovinho nem
com a borboleta, e, no entanto, lhes é idêntica no plano da essência.

O mesmo acontece ainda com o terceiro estado, a crisálida, ou casulo. Quem


poderia suspeitar que aquela bonequinha imóvel e aparentemente morta fosse
idêntica à lagarta comilona ou à borboleta volúvel e multicor?

Ora, que é que faz com que o ovo se transforme em lagarta, esta em crisálida,
e esta em borboleta?

É a fé na identidade da essência das quatro formas existencialmente tão


diferentes. Naturalmente, neste caso, é uma fé biológica, inconsciente ou
subconsciente.

Se o ovinho pudesse perder essa fé biológica na sua essencial identidade com


a lagarta, a crisálida e a borboleta, nunca atingiria nenhum desses estados
superiores. Se o ovinho não “cresse” intimamente que já é implicitamente, hoje
mesmo, o que pode vir a ser explicitamente amanhã, nunca se processaria
essa metamorfose. A realidade interna produz as formas externas. A essência
causa as existências. A causa invisível produz os efeitos visíveis. No momento
em que o ovinho, a lagarta ou a crisálida perdessem a sua fé biológica na
futura borboleta, estaria cortada a linha da continuidade vital, roto um elo, da
cadeia ovo-lagarta-crisálida-borboleta, e este último elo, desligado dos outros,
nunca apareceria como realidade definitiva. Estaria destruída a profunda
harmonia essencial que vigora entre a alma do ovinho e a alma da borboleta, e
seus intermediários, e, devido a essa falta de nexo e harmonia vital, não
haveria transição de uma forma de existir para outra, porque o que torna
possível essa transição de estado a estado é a fé numa profunda identidade
essencial a permear todas as diferenças existenciais. A fé afirma uma unidade
invisível no meio das diversidades visíveis.

***

Eis aí o perfeito simbolismo do que acontece entre o homem imperfeito de hoje


e o homem perfeito de amanhã – suposto que haja o misterioso vínculo de
continuidade que chamamos fé. Os homens ao redor de nós se encontram em
planos vários de evolução – ovo, lagarta, crisálida; as nossas formas
existenciais são mais ou menos primitivas e imperfeitas; mas pouco importam
essas imperfeições, contanto que através de todas elas o homem, em qualquer
estágio evolutivo, mantenha firme a linha reta da sua fé essencial no seu
estado perfeito de homem integral e crístico, “até que todos cheguem à
unidade da fé, ao pleno conhecimento do filho de Deus, ao estado do homem
perfeito, à medida da madureza da plenitude do Cristo” (Ef. 4,13).
Por maiores que, de momento, sejam as diferenças existenciais entre mim e o
Cristo que apareceu em Jesus, entre essa minha “lagarta” e a “borboleta” dele,
eu sei que, no plano da essência, há um elemento de identidade entre mim e o
Cristo. Diferente é o grau de evolução, idêntico é o elemento básico. Eu posso
ser explicitamente o que Cristo em Jesus era e é, por que implicitamente já sou
o que ele é. “Vós fareis as mesmas obras que eu faço, e fareis obras maiores
que estas”, disse ele a todos os seus seguidores. “Eu e o Pai somos um; o Pai
está em mim e eu estou no Pai; o Pai está em vós e vós estais no Pai”. “Não
sou eu que vivo – pode dizer cada um de nós –, o Cristo é que vive em mim”.
Em Cristo Jesus estava e está, em plena evolução, a consciência da sua
essencial identidade com o Pai – em mim está essa mesma consciência, mas
ainda obscuramente, num estágio primitivo, embrionário, incompleto.

***

Há para mim, e para todos os homens, dois grandes perigos nesse caminho de
evolução rumo ao Cristo: 1) o dualismo; 2) o panteísmo. Quem, em vista das
diferenças existenciais, não crê na sua identidade essencial com Deus não
pode chegar à “plena madureza com o Cristo”, porque cortou a linha vital da fé;
quem, por outro lado, em face da sua identidade essencial com Deus, perde de
vista as suas diferenças existenciais, identificando-se simplesmente com Deus,
esse não pode progredir rumo ao Cristo, porque já se julga temerariamente no
fim da jornada.

O dualista peca por deficiência da fé.

O panteísta peca por excesso de crença.

Mas tanto a deficiência de fé como o excesso de crença matam a verdadeira


fé.

Se um ovinho não crê que possa vir a ser borboleta, ou acha que já é borboleta
atualizada – nunca virá a ser borboleta. É necessário crer tanto na identidade
da essência como na diversidade da existência, para que a alma daquela
possa vivificar o corpo desta.

A fé verdadeira e genuína é, portanto, uma convicção íntima de que eu,


essencialmente, sou idêntico a Deus (“Vós sois deuses”, disse Jesus), mas
que, existencialmente, sou infinitamente inferior a Deus.

***

Que posso fazer para desenvolver em mim essa fé?

Sendo que a minha consciência telúrica, baseada no testemunho dos sentidos


e do intelecto, só conhece diferença e distância entre mim e Deus, tenho de
ultrapassar essa experiência física co-mental e entrar numa zona onde
desperte a minha consciência cósmica, que afirma a minha essencial
identidade com Deus. Ora, para que essa consciência cósmica possa falar, é
necessário que a consciência telúrica se cale, pelo menos de vez em quando,
até que aquela adquira suficiente poder sobre esta. Tenho de estabelecer, pois,
as minhas horas de contato direto com o mundo invisível, até que ele me torne
tão real como o mundo visível, ou mais real ainda. Impor silêncio temporário
aos sentidos e ao intelecto é indispensável para ouvir a voz silenciosa da razão
ou da alma, o Deus em mim.

Além disso, tenho de estabelecer perfeita harmonia ética entre o mundo da


minha fé e o mundo da minha vida cotidiana. Devo viver assim como se já
tivesse perfeita e definitiva experiência do mundo invisível. Essa vivência ética,
em sintonia com a minha fé, consiste numa permanente solidariedade com
toda e qualquer vida do universo – solidariedade para cima, para os lados e
para baixo, isto é, amor a Deus, aos homens e à natureza. Devo abranger no
meu amor, na minha caridade e na minha simpatia todo e qualquer ser vivo (e
não há nenhum ser morto no universo); devo sentir pulsar em minhas artérias
as pulsações da vida do cosmos, estabelecendo perfeita solidariedade entre
mim e tudo que vive fora de mim.

Essa vivência ética, pela solidariedade cósmica, me conferirá a sapiência


definitiva e completa, revelar-me-á a única e universal paternidade de Deus,
manifestada em universal fraternidade humana e simpatia infra-humana.
Sentirei e amarei a minha vida na vida de todos os seres vivos, porque é a vida
de Deus.

Na experiência íntima dessa solidariedade cósmica, atingirá a minha fé a sua


última e suprema perfeição, transformando-se em amor universal.

O homem que chegou a essa plenitude da fé experiencial, e essa maturidade


do amor universal, é onipotente, e compreenderá o que o divino Mestre quis
dizer com as palavras: “Se tiverdes fé, ainda que seja como um grão de
mostarda, e disserdes a este monte: sai daqui e lança-te ao mar, e se não
duvidardes em vosso coração, crede que assim acontecerá; porque tudo é
possível àquele que tem fé...”
“O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE

A UM FERMENTO.”

Desta vez foi o divino poeta-filósofo-profeta buscar a matéria-prima da sua


parábola no ambiente doméstico da dona-de-casa, quando, normalmente, a
encontra nos campos de lavoura do homem ou na via social. Entrou pela porta
da cozinha e viu uma mulher, talvez sua própria mãe, amassando a farinha
para o pão do dia seguinte, viu que tomou um pouco de fermento, previamente
preparado, e foi “escondê-lo”, como ele diz, em “três medidas” de farinha.
Depois cobriu a tina ou gamela com um pano e foi-se embora. E, na manhã
seguinte, a massa havia crescido grandemente, graças ao fermento nela
“escondido”.

Essa parábola frisa três aspectos característicos da ação do fermento do reino


de Deus no homem: a ação silenciosa, constante e infalível.

As “três medidas” da massa humana – isto é, alma, mente e corpo – têm de ser
totalmente levedadas, permeadas e vitalizadas pelo misterioso agente.

Os efeitos dessa fermentação interna são visíveis na vida ética do homem


renascido pelo espírito – mas a causa dessa transformação continua oculta.

A fermentação física consiste na atividade de certos seres microscópicos,


unicelulares, chamados fungos, que, quando encontram ambiente propício, se
multiplicam rapidamente, produzem gases e arejam a massa compacta da
farinha, fazendo-a “crescer” e tornando-a leve, porosa e de grato sabor. A
massa, depois de fermentada, vai para o forno, e dá em resultado um pão fofo
e arejado por milhares de pequeninos reservatórios de aberturas internas
produzidas pelos invisíveis agentes de fermentação.

É este símbolo material o perfeito paralelo do simbolizado espiritual do reino de


Deus no homem. O homem não deixa de ser o que é, mas o modo como ele é
o que é passa por uma grande transformação. A vida desse homem, interna e
externa, uma vez penetrada pelo divino fermento da experiência do reino de
Deus, perde o seu caráter duro e pesado, a sua compacta materialidade, e
assume algo de leve e arejado, que é mais fácil sentir do que definir. O homem
divinamente levedado já não se abate e acabrunha em face de acontecimentos
provindos das adversidades da natureza ou das perversidades dos homens,
porque tem o seu centro de gravitação em outras regiões, inacessíveis a esses
agentes externos: considera todos os eventos com certa leveza e serenidade, e
pode até sorrir calmamente em face duma tragédia que, outrora, o teria levado
ao desespero. Esse homem já vive, aqui mesmo, a vida eterna, porque
encontrou o seu “ponto de Arquimedes” onde aplicar a alavanca e suspender
mundos pesados, como se fossem teias de aranha. A morte repentina de um
parente próximo ou amigo querido repercute dolorosamente em seu ego
emocional, é certo, mas deixa o seu Eu espiritual perfeitamente equilibrado e
invulnerável, calmo e senhor de si e da situação. Uma falência econômica, uma
injustiça moral ou social atingem apenas a superfície desse homem, mas as
profundezas do seu ser continuam em perfeita paz e tranquilidade, como os
abismos do oceano quando a tormenta lhe revolve a superfície.

As “três medidas” da natureza humana foram levedadas pelo poderoso


fermento crístico que nele estava “escondido”. Sim, “escondido”, oculto, uma
vez que ninguém pode ver o invisível agente dessa transformação do homem.

***

A ação do fermento do reino de Deus no homem é silenciosa, como silenciosas


são todas as coisas grandes e sublimes. O que é realmente grande não
necessita de ruidosa publicidade para se manter e expandir, dispensa
deslumbrantes cartazes multicores e altissonante propaganda. Ruído é indício
de fraqueza e pequenez. Quanto maior o silêncio, tanto melhor para a
grandeza, porque a alma das coisas grandes está para além das categorias de
tempo e espaço, que não podem produzir nem destruir o que é eterno e infinito.

O homem primitivo, dentro ou fora da mata virgem, necessita de barulhos


múltiplos e violentos, tambores e trombetas, espocar de foguetes, e bombas,
gritaria selvagem e descompassada; só assim pode ele sentir suficientemente
a sua própria existência, que, sem isso como que se esvairia em tênue neblina
de incerteza. O homem primitivo necessita desses barulhos, porque só assim,
quando o seu sujeito se sente objetivado e refletido no espelho desses ruídos
externos, é que ele é capaz de sentir a sua própria existência. Daí a sua fome
instintiva por barulhos violentos. Parafraseando o conhecido “cogito, ergo sum”
(eu penso, logo existo), de Descartes, poderia o homem primitivo dizer: “Eu
faço barulho, logo existo!”. Se não fizesse barulho, não teria suficiente certeza
da sua existência. De maneira que a plenitude de todo esse barulho externo é
atestado da vacuidade interna de seu autor, porque o homem de plenitude
interna não tem necessidade dessa compensação externa.

O homem mais culto, intelectualmente erudito, necessita, geralmente, de outra


espécie de ruído, necessita do ruído articulado de discursos, conversas,
sermões, conferências, etc. O intelectual necessita de auditórios de
intelectuais, e o veículo para transmitir o ruído mental dos seus pensamentos é
o ruído verbal de discursos, que nos ouvintes se converte novamente em ruído
mental dos pensamentos. Essa “luxúria” mental e verbal é característica no
mundo da intelectualidade. Poucos chegam à “castidade” do silêncio espiritual:
a mente prostituída dificilmente aceita essa “virgindade”.

Mas o homem, quando ultrapassa essas fronteiras evolutivas, entra na zona de


um maravilhoso silêncio, que lhe diz muito mais do que todos os ruídos
inarticulados e articulados, dos sentidos e da inteligência.

E é nesse silêncio fecundo que o divino fermento começa a trabalhar


intensamente.

***

O fermento espiritual atua constantemente, sem falhas nem intermitências. O


homem espiritual não depende do bom ou mau tempo, do estado favorável ou
desfavorável dos seus nervos, da plenitude ou vacuidade do estômago, dos
louvores ou vitupérios de outros homens – a sua fermentação interna é um
processo totalmente independente de fatores externos, porque esse homem
proclamou a independência do seu sujeito sobre a tirania de todos os objetos.
O seu ego físico-mental é servo de seu Eu espiritual. O Eu crístico conduz, e o
ego luciférico é conduzido. Mesmo quando o homem espiritual nada faz,
quando descansa ou dorme, a ação do fermento do reino de Deus continua
ininterruptamente a atuar no seu interior. A alma, sede desse processo, não
conhece sono.

***

Infalível é a ação do fermento divino no homem, porque é de ótima qualidade.


Em si mesmo não poderá jamais ser corrompido. O único obstáculo externo à
sua atuação pode ser a liberdade do homem que lhe obstrua os caminhos.
Mas, quando deixado a si mesmo, em plena liberdade, o fermento da reino de
Deus atua com infalível certeza e precisão.

O homem intelectual julga poder traçar o itinerário da sua vida; o seu estreito
luciferismo se arroga à competência de poder dirigir a sua vida. Só depois de
muitos sofrimentos e derrotas trágicas é que ele aprende, finalmente, que só
Deus pode traçar o itinerário da sua vida.

E então começa o fermento a tomar conta das “três medidas” da natureza


humana – alma, mente e corpo...
“SAIU O SEMEADOR A SEMEAR

A SUA SEMENTE.”

Certas parábolas de Jesus – como as do semeador e do joio entre o trigo –


atuam como terremotos sobre a nossa teologia tradicional.

Afirma o Mestre que o semeador – isto é, ele mesmo, o Cristo encarnado – foi
semear a boa semente da palavra de Deus – onde?

Parte à beira da estrada, onde nem sequer germinou, mas foi calcada aos pés
pelos transeuntes e devorada pelos passarinhos. Parte caiu em terreno
pedregoso, onde brotou, mas não tardou a morrer, por falta de umidade. Outra
parte caiu no meio dos espinhos, onde brotou, cresceu precariamente, foi
sufocada pelos espinheiros, e não frutificou.

Apenas pequena parte – talvez 25% – caiu em terreno bom, brotou, cresceu,
floresceu e frutificou. Mas nem essa semente produziu toda o mesmo fruto;
parte dessa sementeira deu trinta, outra parte sessenta e ainda outra cem
grãos por um.

Mas, porque não escolheu o semeador somente terra boa? Por que desperdiça
uns 75% da divina semente à beira do caminho, entre pedras e espinheiros?
Não sabia ele, de antemão, que em nenhum desses terrenos ia a semente
produzir fruto?

Quer dizer, Deus não escolhe cuidadosamente o terreno propício para


conseguir uma colheita 100% satisfatória; espalha a semente do seu verbo em
profusão, a esmo, como se lhe fosse indiferente a frutificação ou a
esterilização. E mesmo o terreno bom é vastamente heterogêneo, tanto assim
que parte da semente aí lançada produz trinta grãos por um, outra sessenta e
outra cem.

Verdade é que, na parábola, se trata do terreno consciente e livre da alma


humana, e a dureza do caminho, o impróprio das pedras e a asfixia pelos
espinheiros correm por conta e risco do uso ou abuso da liberdade humana –
mas, mesmo assim, não parece bem estranho que o divino semeador não faça
nenhuma seleção de terreno, quando ele previa esses resultados negativos?...

Segundo certas teorias nossas, Deus creou todas as almas iguais e deu a
todos os homens a mesma possibilidade de evolução. Afirmamos afoitamente
que a diferença da frutificação vem unicamente do homem – mas o teor dessa
parábola parece desmentir semelhante postulado. Não parece ter havido,
desde o início, terrenos de diferente receptividade? Efeito do uso ou abuso da
liberdade humana? Mas por que é que alguns homens usam e outros abusam
da sua liberdade, se, no princípio, todos eram perfeitamente iguais, com a
mesma facilidade de praticar o bem? Por que uns fizeram da sua alma terreno
estéril, outros semi-estéril e outros plenamente fecundo?...

Essa teoria da perfeita igualdade inicial de todos os homens cabe, certamente,


nas ideologias democráticas do nosso tempo – mas será Deus o “grande
Democrata”? Não parece ele antes o “grande Aristocrata”? E não parece todo o
seu Universo, desde o mineral até aos anjos, uma gigantesca hierarquia? Não
predomina a ideia hierárquica da desigualdade em todos os departamentos da
natureza, visível e invisível?

Deveras, quem contempla sem prevenções a ordem do Universo não se pode


furtar à impressão de que todo ele é uma imensa “Hierarquia Cósmica...” Não
há dois seres iguais, e a desigualdade vem desde o princípio da sua existência.
Nada é padronizado, nada feito pelo mesmo modelo ou chavão.

Há quem descubra “injustiça” neste fato de haver Deus creado seres com
diversas possibilidades de evolução; acham que, para evitar “injustiça”, todos
os seres deveriam ter a mesma possibilidade de aperfeiçoamento; que todos
os minerais deveriam ter a potência de, um dia, passar a ser vegetais, estes
deveriam poder evolver para animais, estes para homens, e os homens
deveriam desenvolver-se em anjos, arcanjos, etc.

O mundo de Deus, porém, a despeito das nossas mais belas teorias de


igualdade democrática, não é nada democraticamente igual, ignora totalmente
essa decantada “igualdade de direitos”. Mas não há nisso injustiça alguma,
como a nossa acanhada inteligência nos que fazer crer. Se Deus tivesse
prometido a todos os minerais a evolvibilidade até à altura dos vegetais, e se
depois não cumprisse essa sua promessa (concretizada na potencialidade, dos
minerais), então, sim, teríamos injustiça, porque “o prometido é devido”, mas
essa promessa tácita, ou potencialidade, não existe em todos os minerais. Se
alguma substância mineral de fato evolve em organismo vegetal, é
simplesmente uma “graça” divina, e não um “direito”, que o mineral possa
reclamar.

O mundo de Deus é baseado sobre o princípio hierárquico da diversidade


graciosa, e não da monotonia obrigatória. Deus nada deve a ninguém. Tudo
que as creaturas são e recebem é inteiramente gratuito, seja pouco, seja muito.

Nenhum mineral tem o direito de reclamar, dizendo “por que não me fizeste
vegetal, animal ou homem?”

***
Voltando à parábola do semeador, não é provável que todos os terrenos nela
mencionados fossem simples creação do livre-arbítrio do homem. Todos
tinham, de início, graus diversos de facilidade ou dificuldade para fazer frutificar
a semente da palavra de Deus. Não há liberdade completa em nenhuma
creatura; só o Creador é que é absolutamente livre. Liberdade é potência,
plena liberdade é plena potência ou onipotência. Se o homem fosse totalmente
livre seria onipotente igual a Deus. Os diversos graus de liberdade são herança
inicial de cada indivíduo, e essa herança, na primeira etapa, não corre por
conta da liberdade dele; é dom gratuito de Deus, é graça divina. Deus dá a
cada homem o grau de liberdade que lhe apraz. O homem é suficientemente
livre para ser responsável por seus atos conscientes, sendo por isso autor
responsável pelo bem e pelo mal que praticar; mas o grau de liberdade e
responsabilidade ética não é o mesmo em todos os homens.

Há quem se arvore em advogado da Providência Divina, julgando de seu dever


justificar meticulosamente todos os atos do governo de Deus no Universo. No
fim de todas essas bem-intencionadas apologias, porém, resta sempre vasto
resíduo de mistérios inexplicáveis, que formam pedra de tropeço para muitos
cépticos e ateus. Partem de uma falsa premissa – de que todas as obras de
Deus devam ser justificáveis à luz do intelecto – e depois se escandalizam por
que o Deus no Universo não corresponde ao padrão do Deus das suas teorias
intelectualistas.

Jesus nunca tentou “explicar” os mistérios de Deus. Tudo quanto se “explica”


complica-se, destrói-se até. No fim de todas as “explicações” meramente
analítico-intelectuais está o caos ou o nada. Saber explicar o explicável e
adorar em silêncio o inexplicável – é grande sabedoria.

***

Ai de nós se não houvesse mistérios inexplicáveis! Insuportável nos seria este


mundo... Quem “explica” a Deus é ateu!...

Na parábola dos “trabalhadores na vinha” reaparece esse mesmo mistério da


desigualdade.

Em vez de tentarmos explicar o inexplicável e reduzir a fascinante Hierarquia


de Deus a uma fastidiosa democracia dos homens, não seria melhor que cada
um de nós trabalhasse jubilosamente com os dotes que lhe couberem, a fim de
preencher plenamente o lugar, humilde ou sublime, que ocupa nessa
“Hierarquia Cósmica” de Deus?...

***

A explicação que o próprio Jesus dá desta parábola não alude a esse aspecto
metafísico, que o auditório não comportava; limita-se a encarar o sentido ético
da parábola.
Há homens que não produzem fruto espiritual, porque o seu terreno interior é
por demais profano e devassado, como uma estrada pública, onde a semente
da palavra de Deus é logo calcada aos pés dos transeuntes e devorada por
entidades estranhas ao mundo espiritual. Nem sequer chega a brotar.

Outra classe de ouvintes são almas puramente sentimentais; ouvem a palavra


de Deus com gosto, ao ponto de verterem lágrimas de emoção; mas logo que a
realização dessa palavra lhes custe sacrifício pessoal, desfalecem, por falta de
profundidade e experiência espiritual. Nessas pessoas, a semente divina brota
rapidamente, mas não frutifica.

Outros ainda, depois de receberem a palavra de Deus, sufocam-na sob um


acervo de prazeres e solicitudes mundanas, de maneira que o sujeito do seu
Eu divino é asfixiado pelos objetos do seu ego humano, e não produzem fruto.

Só uma pequena porcentagem de almas humanas oferece ao verbo de Deus


terreno propício para brotar, florescer e frutificar. Mas, mesmo entre esses, há
notável diferença de fertilidade. O “terreno bom” dessas almas não é todo igual.
Todos produzem, mas o resultado é variado, consoante a maior ou menor
receptividade de cada um. Essa receptividade, porém, é fruto da liberdade
humana.
“UM HOMEM TINHA DOIS FILHOS...”

A rainha das parábolas de Jesus, chamada, geralmente, a do filho pródigo, não


devia ser focalizada num capítulo como este, mas numa obra monumental;
porque essa parábola representa um dos mais estupendos documentos do
drama multimilenar da evolução do homem rumo a Deus.

O que, em geral, se diz desta parábola, nas igrejas e nos colégios, é apenas o
aspecto moral da mesma – mas por debaixo dessa conhecida superfície se
estende a incomensurável profundidade cósmica que só uma intensa intuição
espiritual pode atingir em silenciosa vivência.

Quem é esse jovem inexperiente que deseja abandonar a casa paterna?

Quem é esse pai que não tenta dissuadi-lo do seu intento com uma só palavra?
E por que não aparece nenhuma mãe a chorar?

E que significa essa “porção de substância” a que o filho mais jovem diz ter
direito?

Por que o pai não pede ao menos que o jovem aventureiro lhe deixe o
endereço do seu paradeiro? Por que, durante a longa ausência, não lhe manda
um mensageiro para saber da sua situação?

Nada disso acontece. A parábola do filho pródigo está envolta em mistério e


permeada de enigmas. Tudo que a nossa inteligência analítica teria esperado
acontecesse não acontece – e nada daquilo que acontece teríamos esperado.
É que essa parábola é, mais que outra qualquer, obra de gigante e de gênio.

O perfeito paralelo dessa parábola se encontra nas primeiras páginas do


Gênesis – Moisés e o Cristo traçam o roteiro eterno da humanidade em
evolução, esses dois intérpretes máximos do sub e do superconsciente da
humanidade. Dia Moisés, no Gênesis, que o homem do Éden transpôs a
fronteira dessa sua vida subconsciente e entrou na zona egoconsciente, graças
ao despertar da “serpente” da inteligência. É a história da egoficação luciférica
do homem, mais tarde completada por sua cristificação espiritual.

É o drama telúrico-cósmico de Lúcifer e Logos, a trajetória da inteligência e da


razão.

Quando a inteligência desperta no homem, começa ele a afastar-se da “casa


paterna”, inicia o seu movimento centrífugo, porque sente o despertar da sua
personalidade, da autonomia do ego personal, que só se pode desenvolver
plenamente no longínquo ateísmo de uma separação consciente de seu centro.

Nesse estágio evolutivo sente o homem a imperiosa necessidade de proclamar


em cheio a sua independência, o seu afastamento da escravizante soberania
de Deus – falou a “serpente”, e o homem lhe escutou a voz sedutora. O homem
abandona o Éden da casa paterna, na crescente consciência do seu ego
luciférico, e ainda longe do seu Eu crístico.

