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nº1 arcádia

revista de literatura e crítica literária


Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária
Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP

Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária é uma revista-laboratório do curso de Estudos Literários do Instituto de Estudos da
Linguagem da UNICAMP. É uma publicação eletrônica, de submissão aberta, publicada anualmente pelos alunos de graduação do
Departamento de Teoria Literária, mas aceita contribuições de toda a comunidade, independente de filiação institucional ou formação
acadêmica. Arcádia publica textos de criação literária (prosa ou poesia), textos críticos (resenhas, artigos ou ensaios) sobre obras literárias
ou relacionadas à teoria, à crítica e à história literária, e traduções em uma dessas áreas.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


Reitor: José Tadeu Jorge
Vice-Reitor: Alvaro Penteado Crósta

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM


Diretora: Matilde Virgínia R. Scaramucci
Diretor-Associado: Flávio Ribeiro de Oliveira

COORDENAÇÃO DE GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS


Marcos Aparecido Lopes
Jefferson Cano

COMISSÃO EDITORIAL
Ana Maria Côrtes
Elisa Pagan
Jessica Sallasa
Júlia Mota
Laís Calusni
Luísa Alvarenga
Thaís Soranzo
Índice | 2014

crítica literária
A vingança de Diónysos: uma análise do
tradução
prólogo d’As Bacantes Lidiane Garcia O Truque do grilo [Das Grillesnpiel], de Gustave Meyrink, traduzido
por Júlia Ciasca
Lavoura Arcaica: o incesto como símbolo
Os Mendigos [The beggars], de Lord Dunsany, traduzido por
ambivalente Marcella Abboud Tempus Thiago Andreuzzi
fugit: o mecânico e o orgânico no Manifesto
Futurista Matheus Romanetto O conceito
de Kleos em Ilíada e Os Lusíadas Odorico criação literária
Leal Prosa, poesia e linguagem em Giorgio
A existência não vence em teu peito Rogério Sáber Alquimia,
Agamben Fernanda Valim Na contramão:
Criação, Vermelho Victor Simões Cantador, Rugas João Miguel
Toda Poesia - Paulo Leminski Ricardo
Moreira Empresa Laníficios Tejo LDA Daniel Serrano Finalmente
Gessner Jogos Vorazes e a romantização
me tornei um poeta contemporâneo, Triângulo de Acrílico sobre
do universo distópico Ana Maria Côrtes
Praia João Gabriel Mostazo Hábito Tiago Donoso Humanizador
Romances expressos e amores em Ithaca
Thiago Andreuzzi In Memorian Matuyama Noite Quente Pedro
Road Elisa Pagan A reelaboração dos
Couto Quatro Ventas Suene Honorato Tempo no Espelho Rodrigo
jovens de J. K. Rowling em Morte Súbita
de Faria Travessia Fábio Mariano
Jessica Sallasa
Fernanda Valim
Doutoranda em Estudos Literários na UFMG, tendo realizado seu mestrado e graduação em Letras pela
UNICAMP. É professora da Faculdade Interdisciplinar de Humanidades da Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e Mucuri (Diamantina-MG).
Contato: fernanda.v.c.mig@gmail.com
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Prosa, Poesia e Linguagem em Giorgio Agamben

resumo promover um diálogo que aponte para o desenvolvimento


desta questão central - igualmente cara ao pensamento do
Este ensaio esboça uma tentativa inicial de (re)pensar o lugar
que a linguagem ocupa nas reflexões do filósofo italiano Giorgio filósofo -, partimos das discussões promovidas nos ensaios-
Agamben, revisitando alguns conceitos de seu pensamento, em fragmentos de Ideia da Prosa e o “O fim do Poema”, capítulo
especial os de prosa e poesia, a partir dos ensaios-fragmentos
que constituem Ideia da Prosa (1999) e o “O fim do Poema”,
que integra Categorie italiane1, além do estudo de outras
capítulo que integra Categorie Italiane (2010). Contando com o obras, tais como A Linguagem e a morte2, Estâncias3 e do
amparo teórico da leitura de outras obras do autor é acrescida à capítulo IX, de A comunidade que vem4.
discussão central uma série de tematizações relacionadas e que
contribuem para reflexões teóricas ao campo dos estudos Ao longo das leituras que percorrem o pensamento
filosóficos e literários. agambeniano, parece não haver distinção precisa entre
pensamento e linguagem e a importância do que é
Pensar as categorias conceituais da prosa e da poesia pensado/dito ao leitor torna-se também indissociável da
em Giorgio Agamben é, antes de tudo, estabelecer forma escolhida para dizê-lo. Logo no prefácio de Ideia da
questionamentos que passam necessariamente pela questão Prosa, João Barrento aponta para essa qualidade
da narratividade de sua obra e ainda pela reflexão sobre qual inclassificável do discurso do autor, e para as potencialidades
a escrita/escritura promovida pelo autor italiano. É notório o da linguagem dessa espécie de "prosa reflexiva-narrativa-
fato de que as discussões que envolveriam o lugar da prosa e poética nascida para a modernidade"5 - nem literatura, nem
da poesia nesse contexto apontam ainda para uma outra filosofia convencional - e que mais se aproximaria da bela
questão fundamental que diz respeito ao lugar da linguagem imagem de "um jardim de muitos canteiros em que se
no pensamento de Giorgio Agamben. Com o objetivo de semeiam ideias esperando que daí nasça alguma coisa"6.
promov jjjjjjjjjj
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1 AGAMBEN, Giorgio. Categorie Italiane. Studi di poética e di letteratura. Bari: Laterza, 2010.
2 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
3 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
4 AGAMBEN, Giorgio. Bartleby. In: A comunidade que vem. Trad. de António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
5 BARENTO apud AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas de João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.10.
6 Ibidem, p.10.
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De fato, depois dos poemas em prosa de Baudelaire, da prosa para a compreensão do lugar ocupado pela linguagem no
filosófica de Nietzsche e de Imagens de pensamento7 de pensamento do autor.
Walter Benjamin, há muito nesses ensaios-fragmentos que Nesse contexto, a possibilidade do que Agamben
permanecem mesmo na ordem do não dito e que apontam denominou de enjambement constitui o único critério que
verdades como enigmas do homem moderno. Como propõe permitiria distinguir a prosa da poesia. Dessa forma,
Barrento, a única forma legítima de escrita parece ser aquela consideraríamos como poesia o discurso poético no qual o
capaz de imunizar o leitor contra a ilusão de verdade8. enjambement existe. O enjambement seria um complemento
Em Ideia da prosa, Agamben parte da tensão do sentido de um verso no verso seguinte: a
estabelecida entre prosa e poesia, e a questão central parece oposição/desconexão entre um limite métrico e um limite
ser a tentativa de estabelecer algum critério demarcatório sintático; entre o ritmo sonoro e o sentido; uma pausa
possível e reconhecível para a diferenciação de tais gêneros
prosódica e uma pausa semântica. Nicolò Tibino, no século
ou instâncias. Agamben parte da tese de que a poesia viveria
XIV, definiu o termo da seguinte maneira: “Com efeito,
na tensão e no contraste entre som e sentido, entre unidades
muitas vezes ocorre que, finda a consonância, o sentido da
sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas, ou ainda, entre
oração ainda não chegou ao fim”9. De acordo com Agamben, o
a série semiótica e a série semântica. É curioso notar que o
enjambement traria “à luz o andamento originário, nem
termo "série semiótica" não aparece de fato no texto de Ideia
da prosa, mas somente em texto posterior, mais poético, nem prosaico, mas, por assim dizer, bustrofédico da
especificamente em “O fim do poema”. O que teria motivado poesia, o essencial hibridismo de todo discurso humano”10. A
o autor a incluir este termo – que ampliaria a noção de possível ausência do enjambement constituiria um verso com
linguagem aparentemente por ele mobilizada – ao tratar enjambement zero, como aconteceria com frequência, por
novamente da temática comentada? Esta é uma questão exemplo, nos poemas de Petrarca, utilizados pelo autor para
pontuada ao longo das leituras e que nos parece significativa ilustrar seu comentário.
parala
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7 BENJAMIN, Walter. Imagens de Pensamento/Sobre o haxixe e outras drogas. Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
8 Ibidem, p.15.
9 TIBINO apud AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. In: Cacto. 1. Trad. de Sérgio Alcides. São Paulo, 2002.
10 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.32.
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Agamben propõe uma primeira consequência dessa formal, não pudesse ou devesse findar, já que implicaria
condição do poema, nessa disjunção entre som e sentido, que “esse impossível poético que é a coincidência exata de som e
seria a importância decisiva do fim do verso - lugar da sentido”11. Talvez, algumas problematizações poderiam ser
versura -, termo latino que designa o lugar em que o arado dá possíveis, como espécies de jogos de linguagem capazes de
a volta no fim do campo. A versura constituiria o cerne do colocar tais conceitos em atividade. Vejamos o exemplo a
verso - cuja manifestação é o enjambement - e se orientaria seguir:
ao mesmo tempo para duas direções opostas, para trás
(verso) e para diante (prosa). Seria, inclusive, uma ... seis três
suspensão, uma hesitação entre o sentido e o som. Mas o que nove ...
seis três
aconteceria no ponto em que o poema finda, ou seja, na
três ...
última estrutura formal perceptível de um texto poético?
seis três
Esta outra questão será levantada pelo autor em “O fim do
dois ...
poema”, tendo em vista que no ponto em que o poema finda,
a oposição entre um limite métrico e um limite semântico já
não é mais possível e o enjambement também não é mais
pensável. Segue-se, a partir das considerações anteriores, Poderíamos classificar o texto anterior como uma
que, se o verso se define precisamente através da espécie de poema ou de prosa? Haveria presença ou ausência
possibilidade do enjambement, o último verso de um poema de enjambement? Caso observemos atentamente, existiria
não é um verso. nele uma sonoridade (a própria sonoridade das palavras
Walter Benjamin e Dante Alighieri são citados por através da disposição dos grafemas) em tensão com um
Agamben como observadores da significativa questão da sentido (a soma dos números do primeiro verso resulta o
finalização do poema, como se este, enquanto estrutura número do segundo verso; a subtração dos números do
fomall terceiro
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11 AGAMBEN,Giorgio. O fim do poema. In: Cacto. 1. Trad. de Sérgio Alcides. São Paulo, 2002.
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terceiro verso resulta no do quarto; e a divisão dos números


do quinto, resulta no número expresso no último verso).
Poderíamos atestar a presença do enjambement, uma vez que
o sentido dos versos se dá a partir do verso subsequente,
indicando, portanto, que estaríamos diante de um poema. No
entanto, qualquer leitor mais experiente ou um estudioso
mais aguçado logo desconfiaria da criação do texto esboçado
acima, podendo criar outras conjecturas e conceitos para
manifestar sua discórdia em relação ao gênero em questão,
ou ao menos em relação à qualidade estético-literária do
suposto poema. Giro, Marcelo Moura
O que os conceitos problematizados por Agamben
poderiam esclarecer sobre alguns poemas concretos, como o Obviamente, o tratamento questionador dado ao
seguinte? Qual seria sua versura? Poderíamos pensar num poema concreto de Marcelo Moura é apenas uma
fim de verso efetivo para o poema em questão? Ou ainda, provocação para que pensemos as categorias expostas pelo
poderíamos considerá-lo uma prosa ao invés de um poema? autor de maneira curiosa e não redutiva12. Ao final de ambos
oos textos,

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12 A discussão sobre os conceitos mobilizados por Agamben nos remetem ao conhecido texto Como reconhecer um poema ao vê-lo, de Stanley Fish, no qual o
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autor cria uma brincadeira com seus alunos, sem que eles a saibam, fazendo com que o grupo interprete uma disposição específica de palavras – que
semanticamente apontavam para referências da Idade Média, tema da aula em questão – como se elas, em sua totalidade, representassem de fato um poema
em sua forma e composição. Após uma série de hipóteses interpretativas para o texto criado, o autor problematiza a questão dos supostos limites
interpretativos, motivando uma série de reflexões interessantes. FISH, Stanley. Como reconhecer um poema ao vê-lo. In: PaLavra 1. Rio de Janeiro: PUC,
1993, p. 156-165.
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os textos, Agamben parece apontar mais categoricamente Agamben, a partir da analogia com o conceito de
para a necessidade e a existência mútua da prosa e da poesia, cesura na métrica em poesia, dá voz ao pensamento de
para um “essencial hibridismo de todo discurso humano”13. Hölderlin, comentando suas anotações à tradução do Édipo
No texto-fragmento “Ideia da cesura”14, o autor segue a Rei, de Sófocles. Haveria no trágico, de acordo com o poeta e
discussão, passando agora a refletir sobre o ritmo do poema. tradutor alemão, a predominância de um equilíbrio entre os
A cesura seria a pausa/silêncio/quebra no ritmo do verso; a episódios. O transporte trágico (que para Aristóteles, na
interrupção do transporte rítmico do poema; o elemento que Poética, seria a reviravolta/peripécia) se daria pela cesura,
faz parar o lance métrico da voz; a palavra pura e a pela quebra do ritmo e do movimento aparente da tragédia, a
interrupção anti-rítmica necessária, como nos diz Hölderlin. dividiria em duas partes desiguais: tanto em Édipo quanto
Agamben utiliza-se do simbolismo da imagem de um cavalo em Antígona, Hölderlin observa que a cesura é introduzida
que transporta o poeta: o cavalo seria a voz, o elemento pela palavra e intervenção divinatória de Tirésias,
sonoro e vocal da linguagem, e o poeta seria o logos que torna personagem mediador do mundo dos homens e do todo do
a voz inteligível e clara. Através do jogo simbólico com esta cosmos.
imagem, em dois exemplos distintos, o autor faz com que a Em Édipo, a ruptura do ritmo da tragédia se daria
ideia de cesura do verso possa indicar não mais unicamente a justamente no momento em que, através das palavras de
noção de suspensão rítmica do poema, mas também uma Tirésias, o protagonista toma consciência de si (de ter
suspensão do movimento do cavalo e uma suspensão do cometido incesto e de ser o assassino do próprio pai). A
próprio pensamento (do ato de pensar). A razão, portanto, partir daí, a questão da circularidade temporal - de um
estaria no humano, simbolizado pela figura do cavaleiro, e o suposto ritmo criado pelos deuses - é rompida e o
cavalo seria a voz que o logos tornaria inteligível. personagem do início da tragédia, rei de Tebas, passa a ser
incompatível com a figura final da peça, o homem exilado
que tirou sua própria
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13 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.32.
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14 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da cesura. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 34-36.
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incompatível com a figura final da peça, o homem exilado faltar com o pensamento. Quanto à poesia, pode-se dizer,
que tirou sua própria visão. O início e o fim da tragédia ao contrário, que está ameaçada por um excesso de tensão
tornam-se, assim, irreconciliáveis. Em Antígona, é Tirésias e de pensamento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein,
quem avisa Creonte sobre seu futuro infortúnio e este é que “a poesia deve-se apenas propriamente filosofá-la”.
também o momento de redenção tardia do personagem, já no
Do mesmo modo que para Wittgenstein o discurso
final da tragédia, e que culminará na morte da protagonista.
filosófico, no seu intento de se distinguir do discurso poético,
Hölderlin afirma que “Como ponto de inflexão, a cesura
acaba anunciando o seu próprio fim prosaico, Agamben, no
é onde a tensão entre a forma e o conteúdo se supera na
seu intento de distinguir o discurso poético do prosaico,
presença de uma esfera mais elevada e portadora de
acaba anunciando o próprio fim do discurso poético. O modo
equilíbrio”15. A cesura se estabelece como signo auto-
como Agamben parece nublar as fronteiras entre o filosófico
referente da articulação do divino e do humano, pela pura
e o literário aproxima-se, num certo sentido, da discussão de
palavra (o silêncio) ou mesmo pelo momento indizível da
autores que exerceram influência notória em seus estudos,
consciência de si.
procurando igualmente desconstruir a tradição metafísica e
Finalizando “O fim do poema”, Agamben escreve a
essencialista dominantes no discurso filosófico. Nesse
seguinte passagem:
movimento desconstrucionista, autores como o austríaco
Ludwig Wittgenstein e o franco-argelino Jacques Derrida
Wittgenstein escreveu certa vez que “a filosofia deve-se
apenas propriamente poetá-la” [Philosophie dürfte man acabaram sugerindo – tanto no estilo de se pensar
eigentlich nur dichten]. Talvez a prosa filosófica, ao fazer-se filosoficamente quanto no de expressar esse pensamento
como se o som e o sentido coincidissem no seu discurso, se através de uma escrita filosófica - uma impossibilidade de
arrisque a decair na banalidade, se arrisque portanto a distinção entre o filosófico e o literário.
falta