E começa o grande drama da evolução luciférico-crística, através do qual


alguns conquistam o mais alto Evereste do Himalaia, ao passo que outros se
enamoram das sedutoras esplanadas da montanha ou perecem nos
tenebrosos precipícios que a rodeiam...

O “filho mais jovem” do pai reclama a “porção da substância” a que tem direito,
diz a Vulgata latina; o texto grego do primeiro século diz que o jovem reclamou
o “epibállon tés ousías”, literalmente: “o que convém à natureza”. Que
conveniência é essa que o jovem reclama? É aquela parte da sua “ousia”
(natureza) que exige evolução longe da casa paterna, isto é, o ego personal, o
ego separatista, o Lúcifer, dormente na natureza humana.

E o pai entrega ao filho a parte da sua natureza, a porção da sua substância, o


elemento personal para que vá e o desenvolva, segundo as eternas leis da
Constituição Cósmica. O pai não protesta, não incrimina, não dissuade o filho,
porque sabe que assim deve ser. Também, como poderia Deus protestar
contra suas próprias leis? Como poderia ele proibir o homem de cometer a felix
culpa e o peccatum necessarium (como diz a liturgia da Páscoa) de abandonar
o Éden da sua primitiva inconsciência, cair no meio dum campo de “espinhos e
de abrolhos” e, por fim, “esmagar a cabeça da serpente” rastejante para ser
remido pela “serpente erguida às alturas”?...

E o jovem aventureiro lá se vai, firme e confiante, em demanda de “um país


desconhecido” – a zona incógnita da personalidade, da autonomia do ego. Que
região sedutora!...

E com isso principia a “vida dissoluta” e o “esbanjamento da substância” que


levara da casa paterna. Esbanjar de fato essa substância não o consegue,
geralmente, o homem; extinguir totalmente em si o elemento divino é difícil.
Mas o homem, nas vias da evolução personal, se esquece complacentemente
da sua verdadeira “ousia” (natureza) divina e se porta como simples
personalidade humana, autônoma. O ego humano, porém, é formado de corpo
e mente. O corpo exige satisfações carnais; a inteligência se identifica com
seus pensamentos de orgulho.

Passam-se longos anos no plano dessa evolução físico-mental. O homem


atinge o extremo limite das suas satisfações; esbanja tudo – e então lhe
sobrevém a grande fome de uma incompreendida insatisfação, não só com o
mundo, mas sobretudo consigo mesmo. Mas o homem não sabe ainda com
que encher esse vácuo; já sente, e cada vez mais dolorosamente, a
insatisfação das coisas, dos sentidos e do intelecto, mas não encontrou ainda o
objeto de uma verdadeira satisfação e felicidade.

Então tentou o jovem aventureiro em Terra estranha conquistar a felicidade


agarrando-se – o texto grego diz “aglutinando-se”, a Vulgata diz “aderindo” – a
um cidadão daquela Terra flagelada por terrível carestia. Como um náufrago se
agarra a uma prancha em pleno mar, assim se agarrou esse náufrago do ego à
primeira tábua semipodre que pôde apanhar. Esse cidadão a que o filho
pródigo se agarrou era habitante antigo nessa Terra, algum inveterado egoísta,
que já não tinha a possibilidade de sentir a sua infelicidade, e era por isso
horrorosamente feliz em sua miséria...

Mas esse velho cidadão satisfeito consigo mesmo, graças a sua obtusidade
espiritual, não pôde transferir a sua infeliz satisfação para o infeliz insatisfeito
que a ele se agarra; neste grande naufrágio, esse jovem não estava ainda
suficientemente fossilizado no seu egoísmo para não sentir a sua profunda
infelicidade. O velho egoísta satisfeito manda o jovem egoísta insatisfeito para
sua granja, com a ordem de lhe guardar os porcos. Mas as vagens indigestas
que os porcos comiam não eram alimento para a fome do jovem. Por algum
tempo, sentado no meio da imunda manada, andou ele invejando o crepitante
apetite com que os suínos mastigavam o seu grosseiro repasto – e veio-lhe o
desejo de pelo menos “encher a barriga” – implere ventrem suum, como diz
cruamente o texto – já que não podia matar a fome com as vagens que davam
plena satisfação aos irracionais. Talvez os porcos não fossem felizes, cismava
o jovem, mas ao menos não eram infelizes como ele. Tenta então camuflar
com ilusões temporárias a sua infelicidade e narcotizar artificialmente uma voz
interna que não lhe dava sossego. Mas não havia quem lhe desse essas
vagens dos irracionais. Ele, o ser humano, não podia involver, regredir ao plano
dos seres inconscientes, e gozar da infeliz felicidade que eles gozavam...

E essa impossibilidade de involução animalesca foi para o jovem o maior dos


benefícios. Descer abaixo do nível do ego não lhe era possível; ficar nesse
nível lhe era insuportável tortura – resolveu então ultrapassar o seu próprio
plano e evolver em vez de involver ou estagnar...

Seria de esperar que aquele cidadão que o contratara lhe desse pelo menos
como passadio as vagens que os porcos comiam, mas, diz o Mestre
admiravelmente, tal não aconteceu. Nem podia acontecer! Ninguém dá o que
não tem. Como podia aquele velho egoísta, autocomplacente e satisfeito
consigo, dar satisfação ao jovem egoísta, insatisfeito com o que era?...

E foi nesse transe doloroso, humilhante e angustiante, que aconteceu o mais


glorioso dos prodígios: o jovem pastor de suínos “entrou em si mesmo”. Depois
do egresso da casa paterna, faz o ingresso para dentro do próprio Eu,
preparando o regresso para sua definitiva redenção. Entre o egresso e o
regresso está invariavelmente esse misterioso ingresso, esse “caminho
estreito”, essa “porta apertada”, esse “fundo de agulha”; quem conseguir
passar por esse desfiladeiro está salvo.

“Entrou em si mesmo”, pela primeira vez na vida, porque até essa data tinha
ele estado fora de si, andando num círculo vicioso ao redor de si, pelas
periferias do ego físico-mental. Depois de tantas evasões centrífugas, o jovem
iniciando realiza, finalmente, a feliz invasão centrípeta; ultrapassa o ego
humano e encontra-se com seu Eu divino!...

E terminou o ocaso em plena alvorada!...

E logo despontou na sua alma a verdade sobre si mesmo. Desanuviaram-se os


horizontes... Dissiparam-se as trevas... Houve um grande fiat lux...

E fez-se a luz... O jovem viu claramente que ele não era escravo daquele tirano
que o mandara guardar os porcos, nem era pastor de animais imundos; viu que
isso não passava de funções temporárias e fictícias da sua humana
personalidade, mas não era a verdadeira natureza da sua divina
individualidade, do seu ser real... Verificou, com exultante surpresa, que ainda
não esbanjara totalmente o “quinhão da sua natureza”, era ainda filho daquele
pai que abandonara; a centelha divina, que tanto tempo dormia sob as cinzas,
acabava de romper em vívida chama, ao sopro da tempestade...

Conheceu a verdade sobre si mesmo – e a verdade o libertou...

Terminado o período egressivo do seu ego luciférico – começa o período


regressivo do seu Eu crístico...

E a luz da verdade foi seguida de perto pela força da realização prática.

Levantou-se, deixou os porcos e seu velho tirano – e foi em demanda de seu


pai. Este lhe corre ao encontro; por sinal que esperava o filho e tinha certeza
de seu regresso. Abraça-o, beija-o, manda vestir-lhe a preciosa túnica, põe-lhe
no dedo um anel e calçado nos pés – e segue-se grande solenidade, com
banquete, música e bailados, isto é, todas as manifestações de alegria e júbilo
pela plena realização de um homem.

Nisto chega do campo o filho mais velho e, sabendo do que se tratava, recusa-
se a tomar parte nos festejos. Tenta o pai persuadi-lo da conveniência da
solenidade, mas o filho continua inflexível; nada compreende do lado positivo
do acontecimento; enxerga apenas o aspecto negativo e lembra que ele, há
tantos anos, serve ao pai em perfeita obediência, e este nunca lhe dera um
cabrito para ele celebrar um banquete com seus amigos.
O pai lhe fala no “irmão” dele; o despeitado, porém, só lhe chama “teu filho”. E
não tem ele razão? Já não existe afinidade entre os dois, entre o profano e o
iniciado, entre o homem que espera recompensa por ser bom e aquele que é
bom por amor.

Não basta cumprir os mandamentos do Pai, não basta evitar o mal e praticar o
bem – tudo isso é necessário, mas não é suficiente para a plena realização do
Eu – é necessário ser bom, que é incomparavelmente mais do que fazer o
bem. Fazer o bem é do plano moral, indispensável como preliminar; é ainda a
ética pré-mística sacrificial mercenária, que espera ser recompensada – o
iniciado, porém, que é intimamente bom, não espera nada disto – ama
simplesmente e é feliz nesse amor.

E assim termina o Mestre a mais profunda das suas parábolas – a parábola


sobre a auto-realização ou cristificação do homem, que percorreu todos os
estágios da sua evolução e culminou no homem integral.
“COMO ENTRASTE AQUI

SEM TERES A VESTE NUPCIAL?”

Em todos os livros sacros da humanidade, é a união da alma com Deus


simbolizada por uma festa nupcial. O amor entre esposo e esposa serve de
ilustração para o amor do Ser Infinito para com o ser finito.

Eros tem de emprestar as suas vestes multicores para solenizar a luz incolor
da experiência mística.

Na erótica temos a integração do masculino no feminino; para realizar o


“anthropos” completo na mística, temos a integração da creatura no Creador.

Lá, o êxtase da carne – aqui, o êxtase do espírito.

Era costume, por ocasião das festas nupciais no Oriente, que o chefe da casa
entregasse a cada convidado uma preciosa veste.

Aconteceu, porém, diz o Mestre, que aparecesse na sala do banquete um


intruso, sem trajar a veste nupcial. E o pai de família disse a esse conviva:
“Amigo, como entraste aqui sem teres a veste nupcial?”

O interpelado emudeceu, porque não tinha palavras com que justificar a sua
entrada ilegal. E o dono da casa deu ordem para que esse homem fosse atado
de pés e mãos e lançado nas trevas de fora.

Esse homem usurpara o inexorável dispositivo da Constituição Cósmica,


segundo a qual nenhum profano (o de fora) pode entrar na zona dos iniciados
(os de dentro). Esse homem era um exotérico que, de contrabando, se metera
no meio dos esotéricos. Não estava interiormente maduro para participar do
banquete nupcial, porque não havia em sua alma a experiência de Deus, a
fusão do finito no Infinito, do individual no Universal.

Como entrara esse homem na sala do banquete? Ele que, internamente, não
estava onde externamente se achava? Ele, completamente fora do seu
ambiente evolutivo?

Entrara, ou por conta própria, ou por proteção alheia.

Mas ninguém pode entrar no reino dos céus nem pelas forças do ego personal
nem em virtude de algum ritualismo externo; só a verdadeira e genuína
maturidade espiritual é que lhe pode dar o direito de tomar parte no banquete
nupcial com o divino Esposo. Esse homem estava – ou fingia estar –
externamente onde internamente não estava, nem podia estar.

***

A fim de que o homem seja digno e idôneo para tomar parte nesse banquete, é
necessário que sua alma se ache ornada de uma veste especial, nova e
imaculada, dada como dom gratuito pelo senhor das núpcias. Não se admite
homem algum em trajo profano. A profanidade é do ego físico-mental, a
sacralidade é do Eu espiritual. Nem pela magia mental, nem pelo ritualismo
eclesiástico pode o homem merecer essa vestimenta; ela é essencialmente
uma “graça”, e por isso mesmo de graça.

A iniciação no reino dos céus não é alguma espécie de continuação de coisa


velha, preexistente, mas é um novo início, uma “iniciação”. Não se trata de
emendar, consertar, corrigir precariamente a “roupa velha” do homem profano,
tornando-o um pouco menos profano e pecador, cosendo-lhe na roupa de
“homem velho” um “remendo novo”. O homem não se torna crístico pelo fato de
ser cristão, ou por diminuir um pouco a sua cobiça, luxúria ou ambição; nem
basta acrescentar ao rol das virtudes antigas algumas virtudes novas. Não!
Importa que o homem “nasça de novo pelo espírito”, que se torne uma “nova
creatura em Cristo”.

Verdade é que uma moral sincera e pura pode e deve servir de estágio
preliminar para essa entrada no reino dos céus – mas nem toda moral é
suficiente para garantir ao homem essa entrada. Ela não é causa, é apenas
condição.

O cristianismo não é um movimento meramente moral – é uma experiência


mística; é, a bem dizer, o próprio Cristo através dos séculos. O cristianismo não
está baseado numa doutrina moral, mas é uma fato metafísico e místico, uma
realidade objetiva e ontológica a perpetuar-se através dos séculos. A
encarnação do Logos é um fato permanente, e não apenas um acontecimento
histórico no passado.

A essência do homem crístico não é a soma total dos seus atos virtuosos, que,
em última análise, são outras tantas linhas horizontais, cuja multiplicação,
embora indefinida, nunca dará a vertical. Os atos morais são outros tantos
zeros, de todos os tamanhos e cores, quer dizer, fatores espiritualmente
negativos, e vácuos; mas a soma total de zeros negativos, ou vácuos, nunca
dará algo positivo ou pleno.

O homem crístico não é um homem “remendado” por atos de moral humana,


mas é um homem “remido” pela atitude mística do Cristo. Não é um doente que
aplique às suas velhas chagas mais uma pomada lenitiva ou um emplastro
para melhorar ligeiramente o seu estado pela supressão de sintomas – mas é
um homem que aboliu a raiz do mal e entrou na zona duma perfeita saúde e
sanidade.

Essa vigorosa sanidade crística não nasce de cataplasmas e pomadas anti-


sintomáticas – nasce de uma completa e radical depuração do sangue do
indivíduo, que está na experiência direta de Deus.

A experiência direta de Deus é o maior acontecimento da alma humana, o


mistério da sua eterna redenção. É o cruzamento duma fronteira interna, o
despontar de uma luz inédita, o rompimento de uma força ignota. Só numa
profunda, intensa e diuturna solidão com Deus pode o homem alcançar esse
novo início.

Depois dessa experiência mística, o senso do dever compulsório se transforma


numa consciência de querer espontâneo. A ética pré-mística de “fazer o bem”
passa a ser a mística de “ser bom”; e das profundezas desse “ser bom” rompe,
então, com irresistível necessidade, uma jubilosa e entusiástica ética pós-
mística, a experiência de que o “fazer o bem” não é um dever, mas sim um
privilégio. O sacrificial “tu deves” se converte no radiante “eu quero”.

E esse radiante “eu quero” da ética espontânea, nascido das profundezas da


mística do “ser bom”, é uma alvejante túnica da alma, umas veste nupcial
recebida de presente do seu divino Esposo.

Quem não cruzou essa fronteira interna, quem não passou por essa profunda
transmutação interior, não possui a veste nupcial, embora esteja,
externamente, na sala do banquete; não é ali o seu lugar; está desambientado;
não está sintonizado com seus colegas de veste nupcial; não está no céu,
internamente, e por isso é justo que nem externamente seja tolerado na sala do
banquete. Essa alma é uma das cinco virgens tolas que não tinham óleo nas
suas lâmpadas, e por isso estas se extinguiam, logo depois de acesas.

E ficaram nas trevas de fora...


“A PLANTA CRESCE POR SI MESMA,

DE DIA E DE NOITE.”

É esta, sem dúvida, uma das parábolas mais misteriosas de Jesus. Focaliza a
vitalidade imanente da planta, que se desentranha, aos poucos, numa grande
variedade de formas e cores, sem a necessidade de uma intervenção de fora.

Assim acontece também com o reino de Deus, cuja marcha vitoriosa através da
humanidade ninguém pode sustar.

O cristianismo de hoje é profundamente diferente do cristianismo no ano 33 da


nossa era como o pé de trigo pouca ou nenhuma semelhança visível tem com
o grão de trigo do qual brotou. A semelhança externa entre a planta e a
semente é, praticamente, nula – mas a identidade da essência é perfeita. A
semente é a planta potencial, e a planta é a semente atualizada. A qualidade
ficou, a quantidade mudou.

Não era possível que o “grãozinho de trigo” que era o cristianismo no ano 33 da
nossa era continuasse a ser, externamente, o mesmo no século 20. O seu
destino era crescer, evolver, expandir gradualmente todas as suas forças
latentes.

Na semente vegetal não há perigo de adulteração, porque ela tem uma só


possibilidade de evolução, tem, por assim dizer, trilhos rigorosamente
marcados, sobre os quais deve correr; ou se desenvolverá neste sentido exato
ou não se desenvolvera de modo algum.

Mas, em se tratando da evolução da sementinha divina do reino de Deus entre


os homens, há inúmeras possiblidades de adulteração.

Já com a entrada de Paulo de Tarso no cenário do cristianismo principia uma


grande modificação da forma primitiva da doutrina de Jesus – e o nosso
cristianismo do hoje, no saber teológico – mais paulino que crístico. Com
Agostinho, aparece outro fator de modificação. O nosso cristianismo
eclesiástico de hoje seria inconcebível sem as ideias de pecado original e
redenção pelo sangue.

Se a nossa humanidade fosse uma humanidade espiritualmente madura,


conceberia o cristianismo exatamente assim como Jesus o concebia e como
brotou dos seus lábios e do seu coração. Mas uma humanidade imatura como
a nossa recebe o cristianismo não segundo a maturidade espiritual de seu
autor, mas segundo a imaturidade e incapacidade de seus discípulos.

A imaturidade não é repugnante quando aparece como tal e não pretende ser
outra coisa do que é. Uma criança com modos infantis não é repugnante; pelo
contrário, pode ser até encantadora, com todas as ingenuidades e
infantilidades de sua idade; mas, quando assume ares de pessoa madura,
causa impressão ridícula, grotesca e até revoltante. Uma criança que se porta
infantilmente é agradável, uma criança que se porta adultamente é
desagradável – como, por outro lado, também seria grotesco o comportamento
infantil de um homem adulto.

Coisa análoga se dá com as religiões organizadas, catolicismo, protestantismo,


espiritismo e outras. Enquanto apenas atuam como estágios evolutivos rumo
ao Cristo eterno e universal são formas aceitáveis, mas quando se arvoram em
algo completo e definitivo, quando pretendem ser o próprio cristianismo do
Cristo, tornam-se absurdas e antipáticas. Tudo que é natural é agradável, tudo
que é desnatural é desagradável.

É metafisicamente impossível organizar o elemento espiritual, divino. Organizar


é definir, limitar, finitizar – mas Infinito está para além de todas essas fronteiras.
O cristianismo em si não é organizável. O que é organizável é o corpo, isto é, a
parte visível, humana; mas a alma do cristianismo não é suscetível de
organização, porque ela é espírito, vida, luz. No momento em que principia a
organização do cristianismo, começa a sua decadência.

Mas, infelizmente, essa diminuição é um mal necessário.

Todas as igrejas e seitas, vazadas em estatutos, regulamentos, dogmas,


credos, doutrinas padronizadas, ideias cristalizadas, sacramentos, ritos, etc.,
representam apenas o corpo ou o contenedor visível da religião, o símbolo
material, para além do qual existe o simbolizado espiritual, que não é
organizável. Os que identificam a religião com esses símbolos externos
conhecem apenas o invólucro, mas não a medula da religião, que não é objeto
de definição ou organização. Tudo que é físico e mental é organizável; mas
como o cristianismo é essencialmente racional ou espiritual, segue-se que o
cristianismo como tal é inorganizável.

Pode o símbolo ser útil para que, através dele, o homem profano chegue ao
simbolizado. O mal das igrejas e seitas não está em se servirem de símbolos; o
mal aparece quando alguma dessas sociedades organizadas proíbe seus
adeptos de ultrapassar a fronteira dos dogmas e símbolos e alcançar
simbolizado. Que diríamos de um condutor que obrigasse o viandante a parar
diante dum marco quilométrico à beira da estrada e olhasse apenas para a
flecha colocada na bifurcação ou encruzilhada do caminho, em vez de seguir o
rumo indicado? Não obedece ao sentido da flecha quem para ao pé dela, mas
sim aquele que se afasta da flecha, seguindo o rumo por ela indicado. Certas
igrejas ou seitas que levam a mal que seus adeptos ultrapassem esses
símbolos são como indicadores que não indicam, mas que exigem do
viandante a idolatria duma adoração do próprio marco. Quebraram a ponta da
flecha indicadora, para impedir que o viajor siga avante, ultrapassando o
símbolo indicador.

Assim, por exemplo, certa teologia ensina que o rito sacramental funciona ex
opere operato, isto é, automaticamente, quando isso é uma evidente negação
da alma da cristicidade para conservar o corpo da teologia. Jesus não deu a
nenhum objeto nem a uma fórmula mágica o poder de produzir efeito espiritual,
automaticamente, como um computador mecânico. Isso é uma reminiscência
dos “mistérios esotéricos” de Delfos, Elêusis etc. do tempo do paganismo
romano, que contaminou o cristianismo eclesiástico.

***

O estágio evolutivo da teologia, que remonta aos princípios do quarto século,


foi necessário nos primeiros séculos que se seguiram ao período das
catacumbas, onde não havia organização; representa a infância espiritual da
humanidade; autoridade infalível de cima e obediência incondicional de baixo.

Depois disso, o protestantismo foi igualmente necessário como período


adolescente da humanidade rumo à maturidade do Cristo; era necessário frisar
a necessidade do conhecimento dos livros sacros do Antigo e do Novo
Testamento, praticamente substituídos, no período romano, pelos decretos dos
concílios eclesiásticos e pelo escolasticismo intelectual.

Ultimamente, surgiu em diversos países do Ocidente cristão o movimento do


espiritismo doutrinário, cuja missão primordial está em frisar a continuidade da
vida presente após a morte e a necessidade da beneficência social, sobretudo
entre as classes mais abandonadas, bem como em clamar pela completa
gratuidade dos serviços religiosos, preceitos esses que o catolicismo romano e
o protestantismo não haviam tomado bastante a sério.

O cristianismo não é romano, nem protestante, nem espírita – mas essas e


outras formas de religião são, até certo ponto, necessárias para a humanidade
em marcha. A majestade hierárquica da liturgia romana; a seriedade da
investigação bíblica cultivada pelo protestantismo; o espírito de sacrifício com
que o espiritismo pratica a caridade social, tudo isso é necessário para abrir
caminho – rumo ao cristianismo eterno e universal. Cada uma dessas
organizações contribui com sua pedrinha peculiar para o acabamento do
gigantesco santuário do cristianismo cósmico.
O mal não está nessa contribuição, mas sim na presunção de alguns desses
movimentos que pretendem monopolizar o Cristo e identificar a sua igreja ou
seita com o cristianismo eterno e universal.

Essa presunção nasce da incapacidade de enxergarem o Todo numa visão


panorâmica, e essa incapacidade é filha do egoísmo unilateral.

***

Entretanto, a planta divina do cristianismo vai crescendo, à serena claridade


solar da bonança e por entre as tempestades noturnas da tribulação. O
princípio vital é invisível em si mesmo, mas o que produz é visível. A raiz, a
haste, as folhas, as flores, os frutos – tudo isso faz parte da planta, mas
nenhuma dessas partes é a planta, nem mesmo a soma total desses
elementos. Enquanto essas partes mantêm contato vital com a misteriosa alma
da planta, cumprem a sua missão; no dia e na hora em que obstruírem a
circulação das seivas vitais da alma da planta, começa a agonia da planta.
Ninguém pode matar a Vida; só podemos desligar a Vida Universal de alguns
de seus veículos individuais.

As organizações eclesiásticas não devem substituir o Evangelho do Cristo, o


corpo não deve matar a alma.
“APARECEU O JOIO NO MEIO DO TRIGO.”

Os grandes gênios espirituais da humanidade pouco respeitam as nossas


convenções teológicas.

Estamos firmemente habituados a dizer que “Deus é bom”, e consideraríamos


blasfêmia afirmar que ele seja mau. E temos toda a razão com essa ideologia,
enquanto nos acharmos no plano horizontal da nossa moral, perspectiva essa
que resulta da concepção de um Deus personal.

Se, porém, conseguíssemos ultrapassar esse plano horizontal da moral, onde


Deus é necessário e unicamente “bom”, e entrássemos na Zona vertical da
metafísica, verificaríamos que Deus não é bom nem mau, mas simplesmente
“É” – e nada mais. Deus é o SER como tal, e o SER não tem atributos, porque
é absoluto, enquanto qualquer atributo é relativo. O atributo restringe o âmbito
do SER. O SER é como a luz incolor, que não é vermelha, nem verde, nem
azul; pode, sim, produzir cada um desses efeitos, mas ela mesma não é
nenhum deles. Assim pode Deus produzir ou permitir, no plano horizontal do
existir, aquilo que nós denominamos “bom” ou “mau”, luz e sombra, o sim e o
não, o positivo e o negativo – mas Deus não é nenhum desses opostos, ou
melhor, ele é a “identidade dos opostos”. Dizer que Deus é bom ou mau, justo
ou injusto, sapiente ou insipiente, é restringir-lhe o SER ABSOLUTO. Deus não
é nenhuma das disjuntivas da antítese, nem mesmo a conjuntiva da síntese –
Deus é simplesmente a TESE ABSOLUTA.

Na natureza infra-humana, Deus produz diretamente tudo que é “bom” e “mau”.

Na zona da natureza humana e supra-humana, consciente e livre, Deus produz


indiretamente o que é bom e mau, porque dá a esses seres a faculdade de
serem isto ou aquilo, sabendo que as creaturas conscientes e livres vão agir
tanto neste como naquele sentido, positiva ou negativamente.