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15 HÖLDERLIN apud CASTRO, Claudia Maria de. Deleuze, Hölderlin, e a cesura do tempo. In: Revista O que nos faz pensar, nº22, maio de 2007, p. 9.
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O modo como Derrida desconstrói as fronteiras entre Talvez não coincidentemente Agamben dedique o
literatura e filosofia fica caracterizado pelo reconhecimento fragmento “Ideia do pensamento”17 a Jacques Derrida,
de rastros ficcionais em todo tipo de escritura. De fato, como afirmando que “todo acto de pensamento acabado, para o ser
assinalou Haddock-Lobo a partir da leitura do artigo de – ou seja, para poder referir-se a qualquer coisa que está fora
Elizabeth Duque-Estrada, “A literatura é a coisa mais do pensamento –, deve dissolver-se inteiramente na
interessante do mundo, talvez mais interessante que o linguagem”, nos remetendo também à própria discussão
mundo”: sobre a linguagem, citação e tradução, especialmente da obra
Torres de Babel. Em “Ideia do Único”18, no qual Agamben
O que se entende, então, por uma espécie de estrutura do discute a questão do bilingüismo na poesia, é retomada a
literário em geral rege-se de acordo com uma lógica do não questão da experiência da língua, que pressupõe as palavras,
aparecimento que se define pelo fato de que toda narrativa, mas a língua falada por nós são seria única, estaria presa na
todo relato, ficcional ou não, é uma relação com aquilo que série infinita das metalinguagens e, nessa experiência, o
ela narra. Nesta relação, tanto o relato, a narrativa, quanto homem ficaria sem palavras diante da linguagem. A língua
o relatado, o que é narrado, não aparecem em sua presença
para a qual não teríamos palavras seria justamente a língua
efetiva. O que Beth herda de Derrida nesta “teoria da
da poesia e ao poeta cumpriria o papel de recordar e
literatura” é a constatação de que este não aparecimento
preencher o suposto vazio da vã promessa de propor ou
estrutural não é exclusividade da literatura, mas de todo
relato, constituindo uma espécie de “ficcionalidade encontrar nela um sentido19.
constitutiva” de todo discurso16. A mesma ausência de fronteiras rígidas entre os
discursos filosóficos e literários parece ser sugerida pelo
cach
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16 HADDOCK-LOBO, Rafael. Para um pensamento úmido: a filosofia a partir de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: NAU; Ed. PUC-Rio, 2011, p.159 e 174.
17 AGAMBEN, Giorgio. Ideia do pensamento. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 101-103.
18 AGAMBEN, Giorgio. Ideia do Único. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 39-42.
19 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 40-42.
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estilo terapêutico-aforístico de pensar desenvolvido pelo outras formas não racionalizadoras de linguagem, como é o
filósofo Ludwig Wittgenstein, na qual o filosófico e o literário caso de certas encenações artísticas da linguagem: “Há por
tornam-se, de fato, inseparáveis. A postura crítica do autor certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico”21. O modo como
diante da grande teoria e da ambição totalizante que é Wittgenstein tenta resolver problemas filosóficos, a
normalmente identificada com a filosofia é representada na tendência anticonclusiva no modo de praticar sua
conclusão do Tractatus pelo aforismo “Sobre aquilo de que investigação seria mais adequadamente adjetivada de
não se pode falar, deve-se calar”20. Reconhece, sensatamente, “estética”, seja pela disposição criativa de exemplos ao longo
a existência de aporias metafísicas e éticas que nenhuma especialmente de sua obra póstuma, seja ainda pelas
discussão, explicação ou argumentação lógico-racional seria imagens selecionadas, com suas parataxes e “repentinos
capaz de justificar ou fundamentar. E é justamente a arroubos de fé”22. É justamente este estilo estético não
pretensão do discurso filosófico de adentrar racionalmente racionalizante, anti-dogmático e anti-conclusivo que
nesse domínio do que não pode ser dito, mas apenas caracteriza igualmente, numa primeira aproximação, a
mostrado, o que faz da “filosofia” wittgensteiniana uma filosofia agambeniana.
“antifilosofia” que se propõe a determinar em que A possível aproximação tensional, por vezes
circunstâncias a filosofia deve questionar-se a si mesma, controvertida, estabelecida neste ensaio especialmente entre
impondo-se limites. Isso não significa que esse domínio do Wittgenstein e Derrida leva em conta tentativas mais
não dito – do inefável – não possa se deixar mostrar por abrangentes, já realizadas, como é o caso da apresentada
exempl pelo

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20 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010,

TLP – 7.
21 Ibidem, TLP - 6.522.
22 BOUVERESSE apud PERLOFF, Marjorie. A Escada de Wittgenstein: a Linguagem poética e o Estranhamento do Cotidiano. Trad. de Elisabeth Rocha Leite;

Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p.36.
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pelo crítico Henry Staten23, que argumenta especialmente em A passagem anterior, em que Agamben estabelece uma
favor do fato de que ambos os filósofos rejeitam a comparação entre o discurso filosófico e o discurso literário,
determinação transcendental do ser, bem como a noção de nos remete a uma outra citação, agora de autoria de Walter
que seja possível existir qualquer coisa fora do domínio da Benjamim, na qual o autor apresenta uma concepção de
linguagem. Stanley Cavell, um dos críticos fundamentais para temporalidade que parece se aproximar daquela que
os estudos sobre Wittgenstein, recuperando o antigo debate perpassa o pensamento filosófico agambeniano. Benjamin,
e a crítica de Derrida a J. Austin, manifestou-se com clareza no seu texto Paris, capital do séc. XIX, conclui:
sobre essa questão24. Como apontou Marjorie Perloff25, a
existência de homologias entre os pensamentos de Desta época é que se originam as passagens e os interiores,
Wittgenstein e Derrida não exclui, em hipótese alguma, a os salões de exposição e os panoramas. São reminiscências
existência de diferenças irreconciliáveis entre suas reflexões de um mundo onírico. A avaliação dos elementos oníricos à
filosóficas, tais como a questão da fala/escrita, da base hora do despertar é um caso modelar de raciocínio
ontológica das formas de vida e daquela referente ao fato de dialético. Por isso é que o pensamento dialético é o órgão
do despertar histórico. Cada época não apenas sonha a
Wittgenstein ter tido pouca influência no trabalho de
seguinte, mas, sonhando, se encaminha para o seu
Derrida.
despertar. Carrega

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23 STATEN, Henry. Wittgenstein and Derrida. Lincoln: University of Nebraska Press, 1986.
24 “Subjacentes à oposição contra a voz metafísica, que eu acho que Austin e Wittgenstein compartilham com Derrida, existem todas as diferenças entre os

mundos das tradições das filosofias anglo-americana e continental, diferenças entre suas concepções de (e entre suas relações com) ciência, arte, cultura,
religião, educação, leitura, cotidiano. Enquanto Derrida e Wittgenstein vêem a metafísica e o cotidiano como ligados por contrastes, em Derrida, de forma
diferente do que ocorre em Nietzsche e em Platão, a filosofia guarda uma determinada realidade, uma vida cultural, intelectual e institucional autônoma, o que
em Wittgenstein não existe”. CAVELL, Stanley. A Pitch of Philosophy, Autobiographical Exercises. Cambridge; Londres: Harvard University Press, 1994, p. 63.
25 PERLOFF, Marjorie. A Escada de Wittgenstein: a Linguagem poética e o Estranhamento do Cotidiano. Trad. de Elisabeth Rocha Leite; Aurora Fornoni

Bernardini. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 32.