É uma ideia ingenuamente infantil que Deus tenha creado um mundo de pura
luz sem trevas – mas convém que tal coisa se diga em todos os jardins de
infância e escolas primárias, em todas as igrejas e colégios da nossa
humanidade primitiva. Ainda por muitos milênios necessitará a humanidade-
massa dessa ideologia horizontal para andar “bem comportada”. Imaginem! Se
tão malcomportados andamos com essa moral, o que seria de nós se esse
freio nos faltasse!...
Mas quando o homem chega à plena maturidade e adultez do espírito e
experimenta o Deus do Universo em si mesmo, verificará que ele não é bom
nem mau, no tradicional sentido disjuntivo da nossa teologia, mas que Deus
simplesmente “É”, sem nenhum aditamento positivo ou negativo. O SER não é
nenhuma das duas antíteses disjuntivas nem mesmo a síntese conjuntiva do
existir.

Deus não é bom nem mau, no sentido moral – Deus É, no sentido metafísico.

***

Na parábola do joio entre o trigo aparece o negativo, o mal, em forma do


“inimigo” ou adversário (em grego: diábolos; em hebraico: satã), o contrapólo
de Deus, o Lúcifer satanizado. O grandioso drama do Livro de Job nos conta
como, um dia, se reuniram os “filhos de Deus”, e no meio deles também estava
satã, que passa a fazer um acordo com Deus em torno do varão santo e justo
de Hus, e, depois de cada etapa, Satã presta contas a Deus da tarefa
realizada.

Não sabia Deus, de antemão, que Lúcifer havia de satanizar-se muitas vezes?
Sabia, certamente. Por que então creou um ser dessa natureza? Porque a
plenitude da natureza divina inclui tudo isso, porque é o Ser Universal,
onilateral, e não apenas este ou aquele aspecto unilateral do existir.

Dizer ao homem moralmente bom que Deus é tanto luz como sombra, positivo
e negativo, Cristo e Satã, seria horripilante blasfêmia – e por isso não o
dizemos a nenhum dos nossos leitores; só o poderíamos dizer a alguém que
tivesse ultrapassado o plano horizontal da nossa bondade moral e tivesse
mergulhado nos abismos verticais da metafísica absoluta – mas onde está
esse “alguém”?...

Como a parábola do semeador, arrasa também esta, do joio no meio do trigo,


todas as nossas concepções tradicionais sobre Deus e seu reino entre os
homens.

Quem semeou o joio no meio do trigal?

Foi “meu inimigo” que fez isto!

Queres que vamos e arranquemos o joio?

Não! Deixai crescer tanto o trigo como o joio até o tempo da colheita.

Nenhum agrônomo humano do nosso planeta havia de concordar com


semelhante recomendação, de deixar crescer erva daninha no meio da
plantação. Todo lavrador sabe que o trigo, ou outra plantação qualquer, sai
prejudicado com a presença da erva má. Mas como Jesus focaliza sobretudo o
simbolizado espiritual da parábola, e não o símbolo material, não manda
extirpar o joio dos maus do meio do trigal dos bons.

Por que não?

Para que não aconteça que, arrancando o joio, o operário arranque juntamente
com ele também algum pé de trigo, ou lhe desloque as raízes. Quer dizer que
os maus não devem ser exterminados por algum agente externo para que os
bons progridam e tenham mais oportunidade de ação e evolução. Assim,
porém, não pensam os organizadores de cruzadas, inquisições e excomunhões
– não! Para Jesus, os maus devem crescer ao lado dos bons, porque eles se
exterminarão a si mesmos, em virtude de um processo intrínseco de involução,
de amadurecimento negativo, se persistirem na sua orientação. A separação
será feita não por um agente externo, mas por um processo interno.

Coisa estranha! A eliminação violenta dos maus do meio dos bons não seria
vantagem, mas desvantagem, para estes últimos! Quão exata e profunda era a
intuição crística de Mahatma Gandhi, quando recomendava a ahimsa – e quão
anticristã é a doutrina de Tomás de Aquino e sua igreja, quando apregoam o
extermínio violento dos “hereges”...

O íntimo “ser” do homem produz aos poucos o seu externo “agir”. A separação
visível entre o trigo e o joio não é obra de Deus, mas do homem, que realizou a
separação invisível, pelo uso ou abuso da sua liberdade; o processo externo é
o simples corolário e a confirmação subsequente de algo já realizado pelo
próprio homem. Qualquer intervenção violenta de fora é anticósmica, antidivina.

Deus, que está “para além do bem e do mal”, tem aqui os seus agentes,
positivos e negativos, incumbidos de executar o grandioso plano cósmico do
SER ABSOLUTO. Ninguém pode frustrar um só átomo dos planos de Deus. A
creatura consciente e livre não tem a escolha entre realizar ou não realizar o
drama cósmico de Deus – só tem a escolha entre o modo de o realizar; pode
realizar os planos eternos gozando e pode realizá-los sofrendo – é esta a única
alternativa em poder do homem. Se uma creatura qualquer pudesse frustrar um
só dos planos de Deus, teria o finito prevalecido contra o Infinito, estaria o
Creador derrotado por sua creatura...

O joio vegetal não pode transformar-se em trigo; mas, o que é impossível no


plano material do símbolo da parábola, é possível no plano espiritual do
simbolizado. Pode o homem-joio de hoje ser o homem-trigo de amanhã – é o
glorioso e também perigoso privilégio do livre-arbítrio. Mas, se o homem não
aproveitar o ciclo evolutivo que lhe foi marcado para essa evolução, cairá
vítima de desintegração. Esse conceito da possibilidade de uma desintegração
final da individualidade humana vai através de todos os livros sacros. Há um
ciclo evolutivo, e há também um ciclo involutivo. O ser que não evolve segundo
as eternas leis cósmicas acabará por perder a possibilidade de ulterior
evolução, e iniciará o seu processo de involução, isto é, de decadência ou
desintegração. Deixará de existir o indivíduo humano, e voltará a “centelha
divina” do espírito individualizado para a sua fonte divina, o Espírito Universal.

É esta a “morte eterna”, a “perdição eterna”, o “abismo eterno”.

Enquanto não se consumar esse processo desintegrante, há sofrimento; mas


nenhum sofrimento pode ser eterno. Eterno só pode ser algo positivo, como o
gozo; atribuir eternidade a um fator negativo, como é todo o sofrimento, é
flagrante contradição intrínseca. Nenhum finito pode sofrer infinitamente,
porque “o recebido está no recipiente segundo a capacidade do recipiente” – a
capacidade do recipiente finito, porém, é finita, que em hipótese alguma poderá
ser recipiente de um sofrimento infinito no tempo, isto é, eterno.

Parábolas profundas como esta não devem ser analisadas com o intelecto,
mas vividas com a alma...

O joio de que Jesus fala na parábola é uma gramínea típica da Palestina,


chamada na botânica lolium, parecidíssima com um pé de trigo. A diferença
aparece tão-somente no tempo da frutificação, porque o joio produz
espiguinhas pequenas e escuras, bem diferentes das espigas grandes e louras
do trigo.

Há, entre os homens, grande semelhança externa, mas a sua dessemelhança


interna pode ser imensa. Pode alguém ter nas mãos milhões e milhões para
organizar poderosas sociedades, que parecem destinadas a desafiar a
eternidade – e depois de pouco tempo tudo se esboroa e morre. Faltava-lhe o
espírito interno, a pureza de intenção, o amor, a solidariedade cósmica. Onde
quer que haja interesses egoísticos, por mais bem disfarçados, aí há joio; e
onde quer que haja amor e desinteresse, ainda que desconhecidos e
hostilizados, aí há trigo. O que determina o resultado final não é aquilo que o
homem diz ou faz ou tem, mas unicamente aquilo que ele é, no íntimo recesso
do seu verdadeiro ser. Ninguém pode enganar a Constituição Cósmica!
Ninguém pode derribar o Himalaia com a cabeça! Cedo ou tarde, a impureza
oculta destruirá a obra que o impuro tentou levantar – e a pureza oculta levará
à vitória a obra do homem puro. Egoísmo é impureza, amor é pureza. Se o
egoísta soubesse quanto mal ele faz a si mesmo!...
“O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE A UM TESOURO

OCULTO – A UMA PÉROLA PRECIOSA.”

Nestas parábolas brevíssimas, frisa Jesus dois aspectos típicos do reino dos
céus e de sua conquista pelo homem: o seu caráter oculto e a sua
preciosidade.

A palavra sânscrita para “oculto” é sak, em latim “sacrum”, em grego mystes.


Oculto e sagrado (de sacrum) são sinônimos, ou melhor, homônimos. Oculto,
sagrado ou místico de (mystes) é tudo aquilo que ultrapassa o alcance dos
sentidos e da mente.

Os objetos adequados dos nossos sentidos são os fenômenos materiais da


natureza física, diretamente acessíveis a qualquer pessoa, e mesmo aos
animais. Para percebermos esses objetos, basta que tenhamos olhos normais
para ver, ouvidos normais para ouvir; basta que tenhamos os sentidos do tato,
do gosto e do olfato, para que possamos sentir, saborear e cheirar os objetos
correspondentes a esses sentidos. A função dos sentidos é fácil, desde que
seus objetos estejam fisicamente presentes.

Um pouco mais difícil é a função da mente ou do intelecto, cujos objetos


adequados são as forças ou leis da natureza. Para muitos homens, e para os
animais em geral, o objeto da inteligência é “oculto”, “sagrado”, “místico”, isto é,
inacessível, porque nesses seres funcionam tão-somente os sentidos. Para
uma criança de poucos anos, até o abc e a tabuada fazem parte do mundo
“oculto”, “sagrado”, “místico”, porque lhe são completa escuridão; só quando
despontar o lúcifer (estrela matutina) da inteligência é que essa zona se
desanuvia e se dissipam os mistérios das letras e dos algarismos.

A inteligência não trata, propriamente, de objetos materiais, mas sim de


realidades astrais ou energéticas, isto é, das forças ou relações invisíveis que
regem os fenômenos materiais da natureza. Para os sentidos, esse mundo de
“relações” é absoluta escuridão. Toda a civilização e cultura, ciência, técnica e
arte, filosofia e religião da humanidade estão baseadas sobre o fato de poder o
homem, pelo intelecto, verificar a existência de relações ou leis invisíveis entre
os fenômenos visíveis da natureza; por isso essa percepção mental é chamada
“inteligir” (do latim inter-legere, ou intelligere, que significa literalmente “apanhar
por entre”). A faculdade da inteligência “apanhar por entre”, descobrindo e
percebendo por entre as coisas materiais relações imateriais, as leis que tudo
unem e governam.
Mas, quando ultrapassamos o âmbito dos fenômenos individuais, tanto
materiais como astrais, escurecem os horizontes para a maioria dos homens
da geração atual. Nada mais enxergam, porque não possuem faculdade
desenvolvida para descobrirem uma realidade não individual, isto é, a
Realidade Universal, que não é um objeto (“o que jaz defronte”), mas o sujeito
(“o que jaz por baixo”). Os objetos são derivados e sustentados pelo sujeito,
que é inderivado e sustenta tudo.

Em face dessa Realidade Universal, a humanidade-massa se divide em dois


campos: 1) os que não sabem nem creem; 2) os que não sabem, mas creem
numa realidade superior. O que essas duas classes têm em comum é o não
saber, a ignorância do mundo da Realidade Universal; o que as diferencia é o
não-crer ou o crer. O crer é um ato volitivo, um querer, uma prova de boa
vontade da parte do crente. Nenhum crente sabe nitidamente porque crê; mas
sente, em alguma zona obscura do seu Eu, que é melhor crer do que não crer,
que o crer, embora não seja a meta, é contudo um método, um caminho e
rumo certo para, um dia, atingir a meta ainda distante e oculta. Por isso, o
homem de boa vontade crê na Realidade Suprema, que é essencialmente
anônima, razão por que os homens lhe dão tantos nomes.

Esse crer não torna o homem sábio nem iniciado na Suprema e Única
Realidade, mas aplaina o caminho e remove os obstáculos que o obstruem.
Por isso, o homem crente experimenta um senso profundo de paz e
tranquilidade no caminho da sua crença; sente nitidamente que é bom crer,
porque é o caminho certo rumo à meta, que é o saber intuitivo da verdade,
essa verdade que liberta o homem e o torna feliz.

Tanto o descrente como o crente são profanos ou inscientes; aquele, um


profano de má vontade; este, um profano de boa vontade. Mas, mesmo para o
profano de boa vontade, o crente, o reino dos céus continua a ser um “tesouro
oculto”.

Diz o Mestre que esse tesouro se acha oculto num “campo”. É uma espécie de
mina de ouro ainda não explorada. Alguém descobre essa mina, guarda
segredo sobre o achado, adquire o campo e vai explorar o precioso metal.

O campo é o próprio homem, porquanto “o reino dos céus está dentro de vós”.
Antes de tudo, deve o homem “adquirir” esse campo; enquanto não o possui,
não pode apoderar-se do tesouro nele oculto. Enquanto o homem não for dono
de si mesmo, mas escravo das circunstâncias, não está em condições de
descobri o tesouro oculto no seu próprio interior. Tem de cavar fundo, rumo a
seu próprio centro, rumo a seu Eu divino e eterno. “Homem, conhece-te a ti
mesmo!” Quando o filho pródigo “entrou em si”, descobriu quem ele era! Não
escravo de um tirano cruel nem pastor de animais imundos, mas o filho de um
pai cheio de amor.
Quanto mais fundo o homem cava nesse campo do seu próprio ser, tanto mais
perde de vista a superfície do seu ego físico-mental e tanto mais se aproxima
do centro do seu Eu racional (espiritual). É dificílimo esse processo de
descobrimento do verdadeiro Eu; é, no dizer do Mestre, “um caminho estreito”
e uma “porta apertada”, como os acanhados corredores do interior de uma
mina. Chega o Mestre a comparar essa disciplina espiritual ao “fundo duma
agulha”. É, pois, necessário que o homem invoque todas as suas energias,
sobretudo as que se acham para além do seu ego consciente, porquanto “o
reino dos céus é alvo de violência, e os que usam violência o tomam de
assalto”.

Donde vem essa dificuldade em descobrirmos o nosso verdadeiro Eu, esse


tesouro oculto dentro de nós?

É que temos de trabalhar com uma faculdade que se acha ainda, total ou
parcialmente, em estado de latência ou simples potencialidade. Despertar em
nós essa faculdade dormente, a razão, a alma, exige fé e vida, ou melhor, uma
fé plenamente vivida. Muitos têm fé nesse tesouro oculto, mas poucos
harmonizam a sua vida com sua fé, porque essa vivência da fé exige grandes
sacrifícios, exige a ultrapassagem do ego personal, egoísta, e o contato com o
Eu individual, que é amor e solidariedade universal. O nosso Eu espiritual nos
é, praticamente, desconhecido, ao passo que o ego físico-mental nos é muito
familiar. Temos de trabalhar, por ora, com uma ferramenta, a intuição espiritual,
que mais adivinhamos do que conhecemos.

Diz Jesus que o homem que encontra esse tesouro oculto guarda o segredo
sobre o seu achado – e esta observação é de uma importância fundamental. O
tesouro espiritual do reino dos céus é tão grande sacralidade que só o mais
reverente silêncio pode preservá-lo da profanação.

Nunca ninguém se arrependeu de ter calado – muitos se arrependeram de ter


falado!...

Quando alguém tem uma iluminação interior, uma revelação divina, deve ele
ser extremamente cauteloso e não expor o delicado tesouro à devassa de
olhos profanos. Somente com algum irmão espiritual, algum sócio de
experiência íntima, poderá falar, a meia-voz, sobre esse tesouro – ou calar-se,
mesmo em companhia dele... As essências preciosas se volatilizam facilmente;
por isso, convém manter o recipiente bem fechado...

“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estou eu no meio


deles.”

***

Na parábola da pérola preciosa, que é como que um complemento da primeira,


acresce ao caráter oculto o fator perigo; a conquista do reino dos céus não é
sem perigo para o homem; não é sem arriscar algo que ele se apodera dessa
“pérola preciosa”. Descer às ignotas profundezas do mar para encontrar a
concha do molusco que encerra no seu interior nacarado a pérola rara é
aventura assaz e arriscada, e requer espírito de pioneiro para realizar tão árduo
empreendimento. O homem que não possua certo espírito de aventura e arrojo
em face do Ignoto e do Infinito não conseguirá apoderar-se da preciosa pérola
do reino dos céus. “O reino dos céus sofre violência...”

Qualquer iniciado sabe como é perigoso aventurar-se o homem a esse oceano


profundo e tenebroso, a esse misterioso Além-de-dentro, onde tudo é tão
diferente das conhecidas praias e litorais familiares da vida comum... Por algum
tempo, o recém-iniciado se encontra num ambiente completamente
desconhecido, sem nenhum ponto de contato com o mundo que lhe era
conhecido... Os mestres da vida espiritual não se cansam de frisar o caráter
perigoso da iniciação espiritual. É, segundo o Mestre, a construção duma torre
altíssima, que requer grande cabedal de recursos; é uma empresa bélica, que
exige forças armadas devidamente treinadas e em número suficiente para
enfrentar vitoriosamente um inimigo poderoso.

Esse perigo não existe, propriamente, para os principiantes no primeiro estágio,


mas sim para os adiantados. Por quê? Porque o perigo está na desproporção
entre a alta voltagem espiritual e o seu veículo material, isto é, o corpo, e,
sobretudo, os nervos. O principiante não corre perigo de sobrecarregar os
nervos com a intensidade da concentração espiritual, porque não consegue
suficiente intensidade de focalização que lhe prejudique os nervos. O perigo
real só principia quando desperta a paixão e o entusiasmo pelo mundo
espiritual. Nesse segundo estágio procura o homem inexperiente conseguir em
poucos meses o que, em geral, leva anos ou decênios. Os nervos do homem
comum não tem resistência suficiente para suportar uma experiência espiritual
de elevada voltagem; têm de dar passos mínimos em espaços máximos, e
fazer em cada etapa uma parada suficientemente longa para consolidar o novo
grau de vibratilidade dos nervos já alcançada; só depois dessa paulatina
consolidação é que o homem pode dar mais um passo rumo às profundezas do
oceano do seu misterioso Além-de-dentro.

O principiante profano é como um homem que impele a sua barquinha a remo.

O iniciado ou iniciável é comparável a um homem que sente soprar uma


aragem, vinda de regiões ignotas; ergue o velame da barca e entrega-a a esse
misterioso sopro do Além: se, porém, perder o controle sobre o leme – sabe
Deus aonde o levará a veemência desse sopro... Além disso, há “aragens” de
procedência vária e de destino diverso. Ai do homem que, sem mais nem
menos, se entregar à mercê de forças desconhecidas! Donde vêm elas? Do
mundo dos elementais? Do mundo astral? Do império das entidades mentais?
Ou do mundo sublime e puro do espírito divino?...
O guru ou diretor espiritual que queira guiar outra alma tem de ser guiado, ele
mesmo, pelo espírito de Deus; tem de possuir profunda e vasta experiência
neste universo das auras invisíveis. Do contrário, será “guia cego guiando
outros cegos”. Não basta ser sacerdote de ordenação ritual – é necessário ser
sacerdote de experiência espiritual...

Entretanto, a conquista da pérola preciosa do reino de Deus vale por todo o


esforço do reino e por todos os perigos. É tão grande esse tesouro oculto... É
tão incomparável o valor dessa pérola preciosa...

Aquele jovem rico do Evangelho foi convidado por Jesus para se apoderar
desse “tesouro nos céus”, mas ele não teve suficiente fé e vida para vender
tudo que tinha, e possuir plenamente aquilo que ele era, e por isso “triste”, se
retirou da presença do Mestre. Os seus “teres” eram tão grandes que o jovem
era por eles possuído; o seu “ser” era ainda tão pequeno que não possuía
plenamente o jovem. Não descobriu o “tesouro nos céus”, porque ainda andava
apegado aos pseudotesouros da Terra. “Ninguém pode servir a dois senhores,
a Deus a ao dinheiro”...

Aquele jovem não era bastante aventureiro para perder de vista as praias e os
verdes litorais dos seus “objetos” e mergulhar no profundo oceano do seu
“sujeito” – e por isso não achou a pérola preciosa do reino dos céus... Depois
de realizar muitas coisas ao redor de si, não consegui realizar-se a si mesmo...
De tanto “ter” o que não era, não conseguiu “ser” o que era...
“ROUBASTES A CHAVE DO CONHECIMENTO

DO REINO DE DEUS.”

Os chefes espirituais de Israel – sacerdotes, escribas e fariseus – são os


únicos homens contra os quais Jesus usa palavras veementes, tão ásperas
que, por vezes, nos causam espanto. Chama-os “sepulcros caiados”, “guias
cegos conduzindo outros cegos”, acusa-os de “devorarem as casas das viúvas
e dos órfãos, a pretexto de longas orações”, de “orarem nas esquinas das ruas
a fim de serem vistos pela gente”: na parábola do bom samaritano mostra
como dois funcionários da igreja de Israel, o sacerdote e o levita, saturados de
liturgia eclesiástica, eram vazios de ética humana.

Entretanto, a mais veemente objurgatória que o Nazareno lançou aos líderes


da sinagoga é a seguinte:

“Vós roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus; vós mesmos não


entrais, nem permitis que entrem aqueles que quiserem entrar”.

Em vez de mostrar o caminho certo, conduziam o povo por trilhos errados.


Impossibilitavam, com suas doutrinas humanas, que o povo bem intencionado,
porém ignorante, conseguisse entrar no reino de Deus, porque tomavam as
teologias dos sacerdotes pela revelação de Deus.

É essa a maldição de muitos mestres religiosos, através dos tempos; não


serem verdadeiros iluminados por Deus, senão apenas ordenados pelos
homens. Falta-lhes a profunda vertical da experiência direta do mundo
espiritual, e por isso se contentam com a vasta horizontal dos preceitos
humanos, litúrgicos, sacramentais, teológicos; e, quanto mais hipertrofiam o
seu dogmatismo humano, tanto mais atrofiam a mística divina. Decoraram as
teses e hipóteses da sua teologia escolástica, e servem essa palha seca a
seus rebanhos, mantendo-os acintosamente na ignorância da verdade divina;
porque no dia e na hora em que o homem chega a conhecer a verdade, liberta-
se de todas as pseudoverdades.

Tomás de Aquino é considerado o maior teólogo do cristianismo eclesiástico;


escreveu volumosos tratados de teologia. Mas, pelo fim da vida, teve uma
visão ou revelação e nunca mais escreveu nada, dizendo: “Tudo que escrevi é
palha”.

Quando então aparece no meio desse povo iludido um verdadeiro avatar, um


mensageiro de Deus iniciado nos mistérios do reino dos céus, todas as almas
sedentas de luz e força respiram aliviadas e cheias de esperança, dizendo a si
mesmas: “Nunca ninguém falou como este homem... Fala como quem tem
poder e autoridade, e não como os nossos escribas e sacerdotes”...

Os ouvintes não sabem definir o estranho sortilégio que lhes acontece; sentem
algo que não podem nomear... Têm a impressão de sair de um escuro
subterrâneo escassamente iluminado por fumegantes lâmpadas, e entrar
subitamente na imensa claridade solar.

Não há maior crime do que arvorar-se alguém em guia espiritual de outros sem
ter experiência pessoal com Deus e do mundo invisível. O profano conhecido
como tal pouco mal faz a seus semelhantes, porque ninguém o toma por guia
nas veredas incertas do universo espiritual; mas o profano que se arvora em
iniciado é um perigo para outros profanos que o tomam por um iluminado.
“Guia cego conduzindo outros cegos”...

O que leva um pseudo-iluminado a se apresentar como iluminado é, quase


sempre, a ambição do prestígio, a cobiça do dinheiro ou o orgulho mental.

Ultimamente, o Ocidente cristão foi invadido por gurus orientais, que se cercam
de mistérios e vestem roupagens iniciáticas, desorientando sobretudo a
juventude; usam certas técnicas exóticas e termos sânscritos, fazendo crer aos
incautos que com isso entram em contato direto com Deus. Alguns chegam a
recomendar o uso de drogas para produzir samadhi e experiência do mundo
espiritual.

Todos eles “roubaram a chave do conhecimento do reino de Deus”. Essa chave


consiste numa experiência interna, não condicionada por nenhuma formalidade
externa. O poder vem de dentro, a fraqueza vem de fora.

“A letra mata – mas o espírito dá vida.”

O ritual dá prestígio externo – o espiritual dá força interna.

Quem exerce o ritual sem possuir o espiritual é falso profeta; roubou a chave
do conhecimento do reino de Deus. Iludido, ilude os outros. Cego, conduz
outros cegos, e acabarão todos por cair na cova.

Ignorância do mundo espiritual é treva – experiência é luz.

Só pode iluminar quem foi iluminado.

Só pode dar aos homens quem recebeu de Deus.

Só pode distribuir aos homens quem possui os tesouros da divindade.

***
É necessário que o guia espiritual compreenda que a única possibilidade de
guiar os outros está em que ele se deixe guiar por Deus, e que nenhuma igreja
ou seita lhe pode dar essa experiência. Todas as igrejas e seitas são como
outros tantos marcos colocados à beira do caminho da vida, nas encruzilhadas
dúbias; quem parasse ao pé desses marcos ou se contentasse com olhar na
direção indicada pelas flechas não chegaria jamais ao termo da jornada. O
marco não deve ser adorado como fim, deve apenas ser olhado como meio de
orientação, e depois ultrapassado. Quem não ultrapassa os marcos dogmáticos
da sua seita não cumpre o seu destino.

A alma do cristianismo não é algo que se possa ensinar ou aprender


intelectualmente, num curso de teologia ou exegese; é algo que deve ser vivido
e sentido, e até sofrido, em profundo silêncio e fecunda solidão. Podem, na
melhor das hipóteses, outros guiar-me até ao limiar do santuário, mas só eu é
que posso transpor esse limiar e encontrar a Deus, face a face. Podem os
“Virgílios” humanos levar-me através do inferno e do purgatório das coisas
ensináveis, mas só a “Beatriz” da minha própria alma é que me pode introduzir
no paraíso.

Ninguém pode dispensar-me da experiência pessoal que devo ter de Deus.

Ninguém pode ser bom e santo em meu lugar.

Ninguém pode ser meu procurador ou vice-gerente perante Deus.

A única entrada legítima é a entrada honesta pela experiência própria.

Todo e qualquer guia que não me prepare para que eu possa, um dia, ter, por
mim mesmo e sem ninguém, esse encontro pessoal com Deus é guia cego,
não é condutor, mas sedutor.

O dia mais glorioso para o verdadeiro mestre é o dia em que ele se torna
supérfluo e dispensável, o dia glorioso em que a alma por ele guiada já não
necessita de guia, por se ter tornado espiritualmente autônoma e
independente, para andar segura e firme nos caminhos de Deus.
“QUEM NÃO TEM PERDERÁ ATÉ

AQUILO QUE TEM.”

Com essas palavras paradoxais remata Jesus a parábola dos talentos.


Referem-se essas palavras ao “servo mau e preguiçoso” que, em vez de
trabalhar com o cabedal que o senhor lhe confiara, o havia enterrado
cuidadosamente, devolvendo-o depois, intato, a seu amo. Ordenou este que
tirassem ao servo indolente o “talento” estéril e o entregassem àquele que
recebera os dez “talentos” e com eles ganhara mais dez.

“Porquanto – termina a parábola – àquele que tem dar-se-lhe-á, e terá em


abundância; mas àquele que não tem tirar-se-lhe-á aquilo que tem.”

Como se pode tirar algo a alguém que nada tem?

As grandes verdades aparecem quase sempre na roupagem de flagrantes


paradoxos.

Aquele servo preguiçoso possuía o capital recebido, que não era dele, mas de
seu senhor. Devolveu a importância – e ficou sem nada! Não tinha nada de
“seu”. Os outros dois servos trabalharam e devolveram a seu senhor a
importância recebida, mas, além disso, possuíam de “seu” outro tanto, os juros
do capital, fruto de seu trabalho. Estes dois são chamados “servos bons e
fiéis”, e entraram no “gozo de seu senhor”.

Nesta parábola, genuinamente esotérica, aparece uma das mais profundas leis
da Constituição Cósmica.

Toda potência ou faculdade que o homem recebe (o “talento”) deve frutificar


em atos ou realizações; a potencialidade tem de ser atualizada. Na razão direta
da atualização da potência, cresce esta – e, na razão direta da sua inatividade,
decresce a potência.

Assim, quem possui 1 grau de potência e a atualiza na vida prática por 1 grau,
adquire o poder de atingir 2 graus de potência; se ele atualizar esses 2 graus,
adquirirá uma potência dupla de 4 graus. E assim por diante,
progressivamente.

Mas se alguém deixar de atualizar a potência de grau 1 não somente não


aumentará essa potência mas verá que, aos poucos, essa potência 1 se vai
enfraquecendo e definhando, até desaparecer em 0.
Quem possui, por exemplo, 10 graus de conhecimento teórico e não puser
esse “talento” a serviço da vida prática sofrerá diminuição desse conhecimento,
que se vai esterilizando aos poucos.

Há numerosas pessoas que estudam largos anos e decênios acumulando


vasto cabedal de conhecimentos filosóficos e espirituais – mas nunca os põem
a serviço da vida, nem deles mesmos nem de seus semelhantes. Outros
passam as ideias da cabeça a ideais do coração – mas param aí, não ousando
realizar praticamente o que compreenderam e amam. Também estes sofrerão
diminuição do seu capital, porque não atualizaram em obras as suas potências
intelectuais e afetivas. As ideias e os ideais têm de passar a realidades vitais.

A transição da cabeça e do coração para as mãos e os pés – quer dizer, para a


vida prática – equivale a uma espécie de crucifixão, como até insinua a
configuração das linhas vertical-horizontal (cabeça-coração-mãos). As ideias e
os ideais têm de ser crucificados, para saírem da sua esterilidade e passarem
para a fecundidade.

O que Deus nos confiou em talentos ou potências é dele; mas o que nós
fizermos desse cabedal é nosso. O capital é de Deus – os juros são do homem.

Quem devolve apenas o capital sem juros não cumpriu a sua missão, e corre
perigo de não evolver rumo a um plano superior.

O melhor modo para preservar de morbidez a nossa mística é pô-la ao serviço


da vida prática, de realizações árduas e dinâmicas, no plano da beneficência
humana.

Ação sem mística é fictícia.

Mística sem ação é mórbida.

Mística que se revela em ação é sadia e genuína.

Quanto mais o homem realiza, tanto maior potencialidade receba para realizar
coisas ulteriores – “quem tem receberá mais”.

Quanto menos o homem atualiza as suas potências, tanto menos receberá em


potencialidades, até, finalmente, perder tudo – “aquele que não tem tirar-se-lhe-
á até aquilo que tem”...
“ACUMULAI PARA VÓS TESOUROS NOS CÉUS.”

Toda a filosofia dos grandes iluminados de todos os tempos e países gira em


torno do sujeito e é indiferente em face dos objetos, ou, quando se interessa
pelos objetos, fá-lo secundariamente, em dependência do sujeito.

O profano total só conhece objetos e ignora o sujeito.

O místico só se interessa pelo sujeito e foge dos objetos.

O homem crístico plenamente realizado em si mesmo interessa-se pelos


objetos mas tão-somente através do sujeito e em perfeita harmonia com este.

Sendo que os grandes iluminados falam a uma geração de profanos, e não de


místicos, é natural que eles frisem muito mais a necessidade de abandonar os
objetos, radicalmente, do que da possibilidade de possuir os objetos em
subserviência ao sujeito. O homem profano não tem força suficiente para usar
os objetos sem deles abusar, como está acostumado a fazer: por isso, a única
recomendação que se lhe deve fazer é a de recusar de vez e abandonar
radicalmente os objetos, a fim de poder realizar o seu sujeito, isto é, sua alma,
seu verdadeiro Eu divino. Numa humanidade de homens libertos da escravidão
dos sentidos e da mente poderia um iluminado falar de outro modo,
aconselhando o regresso aos objetos, porque um homem firmemente
consolidado no mundo espiritual poderia, sem prejuízo, possuir os objetos sem
ser por eles possuído. Schweitzer tem razão quando diz que “o cristianismo é
uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo”; e razão
também tem Gandhi, quando recomenda a seus discípulos: “Abandona o
mundo, entrega-te a Deus – e depois recebe de volta o mundo purificado das
mãos de Deus!”

Mas onde estão esses heróis crísticos capazes de “afirmar” o mundo, de o


“receber de volta”, sem sucumbirem miseravelmente às seduções desse
mundo? Para o imperfeito, o mais seguro é negar radicalmente o mundo, como
Jesus recomendou àquele jovem rico, que, embora fosse um homem
eticamente bom, estava longe de ser um homem espiritualmente perfeito; não
havia negado o mundo, e por isso não podia afirmar sem perigo. O jovem não
teve coragem para negar o seu mundo de riquezas e comodidades, por sinal
que estava possuído daquilo que julgava possuir.

E é essa a ilusão funesta e fatal de milhares e milhões de outros que se julgam


possuidores, mas não possuídos e possessos pelas coisas do mundo. Para
todos eles, a única salvação está em tomar uma atitude radical, negando de
vez o mundo, abandonando tudo que os impede de se encontrar a si mesmos,
descobrindo o reino dos céus em si.

Os objetos que costumeiramente escravizam o homem podem reduzir-se a três


categorias: 1) bens de fortuna; 2) prazeres corporais; 3) ambição mental. São
esses os “tesouros na Terra”, que predem o homem e lhe tornam difícil ou
impossível enxergar e possuir o “tesouro nos céus”, que é um “tesouro oculto”,
uma “pérola preciosa”. “Terra” é tudo que é externo, objetivo, horizontal. “Céu”
simboliza tudo que é interno, subjetivo, vertical.

Em última análise, o que impede o homem profano de enxergar as coisas do


seu céu interior é uma estranha ignorância ou cegueira. O homem profano
acha-se, de fato, num estado de sono e sonho. A sua vida é totalmente
dominada por uma espécie de “sonho mental”. Julga estar acordado, em plena
vigília, mas é engano dele; a sua vigília é muito incompleta; está mais
dormente do que acordado. O estado físico-mental é uma estado de sono ou
sonambulismo.

Quando o homem dorme profundamente, é inconsciente, não tem sonhos.

Quando dorme menos profundamente, passa a ser semiconsciente, e muitas


vezes tem sonhos. Esses fragmentos da sua vida sensitiva e mental esvoaçam
pelo ambiente crepuscular do seu semiconsciente, sem ordem nem nexo. O
homem sonha como real o que é irreal. E o conteúdo dos seus sonhos continua
a ser real para ele enquanto continuar nesse mesmo plano crepuscular do
sonho. Compra, por exemplo, um bilhete na loteria e ganha alguns milhões, a
sorte grande; vai depositar a sua inesperada fortuna num banco, sai à rua – e é
atropelado por um automóvel que o mata instantaneamente. Tanto aqueles
milhões como essa morte são realidades para o sonhador, e só consegue sair
desse mundo de ilusões, tido por real, quando acorda do seu sono e sonho. Só
então verificará a irrealidade daquilo que no sonho lhe era real.

Quer dizer que o conceito da realidade é algo muito relativo, precário e


variável; depende da maior ou menor consciência do sujeito. “O conhecido está
no cognoscente segundo a capacidade do cognoscente.”

Depois de acordar do seu sono e sonho, esse homem sobe ao plano da


consciência mental – e mais uma vez está convencido da realidade de tudo
que, nesse novo plano, se lhe apresenta como sendo real, isto é, todo esse
mundo de matéria e forças; dinheiro, terrenos, casas, arranha-céus, fábricas,
automóveis, prazeres, prestígio social, autoridade política, realizações
científicas e técnicas – tudo isso é para o sonhador mental um mundo
solidamente real, e, enquanto permanecer envolto e submerso nesse oceano
de matéria e forças veiculadas pelos sentidos e pelo intelecto, ninguém o pode
convencer de que está sonhando. É absolutamente certo que o mundo dos
objetos e das quantidades tridimensionais não é um mundo real. Verdade é
que esse mundo do tempo e do espaço também não é propriamente irreal,
como pretendem certos sistemas filosóficos. Não é real nem irreal. Entre o real
e o irreal há um terceiro, o realizado, quer dizer, o efeito causado por uma
causa real. Esses efeitos não possuem a realidade da causa que os produziu;
são apenas realizados, causados, efetuados, e, portanto, inferiores à causa
causante.

Real é só Deus.

Irreal é o nada.

Realizado é tudo que a causa real realiza.

De maneira que o mundo dos objetos quantitativos, onde o homem profano


localiza os seus tesouros, e de cujo material os fabrica, não é um mundo
solidamente real, senão apenas precariamente realizado. E, por isso, todos os
tesouros feitos desse material precário são tesouros de precária realidade, e
podem desvanecer-se a qualquer instante.

Por isso, o homem realmente sábio, o vidente da suprema e única realidade,


não perde o seu tempo em acumular tesouros nessa zona incerta e com esse
material duvidoso, porque sabe que esses tesouros não estão sob o seu
controle, mas sujeitos aos azares das adiversidades da natureza e das
perversidades dos homens; sabe que a ferrugem e a traça podem destruir
esses tesouros, e os ladrões os podem roubar. Tesouro que não dependa
integralmente dele, e que possa ser destruído e roubado por fatores que
independem do homem, não é um tesouro solidamente possuído.

Acumular tesouros dessa natureza afigura-se ao homem sábio como colecionar


zeros, zeros pequenos e zeros grandes, para formar um capital.

***

Só quando o homem descobre dentro de si mesmo a zona da realidade, isto é,


a divindade de seu Eu, sua alma, é que ele começa a interessar-se por
produzir tesouros de qualidade, em vez de quantidade, porque a qualidade é
invulnerável e está para além de quaisquer azares da parte do mundo externo
e objetivo. Nenhuma adversidade da natureza, nenhuma perversidade dos
homens lhe pode roubar esse tesouro. O “reino dos céus”, onde ele acumula
esses tesouros, está dentro dele; é a sua íntima essência divina.

Nesta doutrina, de que o verdadeiro Eu humano é uma realidade interna e


invisível, baseia-se todo o Evangelho, como aliás toda a sabedoria dos grandes
iniciados. Descobrir e viver essa realidade é firmeza, clareza, tranquilidade, paz
e indestrutível felicidade. É nessa direção que convergem todas as palavras de
sapiência, como estas: “Procurai em primeiro lugar o reino de Deus e sua
justiça, e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo.” “Maria
escolheu a parte boa, que não lhe será tirada.” “Que aproveita ao homem
ganhar o mundo inteiro (os objetos) se chegar a sofrer prejuízo em sua própria
alma (sujeito)?”
“SE O GRÃO DE TRIGO NÃO MORRER, FICARÁ ESTÉRIL –

SE MORRER, PRODUZIRÁ MUITO FRUTO.”

Os grandes paradoxos são as grandes verdades.

Não morrer é ser estéril – morrer é ser fecundo.

O “morrer” refere-se ao invólucro externo – o “viver” diz de uma realidade


interna, que necessita da destruição daquele obstáculo para sua plena
expansão. Entretanto, esse mesmo invólucro obstruidor foi, em tempo anterior,
uma condição necessária de evolução. O auxílio de ontem se tornaria, porém,
o empecilho de hoje, se teimasse em continuar, quando deve desaparecer. O
casulo que a larva do bicho-da-seda teceu era auxílio necessário para a
evolução da borboleta; mas, depois de certo tempo, esse mesmo casulo, em
vez de auxílio, seria empecilho, se não permitisse a sua destruição pela
borboleta.

Da mesma forma, a casca do grão de trigo é necessária para que o grão se


possa formar e atingir a sua plenitude vital na espiga; mas se depois essa
casquinha teimasse em não querer morrer, ou romper-se no fundo da terra,
jamais poderia a plantinha verde germinar e sair do seio escuro do solo.

O que deve morrer não é, pois, o grão como tal, a sua essência viva, mas tão-
somente seu invólucro externo, a casca, que, em tempos idos, foi necessária
como proteção da vida, mas que agora tem de ceder, a fim de que a vida possa
iniciar novo estágio evolutivo.

Em todos os departamentos da natureza, nenhuma vida superior pode


manifestar-se sem que desapareça alguma forma de vida inferior. É essa a lei
inexorável da evolução e do progresso. É necessário um certo
“empobrecimento” para que uma forma de “enriquecimento” superior possa
realizar-se. Nada pode nascer sem que alguma coisa morra. O nascimento de
uma forma de vida supõe, invariavelmente, a morte de outra forma.

“Stirb und werde!” (Morre e realiza-te!). Estas palavras de Goethe resumem,


numa concisão lapidar, a grande lei da evolução.

O grande pecado do egoísmo, em todas as suas formas, está precisamente em


não compreender essa lei. O egoísta possui certo bem que ele considera
precioso, e que, de fato, tem o seu valor relativo; representa um dos elos da
longa cadeia evolutiva, um dos numerosos estágios na escala ascensional da
realização dum ser; mas em vez de ultrapassar essa etapa, auxílio ontem e
empecilho hoje, o egoísta, na sua cegueira, faz finca-pé nesse plano,
procurando perpetuá-lo, estagnar nele, pôr luz vermelha no caminho e
paralisar-se definitivamente nessa etapa. Imobiliza-se diante da flecha
indicadora na encruzilhada, em vez de seguir o rumo por ela indicado.
Transforma o jardim vivo num herbário morto, o organismo vital num fóssil
inerte.

Guarda o que tens, e passa além! – é essa a voz da evolução, que é


essencialmente altruísmo, amor, solidariedade cósmica.

Guarda o que tens e paralisa-te nele! – é essa a lei da egoísmo.

Rejeita o que tens e demanda outra coisa! – assim diz o revolucionário, que
sempre renega o passado para afirmar o futuro.

Evolução não é nem estagnação nem revolução; não afirma o passado para
negar o futuro, nem nega o passado para afirmar o futuro. A evolução
verdadeira afirma tanto passado como o futuro; conserva todos os valores reais
da tradição e procura alcançar valores novos numa visão do futuro.

Tanto o egoísmo fossilizado no passado como a revolução negativa que só crê


no futuro são atitudes anticósmicas, antidivinas. Só quem guarda do passado
os valores positivos e procura descobrir no futuro outros valores positivos é que
está em perfeita harmonia com a Constituição Cósmica. O passado e o futuro
convergem no presente; o presente, porém, é o Eterno, o Infinito, o Absoluto,
Deus.

As sociedades eclesiásticas de todos os tipos pecam invariavelmente pelo


egoísmo de querer arvorar os seus dogmas em normas eternas e imutáveis.
Pelo fato de terem certas doutrinas provado a sua eficiência, durante séculos,
concluem os teólogos que essas doutrinas são imutáveis, a voz de Deus. Não
compreendem que toda a doutrina é um auxílio no caminho da evolução, mas,
quando mantida para além do tempo necessário, se torna empecilho da própria
evolução. Querem perpetuar o casulo e impedem o nascimento da borboleta?
Enxergam apenas o bem que certa doutrina prestou em seu tempo, e não
percebem que essa mesma doutrina, já ultrapassada pela experiência de
muitos, causaria morte por asfixia aos que completaram esse estágio evolutivo
e têm de iniciar a próxima etapa.

A grande dificuldade está em determinar quem é que completou o estágio e


necessita “sair do casulo” para poder realizar vida mais abundante. O grosso
da humanidade, não há dúvida, necessita ainda – e sabe Deus até quando! –
de jardim de infância e escola primária, de muletas e escoras de todo gênero,
para se locomover vagarosamente no caminho do progresso espiritual. É, pois,
justo e razoável que as igrejas e seitas insistam nos seus dogmas tradicionais.
O mal não está nisso; está em que essas sociedades, geralmente, não
admitam nenhuma possibilidade de evolução para além das fronteiras das suas
doutrinas padronizadas; excomungam, perseguem, difamam, matam como
hereges, apóstatas, renegados, ateus, todos os que têm a necessidade e a
coragem de ultrapassar as conhecidas doutrinas do passado e aventurar-se
pelas ínvias florestas do futuro. Entretanto, são precisamente esses
bandeirantes das ignotas florestas do infinito os verdadeiros veículos e
pioneiros do progresso espiritual. O maior deles foi, sem dúvida, aquele
modesto carpinteiro de Nazaré, que foi crucificado, morto e sepultado pelos
teólogos da sinagoga de Israel.

***

Todo egoísmo eclesiástico e sectário nasce invariavelmente de um egoísmo


individual. Onde este foi superado pelo universalismo, aparece o onilateralismo
da solidariedade cósmica em lugar do unilateralismo do ego personal.

É necessário que se dissolva o invólucro do ego físico-mental para que o Eu


racional-espiritual possa germinar e iniciar a sua gloriosa carreira, produzindo
fruto abundante, não só para a humanidade ao redor como também para o
próprio homem que realizou essa morte vitalizadora.

“Quem quiser ganhar a sua vida perdê-la-á – mas quem perder a sua vida, por
minha causa, ganhá-la-á.”

Perder a pequena semi – ou pseudo vida do ego personal é condição


necessária para ganhar a grande plenivida do Eu individual, crístico, divino.

Em última análise, todo o mistério da vida espiritual está nesse “perder para
ganhar”, nesse “morrer para viver”...

Mas isso supõe uma grande fé na realidade de um mundo maior e melhor...


“TUDO É POSSÍVEL ÀQUELE QUE TEM FÉ.”

É essa a proclamação da onipotência da fé.

Fé – que é isso?

Fé – é essa, certamente, um das palavras mais usadas – e das mais


ignoradas. Se fé fosse apenas aquilo que os nossos tratados de teologia e os
livros devocionais entendem com esse monossílabo, seria absolutamente
inconcebível o que o maior dos iniciados disse a respeito da fé: declara que ela
é onipotente – e a nossa fé é tão impotente...

“Se tiverdes fé, como um grão de mostarda que seja, e disserdes a este monte
„Sai daqui e lança-te ao mar!‟ e se não duvidardes em vosso coração, crede
que assim acontecerá.”

Não é possível falar de modo mais categórico. Não diz o Mestre que muitas
coisas são possíveis a quem tem fé, mas todas, todas sem exceção, mesmo no
plano físico, como o transporte instantâneo de um monte. Frisa, porém, um
ponto essencial: “Se não duvidardes em vosso coração”. Qualquer resquício de
dúvida, por mais oculto e inconsciente, na possibilidade do efeito, quebrará a
força da fé. E é precisamente aqui que está a maior das nossas dificuldades e
a razão única por que a nossa fé não realiza o que Jesus garante com tamanha
afoiteza. Raríssimo o homem que consiga ter 100% de fé, sem pelo menos
falhar 1%. Estamos habituados aos impossíveis dos sentidos e do intelecto;
sabemos, ou julgamos saber, que um simples ato invisível como a fé não pode,
de forma alguma, produzir um efeito visível, nem sequer deslocar um lápis
sobre a mesa – e como ia remover do seu lugar algum Corcovado ou Itatiaia?
Como é que uma causa imponderável pode mover milhões de toneladas, e isso
sem máquina alguma, e instantaneamente?

Em face das nossas experiências em contrário no terreno físico e mental,


descremos ou duvidamos secretamente em nosso “coração”, embora com os
lábios confessemos a onipotência da fé. A secreta impotência que alimentamos
nos refolhos do nosso ego personal invalida a onipotência da nossa fé. Cremos
muito mais na impotência da matéria do que na onipotência do espírito.

Todo o segredo está, portanto, nessa atitude absoluta e integral, nessa


afirmação categórica, veemente, total e incondicional do nosso Eu divino, a
despeito de todos os protestos, tácitos ou manifestos, do nosso ego humano.
Por onde se vê que essa atitude íntima chamada fé não se move no plano
horizontal das quantidades, aparentemente fortes, mas realmente fracas –
move-se na zona vertical da qualidade, aparentemente fraca, porém realmente
forte, fortíssima, onipotente.

Fé, no sentido de Jesus, é a consciência de uma força espiritual que ultrapassa


e neutraliza toda e qualquer força material e seus derivados. Não faz parte do
mundo das quantidades dimensionais, mas sim da zona da qualidade
indimensional.

“Dai-me um ponto de apoio fora do mundo – exclamava Arquimedes – e eu


deslocarei o mundo dos seus eixos!”

Para que um alavanca possa funcionar, é essência que o seu ponto de apoio
se ache fora do objeto a ser movido.

Da mesma forma, para que a fé possa atuar poderosamente, deve ela ter o seu
ponto de apoio fora de todos os mundos a serem postos em movimento. Quem
crê porque vê, ou ouve, ou entende intelectualmente não assenta a alavanca
num ponto imóvel fora dos mundos a serem movidos; comete a falácia que, em
lógica, se chama “petitio principii” (petição de princípio), supondo como prova
aquilo que deve ser provado; quem quer mover algo tem de admitir algo imóvel.
Em última análise, só o imóvel pode mover algo. Mas o mundo dos sentidos e
da mente fazem parte dos “mundos móveis”, isto é, dos efeitos derivados, e
não são a causa inderivada. Deus é o “movente imóvel”, diz Aristóteles. “Ver
para crer”, ou “entender para crer” representam caricaturas de fé, mas não são
fé verdadeira. A Última e suprema razão da fé deve ser a experiência direta e
imediata da Realidade Absoluta, Eterna, Infinita. Essa experiência, porém,
ultrapassa todos os mundos dos sentidos e do intelecto. Desse centro imóvel
da experiência espiritual, pode o homem mover, sem a menor dificuldade,
todas as periferias dos mundos em movimento.

“Fé como um grão de mostarda”, diz o Mestre – não como um grão de areia.
Quer dizer, uma fé viva, que encerre em si, ainda que potencialmente apenas,
a vida espiritual, assim como um grão de mostarda encerra em si uma planta
inteira.

Para o homem que tem essa fé genuína, não é mais difícil mover um Himalaia
do um lápis, porque as categorias de peso e dimensão pertencem ao mundo da
matéria ou quantidade, que, em face do mundo indimensional do espírito e da
qualidade não existem, são um puríssimo nada. Ora, um nada grande não é
maior do que um nada pequeno, um zero de um quilômetro de diâmetro vale
exatamente o mesmo que um zero de milímetro – ambos estão perfeitamente
nivelados no plano da sua nulidade. A fé é, por assim dizer, um algarismo
positivo, de valor intrínseco, como, por exemplo, “1”. Nenhuma quantidade de
zeros, somados ou multiplicados, pode produzir esse “1”; esse “1”, porém, pode
“mover” todos os zeros, ainda que seja milhões e bilhões; pode fazer deles o
que quiser, enriquecê-los indefinidamente, sem que o “1” perca algo do seu
valor 1.000.000.000.000.000. Cada um desses zeros à direita do “1” recebe
valores do valor positivo, mas este não perde nada, porque se acha fora do
plano dos zeros, num ponto fixo, imóvel, por assim dizer. Se, porém,
invertemos essa ordem, e colocarmos os zeros à esquerda do “1”, então esse
fator positivo perde do seu valor na medida que lhe dermos novos zeros; 01.
001, 0001, 000 000 000 000 1.