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despertar. Carrega em si o seu próprio fim e – como Assim como as ruínas reconhecidas por Benjamin a
Hegel já o reconheceu – desenvolve-o com astúcia. Nas partir do olhar sob os edifícios modernos, o conhecimento
comoções da economia de mercado, começamos a hermenêutico, para Agamben, seria uma ocupação com as
reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia ruínas do sentido e seus enigmas. Ambos os fragmentos
antes mesmo que desmoronem26. parecem carregados de uma visão que se afasta tanto da
lógica clássica aristotélica, cujas leis postulam a
A presença tutelar também do pensamento
impossibilidade das coexistências e contradições, quanto do
Benjaminiano na vasta obra de Agamben é evidente, neste
pensamento dialético mais ortodoxo. Eliminam-se aqui tanto
caso, não apenas por trazer no próprio título – Ideia da Prosa
as oposições/polaridades categóricas, quanto a ideia de uma
– seu programa, apontando para uma aparente indistinção
tese e uma antítese remeterem a uma síntese: interior e
de fundo entre linguagem e pensamento, mas talvez por nos
exterior passam a integrar-se mutuamente, como no
conduzir a uma aproximação sobre o lugar da linguagem no
exemplo matemático de uma faixa de Möbius, expressa a
pensamento de ambos os autores. A Ideia da prosa, nesse seguir através de uma gravura de Escher27. Parece não haver
sentido, representaria uma utopia de linguagem, a própria também uma linearidade, nem histórica nem temporal, mas,
língua experienciada, na qual, hipoteticamente, todos se ao contrário, uma mudança significativa na concepção da
entenderiam, apontando para uma impossibilidade de temporalidade, o que será interessante, em certo sentido,
existência de uma língua pura, universal e transparente. para pensarmos a noção de cesura, retomada por Agamben.
lindaaa jjjj
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26 Grifos nossos. BENJAMIN. Walter. Paris, die Hauptstadt des XIX. Jahrhunderts. In: Gesammelte Schriften. v. 5, pt. 1. Org. por Rolf Tiedemann. Frankfurt:
____
Suhrkamp Verlag, 1982, p. 43.
Apesar de ter em mente que outras citações de W. Benjamin poderiam clarificar sua evidente presença na obra de G. Agamben, como suas Teses sobre o
conceito da história, por exemplo, o trecho em questão torna perceptível a aproximação do pensamento dos autores, em especial sobre uma aparente
concepção de linguagem, ao discutir a questão de ato e potência não como uma oposição, mas como uma coexistência (Ideia do estudo). Nesse sentido, para
Agamben, toda potência é impotência e esta noção anfíbia acaba transitando entre o sim e o não e corroborando com a imagem que temos na citação de
Benjamin, a permanência da tensão, da latência, da coexistência.
27Gravura “Swans” (1956), de Maurits Cornelis Escher. Disponível em: http://www.mcescher.com/Gallery/gallery-recogn.htm.
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experiência. Assim como a origem da linguagem se


manifestaria na infância do homem, para o filósofo italiano
seria improvável pensarmos na existência de um sujeito pré-
linguístico, pois infância e linguagem estariam
intrinsecamente relacionadas. Como afirmou André Dick29,
parece-nos que a infância, para Agamben, seria o início da
profanação e da descoberta da linguagem - principalmente a
poética - e carregaria o sentido de toda uma existência.
Já no capítulo IX de A Comunidade que vem, intitulado
“Bartleby”, Agamben retoma a discussão do modo como se
daria a passagem da potência ao acto. A potência suprema
seria aquela que poderia se dar enquanto potência e
Em Infância e História28, o autor afirma ser “na impotência. Retomando Aristóteles, o pensamento seria a
linguagem e através da linguagem que o homem se constitui potência pura (isto é, também potência de não pensar) e é
como sujeito” e a linguagem de cada indivíduo pertenceria à comparado a uma pequena tábua de escrever na qual nada
comunidade com quem convive, pois a infância instauraria está escrito (a célebre tabula rasa)30. Agamben propõe ser
nela a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o
“graças a esta potência de não pensar que o pensamento
semântico, entre o sistema de signos e o discurso. Isso
pode virar-se para si próprio (para sua própria potência) e
indicaria ser o sujeito da linguagem o fundamento da
linguagem ser, no seu auge, pensamento do pensamento”31.

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28 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.56.
_______
29 DICK, André. Poesia e linguagem em Giorgio Agamben. Disponível em: http://unisinos.br/blog/ihu/2009/02/19/poesia-e-linguagem-em-giorgio-agamben.
30 AGAMBEN, Giorgio. Bartleby. In: A comunidade que vem. Trad. de António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p.34.
31 Ibidem, p.35.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 15

Dessa forma, o ato perfeito de escrita proveria não de Em Estâncias33, retomando novamente o pensamento
uma potência da escrita, mas de uma impotência que se de Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco
realiza como um ato puro. A figura de Bartleby é citada alemão34, Giorgio Agamben explora o tema da melancolia,
justamente como este “escrivão que não deixa simplesmente recuperando este conceito a partir do sentimento
de escrever, mas prefere não”32, representando a figura condenatório imposto pela religião, passando por um
extrema de quem escreve sua potência de não escrever. clássico texto de Freud35, Luto e Melancolia, sobre o assunto
Aliado a esta arqueologia da potência é importante até iniciar um diálogo com o conceito de “fantasma”,
pontuar o modo como Giorgio Agamben, partindo do sobretudo a partir da análise de uma obra de Dante (Vita
discurso linguístico de Benveniste (semântica da Nuova): “Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece
enunciação), coloca a língua como o lugar do evento de uma que nunca possui Beatriz – mas lamenta sua perda. Essa
subjetividade, já que a primeira pessoa do discurso perda do ‘fantasma’ que nunca possuiu indica uma
simbolizaria aquilo que há de mais singular, vazio e genérico. melancolia particular [...] A imagem – ou o fantasma da
Agamben convoca o processo, a desconstrução/embate melancolia – é gerada a cada instante de acordo com o
do/com (o) eu e, nesse lugar, nos apresenta a movimento ou a presença de quem a contempla”36. Para
impossibilidade de dizer “eu”. Portanto, ao refletirmos sobre Agamben, entre a percepção da imagem e o reconhecer-se
que sujeito seria esse de que fala o filósofo, passaríamos nela haveria um intervalo que os poetas medievais
necessariamente da noção de corpo às sensações e denominavam amor: poesia e amor são lugares da
seguiríamos para além do “eu”, através da linguagem da Voz. negatividade evidente para o filósofo. A descoberta do amor
como rreal e fantasmagórico também o coloca como
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
32 Ibidem, p.35.
__
33 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
34 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
35 Freud, Sigmund. Luto e Melancolia. Trad. de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
36 DICK, André. Poesia e linguagem em Giorgio Agamben. Disponível em:

http://unisinos.br/blog/ihu/2009/02/19/poesia-e-linguagem-em-giorgio-agamben.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 16