Quem tem inteireza de fé domina tudo – quem tem falta de fé é dominado por
tudo.

Pela fé somos enriquecidos – pela falta de fé somos empobrecidos.

Tudo é possível àquele que tem fé – nada é possível àquele que não tem fé.

Ainda que a fé tenha a ver, em primeiro lugar, com o mundo espiritual, invisível,
os seus efeitos se refletem poderosamente também sobre o mundo material
visível. A firmeza, clareza, tranquilidade e paz que a fé confere ao homem,
cedo ou tarde cingem dum halo de serena felicidade a zona da sua vida
cotidiana. O seu superconsciente ilumina o consciente, e até o subconsciente.

A experiência da Verdade, em geral, nos exige sacrifícios iniciais e sofrimentos;


mas essas “desvantagens” aparentes e imediatas são amplamente
compensadas, a longo alcance, por vantagens reais e permanentes.

A Verdade é sempre libertadora, ainda que nos obrigue a andar pelo “caminho
estreito” da disciplina.

A fé é o contato direto com a Realidade.

Por isso, tudo é possível àquele que tem “fé”.

Quem tem fé sabe experiencialmente – possui a Verdade.

A Verdade, porém, é libertadora – liberta o homem de todos os impossíveis e


lhe torna tudo possível.

Façamos um paralelo ilustrativo, tirado do nosso mundo moderno.

Estou em São Paulo. Quero falar com um amigo em Brasília, há mais de 1.000
quilômetros daqui; ou mesmo em Tóquio, do outro lado do globo. Por mais que
eu grite, nunca minha voz será ouvida, porque as vibrações aéreas produzidas
por minha voz morrem depois de 100 ou 200 metros.

É, no entanto, perfeitamente possível falar com alguém em Brasília ou Tóquio –


ou até na Lua – e isso em voz baixa e sem esforço algum.

Como?
Abandonando a zona das vibrações aéreas e entrando no âmbito das ondas
eletrônicas, sentando-me ao microfone duma estação telefônica e falando
tranquilamente. E serei perfeitamente ouvido, como se falasse a uma pessoa
em minha casa.

Que milagre é esse?

É o milagre simples de ter abandonado a zona aérea e ter entrado na zona


eletrônica – digamos que passei dos sentidos e do intelecto e entrei no
ambiente do meu Eu espiritual, que é a zona da fé, onde tudo é possível e
nada é impossível.
“EU VIM PARA QUE OS HOMENS TENHAM VIDA,

E A TENHAM COM MAIOR ABUNDÂNCIA.”

A vida do homem é uma só e sempre a mesma, aqui na Terra, após-morte e


para todo o sempre. Entretanto, o modo e a intensidade com que o homem
pode possuir esta sua vida única e eterna admitem inumeráveis graus. A
criança, desde o momento da concepção, possui a sua vida, a mesma que
sempre possuirá, mas a consciência com que a possui é mínima, quase nula.
Depois de nascida, possui essa mesma vida com um pouco mais de
consciência. Daí a dez anos é notavelmente maior a “abundância” com que
possui a sua vida.

Com o pleno desenvolvimento dos sentidos, atinge o homem a clímax da sua


vida vegetativo-sensitiva. Mais tarde, muitos desenvolvem notável grau de vida
intelectual, com todas as suas ramificações através de diversos departamentos
da vida no plano horizontal.

Certo numero de homens tenta invadir o mundo espiritual, divino, universal;


mas a maior parte só o consegue por meio da crença, sem nenhuma
experiência própria. Só de longe em longe aparece um homem que pode dizer
com verdade: “Eu sei o que digo e dou testemunho daquilo que vi”. Esse
homem possui a vida com notável abundância, embora seja possível aumentar
cada vez mais essa abundância, por uma sucessiva intensificação da sua
experiência.

Para essa intensificação da experiência do mundo de Deus é necessária uma


disciplina orientada.

A palavra “disciplina” suscita sentimentos desagradáveis na mente de muitos


homens. É sinônima de “sacrifício”, “sofrimento”, “renúncia”.

Um rio espraiado pela extensão de um quilômetro, para a direita e para a


esquerda, tem pouca força, porque a sua largura é grande e a sua profundeza
é pequena. A força, porém, está na verticalidade, assim como a fraqueza está
na horizontalidade. Se estreitarmos as margens desse rio entre dois paredões
de ferro e cimento até acusar apenas 100 metros de largura, será muito maior
a sua força, porque a sua profundidade cresceu na razão em que sua largura
decresceu. E se conseguíssemos reduzir-lhe o volume da água a 10 metros de
largura, seria irresistível força das suas águas, agora transformadas em
impetuosa cachoeira, capaz de mover poderosas máquinas.
Como foi que essa mesma água, tão fraca a princípio, adquiriu tamanha força?

Unicamente pela “disciplina”, pela compressão do seu volume em pequeno


espaço. Submetemos o rio a uma espécie de sacrifico, de renúncia, de
concentração – e sua inércia estática de ontem se converteu na atividade
dinâmica de hoje. Adquiriu “vida mais abundante”.

No princípio, toda disciplina parece matar ou diminuir a vida; parece ser um


empobrecimento, e não um enriquecimento da vida humana. E muitos
principiantes desanimam nesse estágio inicial e voltam atrás, preferindo o
suave comodismo das planícies à austera dinâmica das profundidades e
alturas. Os que têm a intrepidez de afrontar as dificuldades iniciais e tomar
sobre si, voluntariamente, as renúncias necessárias acabarão por verificar que
a vida com estreita disciplina é incomparavelmente mais rica e fascinante do
que a vida levada ao sabor dos caprichos e das veleidades do momento.
Provavelmente, são poucas as horas de folga do homem de vida disciplinada,
mas essas poucas horas superam em qualidade e intensidade todas as
quantidades e extensidades das muitas horas ociosas do homem
indisciplinado. O mais fino sabor da vida humana nasce da disciplina
voluntariamente aceita e rigorosamente observada, a despeito de todos os
caprichos e veleidades em contrário. Dessa disciplina fazem parte também
uma rigorosa pontualidade e a absoluta fidelidade aos compromissos
assumidos.

O homem disciplinado é austero consigo mesmo e indulgente com os outros.

Não se perdoa facilmente a si mesmo a infração do seu programa.

E nessa espontânea e auto-imposta austeridade é que ele encontra o


inebriante elixir de uma perene serenidade e profunda suavidade.

***

O profano gozador afirma a vida, sem jamais a ter negado.

O asceta nega a vida, sem se atrever a afirmá-la.

O homem integral afirma a vida, depois de a ter negado, e mesmo enquanto a


afirma, ele continua a negá-la de certo modo, porque a afirma dentro da sua
grande disciplina. E somente essa afirmação da vida dentro da negação é que
é uma vida abundante e rica.

“Na restrição – diz Goethe – é que se revela o mestre.”

Quem afirma a vida sem jamais a ter negado é escravo da vida e de seus
prazeres fáceis, e por isso mesmo não pode gozar realmente a vida, porque o
gozo real é das almas livres, e não dos escravos.
Quem nega a vida sem a afirmar é livre da escravidão da vida desregrada, mas
sua liberdade é uma pobreza e uma fuga, porque baseada na consciência do
medo e na necessidade da fuga.

Quem afirma a vida depois de a ter negado, e continuando a negá-la pelo


espontâneo e permanente desapego interior, este goza a vida com a maior
intensidade e abundância.

Nesse sentido disse o Mestre: “Eu vim para que os homens tenha a vida, e a
tenham com maior abundância”. Ninguém vive vida tão rica e fascinante como
o homem plenamente realizado em sua íntima essência espiritual e divina, o
homem crístico, integral, univérsico.

A vida sem disciplina acaba por se tornar aos poucos tão insípida e
insuportável que o homem escravizado por seu caprichos arbitrários procura
intensificar progressivamente os seus gozos, a fim de os poder sentir ainda,
porque a sua sensibilidade vai-se embotando progressivamente e, por fim,
nada mais o satisfaz. O homem indisciplinado necessita de veementes
estímulos, chicotadas nos nervos calejados para os pôr em vibração, ao passo
que o homem disciplinado se enche de pura alegria e delicado gozo com os
acontecimentos mais singelos da vida cotidiana, uma florzinha à beira da
estrada, o encontro fortuito com um amigo, o sorriso de uma criança, as
melodias de um hino sacro, os gorjeios de um passarinho, uma noite de luar, a
sinfonia noturna dos grilos na grama ou dos sapos no brejo – tudo lhe é motivo
de satisfação, porque os seus nervos se acham afinados por uma frequência
vibratória sutil, que só a disciplina pode dar.

Nunca homem algum deste mundo levou vida tão abundante como Jesus de
Nazaré – embora certa literatura religiosa queira fazer-nos crer que ele tenha
sido apenas “varão das dores”, e que sua vida tenha sido sofrimento e miséria.
O seu sofrimento físico, durante 33 anos, não abrange o total de 15 horas; e
mesmo este foi 100% voluntário. O seu sofrimento moral vinha iluminado
constantemente pela consciência da grande missão que o trouxera à Terra,
conferindo a todos os seus sofrimentos um halo de divina poesia e profunda
felicidade. “Eu vos dou a paz, eu vos deixo a minha paz – diz ele em vésperas
da sua morte – para que a minha alegria esteja em vós, e seja perfeita a vossa
alegria.” Quem assim fala, das profundezas da alma, possuía vida abundante e
podia fazer transbordar nas almas humanas que fossem receptivas para
recebê-la. E sua vida era abundante não apenas no espírito, senão também na
mente e no corpo: perfeita santidade, sapiência e sanidade, perfeita felicidade
da alma pelo amor, da mente pelo conhecimento de todas as leis da natureza e
do corpo, graças a uma saúde jamais afetada pela mais ligeira moléstia.

Sendo que o homem comum é antes materialista do que espiritual, é natural


que os mestres da vida espiritual sejam, geralmente, decididos ascetas e
insistam grandemente na necessidade da renúncia, do radical desapego dos
bens materiais e prazeres sensitivos que escravizam o profano. O próprio
Nazareno assim procedia com seus discípulos. Não é possível passar
diretamente do estado profano ao estado crístico sem passar pelo estado
ascético.
“QUEM QUISER CONSTRUIR UMA TORRE...

EMPREENDER UMA GUERRA – RENUNCIE A TUDO!”

As alegorias da construção da torre e da empresa bélica focalizam, como


talvez nenhuma outra, a sapiência cósmica do Nazareno, sapiência que se
acha em flagrante conflito com a tradicional sagacidade da inteligência
humana.

Diz o Mestre que o homem que desejar construir uma torre elevada (nós
diríamos, um “arranha-céu”) deve, antes de tudo, calcular criteriosamente se
possui os recursos necessários para ultimar a obra, para que não seja obrigado
a deixar o trabalho a meio caminho, com prejuízo próprio e zombaria dos
outros.

Diz ainda que um rei, em vésperas de declarar guerra a outro rei, deve
ponderar judiciosamente se com 10.000 soldados pode derrotar seu adversário
que dispõe de 20.000; do contrário, fará melhor em desistir do empreendimento
para que, a meio caminho das operações bélicas, não se veja obrigado a
solicitar convênios de armistício ou paz, com grande humilhação e prejuízo.

Até aqui, as duas alegorias nada parecem ter de extraordinário; temos até a
impressão de ouvir falar de um homem do nosso século interessado na
construção de edifícios, ou um beligerante profano dotado de certo tino
estratégico e senso diplomático. E, com isso, nos sentimos quase reconciliados
com o Nazareno, considerando-o como um dos “nossos” – quando, de
improviso, ele passa do símbolo para o simbolizado, recorrendo a uma
conclusão diametralmente oposta aos nossos cálculos e à nossa expectativa:

“Assim, vos digo eu, não pode ninguém ser discípulo meu se não renunciar a
tudo quanto possui”.

Segundo a nossa sagacidade humana, teríamos esperado algo totalmente


diverso; teríamos esperado que o Mestre recomendasse ao construtor da torre
que aumentasse os seus recursos para poder terminar a obra começada; e que
fizesse ver ao rei beligerante que duplicasse ou triplicasse o número de seus
soldados para derrotar seu inimigo. E, no plano material, é claro, teria sido esta
a solução. O simbolizado, porém, não se acha nesse plano material, e por isso
Jesus não recomendou nenhum desses dois expedientes. Em vez disso, passa
a uma conclusão diametralmente oposta às nossas expectativas: insiste em
que o homem, para conseguir os recursos necessários, abra mão de tudo
quanto possui! Quer dizer que a fraqueza está no possuir – e a força no
despossuir-se. Os objetos materiais a que o homem está apegado representam
a medida da sua impotência – ao passo que a espontânea renúncia a esses
objetos é a bitola da sua potência, porque esse voluntário desapego das
quantidades materiais significa qualidade espiritual. Ora, sendo a quantidade
sinônimo de fraqueza, e a qualidade homônimo de força, é claro que o aferro a
objetos materiais é fraqueza e derrota – e a renúncia espontânea aos mesmos
é força e garantia de vitória.

A filosofia qualitativa do Mestre, como se vê, é exatamente o contrário da


nossa política quantitativa; e o verdadeiro cristianismo está na razão direta
daquela e na razão inversa desta.

O “ter” é dos profanos – o “ser” é dos iniciados.

Quanto mais cresce o “ser” do homem, mais decresce o seu desejo de “ter”.

Não é, certamente, a simples ausência material desses objetos que dá força ao


homem; não é o simples fato de alguém ser Diógenes ou um mendigo pelo
desfavor das circunstâncias – mas é o fato da espontaneidade do desapego,
porque esse ato voluntário é filho de uma exuberante plenitude espiritual, e
essa plenitude é que é garantia de vitória, ou melhor, ela mesma é a vitória.

A vida espiritual é uma construção altíssima, uma intensa verticalização rumo


ao Infinito, obra gigantesca que necessita de um alicerce sólido para não expor
a futuros riscos a grande torre.

A vida espiritual é uma guerra sem tréguas contra poderosos adversários,


como ilustra tão maravilhosamente o drama místico da Bhagavad Gita: o
príncipe Arjuna tem de lutar contra os usurpadores do seu trono.

Os recursos para essa grande empresa aumentam na proporção direta em que


o homem der mais importância ao que ele é internamente e menos importância
ao que ele tem externamente. O “ser alguém” é, geralmente, incompatível com
o “ter algo”; por isso deve o homem diminuir aquilo que ele tem na razão direta
daquilo que é.

Só alguém que fosse firmemente estabelecido e consolidado no seu eterno


“ser” poderia sem prejuízo voltar ao “ter” temporário – mas onde estão esses
homens cósmicos, plenamente cristificados, totalmente realizados? A imensa
maioria dos homens do nosso século – mesmo quase dois milênios após a
vinda do Cristo – não pode ser e ter ao mesmo tempo; só lhes resta a
alternativa entre o ser e o ter: ou ter sem ser – ou ser sem ter.

Mahatma Gandhi foi convidado pelos homens do “ter” a derrotar a potência


material do Império Britânico com outra potência material – isto é, derrotar um
“ter” com outro “ter”; mas ele se recusou, preferindo derrotar o “ter” material do
militarismo inglês com o “ser” espiritual da não-violência. E Gandhi o fez, de
encontro a todas as expectativas dos que só viam força na política do “ter”, e
fraqueza na filosofia do “ser”.

É que “a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria dos homens, e a


fraqueza de Deus é mais forte que a força dos homens.” (Paulo)

“Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a Terra!” (Jesus)


“GRANJEAI-VOS AMIGOS COM AS

RIQUEZAS DA INIQUIDADE.”

Essa parábola é a cruz dos intérpretes, e não falta quem duvide que ela seja de
autoria de Jesus.

Antes de tudo, repetimos o que dissemos em outra parte: que é erro


fundamental querermos compreender o simbolizado espiritual da parábola por
meio do seu símbolo material. A análise intelectual não atinge jamais o
verdadeiro sentido de palavras que são o reflexo de uma grande experiência
espiritual. “O homem intelectual („ánthropos psychikós‟, no dizer de Paulo) não
compreende as coisas do espírito, nem as pode compreender, porque devem
ser compreendidas espiritualmente.”

Na parábola do “feitor infiel”, de que foram tiradas as palavras do título acima,


não recomenda Jesus a fraude como meio para granjearmos amigos no mundo
espiritual – o que seria a sanção do princípio imoral de que “o fim (bom)
justifique os meios (maus)”.

O administrador de uma fazenda de plantação, em vésperas de ser demitido do


seu cargo por falta de honestidade, comete a perversidade de chamar os seus
empregados subalternos e os induz a falsificar os documentos de débito com o
senhor da propriedade; e isso faz o feitor com o fim de ganhar amigos que o
auxiliem depois da sua demissão.

Esse capataz, como se vê, era mestre perito nos conchavos desleais que, hoje
em dia, são praticados a varejo e por atacado entre nós a alhures. Se o Cristo
tivesse aprovado e recomendado esse procedimento, teria ele imensa legião
de discípulos.

À primeira vista, parece de fato, que Jesus nos incita à imitação desse perverso
administrador: “Também eu vos digo: Granjeai-vos amigos com as riquezas da
iniquidade, para que, quando vierdes a falecer, vos recebam nos eternos
tabernáculos.”

Em face disso, não faltou quem se horrorizasse por ter Jesus recomendado
meios desonestos para um fim espiritual.

É, todavia, possível encontrarmos outra solução que não desdiga do espírito de


verdade e justiça que caracteriza todas as doutrinas do grande Mestre.
Toda e qualquer parábola contém um símbolo material e um simbolizado
espiritual. Na presente parábola, o símbolo é o procedimento desleal do feitor,
e o simbolizado é a recomendação de usarmos de tal modo os bens materiais
que nos sirvam de meios para alcançarmos os bens espirituais.

Ninguém duvida de que os bens materiais possam ser meios ou condições


(ainda que não causas!) para alcançarmos os bens espirituais; quando damos
esmola ou praticamos outro ato qualquer de beneficência, servimo-nos de bens
materiais para conseguirmos bens espirituais. Pelo uso correto dos objetos
promovemos o aperfeiçoamento do sujeito.

Até aqui estamos todos de acordo.

Mas... será possível que pelo abuso de bens materiais – pela fraude –
possamos alcançar bens espirituais?

Certo que não. Nem é isso que o Mestre recomenda. Diz que devemos
granjear amigos no mundo espiritual mediante o emprego das “riquezas da
iniquidade” ou “injustiça”; não diz o Mestre “pela iniquidade das riquezas”, mas
sim “pelas riquezas da iniquidade”; quer dizer, as mesmas riquezas que levam
outros a cometerem iniquidade, como o feitor, podem servir a nós para
praticarmos obras de espiritualidade. Não existem “riquezas iníquas”. A riqueza
consiste no uso de determinados objetos materiais; mas nenhum objeto é
“iníquo” em si mesmo, porque é eticamente neutro, nem bom nem mau; a
“iniquidade” não está no objeto, mas vem do sujeito que, em vez de usar,
abusa do objeto. O objeto é, por assim dizer, incolor; quem lhe dá cor ou
colorido é o homem. O mesmo objeto pode servir para fins bons e fins maus –
tudo depende do uso que dele fizer o homem, bom ou mau. Com uma faca
afiada posso destruir uma vida humana – e posso também salvar uma vida;
não depende da faca, mas de quem a usa ou dela abusa. Assim como o feitor
infiel usou para fins iníquos o objeto eticamente neutro e incolor, assim pode
um administrador fiel usar os mesmos objetos materiais para fins eticamente
bons.

O “termo de comparação” da parábola não é injustiça ou fraude que o feitor


cometeu; mas sim o tino com que agiu; esse tino em si não era mau; quem lhe
deu maldade foi a vontade perversa que o canalizou para o mau, quando o
podia ter veiculado para o bem. No trato com seus semelhantes, diz o Mestre,
o homem profano é, geralmente, mais atilado do que são os filhos da luz; os
maus sabem melhor servir-se dos bens materiais para praticar o mal do que os
bons para praticar o bem. Jesus, porém, recomenda a seus seguidores que
lancem mãos dos mesmos bens materiais de que os maus se servem para o
mal, para praticar o bem.

O ponto de comparação é a “previdência”, que não inclui necessariamente a


desonestidade. Podemos ser, espiritual e honestamente, previdentes, em vez
de sermos, material e desonestamente, previdentes. “Sede inteligentes como
as serpentes – diz ele – mas também simples como as pombas.” O feitor
cumpriu, a seu modo, a primeira parte da recomendação de Jesus, mas não a
segunda.

E não recomendou Jesus, na parábola dos talentos, que o homem fosse


previdente na administração de um bem material a fim de “entrar no gozo de
seu senhor”, mediante essa administração?

Aliás, o final da parábola explica claramente o sentido da mesma: “Quem é fiel


nas coisas mínimas (materiais) é fiel também no muito (espiritual); e quem é
infiel em coisas mínimas é infiel também no muito. Se não administrardes
fielmente as riquezas vãs (ou da iniquidade), quem vos confiará os bens
verdadeiros? E, se não administrardes fielmente os bens alheios, quem vos
entregará o que é vosso? Nenhum servo pode servir a dois senhores... Não
podeis servir a Deus e às riquezas”.

Quem serve ao dinheiro é escravo da matéria morta – mas aquele que põe o
dinheiro a serviço de Deus é livre e soberano pelo espírito. O administrador fiel
é senhor e soberano do dinheiro, porque o dinheiro lhe serve – mas o
administrador infiel é escravo do dinheiro, porque serve à matéria. Só podemos
servir a quem é superior a nós; do contrário nos degradamos. Podemos servir a
Deus tanto em si mesmo como também em sua imagem humana, nossos
semelhantes.
“OS PRIMEIROS SERÃO OS ÚLTIMOS E OS

ÚLTIMOS SERÃO PRIMEIROS.”

Com estas palavras termina o Mestre uma das mais enigmáticas das suas
parábolas sobre o reino de Deus, a que trata dos “trabalhadores da vinha”.

A parábola fala de cinco turmas de trabalhadores, convidados para a vinha de


três em três horas. O primeiro grupo foi chamado pelas 6 horas da manhã, e só
com estes combinou o dono o salário certo de 1 denário por dia.

Mais tarde encontra outros e mais outros homens, sem fazerem nada, às 9 e
às 12 horas, e outra vez às 3 horas e, finalmente, às 5 horas da tarde. Convida-
os todos para a sua vinha, mas sem estipular preço certo; diz apenas que lhes
dará “o que for justo”. Às 6 horas manda chamar todos os trabalhadores e
começa a fazer os pagamentos: dá um denário a cada um da turma das 5
horas, que haviam trabalhado só uma hora. Vendo isso, esperavam os outros
que ganhariam mais, embora lhes tivesse sido prometido apenas 1 denário.
Mas também eles receberam apenas 1 denário. Ao que murmuraram contra o
senhor, alegando que haviam suportado “o peso e o calor do dia”, e tinham
sido igualados aos outros, que haviam trabalhado apenas uma hora. O senhor,
porém, lhes faz ver que não os trata com injustiça, porquanto combinou com
eles o salário de 1 denário por dia. “Será que o teu olho é mau porque eu sou
bom? Não tenho eu o direito de fazer dos meus bens o uso que quero?” Volta
aqui a misteriosa expressão do “olho mau”, que parece um eco daquilo que o
Mestre disse em outra ocasião: “Se o teu olho for simples, está em luz todo o
teu corpo; mas se o teu olho for mau, está em trevas todo o teu corpo”. A visão
espiritual ilumina, a visão material entenebrece a vida do homem.

E termina o Mestre a sua estranha parábola dizendo: “Os últimos serão


primeiros, e os primeiros serão últimos”. A Vulgata acrescenta: “Porque muitos
são os chamados, e poucos os escolhidos”, mas essas palavras faltam nos
melhores códices gregos, embora se encontrem em outra parte.

Como explicar esta parábola?

Resposta: Não deve ser explicada de forma alguma, deve ser espiritualmente
vivida, e não intelectualmente analisada. De fato, não há nenhuma
possibilidade, no plano analítico da inteligência, de explicar decentemente tão
estranho procedimento. Nas seguintes páginas não tentaremos explicar a
parábola, mas apenas indigitar ao leitor o rumo certo onde, numa hora de
profunda vivência espiritual, possa encontrar solução satisfatória.

A tentativa de harmonizarmos os caminhos ignotos do espírito de Deus com a


nossa conhecida lógica e matemática é um tentame visceralmente absurdo,
baseado num postulado inicial falso, e sem nenhuma esperança de solução
satisfatória. Queremos e esperamos tacitamente que os desígnios de Deus se
“ajustem” aos modelos criados pela nossa inteligência, mas eles não se
“ajustam”, e mesmo que por vezes pareçam bem “ajustados” ao nosso modo
de pensar, é por simples aparência externa; na realidade não se “ajustam”, isto
é, são “desajustados” ou “injustos”. Não nos arvoremos em advogados de
Deus, querendo provar que o seu governo neste mundo seja “justo” – ele não é
“justo”, segundo a nossa bitola intelectual; pode ser até extremamente “injusto”,
e isso nos escandaliza, porque supomos tacitamente que os desígnios de Deus
devam ser ajustados ao nosso modo de pensar...

Entretanto, assim diz o Senhor aos homens: “Os vossos caminhos não são os
meus caminhos, e o vosso pensamento não é o meu pensamento”.