como irreal e fantasmagórico também o coloca como confundida com um simples ato de fala37. Nesse contexto, a
inalcançável. Dessa forma, o “fantasma” remeteria à dimensão da palavra “ser” seria aquela do “ter-lugar da
melancolia, a qual, por sua vez, indicaria a voz negativa da linguagem, e metafísica é aquela experiência da linguagem
morte, bastante explorada em A linguagem e a morte. que, em cada ato de fala, colhe o abrir-se desta dimensão e,
O motivo de retomarmos brevemente este panorama em todo dizer, tem, antes de mais nada, experiência da
da melancolia e do fantasma da linguagem para Agamben maravilha que a linguagem seja”38. Mas o que, na experiência
torna-se significativo para compreendermos de que maneira, do evento da linguagem, lançaria algo na negatividade? Na
em A linguagem e a morte, o autor propõe – partindo das tentativa de resposta a esta questão, Agamben se posiciona
leituras de Hegel, de Heidegger e Derrida – que a voz seria a afirmando que “a enunciação e a instância de discurso não
própria representação negativa da morte. Retomando as são identificáveis como tais senão através da voz que as
discussões sobre a metafísica para esses autores, o filósofo profere”39. O problema da voz passa a ser, portanto, a
italiano parece apresentar não o seu fim, mas uma fusão ou dimensão ontológica fundamental do pensamento do autor:
aproximação à própria linguagem, o que enriquece a ela mostra-se como “pura intenção de significar, como puro
proposta do ensaio. querer-dizer”40. O ser é e está na voz e não é simplesmente
Giorgio Agamben reivindica o problema da Voz como um mero fluxo sonoro emitido pelo aparelho fonador
questão metafísica fundamental para a discussão sobre a humano: a voz animal, por exemplo, poderia ser associada ao
linguagem e a morte, e como estrutura originária da mero som e ser o índice de quem a emite, mas não remeteria
negatividade. Retomando o conceito de enunciação para à instância de discurso, nem à esfera da enunciação, como faz
Benveniste, o autor relembra que ela não deve ser questão de pontuar Agamben. Assim, “o ter lugar da
confundida linguagem

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37AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.43.
_____
38 Ibidem, p. 44. 39 Ibidem, p. 52. 40 Ibidem, p. 53.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 17

linguagem entre suprimir-se da voz e o evento de significado igualmente, mostram este lugar como inencontrável. Nas
é a outra Voz [...] que na tradição metafísica, constitui a palavras do autor:
articulação originária da linguagem humana”41 e constitui
necessariamente uma dimensão negativa de pura A filosofia, que nasce exatamente como tentativa de liberar
temporalidade, “aquilo que articula a voz humana em a poesia da sua inspiração, consegue, afinal, reter a própria
linguagem é uma pura negatividade”42. Musa, para fazer dela, como espírito, o seu próprio sujeito;
Num certo momento de seu seminário sobre a mas este espírito (Geist) é, precisamente, o negativo (das
negatividade, Agamben afirma que a experiência poética Negative), e a voz mais bela, que segundo Platão, compete à
Musa dos filósofos, é uma voz sem som. (Por esta razão,
parece coincidir com a experiência da linguagem da filosofia:
talvez, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a
o elemento métrico-musical, diz ele, mostra o verso como
prosa possa jamais levar a cabo por si a própria empresa
lugar de uma memória e de uma repetição. O verso informa- milenar. Talvez apenas uma palavra na qual a pura prosa
nos que as palavras já aconteceram e que retornarão ainda, da filosofia interviesse, a certa altura, rompendo o verso da
que a instância de palavra que nele tem lugar é, portanto, palavra poética na qual o verso da poesia interviesse, por
inapreensível43. Musa seria justamente o nome dado pelos sua vez, dobrando em anel a prosa da filosofia seria a
Gregos a esta experiência da inapreensibilidade do lugar verdadeira palavra humana)45.
originário da palavra poética. Assim, proferir a palavra
poética significaria ser “possuído pela Musa”, ter experiência Pensamos ser esta uma maneira considerável de
do lugar originário da palavra implícita em todo falar encerrar este breve ensaio reflexivo, atentando novamente
humano44. Agamben retoma Platão, justificando o motivo de para o modo extremamente particular com que Giorgio
ter ele considerado a musa da filosofia como “a verdadeira Agamben promove a discussão e a dissolução categórica
musa”, apontando, assim, a questão que se prolonga desde entre os limites da filosofia e da literatura, mostrando-se um
sempre entre poesia e filosofia, já que ambas tentam autor verdadeiramente limítrofe ao se situar nesta
apreender o inacessível lugar original da palavra e, interseção.
igualmente

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41 Ibidem, p. 56. 42 Ibidem, p. 57. 43 Ibidem, p.107. 44 Ibidem, p.107. 45Ibidem, p.108.
Rodrigo de Faria
Arquiteto e Urbanista, Mestre e Doutor em História pelo IFCH-UNICAMP, Pós-Doutorado pela FAU-
USP e pela ETSAM-UP Madri. Professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
Brasília (FAU-UnB), e Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade –
CIEC/UNICAMP.
Contato: rs-dfaria@uol.com.br
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 19

O
Ruído do pensamento
Rompe a
Razão
Resiste ao seu desejo
Reluta e
Relativiza
Recriando o pensar
Recomeça o
Revelar
Retorna ao seu lugar
Reforça a Respiração
Regulando a sua intenção
Retilínea e
(ir)regular
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 20

Um poema branco
Escrito com letras brancas
Na página branca do livro que não tem palavras
Mas apenas folhas brancas
Ainda está por ser escrito.
A próxima página branca
Quer a tinta negra que exala do seu pensamento
Quer a tinta vermelha que escorre do seu corpo
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 21

Nos livros que leio


Nos livros que odeio
Nos poemas que creio
Nos versos que anseio
Na palavra que não veio
Na letra como meio
Escrevo sem por que
Escrevo sem pensar
Escrevo pra dizer
Que os livros que não leio
Não tenho coragem de abrir
Que nos livros que não leio
Não tenho coragem de entrar
Tiago Donoso
É graduado em Letras Vernáculas pela UEL e mestrando em Teoria Literária pela UNICAMP. Trabalha
como secretário na ANPOLL.
Contato: tiagobdonoso@hotmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 23

Hábito

Você se esqueceu de me vestir. Não vê que aos poucos torno- afoga em meu oceano feminino, e sua única saída para a total
me transparente? Por que troco de roupa? Por que você me incompreensão em que se encontra é fingir desinteresse,
vê tantas vezes no quarto, sempre me trocando, e trocando, e encarnar o cansaço, representar toda a dignidade da
trocando? É uma deflagração religiosa, é meu confessionário. indiferença – e estranha lógica a sua, a de que a indiferença é
Porém, era você quem deveria trocar-me, dar-me roupas, superioridade. Você pensa que não quer participar do meu
dizer a mim – quem poderia fazê-lo, eu? – que aquela roupa mundo, quando na verdade o que faz é exaltar sua
me assenta, que aquela outra roupa não sou eu; que sim, que incapacidade. Vi você alardear que quem é bom é também
estou pronta para existir, que posso voltar a apaixonar-me mau, porém não pode conceber que quem concede pode
por mim mesma... Troquei você por uma música, por outros, também pedir? – eu compreendo que minto, que sou também
por roupas que eu mesma vesti, porém os momentos não você quando te nego... Quando no fundo te pedi tão pouco!
existem. Você não me reconhece? Você não me reconhece. E, Sua confusão é memorável, e quando não choro sobre ela é
contudo, pedi; pedi que me provasse seu amor todos os dias, dela que rio: você crê que quero segurança; não é você quem
mas você considera um capricho da vontade o ato de dar quer segurança, quando se vicia em palavras que encaixotam
atenção. Dar atenção, para você, é um esforço penoso sobre o mundo, manufaturando pílulas? Segurança? Proteção?
todos os outros. A atenção é um segredo que você não quer Relacionamento? Ah... Você tenta dizer que o oceano é
contar, e quão irritado não fica quando tento extraí-lo? Seu natural enquanto se afoga. Pedi que me trouxesse roupas e,
amor, ou seu extravio relapso, a atenção, me são sem entender, era apenas isso que poderia fazer. Eu existo
imprescindíveis. Porém, eu não preciso amar. A palavra com símbolos; cada presente que você me dá é uma oferta a
amor, quando sai dos meus lábios, é apenas um pedido. E, uma divindade, divindade que não sou eu, embora eu a
aliás, o que haveria de errado? A palavra conceder não é represente. Traga-me roupas todo o tempo, é como se eu te
estritamente feminina? Talvez você não me ame mais. Mas ofertasse indicações. Cada vez que me traz um presente, é
sei que não sou uma desconhecida para você, porque se a uma chance de olhar a fechadura do absurdo que sou eu, sua
fosse, você me desejaria. Mas pedi tão pouco! Concedi, e você mulher. Mas você acha apenas que se livrou de um dever.
nunca imaginou que a concessão tem seu repuxo? Você se Isso não é assustador, eu o compreendo: foram os homens
xxx que
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 24