A nossa inteligência esperaria que Deus medisse rigorosamente o prêmio pelo


merecimento, como se ele fosse causa daquele, esquecendo-nos de que as
leis da causalidade são do plano físico-mental, mas que não atuam no mundo
espiritual. No mundo do espírito não há nenhuma proporção entre causa e
efeito, porque não existe nem este nem aquela, no sentido em que existem no
plano físico-mental. Falsamente, aplicamos uma lei a um mundo para o qual
essa lei não foi feita. Aqui, no mundo das causalidades, a dez graus de
merecimento correspondem dez graus de prêmio – é o que nós chamamos
“justo”, ou bem “ajustado”, o prêmio ajustado ao merecimento. O contrário é,
para nós, “injusto”, e temos razão dentro da nossa zona; mas não temos razão
em aplicarmos esta bitola a outros mundos.

Deus concede a um homem dez graus de graça, a outro cem, a outro mil – é
isso “justo”?

É justo relativamente a Deus, não é justo relativamente ao homem – mas não


há necessidade de ser justo nesse último sentido, porque o homem não pode,
em hipótese alguma, ser causa da graça que Deus lhe concede; pode ser
apenas condição para esse efeito. Se o homem fosse causa da graça, estaria
Deus ligado, e não livre; teria obrigação de conceder dez ou cem mil graus de
prêmio a dez, cem ou mil graus de merecimento. Mas a Constituição do
Universo não conhece essa compulsão mecânica.

A graça não corresponde matematicamente ao trabalho prestado, embora seja


necessário um certo trabalho prestado, para que a graça possa operar, uma
vez que o homem é um ser livre, e não um autômato passivo. Se eu não abrir o
interruptor elétrico, não virá a mim a luz ou força da usina, mas essa luz ou
força que vem não tem proporção alguma com o grau do esforço que emprego
para possibilitar essa vinda. A luz ou força pode ser milhares e milhões de
vezes maior do que o esforço que empreguei para chamá-las, porque o esforço
que faço em abrir o interruptor não é causa interna, mas simples condição
externa para o advento da corrente elétrica. A causa é a usina.

Deus é livre na distribuição dos seus dons, por mais que nós o queiramos
reduzir à escravidão dos nossos esquemas intelectuais.

Assim como Deus é livre no reino da flora e da fauna, dando a um organismo


deslumbramentos de forma, cor, perfume, agilidade, etc., e a outro organismo
apenas modesta gotinha desse exuberante oceano de dádivas, sem que haja
merecimento algum da parte deste ou daquele organismo –, da mesma forma
distribui ele também aos homens os dons da sua liberdade, assim como ele
quer para manter a infinita variedade de graduações do cosmo; não se prende
por nenhuma obrigação; Deus tem todos os direitos e não tem nenhuma
obrigação.

“Igualdade para todos” é o ideal de uma democracia humana – “desigualdade


em tudo” é o característico da cosmocracia de Deus. Deus nada faz por ser
justo, mas tudo que Deus faz é justo, pelo fato de ele o fazer. Deus não é servo
da justiça, mas senhor da justiça. É um erro funesto supor que o homem possa
merecer algo perante Deus; se assim fosse, o homem seria credor de Deus, e
Deus seria devedor do homem, o que é absurdo. Tudo que a creatura recebe
do Creador é presente, de graça, não é pagamento, tanto no plano da natureza
como na humanidade; a única diferença está no fato de o homem poder ser
condição desse presente de graça, e a natureza recebe automaticamente esse
presente; mas, em hipótese alguma, pode uma creatura, humana ou não, ser
causa de dons de Deus, que sempre são gratuitos. O homem nada pode
merecer de Deus, pode apenas crear em si uma condição favorável para
receber o presente da graça.

O dono da vinha não pagou a nenhum dos trabalhadores; todos receberam de


graça, ninguém mereceu nada, ninguém foi credor do dono, e o dono não foi
devedor de ninguém.

***

A razão principal por que esta parábola é, para nós, enigma está em uma falsa
perspectiva fundamental; admitimos tacitamente uma premissa visceralmente
errônea, e sobre ela construímos conclusões, que, naturalmente, não podem
deixar de ser errôneas também. Projetamos para dentro da ordem divina e
espiritual os nossos costumados conceitos humanos, jurídicos, sobre justiça,
direito e obrigação. Tratamos a Deus como se ele fosse um empregador, e nós
os seus empregados, com direito a certo salário. Entre empregador e
empregado vigora, certamente, uma relação jurídica de dar e receber, de
trabalho e pagamento; depois que o empregado prestou o seu serviço, o
empregador tem de lhe pagar esse serviço; é questão de justiça. O dinheiro
que o empregador paga ao empregado é o equivalente ao trabalho por este
prestado – e assim os dois estão quites.

É muita ingenuidade transferir esta relação para Deus. A noção jurídica vigora
no plano horizontal, de indivíduo a indivíduo, de finito a finito; mas não pode de
forma alguma ser transferida para o plano vertical. Supomos tacitamente que a
mesma relação que vigora de finito a finito, de homem a homem, deva vigorar
também entre finito e Infinito, entre o homem e Deus.

É intrinsecamente impossível que o homem finito possa “merecer” algo do


Deus Infinito. A desproporção é absoluta. A concepção jurídica do
“merecimento” vigora exclusivamente nas relações humanas. Tudo que o
homem recebe de Deus é invariavelmente “graça”, dom gratuito, e não
pagamento.

No plano finito do mérito vigora a relação de causa e efeito – mas no plano


divino não há causalidade, há tão-somente graça ou gratuidade. A lei de causa
e efeito supõe igualdade de nível, horizontalidade entre os dois interessados ou
contratantes, porque esta lei é derivada do mundo dos fenômenos materiais,
finitos, não tendo aplicação alguma no mundo espiritual, Infinito.

A única coisa que o homem pode e deve fazer em face de Deus e do mundo
espiritual é crear uma condição propícia, isto é, um ambiente, uma disposição
interna, uma atmosfera ou receptividade que possibilite o advento da graça;
mas essa condição externa nunca equivale a uma causa interna. O homem
pode, por assim dizer, abrir uma janela em sua alma, e a luz solar da graça
entrará por essa janela, mas isso não quer dizer que a janela tenha causado a
iluminação da sala; se lá fora não houvesse sol, nada adiantaria abrir a janela.
O abrimento da janela é apenas uma condição indispensável para que a luz
solar possa entrar na sala.

O conceito jurídico de merecimento, salário, pagamento, condiz com as nossas


ideias democráticas sobre “igualdade de direitos e deveres”; mas Deus não é
chefe duma democracia, e o seu mundo não é nada democrático, como
facilmente poderá verificar qualquer pessoa que abra os olhos. Deus é antes o
grande Hierarca do Universo, e o seu mundo – atômico e astronômico, humano
ou angélico – é uma grande Hierarquia Cósmica, onde nenhuma creatura tem
“direito” a coisa alguma, nem Deus tem “obrigação” de espécie alguma.

Uma linda rosa não tem o direito de ser bela, e Deus não tem obrigação
alguma de lhe dar essa beleza – tudo que ela tem é graça e nada mais. Se
assim não fosse, a humilde violeta seria cerceada nos seus direitos e Deus não
teria cumprido a sua obrigação para com ela; mas isso é ridículo, porque a
beleza modesta que a violeta tem também é graça, e nada mais.
“Quando tiverdes feito tudo que devíeis fazer, dizei: Somos servos inúteis,
fizemos o que tínhamos de fazer; nenhum prêmio merecemos por isso.”

Como é possível, à luz dessas palavras claríssimas do Mestre, falar ainda em


merecimento? Numa proporcionalidade entre o que o homem faz e o que Deus
lhe dá? Na realidade, aquilo que o homem faz com suas boas obras se acha
num plano ou numa dimensão completamente diferente daquilo que Deus lhe
dá. Praticamente, o homem opera com zeros, muitos zeros, de tamanhos e
cores vários, soma e multiplica esses zeros das suas obras humanas – e
depois, na sua profunda ignorância, espera que dessas operações com zeros,
repletos de absoluta vacuidade, resulte algum valor positivo. Como se o jogo
hábil com fatores negativos pudesse dar em resultado algum fator positivo!
Como se essa acrobacia com irrealidade pudesse causar alguma realidade!

Se no fim de todos esses malabarismos físico-mentais aparece algo de


positivo, não nasceu da vacuidade dos zeros, como a erudita ignorância do
homem profano supõe puerilmente; nasceu de algo que está para além dos
zeros das nossas obras – nasceu da plenitude de Deus. E a atividade dessa
plenitude se chama graça.

As nossas obras – a nossa presença na “vinha do senhor” – é todavia


necessária, não como causa interna do efeito, mas como condição externa do
mesmo, uma vez que somos seres conscientes e livres, e não simples
autômatos. Nos seres infra-humanos, a graça abrange também as condições
externas, porque essas creaturas nada contribuem de seu para que o efeito
apareça. Nos seres conscientes e livres, o homem condiciona e Deus causa o
efeito. Por isso, no mundo do infra-humano, tudo é maravilhosamente exato e
gracioso, porque é integralmente condicionado e causado pela graça, ao passo
que no mundo humano (graça) é de Deus, há sempre uma mescla de condição
humana e de causa divina. Quando, porém, a condição humana se adapta
integralmente à causa (graça) divina, oferecendo-lhe um canal ou veículo 100%
idôneo e puro, então aparecem na vida do homem maiores maravilhas de
perfeição e beleza do que em qualquer setor da natureza infra-humana.

O homem profano, habituado a considerar os muitos zeros da suas


quantidades físico-mentais como realidades, supõe tacitamente que o seu
mundo feito de pseudo-realidades seja a norma suprema da realidade do
mundo de Deus, e que Deus deva obedecer aos padrões que o homem
estabelece.

E, embalado nessa ilusão, o homem pergunta a Deus: será justo que os que
trabalharam doze horas não recebam mais do que os que trabalharam apenas
uma hora?

Como se perguntassem a Deus: será que doze zeros não valem muito mais
que um zero? Será que não percebes, Senhor, que o valor representado por
“000 000 000 000” é muito maior do que o valor representado por “0”? E, se
Deus não enxerga a diferença entre essas nulidades, o homem acha que Deus
é injusto! Tão grande é a ignorância do homem intelectualmente erudito – e
espiritualmente analfabeto!

Deveras? O homem meramente “intelectual não compreende as coisas que


são do espírito – até lhe parecem estultice – nem as pode compreender,
porque devem ser compreendidas espiritualmente”.

***

Na parábola, todos os servos estavam trabalhando na vinha; era a condição


indispensável para receberem o prêmio, mas não foi a causa. O denário que
receberam não foi o efeito da (suposta) causa do seu trabalho, e por isso os
primeiros que julgavam possuir uma causa maior (trabalho) e ter direito a um
efeito maior (salário), estavam em erro, confundindo a condição (trabalho) com
a causa (bondade do senhor). Nenhum deles foi pago, todos foram agraciados.
Por isso, os últimos não tinham o direito de se vangloriar do seu denário, nem
os primeiro tinham razão para se queixar do seu denário, porque nenhum deles
recebeu o prêmio do seu merecimento, todos receberam a graça do senhor em
diversas graduações. Essa graduação depende unicamente de Deus, e não do
homem.

Enquanto não abandonarmos as nossas tradicionais bitolas intelectualistas,


jamais compreenderemos a providência de Deus, que não está sujeita aos
nossos cálculos mentais. Os pensamentos de Deus não são os pensamentos
dos homens.

À luz da intuição espiritual, a parábola dos trabalhadores na vinha é


eminentemente justa e razoável.

Em suas magníficas epístolas aos Romanos e aos Gálatas, São Paulo trata,
por extenso, dessa grande verdade: da gratuidade dos dons de Deus.
“UM HOMEM PREPAROU UM GRANDE BANQUETE

E CONVIDOU MUITA GENTE.”

De todos os setores da vida humana tira o Mestre os seus símbolos materiais


para ilustrar o grande simbolizado espiritual, o mistério do reino de Deus – da
lavoura, da horticultura, da pomicultura, do ambiente doméstico, culinário; e
desta vez entra na zona da vida social do seu país. O reino dos céus é
semelhante a um homem rico que preparou um grande banquete para celebrar
as núpcias de seu filho. E, na hora do banquete, mandou os seus servos a fim
de chamarem os convidados para o festim. Estes, porém, começaram a alegar
pretextos vários para não comparecer.

Um dos convidados disse: “Comprei uma quinta, e preciso ir vê-la; rogo-te me


tenhas por escusado”.

Outro respondeu: “Comprei cinco juntas de bois, e preciso experimentá-los;


rogo-te me tenhas por escusado”.

Um terceiro replicou: “Casei-me, e por isso não posso ir”. Este nem sequer
pediu desculpas.

Os mensageiros relataram tudo isso a seu senhor. Ao que este lhes ordenou:
“Ide pelos povoados e aldeias e convidai todos os que encontrardes, cegos,
coxos, aleijados, para que se encha a minha casa.”

E assim se fez.

Mas nenhum daqueles que haviam sido convidados em primeiro lugar provou o
banquete.

Aí está um retrato fiel da humanidade de todos os tempos!

Todos são convidados para a grande solenidade, mas nem todos atendem ao
convite.

O banquete é o reino de Deus – o reino de Deus, porém, está dentro do


homem. É o “tesouro oculto”, é a “pérola preciosa”.

Muitos homens acham que têm coisa mais importante a fazer do que encontrar
a “parte boa” que Maria encontrara; andam por demais atarefados com a parte
de Marta. Conhecem muitos objetos, mas ignoram o seu próprio sujeito.
Realizam tudo – menos a si mesmos...
Longo e árduo é o caminho para esse misterioso Além de dentro... Sem conta
são os percalços que o homem-ego criou no caminho para o homem-Eu...

Todos os homens são convidados pelo Cristo interno – e, não raro, pelos
arautos do Cristo externo – para tomar parte na festa nupcial de sua alma, no
consórcio místico entre sua alma e o divino Esposo. Todos, seja qual for a sua
profissão ou condição social – lavradores, criadores de gado, homens e
mulheres, solteiros e casados, sábios e ignorantes –, porquanto “a luz ilumina a
todo homem que vem a este mundo”.

Muitos homens, porém, não querem escutar a voz silenciosa da sua própria
alma. Não conhecem o tesouro oculto e a pérola preciosa de seu próprio Eu
espiritual; só conhecem a ganga de seu ego físico-mental. A luz do Logos, é
verdade, ilumina a todos, mas somente aos que recebem em si essa luz é-lhes
dado o poder de se tornarem filhos de Deus. Não basta que a luz divina esteja
presente no homem, é necessário que também o homem se torne presente a
essa luz.

É tão difícil, no princípio, o homem atender a essa voz silenciosa de dentro,


porque os ruídos de fora abafam tudo com as suas brutalidades profanas. O
homem obsessionado pela violenta sedução dos objetos materiais – dinheiro,
possessões, prazeres, vanglórias, ambições – dificilmente encontra tempo para
atender ao discreto murmúrio de sua alma. As quantidades de fora são tão
conhecidas, e a qualidade de dentro é tão desconhecida...

E é fácil encontrar escusas para não comparecer ao banquete espiritual. Nunca


temos tempo para aquilo de que não gostamos – mas para aquilo de que
gostamos nunca falta tempo; e, se faltasse, íamos fabricá-lo. O tempo, a bem
dizer, não é algo que exista objetivamente; somos nós mesmos que o fazemos,
segundo as nossas predileções. O lúcifer da nossa inteligência é duma incrível
sagacidade; justifica habilmente todas as suas complacências; prova com
facilidade que o preto é branco, que o círculo é quadrado, que o não é idêntico
ao sim. Para tudo quanto a vontade quer, encontra a inteligência um sistema
científico ou filosófico que justifique as predileções da vontade.

O homem profano se impressiona muito mais com o que tem do que com o que
é, os seus teres – campos, animais, mulheres – lhe são visíveis; o seu ser lhe é
invisível.

***

Decepcionado com os homens do ter, convida o senhor os homens do não ter,


os pobres, os sofredores, os desprezados dos homens e os deserdados da
fortuna. E eis que estes atendem ao convite! Não estão presos aos pseudo-
valores externos, e têm o caminho aberto para compreender o valor interno.
Verdade é que o simples fato objetivo da pobreza ou doença não é suficiente
para a compreensão espiritual; mas não deixa, muitas vezes, de preparar o
caminho. O sofrimento cria no homem uma espécie de desconfiança nos
elementos físicos e mentais, uma vez que o sofrimento brota desses
elementos; e na razão direta em que decresce a confiança nos objetos de fora
e cresce a confiança na realidade de dentro. O sofrimento promove um
processo de libertação e desprendimento paulatino. O adorador da matéria
morta e cultor da carne viva encontra o seu céu nessas posses e nesses
gozos, ao passo que o homem destituído desses derivativos vai em busca de
uma felicidade para além desse mundo visível e tangível.

***

A cobiça das coisas materiais continua a ser o impedimento número um em


nosso caminho de auto-realização. Nenhum outro percalço mereceu tanta
atenção do divino Mestre como este. Sempre de novo previne ele seus
discípulos contra o perigo da escravização pelos objetos materiais: “Ninguém
pode servir a dois senhores, a Deus e às riquezas”.

Em tempos antigos, o único modo de alguém se libertar dessa escravidão era


desertar de vez do mundo, abandonar todas as suas posses. E, em muitos
casos, ainda hoje em dia é este o caminho que almas heroicas escolhem.

Há, todavia, outra modalidade de libertação. Consiste em que o homem,


embora continue legalmente como proprietário de seus bens, os faça reverter
em benefício e usufruto de seus semelhantes. Destarte, deixa ele de ser o
dono e proprietário, passando a ser simples administrador duma parte do
patrimônio de Deus em prol da humanidade.

O capitalismo extremo defende o direito da posse individual com usufruto


individual. O comunismo, por sua vez, apregoa a posse social com usufruto
social. Nesta forma extrema, nem o capitalismo nem o comunismo são
aceitáveis. Cada um dos dois tem uma verdade e um erro. A verdade do
capitalismo é o direito à posse individual – mas o seu grande erro é o usufruto
individual. O comunismo proclama a grande verdade do usufruto social, e
comete o erro de proibir a posse individual. Se evitarmos os dois erros, o do
capitalismo e o do comunismo, e ficarmos com as duas verdades, que cada um
deles contém, teremos uma forma de socialismo cristão, baseado na ideia da
posse individual com usufruto social. O grande mal não está, realmente, no
direito à posse individual; o mal está em que o possuidor individual queira
gozar, ele só, ou ele com seu pequeno grupo, todos os seus bens, sem se
importar com os sofrimentos do resto da humanidade.

Enquanto o homem não se convencer de que ele é apenas administrador do


patrimônio de Deus em prol da humanidade, não haverá solução para o
doloroso problema social. Mas essa convicção nasce de uma grande
compreensão da verdade sobre si mesmo.
Quando o homem ultrapassa o seu pequeno ego e descobre o seu grande EU,
perde a noção estreita do que é dele.

A morte do falso eu e sua ressurreição no grande nós produz necessariamente


a morte do pequeno meu e o ressurgimento do grande nosso.

Quando o eu desemboca no nós, o arroio do meu deságua no oceano do


nosso.

É este o “comunismo cristão” do amor espontâneo., bem diferente do


comunismo político da lei compulsória...
“SE ALGUM DENTRE VÓS QUISER SER GRANDE,

SEJA O SERVIDOR DE TODOS.”

Ser grande! Quem não desejaria ter uma vida cheia de verdadeira grandeza e
felicidade? Quem não desejaria ter abundância de tudo que faz a vida próspera
e digna de ser vivida? Próspero na saúde, no conhecimento, no poder, na
propriedade, no amor, na alegria?

Pois tudo é possível a qualquer pessoa, ao homem e à mulher, ao pobre e ao


rico, ao sábio e ao ignorante, ao poderoso e ao humilde – todos podem ser
grandes.

Essa verdadeira grandeza e felicidade não dependem de circunstâncias


externas; não pode ser frustrada pelas adversidades da natureza nem pela
perversidade dos homens – depende, em última análise, de cada um de nós.

Quem o disse foi o único homem realmente grande e completamente feliz. E


quando um homem desses fala, fala por experiência própria. E esse homem
disse: “Se algum de vós quiser ser grande, seja o servidor de todos.”

Se a grandeza dependesse de dominar, seria acessível a poucos, porque


poucos podem dominar; mas, como depende do servir espontaneamente,
todos podem alcançar essa grandeza, porque não existe um único homem
sobre a face da Terra que não possa servir; por toda a parte há abundante
oportunidade para servir. E, no entanto, são poucos os homens realmente
grandes, porque a maior parte não compreendeu ainda que a grandeza está
em servir espontânea e jubilosamente. A imensa maioria faz depender a
grandeza e felicidade de algo que não depende deles, como, por exemplo, o
dominar. Querer servir depende inteiramente de mim, e de mais ninguém; por
isso, a verdadeira grandeza está nas minhas mãos, se eu quiser.

Mas é precisamente aqui que está a dificuldade capital, o impedimento


aparentemente insuperável: o homem comum não acredita que a grandeza
possa consistir em querer servir, sem esperar nenhuma retribuição. O homem
profano e inexperiente acha que isso é apenas um belo idealismo para uns
poucos sonhadores não-práticos, mas que para o grosso da humanidade, para
o homem prático e dinâmico, não é esse o caminho da verdadeira grandeza e
felicidade, porque servir parece ser fraqueza e inferioridade, ao passo que
dominar e ser servido revela força e superioridade. Pois não nos ensina a
experiência de cada dia que os que servem são os ignorantes, os analfabetos,
os deserdados da fortuna, os ineficientes, os derrotados da vida?

Aparentemente, a objeção procede, porque o que vemos cada dia é que os que
servem são, em geral, os homens menos evolvidos e adiantados.

Entretanto, convém não confundir os que servem compulsoriamente com os


que servem espontaneamente. Muitos de fato são servidores pela ignorância
natural, pela adversidade da natureza ou pela perversidade dos homens. Não
são estes os bem-aventurados, embora também eles possam ser felizes, se
compreendem a sua humilde condição e a aceitam livremente.

Na verdade, porém, temos de entender pelos homens realmente grandes e


felizes aqueles que, podendo dominar, preferem servir, porque esse serviço
voluntário não é senão a expressão externa da sua grandeza e superioridade
interna.

Mas, como convencer o inexperiente de que as palavras do divino Mestre


representam verdade absoluta?

Na realidade, ninguém pode saber algo sem o ter experimentado e vivido em si


mesmo. Mas como são pouquíssimos os que viveram intimamente a grandeza
que há no serviço voluntário – que “há mais felicidade em dar do que receber”,
– por isso são poucos os homens que procuram a felicidade no servir a seus
semelhantes. Para a imensa maioria, a felicidade consiste em serem servidos,
isto é, no seu egoísmo. Os que pelo menos creem na grandeza do servir estão
a caminho da felicidade, embora não a tenham ainda alcançado.

No momento, porém, em que o homem transpõe essa misteriosa fronteira da


experiência pessoal, do querer ser servido para o querer servir, está
solucionando o problema central da sua vida.

Todo homem que se esquece da sua felicidade pessoal a fim de tornar felizes
os outros se torna verdadeiramente feliz.

Como se explica este fato?

A Constituição Cósmica, ou seja, a Providência de Deus, está baseada na ideia


da solidariedade universal. No vasto cenário do mundo, todas as partes
procuram integrar-se num Todo maior – e nesta integração das partes no Todo
é que elas encontram a sua realização e felicidade.

Essa integração parece, a princípio, uma renúncia à própria felicidade, e é por


isso que poucos realizam essa integração ou solidariedade. Mas depois de
realizada e a integração pelo amor ou solidariedade universal, a felicidade vem
infalivelmente aos que só procuram a felicidade dos outros.

Querer servir – é esse o segredo da força, grandeza e felicidade.


“TUDO QUE FIZESTES AO MENOR DE MEUS IRMÃOS

A MIM É QUE O FIZESTES.”

O final do capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus é um dos


documentos mais grandiosamente trágicos dos livros sacros do Novo
Testamento. Nele refere o Cristo que, quando ele vier em sua majestade, em
companhia de todos os seus anjos, sentar-se-á no trono da sua glória e reunirá
diante de si todos os povos. Colocará à sua direita os bons, e à sua esquerda
os maus. E dirá aos bons: “Vinde benditos de meu Pai, possuí o reino que vos
está preparado desde o princípio, porque eu estava com fome, e me destes de
comer; estava com sede, e me destes de beber; andava estranho, e me
acolhestes; estava nu, e me vestistes; estava doente, e me visitastes; estava
preso, e me viestes ver.

E perguntarão os da direita: Quando foi, Senhor, que te vimos com forme, com
sede, estranho, nu, doente ou preso e te acudimos?

Responder-lhes-á o Filho do homem: Em verdade, vos digo, tudo que fizestes


ao menor de meus irmãos, a mim é que o fizestes!

Em seguida dirá aos que estiverem à esquerda: Apartai-vos de mim, malditos,


para o fogo eterno, porque eu estava com fome, e não me destes de comer;
estava com sede, e não me destes de beber; andava estranho, e não me
acolhestes; estava nu, e não me vestistes; estava doente, e não me visitastes;
estava preso, e não me viestes ver.

Perguntarão também eles: Quando foi, Senhor, que te vimos com fome, com
sede, estranho, nu, doente ou preso, e não te acudimos?

E ele lhes dirá: Em verdade, vos digo, tudo que deixastes de fazer a um desses
mais pequeninos, a mim é que deixastes de fazer.

E irão estes para a morte eterna – os justos, porém, para a vida eterna.”

Aqui está a Carta Magna da verdade fundamental da nossa vida: Não podemos
realizar dentro de nós o Cristo se não lhe servirmos na pessoa de nossos
semelhantes. O Cristo interno não ressuscita em nós se não ajudarmos o
Cristo externo nos outros – é essa a grande lei da polaridade cósmica! Os bons
samaritanos, os Cireneus, as Verônicas, os Francisco de Assis, os Gandhi, os
Schweitzer, etc., encontrando o Cristo nos outros, encontram-no dentro de si
mesmos; se recusarem a vê-lo nos indigentes e nos doentes, nos cegos, nos
surdos, nos mudos, nos leprosos, nunca o verão em sua glória. Ninguém pode
ver o Cristo glorioso no Pai quem não o viu chagado em seus irmãos, no
“menor de seus irmãos”.

Essa grandiosa passagem do Evangelho costuma ser interpretada, geralmente,


como um dos documentos máximos da caridade. Entretanto, essas palavras
encerram muito mais do que uma dramática recomendação da caridade para
com os necessitados de corpo e alma. É um dos grandes documentos da
cristificação ou auto-realização do homem. Querem os curiosos saber quais
sejam as técnicas idôneas para produzir a auto-realização – aqui temos, em
termos lapidares, a mais completa técnica: ninguém realiza o Cristo dentro de
si se o não encontrar e abraçar nos outros, fora de si!

Há quem faça caridade a seus semelhantes por simples motivo de simpatia


emocional, porque lhe repugna ver sofrer algum ser vivo. Essa filantropia é,
certamente, recomendável – mas não é cristificação.

Outros acham que é inútil ocuparmo-nos com as misérias alheias, uma vez
que, via de regra, o sofrimento humano é sofrimento-débito, cada um sofre as
consequências dos seus erros cometidos, nesta ou em existências anteriores,
e é justo que ele pague os seus débitos, que se liberte do seu “carma
negativo”; se o não fizer agora, terá de o fazer mais tarde.

Nem esta nem aquela atitude fazem pleno jus à passagem em apreço. O
principal da caridade não é socorrer ao sofredor, ao necessitado, ao doente.
Deus poderia, num só instante, acabar com todas as misérias e sofrimentos da
humanidade, mesmo sem a nossa intervenção. Por que não o faz? E, se ele
não o faz, por que devemos nós fazê-lo?

Mas é que existe, para além de todas as caridades éticas, um grande mistério
metafísico e místico...

O principal beneficiado da nossa caridade não é aquele que recebe, mas sim
aquele que dá o benefício – “Há mais felicidade em dar do que em receber”. O
sujeito ou autor do benefício é mil vezes mais favorecido do que o objeto ou
beneficiado. Deus pode fazer o bem que eu faço – mas Deus não pode ser
bom em meu lugar. Muito mais importante do que fazer o bem é ser bom. O
beneficiado recebe o bem que eu faço – mas o benfeitor se torna bom pelo
bem que ele faz; logo, o principal beneficiado é o benfeitor; antes de realizar
qualquer bem no outro, ele o realiza em si mesmo, pelo fato de ser bom; pelo
fato de realizar nos outros os dons de Deus, esse homem realiza em si mesmo
o próprio Deus...

O veículo manifestativo do amor é a caridade. Pode haver caridade sem amor,


mas não pode haver amor sem caridade. Pelo fato de eu fazer caridade a
alguém, desperto em mim o amor, que estava dormente, ou semidormente. E,
como toda a potência cresce com sua atualização, o meu amor cresce com a
minha caridade.

E, para preservar a minha caridade de qualquer laivo de egoísmo,


autocomplacência, vanglória, sentimentalismo doentio, ou outro elemento
negativo, deve a minha caridade, segundo as palavras do Mestre, ser feita “ao
menor de seus irmãos”, isto é, aos mais imperfeitos e menos atraentes de
meus semelhantes. Fazer caridade a uma criança simpática, a uma creatura
bem formada, bela, amável e grata, é relativamente fácil; adotar uma criança
sadia e bem educada pode ser até um ato de secreto egoísmo, mas querer
bem e fazer bem a um mendigo esfarrapado, a alguma ruína humana sem
esperança, a uma creatura humana feia e repelente, isso exige a morte de toda
e qualquer espécie de egoísmo. São esses os “menores” dentre os irmãos do
Cristo – e é aqui que está o caminho mais seguro e curto para a cristificação.

Quando Francisco de Assis beijou as chagas fétidas daquele leproso, escolheu


o último e ínfimo dos irmãos de Jesus – e nesse momento supremo realizou ele
em si o nascimento do Cristo, rompeu a muralha de granito que o separava da
sua verdadeira auto-realização; sobre as ruínas do ego humano exultou o Eu
divino.

Pode ser que os pobres e doentes não necessitem de mim – mas eu necessito
deles. Pode ser que eu não os “realize”, que não lhes dê saúde e bem-estar –
mas é certo que eu me realizo e conquisto grande saúde e bem-estar
espirituais.

Pode ser que nenhuma dessas ruínas humanas aproveite com os meus
benefícios, que todos continuem pobres, doentes, ingratos – mas isso não é da
minha conta. Um homem, pelo menos, aproveitou da minha desinteressada
caridade – e esse homem sou eu mesmo.

Será que o Sol escolhe meticulosamente os terrenos férteis para irradiar a


abundância da sua luz e do seu calor benéfico? Não é verdade que a maior
parte dos seus benefícios solares cai nos oceanos ou nos desertos, onde não
brotam plantas? E os raios que não atingem a nossa Terra nem outro planeta
em condições de produzir vida! Dizem os cientistas que a temperatura
intersideral dos espaços cósmicos é de 273 graus abaixo de zero – o “frio
absoluto” –; entretanto, há milhões e bilhões de anos que o Sol derrama a
abundância da luz e do seu calor para dentro desses desertos, onde nenhuma
plantinha responde a seus constantes benefícios.

Tenho de servir ao Cristo nos outros para que o Cristo possa acordar em mim –
só isso depende de mim, o resto fica para além do meu alcance...

Em servindo a alguma creatura simpática corro sempre o perigo de servir,


secretamente, ao meu próprio Lúcifer, em vez de servir ao Cristo;
possivelmente, faço cálculos de secreto egoísmo sobre o modo como o meu
beneficiado venha a ser um dia o meu benfeitor, ou, pelo menos, se encha de
reconhecimento e gratidão por mim – tamanha é a perversidade do nosso
egoísmo camuflado em altruísmo! Para evitar a possibilidade de futuras
decepções e ingratidões, muitas damas aristocráticas preferem adotar
cachorrinhos a crianças, porque o ser humano pode, um dia, vir a ser ingrato
ou consagrar o seu principal amor a outra pessoa, o que seria doloroso para o
secreto egoísmo da sua sentimental benfeitora. O animal, porém, não é ingrato
nem infiel.

Albert Schweitzer resolveu dedicar a sua vida ao serviço direto e imediato da


parte mais infeliz da humanidade, para que ninguém lho pudesse retribuir, nem
sequer avaliar a grandeza do seu sacrifício; assim não havia perigo de que
agisse em virtude de algum perverso e bem disfarçado egoísmo; assim não
havia nenhum perigo de reconhecimento, de aplausos ou gratidão da parte de
seus beneficiados. Enquanto o homem conserva um resquício de espírito
interesseiro e mercenário, não realizou o Cristo dentro de si; serve ao Satanás
em si, julgando ser o Cristo. Prestar benefícios à humanidade a fim de ver e
ouvir o seu nome nos jornais, nas emissoras, na televisão, ou saborear os
louvores do alto dos púlpitos, dos lábios dos amigos, ou fulgurar numa placa de
mármore ou bronze à entrada de algum templo, figurar em algum “livro de ouro”
como exímio benfeitor desta ou daquela obra filantrópica – tudo isso é egoísmo
disfarçado em altruísmo, e tanto mais perverso quanto mais camuflado de
virtude.

Não há nada que tão seguramente preserve de contágios mórbidos a saúde da


nossa alma como esse contato direto com as misérias humanas. Quem tem de
suportar diariamente as costumadas brutalidades da sociedade, as ingratidões
dos seus beneficiados, dificilmente correrá perigo de cair vítima de orgulhosa
autocomplacência ou misticismo doentio. As durezas duma ética sincera e
desinteressada são um profilático infalível contra as bactérias do misticismo
sentimental.
“A VÓS VOS É DADO CONHECER OS MISTÉRIOS

DO REINO DOS CÉUS.”

Quem vê nos ensinamentos de Jesus uma religião democrática, apenas


exotérica, acessível a qualquer profano, está profundamente enganado. Não há
nada mais hierárquico e esotérico do que o Evangelho de Jesus Cristo, em
certos pontos. Verdade é que “muitos são os chamados”, os exotéricos, mas
também é verdade que “poucos são os escolhidos”, os esotéricos. Uma grande
massa anda na horizontal da ética, uma pequena elite ascende às alturas
verticais da mística. Aliás, o próprio termo ekklesía (em latim ecclesia, em
português igreja) é um vocábulo eminentemente místico-esotérico, porque é
derivado de ek (fora) e kaléo (chamar). A ekklesía consta daqueles que foram
“chamados para fora”, evocados da grande massa dos “chamados” para dentro
da pequena elite dos “escolhidos”. Também os “chamados” são candidatos à
ekklesía, como aquelas dez virgens da parábola, mas só os “escolhidos” é que
estão, de fato, no coração da ekklesía, como aquelas cinco virgens sábias que
estavam com as suas lâmpadas acesas em plena noite.

“A vós vos é dado conhecer os mistérios do reino dos céus – diz Jesus ao
pequeno grupo de seus apóstolos – enquanto ao povo só lhe falo em parábolas
de maneira que, ouvindo, não compreendem.”

Todas as grandes religiões têm esses dois grupos, não em virtude de uma
divisão arbitrária, mas em consequência dos variados graus de evolução
espiritual que existem, inevitavelmente, no seio da humanidade. Paulo de
Tarso escreve aos cristãos de Corinto que a alguns deles só lhes deu leite para
beber, por serem ainda “infantes em Cristo”, ao passo que aos “adultos em
Cristo” lhes deu comida sólida para comer.

O mundo físico é essencialmente hierárquico, e nada democrático. Há seres


em todos os graus de perfeição. O Universo é uma imensa graduação de
potencialidades. A sua unidade é máxima, porque a Causa infinita de todas as
coisas é uma só – e sua variedade também é máxima, porque os efeitos finitos
dessa Causa Infinita são todos originais e inéditos. Deus não faz cópias, não
repete nenhuma das suas obras; todas elas são originais absolutos.

Há quem veja “injustiça” da parte do grande Hierarca. Partem duma falsa


premissa, o erro de que alguma creatura tenha “direitos” em face do Creador.
Esse direito não existe, nem no mundo material nem no mundo espiritual, como
já foi lembrado. Será que um violeta unicolor, à sombra duma árvore, se sente
humilhada e tratada com injustiça, porque no alto da árvore floresce uma
orquídea dotada de deslumbrantes cores e formas, e será que a orquídea se
enche de vaidade em face de suas perfeições?

Nem a violeta se sente humilhada nem a orquídea se sente orgulhosa, porque


nem esta nem aquela têm o direito de ser o que são; ambas sabem – lá na sua
misteriosa consciência biológica – que tudo que ela têm é graça, tanto o pouco
como o muito; nada é merecimento, porque nenhum finito pode merecer algo
em face do Infinito. Deus distribui os seus dons como ele quer, de graça, e
cada creatura deve atualizar plenamente aquilo que está contido em suas
potencialidades. Não há nada objetivamente pequeno ou grande – o pequeno e
o grande são feitos subjetivamente. Um varredor de ruas que realiza com 100%
de pureza e perfeição a sua tarefa presta coisa muito maior do que o chefe de
um povo que realiza a sua deslumbrante tarefa de estadista com apenas 10%
de pureza e perfeição. Tudo consiste em fazer grandemente todas as coisas,
pequenas e grandes. Objetivamente, todas as coisas são neutras, nem
pequenas nem grandes, nem boas nem más; quem lhes dá forma, e colorido,
grandeza ou pequenez, bondade ou maldade, é o homem que as realiza, deste
ou daquele modo.

A natureza infra-humana, inconsciente e não livre, só pode executar a sua


tarefa de um único modo, aquele que lhe foi designado pelo espírito de Deus,
que lhe infundiu esta ou aquela potencialidade (instinto). O homem pode variar
a medida, graças à sua consciente liberdade; mas a grandeza vem sempre do
sujeito livre e ativo, e não do objeto passivo e não livre.

***

Se a um servidor foram dados dez talentos, a outro cinco, e a outro apenas um,
não vai nessa distribuição injustiça alguma, como já dissemos, porque nenhum
dos três tinha direito ao que recebeu, todos receberam de graça os seus
talentos. Mas o modo de fazerem frutificar ou de esterilizarem os seus talentos,
isso depende da consciente liberdade de cada um.

“Muito será exigido a quem muito foi dado – e pouco será exigido a quem
pouco foi dado.” Essa rigorosa equivalência entre o que “foi dado” e o que “será
exigido” revela uma lei cósmica, não menos gloriosa do que perigosa. Um ser
livre dotado de grandes potencialidades – digamos 50 – tem dez vezes mais
reponsabilidade do que outro cuja potencialidade máxima representa apenas 5.
Com o valor da doação, cresce, proporcionalmente, a obrigação da frutificação.
Quanto maior a potencialidade, tanto maior tem de ser também a sua
atualização – sob pena de o homem perder a própria potencialidade deixada
infrutífera.
De maneira que os “escolhidos” para “conhecerem os mistérios do reino dos
céus” são onerados duma responsabilidade espiritual muito maior do que os
que foram “chamados” para ouvir as grandes verdades apenas em parábolas.

Quem se envaidece pelo fato de ser um dos “escolhidos”, mostraria com isso
mesmo que não é realmente escolhido, porque ninguém se pode envaidecer de
algo que não é dele, mas de Deus; os dons espirituais, porém, não vêm do ego
humano, mas sim do Eu divino.

Compete ao homem intensificar a sua receptividade espiritual para poder


“conhecer os mistérios do reino dos céus”; mas essa receptividade, por mais
apurada, nunca pode ser causa intrínseca desse conhecimento, senão apenas
condição extrínseca. A verdadeira causa é sempre Deus, e por isso a graça é e
será sempre um dom gratuito de Deus, e nunca um merecimento humano –
assim como a iluminação duma sala com luz solar não é efeito do abrimento
duma janela fechada – que funciona apenas como condição – mas sim da
atividade do Sol.

“A vós vos é dado...”

Se é “dado” por Deus, não é merecido pelo homem.


“AI DE QUEM INCENTIVAR AO PECADO

A UM DESSES PEQUENINOS.”

É com essas palavras que remata a conhecida cena de Jesus abençoando as


crianças, cena geralmente explorada apenas para mostrar o amor que o
Nazareno tinha para com essas almas inocentes.

Entretanto, abrem-se, por detrás dessas palavras, abismos imensos, um


verdadeiro universo de mistérios, que os nossos teólogos e exegetas deixam,
em geral, sem comentários.

Afirma Jesus que aquelas crianças “têm fé nele” e que, por isso, é tão grave
dar-lhes incentivo para pecado.

Mas como? Algumas dessas crianças tinham fé em Jesus? De que modo, se


nenhuma delas o conhecia? Se, para elas, o Nazareno era um simples rabi,
como tantos outros? Que quer Jesus dizer com esse “ter fé nele”?

Evidentemente, esse “ter fé” não é um ato de fé consciente, explícito, mas sim
uma atitude de fé, implícita. Esse “ter fé” é um estado da alma desses
pequeninos, isto é, um estado crístico, é aquilo que, mais tarde, o escritor
cristão de Cartago, Tertuliano, vazou nas conhecidas palavras sobre a “anima
naturaliter christiana”, a alma humana é crística por sua própria natureza. Se
aquelas crianças hebreias possuíam uma atitude crística, em virtude da sua
própria natureza humana, será que se achavam em estado de pecado original,
como afirmam os teólogos das igrejas cristãs? De que modo se coadunava
esse fides, essa atitude crística da alma, com o estado de pecado em que elas
teriam sido concebidas? Nenhuma dessas crianças era “batizada”; os meninos
eram circuncidados, mas a circuncisão não tirava o pecado original. E as
meninas, para as quais não existia circuncisão? É evidente que todas essas
crianças, que “creem em Jesus”, se achavam no estado em que foram
concebidas e nascidas. Se eram pecadoras por natureza e herança, como é
que se achavam em estado crístico? E se os adultos são prevenidos para não
lhes darem incentivo ao pecado (skándalon, em grego, isto é, “motivo de
tropeço”), não faz isso supor que esses pequenos estavam ainda em estado de
perfeita pureza, sem pecado?

***

Termina Jesus a sua cominação com as misteriosas palavras: “Porque os seus


anjos contemplam, sem cessar, a face de meu Pai que está nos céus”.
Que anjos são esses?

É universal na humanidade a crença em “anjos tutelares”, como também em


“anjos tentadores”. Também a Bíblia, quer no Antigo quer no Novo Testamento,
admite a existência dessas entidades invisíveis.

O vocábulo grego ángelos (em latim angelus, em português anjo) quer dizer
literalmente “mensageiro”, “arauto”, designando entidade consciente e livre, de
corpo invisível, que executa a vontade de Deus em diversos planos do cosmos;
no caso em que contrarie a vontade de Deus, é o chamado “adversário” (em
grego diábolos, em latim diábolus, em hebraico satan, em português, diabo).
Se cumpre a vontade de Deus é anjo.

Há, pois, entidades invisíveis que acompanham os homens, influenciando-os


para o bem ou para o mal, procurando harmonizar ou desarmonizar-lhes as
vibrações. Essas entidades são como “auras” ou “sopros” que nos afetam,
positiva ou negativamente, consoante a nossa receptividade pessoal.

Sendo que a essência íntima de todas as coisas é divina, e, portanto, a alma


humana essencialmente divina, ou crística, existe na criança um fundamento
positivo, bom, divino, mas essa atitude se acha em estado meramente
potencial, como que dormente e embrionário. Em virtude dessa potencialidade
latente é a alma da criança como que neutra, incolor, carta branca, podendo
receber de fora influências tanto positivas como negativas; a alma infantil se
acha, por assim dizer, num equilíbrio lábio, neutro, podendo ser facilmente
imantada, positiva ou negativamente, desviando a agulha magnética para a
direita ou para a esquerda, conforme as influências do ambiente.

“Incentivar ao pecado” (skándalon) não supõe, necessariamente, palavras ou


atos de pessoas presentes; pode ser feito também pela simples presença e
atitude interna de pessoas internamente desarmonizadas; pode uma pessoa,
quando em estado anticrístico, incentivar ao pecado uma alma infantil, ainda
crística, ao ponto de lhe dificultar essa atitude de “fé”, essa atitude de fidelidade
ao seu Cristo interno. Seria uma espécie de envenenamento anticrístico por
“indução” ou simples presença.

Esses emissários angélicos da Divindade que protegem as almas humanas,


crísticas por sua natureza, se voltariam contra o homem que, temerariamente,
descristificasse esse ambiente propício atraindo sobre ele as sanções inerentes
à violação da sacralidade da alma.
“SAIU DE MIM UMA FORÇA.”

Uma mulher que, havia longos anos, sofria dum fluxo de sangue incurável, toca
de leve numa das borlas do manto do Nazareno, e sente o corpo penetrado de
força e saúde, como se entrara em contato com uma bateria elétrica.

Jesus pára, olha em derredor e insiste em saber quem foi que o tocou. Os
discípulos, estranhando esse gesto, fazem ver ao mestre que todo o povo ao
redor dele o está empurrando. Ele, porém, insiste no fato de ter sido tocado por
alguém, não de um modo geral e fortuito, mas com uma intenção particular,
que dele “saiu uma força”.

Finalmente, a mulher, toda trêmula, confessa o seu “delito”, e o Nazareno,


tranquilo e benévolo, a despede de perfeita saúde.

A hemorroíssa não tocara diretamente no corpo de Jesus, senão apenas numa


das borlas do seu manto – e esse ligeiro contato a libertara da sua moléstia.
Não o contato puramente material e objetivo, mas sim um determinado contato
subjetivo, a que Jesus chama “fé”. “Vai-te em paz, que a tua fé te curou.” O
fator específico da cura não fora, pois, o contato como tal, mas um contato
determinado pela fé.

Para que resulte efeito, requer-se um doador de forças e um receptor idôneo


dessas forças. Para que o receptor possa receber o dom da cura deve ele
tornar-se receptivo; do grau dessa receptividade depende o grau do efeito
curativo.

Quando a corrente elétrica toca em certos objetos, como vidro, porcelana ou


borracha, nada acontece; não sai nenhuma força da corrente nem entra força
alguma nesses materiais, porque elas não possuem condutibilidade elétrica.

Mas quando a corrente elétrica toca num metal, em água ou outras substâncias
dotadas de condutibilidade, a força entra nessas substâncias.

A receptividade deve consistir numa espécie de afinidade de elementos, ou de


complementaridade entre o doador e o receptor.

No mundo espiritual, essa afinidade receptiva se chama “fé”.

O efeito depende, pois, de dois fatores: 1) da presença de um doador; 2) da


presença de um receptor idôneo.
Mas, sendo Deus espírito e, como tal, onipresente, não falta jamais um doador
de forças. O problema se reduz à idoneidade ou não idoneidade do receptor.

Crer, ter fé, é criar idoneidade em face do mundo divino. E é difícil ao homem
profano a criação dessa idoneidade receptiva, porque a inteligência do ego
personal aceita somente causas que ela possa provar analiticamente, e a
causa divina não é objeto de provas científicas.

Pela fé, o homem ultrapassa as fronteiras do intelecto analítico e ingressa na


zona duma visão espiritual.

A inteligência exige o aguçamento da ciência – a razão espiritual é uma


expansão ou um aprofundamento da consciência.

A inteligência produz ciência – a razão responde com o eco da consciência à


voz de Deus.

***

Entretanto, além do divino doador e do humano receptor de forças, há um


terceiro fator a considerar – e é precisamente esse o mais misterioso e
incompreensível. Não basta, em geral, a simples e universal presença da força
divina para que o receptor humano a possa captar. Em alguns casos, é
verdade, o homem capta diretamente de Deus essa força; mas nem sempre.
Geralmente, acha-se essa força divina individualizada em um ser humano que
dessa força divina possua altíssimo grau – e então os outros homens, de
receptividade inferior, recebem a força divina através desse intermediário.

No caso presente, serviu o Cristo – o divino Verbo feito carne humana – como
intermediário entre Deus e a hemorroíssa; era ele uma espécie de canal ou
catalisador que veiculou a plenitude de Deus para dentro da vacuidade
humana.

Posso expor ao Sol uma acha de lenha seca, mas ela não será incendiada. Se,
porém, aproximar da lenha seca uma chama de fogo, dar-se-á a ignição do
combustível. Por quê? Porque a chama é fogo solar em forma individualizada,
e funciona aqui como uma espécie de mediadora entre a lenha e o Sol. Da
mesma forma, se expuser à luz solar uma lente e fizer sobre ela incidir o calor
do Sol, o fogo solar, antes difuso e fraco, se condensa num só ponto, e este
ponto focal transmitirá ao combustível a força solar condensada e intensificada.

O Cristo atua como a luz e o calor solar através da lente condensadora da


nossa fé. O que a luz universal da Divindade como tal não realiza no homem,
realiza-o a luz individualizada no Verbo que se fez carne.
Em última análise, tudo depende do maior ou menor grau de idoneidade do
recipiente humano, porquanto “o recebido está no recipiente segundo a
capacidade do recipiente”.
“NÃO LANCEIS AS VOSSAS PÉROLAS

AOS PORCOS!”

É experiência e doutrina de todos os mestres espirituais da humanidade que as


grandes revelações ou inspirações que Deus faz a certos homens devam ser
conservadas em segredo, para que não desmereçam. São como essências
preciosas, que, quando em recipiente aberto, se volatilizam rapidamente.

“Não deis as coisas sacras aos cães, nem lanceis as vossas pérolas aos
porcos!”...

Na origem de toda vida nova, entre os homens, colocou a natureza o instinto


do pudor. O animal nada sabe de pudor; pratica os atos sexuais na mais ampla
publicidade. Também a criança, antes do despertar do intelecto, ignora o que
seja pudor; desnuda-se com toda a sem-cerimônia diante de outros. Só o
homem adulto e normal tem consciência do pudor e procura cercar de segredo
e reverência a origem da vida e os órgãos relacionados com esse ato. O senso
do pudor é uma sentinela que a natureza colocou à entrada do santuário da
vida.

A vida corporal é algo sagrado, divino.

A vida espiritual é mais sagrada e divina ainda, e por isso deve estar envolta
também em mistério, sobretudo a sua origem, ainda frágil e delicada. O
encontro da alma humana com Deus é uma espécie de núpcias, como
testificam todos os livros sacros da humanidade; a alma “concebe” uma prole
pela virtude do Altíssimo, fecundada pelo Verbo de Deus. E essas núpcias
divino-humanas devem ficar envoltas em mistério e cercadas de pudor. Aqui, a
publicidade ou prostituição seria muito mais deletéria ainda do que no plano da
profanação dos corpos. Tão grande é a sacralidade da vida espiritual que até a
menor profanação equivale a um sacrilégio.

Por isso previne Jesus os seus discípulos para que não deem as coisas sacras
aos cães, nem lancem as suas pérolas aos porcos, “para que estes não lhes
metam as patas e, voltando-se contra vós, vos dilacerem”.