quem conseguiram, no alto de sua impassibilidade, queimar


animais para Deus em gestos anestesiados. Deus tampouco é
digno de sua atenção. Você não entende. Dão-se flores apenas
para as mulheres e para os mortos. Nós temos sgredos... E
pedi apenas para que me vestisse... Pedi à costureira que me
fizesse roupas que eu, sozinha, não poderia vestir ou despir.
Não vê você que são tristes todas as incontáveis vezes que
uma mulher, para prender ou livrar os seios, deve tatear-se
às costas, como uma habituada cega? Não vê as melancólicas
omoplatas apontando sob o tecido da pele? E não vê que
deveria ser você quem me daria as minhas costas? É isso o
que é um homem, a parte da mulher que ela não pode ver. É
você quem me dá as minhas costas e eu duvidaria de seu
amor se você não amasse minhas vértebras – se não as
tornasse as escadas dos teus dedos – e o meu avesso, e a
minha bunda, e a minha nuca. Não vê que para existir devo
existir também onde não me vejo? Não preciso de sua
segurança, de sua hombridade; preciso apenas lutar, e lutar
muito, porque desconfio de mim mesma. Não sou capaz de
amor. Quer a prova? Aqui está: sou também incapaz de tédio.
Uma mulher entediada é uma mulher que enlouquece. Traio,
sim. Eu o traí! E por quê? De certa maneira, para poder
conjugar verbos. Preciso existir, preciso de seu carinho
noturno, porque se você não toca a minha pele – eu não
quero
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 25

quero teu sórdido desejo, sintoma de sua total e procurava meu consentimento –, logo se ouvia o eco, essa
incompreensão – ela aos poucos desaparece. Preciso de espécie de espelho sonoro. E os visitantes sentavam-se nas
roupas, mas preciso também da pele do meu corpo. Ela cadeiras curvas, enroscadas de primaveras e cigarras mortas.
existe? Minha pele existe? Ela tem a cor que deve, que as Em seguida, olhavam-me – ignoro se você notava, isso não
peles devem ter? Devo queimá-la de sol, oferecê-la a você – e me era importante. Olhavam-me, e então eu me sentia
a todos os homens – para que em troca vocês digam: é pele, e diferente. Existia mais uma vez, porém, agora era distinto:
está aí? Preciso das palavras, também. Não tenho seu filho como se o visitante me chamasse por outro nome e esse
em mim e estou vazia, porém assim sou. Se o espaço é uma nome me assentasse. Descobria agora meu outro nome, que
das formas do vácuo, outra é a mulher. Você, que me seu companheiro amistoso me emprestava e que era oriundo
despreza, – desejo, piedade, desprezo; é preciso que você de sua infância, de uma sua vizinha, há muito tempo
escolha uma entre essas emoções, sabendo que o que você esquecida e que desaparecera de seu mundo, deixando
sente é também o que é, e quem sentiria por você? Você, que apenas um rastro, essa nomenclatura empoeirada. E esse
me despreza, saiba que sou sua salvação; a fonte de tuas nome me possuía, ou melhor, para que eu não caia em
orações, do teu amor; do teu desespero; a forma encarnada engano mais uma vez: eu possuía esse outro nome, tão
do teu caos; o monumento que pensou construir, e que íntimo, e tão impróprio... Em casa, pedia apenas para que
abdicou sabiamente pelas minhas formas que te enganaram você me vestisse, mas saiba agora que não preciso de suas
tanto que nunca pensou seriamente no fato de que não eram roupas. Saiba agora que nunca falei com você. Eu sou o
imutáveis senão quando já principiavam a mudar. Eu sou seu círculo; você é o adubo mudo, a jornada rápida do camareiro.
totem absurdo, agora saiba: você ora para o vazio, você ama Você tem a existência, porém, não sabe o que fazer dela. Eu
o vazio. E é o vazio fundamental de um buraco negro o que sou a fêmea da existência, a concavidade. Sem mim você
transforma retas em curvas, cores que indicam veneno. A encarna a inutilidade da arte, dos grandes engenhos, da
porta dos imensos arabescos, que levava à nossa casa, você impaciência – formas de fugir de mim para me encontrar. Já
se lembra? Entrava-se e, ao pedir licença ao dono da casa – vi – entre meus inúmeros amantes – o artista. Ninguém foi
acreditavam que era você o dono, quando, na verdade, falava mais patético. Eu o assistia com um sutil e malévolo riso
interno.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 26

interno. Era risível: todas as vezes que criava parava para prova, quero possuir seu amor: me nomeie quem deseja o
masturbar-se. Era como se chorasse. Seu membro era uma que possui? Você acreditava, seriamente, que quando eu
prova de que toda arte era um equívoco, um desvio de gemia: “Ai, amor”, estava a dizer que o amava? Ou conseguiu
conduta. E eu esparramava-me, a mim e ao meu sorriso – compreender que eu mencionava aquilo que você me
meu sorriso desenhava úteros dentados – pelo sofá, oferecia? Nunca! Não te obedeço! Dê-me a existência, e com
esperando que falasse. Cada palavra, então, me enchia um ela povoarei o mundo com outros seres introvertidos. Agora,
pouco, e eu me abria, lançava aromas de flor e de pântano no que nos abandonamos, usarei vez ou outra as roupas que
quarto, bem aos poucos, numa obediência obscena e você me deu, junto com as cartas, suas e dos outros, e os
controlada – ah, nunca fui assim com você?! Talvez porque animais – meus irmãos de caos – que você reduziu a clichês
você não me tenha merecido. Eu era o vazio aberto, o oco que de pelúcia. E não me toque demais! Tenho saudades de
ele desejava. Então, abria meu olho, meus lábios, e apodrecer lentamente com as cascas da fruta. Onde estava
pronunciava qualquer coisa que não me interessava. Mas se com a cabeça quando pedi que me vestisse? Tire suas mãos
ele, por outro lado, me pedisse um pouco do meu gosto de mim, só a mulher tem mãos humanas. Gravatas, golas,
salgado e do meu sublime vazio sem que houvesse cintos, cadarços: a arte de vestir-se é para vocês a evolução
participado – como quem crê que elabora – de todo o ritual do nó, prima civilizada da arte do enforcamento. E saiba que
em homenagem ao nada, então principiaria nossa minúscula sofro sempre para me despir, porque a nudez é minha
guerra. E ele, que crê que a guerra é seu território, não veria penúltima transparência. E que no fundo não disse a verdade
que era eu quem transformava lágrimas em munição. Nem – posso ainda me arrepender? Assim me visto: meu hábito é
ele nem você nunca notaram. Eu sou a reconhecedora de ser cruel comigo mesma.
talentos, a que se subleva, a insurreta que exalta os feios e os
caprichos – quantas vezes precisarei dizer que não amo, que
não preciso amar? Amar não faz parte de meu obstinado oco,
e não preciso da beleza senão em mim; a beleza alheia é uma
roupa que visto: logo não me servirá mais. Meu ciúme o
prova,
Ana Maria Côrtes
Cursa Letras no Instituo de Estudos da Linguagem (IEL), na UNICAMP.
Contato: anamariacortes@gmail.com.
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Jogos Vorazes, de autoria Capital de treze distritos unidos que trouxe paz e
da escritora e roteirista prosperidade a seus cidadãos”. A realidade nos distritos,
americana Suzanne Collins, é o porém, pouco se alterou com a formação do novo Estado e, o
primeiro romance de uma que talvez seja mais importante, a população não se deixou
trilogia homônima, narrado por convencer pela doutrina da Capital.
Katniss Everdeen, jovem de 16 Subjugado e explorado, o povo de Panem organizou
anos que vive em Panem, nação um levante que ficou conhecido como os Dias Escuros, cujo
erigida, em um futuro impreciso resultado foi a manutenção do poder pela Capital, que
e pós-apocalíptico, sobre os destruiu o décimo terceiro distrito e elaborou novas leis,
escombros daquilo que, hoje, mais severas, com o objetivo de garantir a ordem nos doze
corresponde aos Estados Unidos restantes. Além disso, “como uma lembrança anual de que os
da América. Dias Escuros jamais deveriam se repetir”, criou os Jogos
O romance se constrói, a partir daí, com base em Vorazes, competições nas quais dois jovens de cada distrito,
referências que vão desde a mitologia grega e a história da um garoto e uma garota, com idade entre 12 e 18 anos, eram
Roma Antiga até os clássicos da ficção científica, como 1984 e sorteados e compulsoriamente arrastados a um campo de
Admirável mundo novo. batalha do qual somente um deles sairia com vida. Como se
Panem surgiu das cinzas, após uma guerra sangrenta não fosse suficiente, o governo ainda decidiu transmitir os
pela sobrevivência, em uma América do Norte devastada por Jogos Vorazes para toda a Panem, transformando a morte
calamidades naturais semelhantes àquelas que vêm sendo, anual de 24 de seus mais jovens cidadãos em um espetáculo
nas últimas décadas, prenunciadas por ambientalistas das televisivo, mostrando o extremo a que o culto aos reality
mais diversas partes do globo. “O resultado”, de acordo com a shows e à exposição intensa de nossas vidas privadas pode
propaganda de seu governo, “foi [...] uma resplandecente chegar. Os Jogos Vorazes representam, na narrativa, a
nidu ljgljhyvljvh
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¹ COLLINS, Suzanne. Jogos Vorazes. Trad. de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010, p. 24. 2 Ibidem, p. 24.
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dimensão à qual o Big Brother (de Orwell) pode alçar o Big a Londres de 1984: fria, cinzenta, habitada por homens e
Brother (o programa): um meio muito mais intenso, perigoso mulheres abatidos e que sofrem com os constantes “esforços
e útil a seus propósitos de alienação e controle dos cidadãos. de economia”3 do Governo, responsável pelos cortes de
Nesse sentido, a autora concebeu uma sociedade com energia e racionamento dos mantimentos. Contudo, o governo
pontos de intersecção com a nossa, na qual as vidas dos da Capital não chega nem perto de ser forte e repressor como
habitantes da Capital giram em torno da aparência (própria e aquele descrito por Orwell, não havendo real controle sobre
alheia), de julgamentos estéticos e de factoides criados por alta tecnologia as mentes dos cidadãos, nem uso da força
uma espécie de órgão de imprensa que se ocupa das estatal ou da disponível como formas de dominação; a única
celebridades do momento, tal qual ocorre na sociedade do exceção a essa regra é a realização anual dos Jogos. Assim, um
entretenimento e do espetáculo da contemporaneidade. possível debate sobre a autoridade do Estado acaba deixado
Há, ainda, outras questões contemporâneas que a de lado na narrativa.
autora procura abordar, mas sem sucesso, tais como a O uso da tecnologia também está presente em Jogos
exploração de classes; os experimentos com plantas e Vorazes, mas, novamente, o tema é abordado de maneira
animais; a utilização de Aparelhos Ideológicos do Estado, nos superficial. A tecnologia, no romance, é um luxo, responsável
termos de Althusser, para garantir a manutenção da ordem; por melhorar a aparência dos habitantes da Capital, de acordo
o controle das classes dominantes; e o Estado policialesco, com as últimas tendências da moda, ou por fornecer-lhes os
antecipado por George Orwell em 1984. Esses pontos, que pratos mais refinados com apenas um clique. Não há, como
aparecem em evidência no início do romance, servem, ao em Admirável Mundo Novo, o emprego da técnica com o
longo da narrativa, mais como pano de fundo, do que como intuito de aprimorar geneticamente alimentos e indivíduos, o
temas a serem de fato desenvolvidos. que permitiria discutir questões como o papel da tecnologia
A descrição do Distrito 12, no início do romance, por no aumento e na maior eficiência e produtividade da indústria
exemplo, se assemelha àquela feita por Orwell ao apresentar e as garantias de controle social que isso propiciaria.

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3 ORWEL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 11.
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No romance de Collins encontram-se apenas de Além dos paralelos com o mundo atual, contribuíram
tentativas frustradas manipulação genética, responsáveis, também para a arquitetura desse cenário distópico as
por exemplo, pelo aparecimento do mockinjay (traduzido referências de caráter histórico, que apontam, não para onde
como tordo, expressão que não carrega a origem dessa nossa sociedade se situa, mas para os caminhos que ela já
espécie, criada por acidente a partir do cruzamento de percorreu, em termos de espetáculo, violência e exploração.
tordos com gaios tagarelas) – que se voltará contra a Capital, Um dos exemplos cabais encontrados na narrativa é o do
ao invés de ser utilizado por ela, apontando, mais uma vez, próprio nome da nação na qual se desenvolve o romance,
para a constituição frágil do Governo de Panem, a despeito Panem.
dos instrumentos que tem a sua disposição. A divisão da Panem et circenses designa uma política da Roma
sociedade em grupos responsáveis por determinadas tarefas, Antiga de financiamento, por parte das elites, de lutas de
análogos às castas da obra de Huxley, também aparece no gladiadores que entretinham a plebe -e também as classes
livro como uma oportunidade desperdiçada de se discutir os dominantes-,5 transformando a morte em um espetáculo, à
extremos a que se poderia chegar com a especialização do semelhança do que se dá com os Jogos Vorazes em Panem, a
trabalho. nação. Além do sugestivo nome do país, a autora se
Ainda assim, a partir do panorama acima descrito, preocupou em tornar a descrição dos Jogos próxima à dos
pode-se afirmar que a obra constrói uma distopia, na medida combates entre gladiadores, em que se luta em uma arena
em que “a realidade”, em Jogos Vorazes, “não apenas é pela vida.
assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências Ainda no espectro da história da Roma Antiga,
negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material podemos destacar a personagem Cinna, estilista de Katniss.
para a edificação da estrutura de um mundo grotesco”4. Seu nome remete a Lucius Cornelius Cinna, político romano
parale do
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4 BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Utopia, distopia e história. In: MORUS – Utopia e Renascimento 2. Campinas: 2005, p. 6.
5 GUARINELLO, Norberto Luiz. Violência como espetáculo: o pão, o sangue e o circo. In: HISTÓRIA. São Paulo, v. 26, n. 1, p. 128.
6 Informações sobre a vida de Lucius Cornelius Cinna disponíveis em:

http://social.rollins.edu/wpsites/mosaic-witness/2013/10/20/lucius-cornelius-cinna-war-against-the-state-to-save-the-state/.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 31