Quando o homem espiritual revela, indiscriminadamente, aos profanos e


imaturos as pérolas da sua experiência com Deus, que acontece? Os profanos
não compreendem tão profundo mistério, porque não possuem ainda órgão de
percepção desenvolvida, e, pior do que isto não raros compreendem às
avessas as coisas sagradas, e, em vez de as acatar, delas escarnecem e as
têm em conta de ilusão e de anormalidade. Para o profano, o iniciado é um
doente, um louco, um anormal.

Quando lançamos um punhado de pérolas preciosas a um porco, este,


cuidando receber uma espiga de milho ou de batata, avança sôfrego e mete-
lhes as patas para as comer; mas logo depois, verificando o engano, se
enfurece e, revoltado com o ludíbrio, investe contra quem lhe deu apenas
pérolas indigestas, em vez de umas batatas suculentas.

Que valor tem para o profano uma hora de meditação espiritual, ou uns
momentos de fervoroso colóquio com Deus? Que valor dá ele ao conhecimento
de si mesmo, ao estudo do livros sacros ou à intuição mística da Suprema
Realidade? Essas pérolas são para ele coisas insípidas, fastidiosas, indigestas
– se ao menos fosse um punhado de notas de banco, uma noitada de orgias
sexuais ou a eleição para um rendoso cargo público!... Essas coisas, sim, têm
valor para ele, porque satisfazem a fome do seu ego humano, ao passo que
aquelas outras que se referem aos anseios do Eu divino são, para o profano,
insípidas e absurdas. É que cada um pensa e age consoante a medida do seu
conhecimento ou da sua ignorância...

Por isso, o mestre espiritual sensato não revela indistintamente aos outros o
que Deus lhe revelou. Mede cuidadosamente a capacidade de cada um... Sabe
quais são os avançados, e quais os atrasados, os esotéricos e os exotéricos.
Fala, muitas vezes, em parábolas e alegorias, para que cada um interprete os
símbolos materiais segundo a sua capacidade evolutiva e perceba do
simbolizado espiritual precisamente aquilo que corresponde ao estado atual da
sua evolução. “Àqueles dentre vós que ainda são infantes em Cristo – escreve
São Paulo aos coríntios – dei-lhes leite para beber; mas aos que são adultos
em Cristo dei-lhes comida sólida.”

“O mestre versado nas coisas do reino de Deus – diz Jesus – tira do tesouro do
seu coração coisas velhas e coisas novas.” Muitos sabem assimilar as “coisas
velhas” da tradição secular, sabem andar com segurança nos caminhos batidos
do passado, por onde milhares e milhões transitam – poucos sabem aproveitar-
se das “coisas novas” da evolução espiritual, poucos sabem orientar-se nas
veredas ignotas e estreitas da experiência mística, por onde pouquíssimos
passam, em solidão e silêncio...

A verdade é alimento para uns – e veneno para outros...

Por isso, o mestre do reino de Deus deve saber doar judiciosamente as


verdades que transmite a seus discípulos, para que as “coisas sacras” e as
“pérolas” cheguem às almas daqueles que são idôneos de as receber e
assimilar.
“ESTÁ A SABEDORIA JUSTIFICADA

EM SUAS OBRAS.”

João Batista era considerado por alguns dos seus contemporâneos, diz Jesus,
como “possesso do demônio”, pelo fato de não levar vida social como os outros
nem se alimentar como eles; era um homem “anormal”.

Jesus, o Nazareno, era chamado por alguns “comilão e bebedor de vinho”,


porque levava vida “normal”, comia e bebia como os outros e aceitava convite
para festas e banquetes.

Esses descontentes de parte a parte, diz Jesus, são como crianças a brincar
em praça pública; uns querem brincar de enterro, cantando lamentações;
outros querem brincar de casamento, cantando canções alegres – e os dois
grupos não se entendem; uns acusam os outros de tristonhos, e são por estes
acoimados de galhofeiros.

É impossível contentar a todos.

O Nazareno, porém, não está disposto a se guiar por opiniões alheias. Possui
dentro de si mesmo a sapiência do reino dos céus, e não necessita orientar-se
pela insipiência dos que ignoram essa norma interna. Os seus inimigos se
guiam por caprichos pueris, ele se guia pela sabedoria de adulto. “Está a
sabedoria justificada em suas obras” (a Vulgata diz “Filhos”, em vez de “obras”,
mas esta última leitura merece mais crédito, embora também existam alguns
códices gregos com leitura da Vulgata latina).

Enuncia aqui o divino Mestre o critério fundamental de todo homem


espiritualmente adulto: não necessita de opiniões alheias nem de orientação
por meio de terceiros o homem que despertou em si a luz do reino de Deus.
Inicialmente, é verdade, todo homem é alocrático, governado por outros;
necessita de tutores e condutores, doutrinas, credos, dogmas, ritos, como
criança incapaz de andar sozinha. E essas escoras e muletas externas são
justificadas durante esse período evolutivo. Ai do homem que se emancipar
das disciplinas externas antes de alcançar a conveniente disciplina interna!
Quem não é internamente livre não deve reclamar liberdades externas; e sem a
experiência divina ninguém atinge verdadeira libertação interior: esse despertar
do Cristo interno, essa alvorada do reinado de Deus no homem, esse acordar
da voz de dentro, da luz interna, esse renascimento pelo espírito é que inicia o
glorioso período do homem autocrático, governado pelo Eu divino (não pelo
ego humano!).

Milhares de homens procuram libertar-se do jugo da alocracia, da disciplina de


guias externos e de credos, sem terem atingido as alturas de uma sólida
autocracia espiritual – e caem no torvelinho caótico da egocracia mental e
emocional, de um orgulhoso luciferismo que eles intitulam “liberdade” ou
“liberalismo”.

A verdadeira liberdade é uma servidão absoluta e incondicional ao supremo


tribunal da consciência, que é a voz divina no homem. Fora dessa “tirania” da
consciência não há liberdade. Quem não é servo de Deus é escravo dos
homens e de todas as coisas que o circundam. Livre é somente aquele que
presta obediência absoluta e incondicional à vontade de Deus.

Essa obediência, porém, é impossível sem uma profunda humildade, porque só


a verdade nos pode libertar, e humildade não é outra coisa senão a verdade do
homem sobre si mesmo. Enquanto o homem se identifica com o seu ego
físico-mental-emocional, não é livre, e por isso pode cair vítima de orgulho e
vanglória; mas, quando descobre o seu Eu divino, o espírito de Deus que nele
habita, ultrapassa todas as possibilidades de orgulho e vanglória, porque a
verdade o libertou de todas as escravidões ilegítimas e o fez servo da única
escravidão legítima, que é o império da Verdade.

“Está a sabedoria justificada em sua obras”...

Com o ingresso nessa zona da sabedoria que é a voz da verdade, entra o


homem numa zona de segurança, clareza, tranquilidade e imperturbável
felicidade interior...

Liberdade, verdade, felicidade – três palavras que significam a mesma


realidade suprema: o reino de Deus dentro do homem.
“QUEM TEM FÉ EM MIM, AINDA QUE TENHA MORRIDO,

VIVERÁ PARA SEMPRE.”

Essas palavras, que Jesus disse a Marta, ao pé do túmulo da Lázaro, são de


uma importância única nos anais da humanidade e na vida de cada homem em
particular. Afirma um homem que “morrer” ou “estar morto” não é algo
definitivo, mas um estado provisório, uma transição ou metamorfose para
outros estados. E isso não é, nos lábios desse homem estranho, uma figura
poética ou uma frase oratória – é a mais pura realidade, que ele mesmo
comprovou com sua vida, morte e ressurreição.

Aqui na Terra só conhecemos duas coisas cientificamente certas: 1) a vida


presente; 2) a morte futura. Além desses dois há, todavia, um terceiro fato certo
e comprovado, embora nem todos o conheçam de experiência imediata: a
sobrevivência do indivíduo humano após a morte física. O fato da
sobrevivência do homem à sua morte material é uma realidade tão antiga como
a própria humanidade, afirmada tanto pelos livros sacros como também pela
experiência multimilenar da história da humanidade em geral.

O que, todavia, não se pode demonstrar cientificamente é a imortalidade, uma


vida eterna após-morte; pois a sobrevivência não é a imortalidade.

Sabemos que os vivos morrem e que os mortos sobrevivem – mas não


sabemos cientificamente se os sobreviventes vivem eternamente, uma vez que
no mundo da sobrevivência também impera a morte, como os próprios
sobreviventes confessam. Os sobreviventes também são mortais.

Podem os mortos sobreviver séculos, e talvez milênios, em seus corpos


astrais, etéricos, causais, mentais, ou que outro nome tenham; e essa
sobrevivência temporária foi provada experimentalmente em milhares de
casos. Mas nunca nenhuma experiência de laboratório, de física, de química,
de matemática, nem o aparecimento espontâneo de uma entidade em corpo
imaterial provou a imortalidade. Esta, por sua própria natureza, não pode ser
objeto de provas científicas, mas é assunto exclusivo de uma experiência
espiritual, íntima, dentro do próprio sujeito. Quem não viveu e vive a sua
imortalidade seja antes seja depois da morte física, esse não tem certeza da
vida eterna, embora conheça a sobrevivência. A certeza da vida eterna não é
presente de berço nem de esquife, não é dada pela vida nem pela morte – mas
é uma conquista suprema da vivência. Dela não sabem nem os vivos nem os
mortos – mas tão-somente os viventes, os sempre viventes, que existem,
embora poucos, tanto entre os vivos como entre os sobreviventes, mas não se
identificam nem com estes nem com aqueles.

A todos nós que aqui estamos, escritor e leitores, já nos “aconteceu” o nascer,
e dentro em breve nos “acontecerá” o morrer, seguido pelo sobreviver – mas
nem o nascer, nem o morrer nem o sobreviver conferem o sempre-viver, a
imortalidade. A imortalidade potencial, é verdade, existe em cada um de nós, é
um presente de berço, oferecido a todo ser humano – porém a imortalidade
atual não existe automaticamente, mas deve ser conquistada livremente; não é
algo que nos “acontece” de fora, mas é algo que deve ser “produzido” de
dentro. É esse o “novo nascimento pelo espírito”, é essa a “entrada no reino
dos céus”.

Somente os viventes, os sempre-viventes, é que sabem o que é Deus, porque


sabem o que são eles mesmos.

***

Jesus, o Cristo, o maior dos sempre-viventes que a história conhece, faz


depender da “fé” essa misteriosa realização da vida eterna. “Quem tem fé em
mim viverá para sempre.”

Esse “ter fé” deve ser algo imensamente poderoso, uma vez que crea vida
eterna, para além de todas as vidas, mortes e sobrevivências temporárias.

“Ter fé”, na linguagem de Jesus, não é crer, é ter experiência vital de Deus; é
conhecer e compreender a Deus por meio de uma atitude de intuição ou
vivência íntima, divina. Quem teve essa vivência sabe o que ela é; quem não a
teve não sabe o que é, porque nenhuma definição externa pode dar ideia exata
da experiência interna. Aqui é “ser para saber”. “A vida eterna – diz o Mestre –
é esta: que os homens te conheçam, o Pai, como o único Deus verdadeiro, e o
Cristo, teu Enviado.”

Viver eternamente, ser imortal, é, pois, uma permanente atitude de


conhecimento intuitivo, espiritual, uma visão direta da Suprema Realidade.

Sendo que Deus é imortal por sua íntima essência, o homem só terá
imortalidade individual se se unir intimamente à Imortalidade Universal de
Deus.

“Unir” quer dizer tornar uno, ter a consciência vital de que o nosso íntimo ser
coincide com o Ser da Divindade – “Eu e o Pai somos um” – embora o nosso
externo existir seja diferente de Deus – “mas o Pai é maior do que eu”.

Isso é “ter fé no Cristo” – saber que “já não sou eu que vivo, mas o Cristo vive
em mim”.
“EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA.”

Vida sem fim após o fim da vida...

Vida sem morte após a morte...

Não se compreende por que a humanidade em peso não se prostra aos pés
dum homem que tais palavras proferiu e lhes provou a verdade com sua
própria vida.

Não é que todos nós queremos viver para sempre?

Não é que todos querem saber o que haverá para além dos negros bastidores
da morte?

E por que não tomamos a sério as palavras categóricas lançadas ao mundo há


quase dois mil anos?

É porque quase ninguém sabe o que é “ter fé no Cristo”, condição


indispensável para alcançar essa vida sem morte.

Que é “ter fé no Cristo”? Num Cristo ausente – ou num Cristo presente?

“Eu sou a ressurreição e a vida; quem tiver fé em mim viverá eternamente; e


ainda que tenha morrido, viverá para sempre.”

Aprendemos no catecismo e nos tratados de teologia, que “crer” é aceitar como


verdadeiras as palavras de outrem, ou, no caso presente, a doutrina do Cristo.

Mas esse “crer” não é ter fé.

“Ter fé” é, para Jesus, uma atitude profundamente vital e experiencial; é uma
total submersão da nossa individualidade no mar imenso da Divindade; é uma
radical renúncia ao pequeno ego humano e uma integral entrega do mesmo ao
Espírito Infinito.

“Ter fé” é a mais arrojada aventura cósmica do homem. É fechar os olhos dos
sentidos e do intelecto e lançar-se ao tenebroso abismo do desconhecido, na
certeza de que esse imenso vácuo de trevas é a plenitude da luz, e que essa
morte total é a vida integral. É desnascer para tudo que sabemos e renascer
para tudo que ignoramos. É ultrapassar todas as horizontais do ego e entrar na
grande vertical de Deus.
No princípio, é verdade, o “crer” não passa de um simples “querer” de um ato
de boa vontade, de um ingênuo “querer crer”. Nem jamais deixará de ser esse
débil “querer” enquanto não for fecundado pelo “viver”, isto é, por uma vida
diária em perfeita harmonia com a fé. Deve o crente viver como se já possuísse
experiência de Deus – e é precisamente nesse “como se” que está todo o
tormento... Trilhar o caminho da vivência ética antes de atingir o mundo da
experiência mística – isso é imensamente difícil, isso é martírio de cada dia, é o
“caminho estreito e a porta apertada”, é o “fundo da agulha” de que nos fala o
divino Mestre. Transcender o pequeno ego antes de atingir o grande Eu,
renunciar ao Lúcifer antes de encontrar o Cristo – isso é uma espécie de salto
ao abismo, ou uma suspensão no vácuo.

Como pode o homem negar a vida horizontal antes de afirmar a vida vertical? É
da íntima natureza da psicologia humana que não abra mão de um valor antes
de descobrir outro valor, maior ou, pelo menos, igual ao primeiro. Só quem
descobriu o “reino dos céus, que não é deste mundo” é que pode renunciar a
“todos os reinos do mundo e a sua glória”.

“Ter fé” é, pois, idêntico a possuir algo espiritualmente antes de o ter


materialmente; é operar numa dimensão que se acha além de todas as
dimensões que o homem profano conhece e ama.

“Ter fé” é um egocídio, uma morte do ego, que precede necessariamente o


nascimento do Eu da “nova creatura em Cristo”.

Quem não morreu não vive plenamente – e quem não tem vida plena não tem
fé. Morrer para viver – é esta a grande verdade! Não basta ser morto
compulsoriamente – é necessário morrer espontaneamente, para poder crer.
Só um voluntariamente morto é que é um verdadeiro crente, e, neste caso, o
seu “crer” é um verdadeiro “saber” e “saborear”. Esse “saber” e “saborear”,
após a morte mística do egocídio voluntário, é que introduz o homem na vida
eterna, numa vida que ultrapassou o precário nascer e o precário morrer e é
um firmíssimo viver. Vida que ainda conheça nascer e morrer não é vida plena,
é apenas uma pseudovida ou uma agonia prolongada, um ligeiro parêntese de
luz entre duas trevas, um subitâneo lampejo em noite escura. Somente uma
vida que brotou duma morte voluntária é que é vida integral.

Isso é “ter fé no Cristo” – e essa fé, que é um saber vital, é que garante vida
eterna.

***

Se esse Cristo que nos garante vida eterna fosse um Cristo ausente e
longínquo, como poderíamos ter fé vitalmente nele? Como poderia o meu
Cristo vitalizante estar fora de mim? Como poderia a minha vida sem morte ser
algo transcendente? Não é a vida a coisa mais imanente que em mim existe?
Não sou eu mesmo, potencialmente, essa vida que me vitaliza?...

Tão profundamente imanente em mim é esse Cristo vitalizante que até parece
ausente, porque o abismo da minha tenebrosa imanência é, para mim, para
meu velho ego, uma ausência, uma inexistência, uma irrealidade.

Quando então esse meu Cristo ignoto se torna um Cristo noto, quando o Deus
desconhecido passa a ser um Deus conhecido – então tenho eu a impressão
de que o Cristo desceu dos céus e entrou em mim. De fato ele veio dos céus,
dos céus profundos que em mim estão, cobertos pelas espessas nuvens da
minha ignorância. Mas quando as nuvens se dissipam e o que estava
objetivamente presente e subjetivamente ausente se torna também
subjetivamente presente, graças à transição da ignorância para a sapiência –
então eu recebo o Deus do Universo de fora como idêntico Deus do meu
Universo de dentro.

E esse “Universo de dentro” se chama minha “alma”, o meu divino “Eu”, o meu
“Cristo interno”.

E então eu tenho fé no Cristo, no meu Cristo... Já não vivo eu, mas vive em
mim o Cristo; sou plenamente vivido; vivificado e vitalizado pelo meu Cristo,
externo e interno, porque eterno.

E então, olhando em derredor, eu exclamo:

“Que é da tua vitória, ó morte?

Que é do teu aguilhão, ó morte?...

Foi a morte tragada pela vida!...”

“Minha vida, porém, é o Cristo”...

“Não sou eu que vivo...

O Cristo vive em mim”...

.............................................................................................................................

“Eu sou a ressurreição e a vida...

Quem tiver fé em mim não morrerá...

E, ainda que tenha morrido,

Viverá eternamente”...
ÍNDICE

PRELÚDIO

“NINGUÉM VAI AO PAI A NÃO SER POR MIM.”

“ALEGRAI-VOS, PORQUE OS VOSSOS NOMES ESTÃO ESCRITOS NO


LIVRO DA VIDA ETERNA.”

“DEUS É DEUS DOS VIVOS, E NÃO DOS MORTOS, PORQUE PARA ELE
TODOS SÃO VIVOS.”

“AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, COM TODO O TEU CORAÇÃO, COM


TODA A TUA ALMA, COM TODA A TUA MENTE E COM TODAS AS TUAS
FORÇAS.”

“QUEM NÃO RENUNCIAR A TUDO QUE TEM NÃO PODE SER MEU
DISCÍPULO.”

“QUEM DE VÓS ME ARGUIRÁ DE UM PECADO?”

“QUEM NÃO ODIAR A SUA PRÓPRIA VIDA NÃO PODE SER MEU
DISCÍPULO.”

“TENDE FÉ EM DEUS – E TENDE FÉ EM MIM TAMBÉM!”

“O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE A UM FERMENTO.”

“SAIU O SEMEADOR A SEMEAR A SUA SEMENTE.”

“UM HOMEM TINHA DOIS FILHOS...”

“COMO ENTRASTE AQUI SEM TERES A VESTE NUPCIAL?”

“A PLANTA CRESCE POR SI MESMA, DE DIA E DE NOITE.”

“APARECEU O JOIO NO MEIO DO TRIGO.”

“O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE A UM TESOURO OCULTO – A UMA


PÉROLA PRECIOSA.”

“ROUBASTES A CHAVE DO CONHECIMENTO DO REINO DE DEUS.”

“QUEM NÃO TEM PERDERÁ ATÉ AQUILO QUE TEM.”

“ACUMULAI PARA VÓS TESOUROS NOS CÉUS.”


“SE O GRÃO DE TRIGO NÃO MORRER, FICARÁ ESTÉRIL – SE MORRER,
PRODUZIRÁ MUITO FRUTO.”

“TUDO É POSSÍVEL ÀQUELE QUE TEM FÉ.”

“EU VIM PARA QUE OS HOMENS TENHAM VIDA, E A TENHAM COM


MAIOR ABUNDÂNCIA.”

“QUEM QUISER CONSTRUIR UMA TORRE... EMPREENDER UMA GUERRA


– RENUNCIE A TUDO!”

“GRANJEAI-VOS AMIGOS COM AS RIQUEZAS DA INIQUIDADE.”

“OS PRIMEIROS SERÃO OS ÚLTIMOS E OS ÚLTIMOS SERÃO


PRIMEIROS.”

“UM HOMEM PREPAROU UM GRANDE BANQUETE E CONVIDOU MUITA


GENTE.”

“SE ALGUM DENTRE VÓS QUISER SER GRANDE, SEJA O SERVIDOR DE


TODOS.”

“TUDO QUE FIZESTES AO MENOR DE MEUS IRMÃOS A MIM É QUE O


FIZESTES.”

“A VÓS VOS É DADO CONHECER OS MISTÉRIOS DO REINO DOS CÉUS.”

“AI DE QUEM INCENTIVAR AO PECADO A UM DESSES PEQUENINOS.”

“SAIU DE MIM UMA FORÇA.”

“NÃO LANCEIS AS VOSSAS PÉROLAS AOS PORCOS!”

“ESTÁ A SABEDORIA JUSTIFICADA EM SUAS OBRAS.”

“QUEM TEM FÉ EM MIM, AINDA QUE TENHA MORRIDO, VIVERÁ PARA


SEMPRE.”

“EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA.”


HUBERTO ROHDEN
VIDA E OBRA

Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).

De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.


Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais
várias foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto;
algumas existem em braile, para institutos de cegos.

Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.

De 1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na


Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com
Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da
Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a
constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática,
Metafísica e Mística.

Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de


Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões
Comparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos.
Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American
Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de
guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de
Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de
manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos.

Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o


Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yôga por Swami
Premananda, diretor hindu desse ashram.

Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University
(ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e
Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.

Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada,


onde mantinha cursos permanentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia,
sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e dirigia Casas de Retiro
Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil.

Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência


espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências
com grupos de yoguis na Índia.

Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre


autoconhecimento e auto-realização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de
Auto-Realização Alvorada.

Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.

Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora


responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e
inspiração.

À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”.

Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de


fé e trabalho, somente comparados aos dos grandes homens do século XX
RELAÇÃO DE OBRAS DO PROF.
HUBERTO ROHDEN

COLEÇÃO FILOSOFIA UNIVERSAL:

O PENSAMENTO FILOSÓFICO DA ANTIGUIDADE

A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

O ESPÍRITO DA FILOSOFIA ORIENTAL

COLEÇÃO FILOSOFIA DO EVANGELHO:

FILOSOFIA CÓSMICA DO EVANGELHO

O SERMÃO DA MONTANHA

ASSIM DIZIA O MESTRE

O TRIUNFO DA VIDA SOBRE A MORTE

O NOSSO MESTRE

COLEÇÃO FILOSOFIA DA VIDA:

DE ALMA PARA ALMA

ÍDOLOS OU IDEAL?

ESCALANDO O HIMALAIA

O CAMINHO DA FELICIDADE

DEUS

EM ESPÍRITO E VERDADE

EM COMUNHÃO COM DEUS


COSMORAMA

PORQUE SOFREMOS

LÚCIFER E LÓGOS

A GRANDE LIBERTAÇÃO

BHAGAVAD GITA (TRADUÇÃO)

SETAS PARA O INFINITO

ENTRE DOIS MUNDOS

MINHAS VIVÊNCIAS NA PALESTINA, EGITO E ÍNDIA

FILOSOFIA DA ARTE

A ARTE DE CURAR PELO ESPÍRITO. AUTOR: JOEL GOLDSMITH


(TRADUÇÃO)

ORIENTANDO

“QUE VOS PARECE DO CRISTO?”

EDUCAÇÃO DO HOMEM INTEGRAL

DIAS DE GRANDE PAZ (TRADUÇÃO)

O DRAMA MILENAR DO CRISTO E DO ANTICRISTO

LUZES E SOMBRAS DA ALVORADA

ROTEIRO CÓSMICO

A METAFÍSICA DO CRISTIANISMO

A VOZ DO SILÊNCIO

TAO TE CHING DE LAO-TSÉ (TRADUÇÃO)

SABEDORIA DAS PARÁBOLAS

O QUINTO EVANGELHO SEGUNDO TOMÉ (TRADUÇÃO)

A NOVA HUMANIDADE

A MENSAGEM VIVA DO CRISTO (OS QUATRO EVANGELHOS TRADUÇÃO)

RUMO À CONSCIÊNCIA CÓSMICA

O HOMEM
ESTRATÉGIAS DE LÚCIFER

O HOMEM E O UNIVERSO

IMPERATIVOS DA VIDA

PROFANOS E INICIADOS

NOVO TESTAMENTO

LAMPEJOS EVANGÉLICOS

O CRISTO CÓSMICO E OS ESSÊNIOS

A EXPERIÊNCIA CÓSMICA

COLEÇÃO MISTÉRIOS DA NATUREZA:

MARAVILHAS DO UNIVERSO

ALEGORIAS

ÍSIS

POR MUNDOS IGNOTOS

COLEÇÃO BIOGRAFIAS:

PAULO DE TARSO

AGOSTINHO

POR UM IDEAL – 2 VOLS. AUTOBIOGRAFIA

MAHATMA GANDHI

JESUS NAZARENO

EINSTEIN – O ENIGMA DO UNIVERSO

PASCAL

MYRIAM

COLEÇÃO OPÚSCULOS:

SAÚDE E FELICIDADE PELA COSMO-MEDITAÇÃO


CATECISMO DA FILOSOFIA

ASSIM DIZIA MAHATMA GANDHI (100 PENSAMENTOS)

ACONTECEU ENTRE 2000 E 3000

CIÊNCIA, MILAGRE E ORAÇÃO SÃO COMPATÍVEIS?

CENTROS DE AUTO-REALIZAÇÃO

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