do século I. a.C. e líder do partido popular. Sua notoriedade Apesar da grande quantidade de referências, falta, em
histórica se deve ao fato de ter dado, ao lado de Gaius Marius, Jogos Vorazes, desenvolvê-las, de modo a explorar a base
um golpe de Estado que culminou no período conhecido fértil sobre a qual foi construída a narrativa, que,
como “A Dominação de Cinna”6. Do mesmo modo que a inicialmente, aparenta ser bastante pretensiosa em suas
personagem histórica, o Cinna de Jogos Vorazes é um grande críticas aos valores da sociedade contemporânea, mas, ao
líder e articulador político, ao mesmo tempo em que suas final, é incapaz de desprender-se deles. Não se pode negar,
ações se restringem à aparência, à superficialidade, sendo o porém, que o texto de Collins se encontra plenamente
responsável pelo sucesso de Katniss e Peeta diante do desenvolvido, de uma perspectiva de sua construção
público, em virtude dos figurinos que elabora para o casal, a ideológica. Os paralelos entre a política e a história dos
cada nova aparição, e pela suposta imagem de rebeldia da Estados Unidos e a nação fictícia criada para o romance são
protagonista.
inúmeros e apontam para uma argumentação de cunho
Há, também, uma referência mitológica que parece
conservador e republicano por parte da autora, que cria, com
central na construção do enredo. Em Panem, 24 jovens são
seu texto, uma espécie de alegoria da sociedade americana.
forçados a se entregar aos Jogos Vorazes, do mesmo modo
Panem é uma nação erigida a partir de treze Distritos, assim
que, na Creta da mitologia grega, sete rapazes e sete moças
como as Treze Colônias deram início aos Estados Unidos. A
eram imolados a cada ano, tendo de enfrentar o Labirinto do
Capital, cuja autoridade deve ser contestada, é governada e
Minotauro, em virtude dos arbítrios do rei Minos. Além disso,
habitada por homens e mulheres com nomes latinos8, em
assim como Teseu, que se ofereceu para sacrificar sua vida
ao Minotauro7, Katniss decide se entregar como tributo para oposição aos cidadãos dos Distritos rebeldes, com nomes
os Jogos, a fim de poupar, ao menos por mais um ano, a vida anglo-saxões e relacionados à natureza, entre eles, a heroína
de sua irmã mais nova, que havia sido originalmente Katniss. Já as referências à história de Roma traçam um
sorteada, e esse ato é o ponto de partida da narrativa. paralelo entre essa sociedade e a de Panem, reforçando a
ideia
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7 A versão do mito de Teseu e o Minotauro aqui apresentada baseia-se no texto disponível em O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis.
BULFINCH, Thomas. O livro de outro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, pp.153-156.
8 Citamos, a título de exemplo, Flavius, Octavia e Venia, equipe responsável pela preparação de Katniss; Seneca Crane, realizador dos Jogos; e Plutarch

Heavesbee, presidente de Panem.


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ideia de que o romance descreve um momento de decadência Percebe-se, assim que, em termos políticos, as
e barbárie, no qual a aparência e o espetáculo estão em referências presentes na narrativa apontam para uma visão
primeiro plano – não é de se surpreender, portanto, que a bastante conservadora da situação política dos Estados
Capital se situe justamente a oeste das Montanhas Rochosas, Unidos, ainda que as críticas se deem de modo muito mais
onde se assenta Hollywood, coração da indústria cultural simbólico do que explícito. No entanto, no que tange à
norte-americana. construção da narrativa, as relações de intertextualidade
Além disso, o termo original para Capital é Capitol, ou, permanecem subaproveitadas e surgem como pouco
em português, Capitólio, mesmo termo utilizado para relevantes para o desenvolvimento das personagens.
Parece que isso se dá porque, em primeiro plano na
designar a sede do governo dos Estados Unidos. Na narrativa,
narrativa, encontra-se a história pessoal de Katniss. A
o Capitólio deve ser derrubado, por ser um poder autoritário
realidade de Panem acaba relegada ao segundo plano, pois
que mobiliza todos os esforços da Nação em torno dos
todas as informações reveladas ao leitor passam por Katniss,
interesses de sua própria classe – os latinos. Considerando-
narradora-personagem cujas preocupações, em inúmeros
se que o texto de Collins foi publicado originalmente em momentos, se distanciam das questões políticas e sociais de
2008, período de ascensão Democrata no Congresso e ano da seu país.
eleição de Barack Obama como presidente, pode-se Na realidade, a maior parte de seus questionamentos
questionar se ela não escreve contra um governo e um se aproxima daqueles de um adolescente estereotípico dos
partido apoiados pelas populações imigrantes, especialmente dias atuais, para quem a vida pessoal e, mais
aquelas de origem latina, em um momento no qual esses especificamente, a vida amorosa, está no topo de suas
grupos iniciavam um processo de empoderamento prioridades. Em grande parte da narrativa, por exemplo, ela
respaldado pelas autoridades, cujas ações passaram a levar discute consigo mesma seus sentimentos em relação a Gale,
em conta sua situação nos Estados Unidos, indo de encontro seu melhor amigo, e Peeta, o outro tributo do Distrito 12,
à posição Republicana de restrição de direitos e da entrada com quem a orgulhosa Katniss sente que tem uma dívida, por
de imigrantes no país. ele tê-la ajudado anos antes. Além disso, em diversas
passagens
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passagens, seu comportamento soa conformista e ela ainda As informações de que dispomos são aquelas anteriores a
faz questão de frisar sua falta de engajamento político e sua entrada na Arena - as quais não argumentam a favor da
preocupação exclusiva com a sobrevivência de sua família. popularidade de Katniss.
O leitor acaba, assim, vendo o universo de Panem de A opção pelo foco narrativo em primeira pessoa falha,
maneira bastante limitada, por ter acesso somente ao que a nesse aspecto, uma vez que a autora baseia sua história em
narradora-protagonista sabe e revela. Por um lado, isso se dá fatos que, em momento algum, são mostrados ao leitor.
por ser essa uma característica do narrador em primeira Assim, este se vê forçado a acreditar que a garota sem
pessoa, e, por outro, pelo fato de a protagonista não enxergar nenhum carisma e cujos interesses e ações passam muito
longe de disputas políticas, em um passe de mágica, tornou-
– porque não deseja, ou, simplesmente, porque é incapaz de
se o símbolo nacional da rebeldia contra a ditadura da
fazê-lo – além de seu próprio umbigo. Desta forma, parece
Capital. Também não sabemos como foi a cobertura dos
improvável que as ações supostamente rebeldes de Katniss
Jogos, nem de que maneira o presidente Snow e os
tenham algum efeito sobre os telespectadores dos Jogos
Idealizadores dos Jogos interpretaram as ações de Katniss,
Vorazes.
ou o que fizeram para tentar minimizar seus supostos
Pode ser que, realmente, as atitudes de Katniss efeitos. Tudo de que dispomos é a interpretação dela de sua
tenham motivado as manifestações. Para o leitor, porém, participação no programa, que é bastante limitada. Por esse
nada indica que a participação do tributo do Distrito 12 nos motivo, o crescimento da personagem junto à população de
Jogos tenha causado impactos reais nos cidadãos de Panem. Panem, se de fato houve, como pretende fazer acreditar a
Sua preocupação com as câmeras e com a maneira como será autora, escapa ao leitor – e uma das principais causas é o
retratada são constantes e, até mesmo, repetitivas, o que faz foco narrativo escolhido.
parecer que ela quer chamar a atenção do público, mas para Por outro lado, ainda que, após todas as críticas
vencer, não para iniciar uma guerra contra a Capital. O leitor levantadas, a protagonista e a opção por narrar a história
também não tem nenhum retorno sobre como ela está sendo exclusivamente de seu ponto de vista parecem adequados
percebida pelo telespectador. em termos mercadológicos, se considerarmos as tendências
dos
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dos últimos anos, no que diz respeito à literatura infanto- blogueira de livros e quadrinhos da cultura pop, vem sendo
juvenil. Livros como Crepúsculo (Edições Galivro, 2006), Hell construído nas últimas décadas acerca dos adolescentes na
(Editora Intrínseca, 2003) e, agora, Jogos Vorazes, que vem sociedade contemporânea. De acordo com a blogueira, livros
alcançando um sucesso estrondoso9, apostam em e seriados que retratam a juventude mostram jovens que
protagonistas femininas e discutem questões próprias do
universo adolescente, como a descoberta do amor, o medo Não sabem reagir aos nãos da vida, porque foram
em relação ao presente e ao futuro e a morte, a partir de uma ensinados que são especiais; ou a de pessoas tão obcecadas
das narrativas em primeira pessoa. por elas mesmas que têm dificuldades em lidar com o outro
As protagonistas, porém, ao contrário do que se [...]; ou ainda a de jovens que foram tão sufocados pelas
poderia esperar, não são jovens fortes e decididas, mas exigências da sociedade que não sabem mais o que fazer e
garotas extremamente passivas e egocêntricas, incapazes de assim se rendem a um conformismo [...].10
tomar decisões e que insistem em se autoproclamar Mesmo em se tratando, no caso de Jogos Vorazes, de
diferentes, únicas, como se fossem seres especiais aos quais um universo distópico, com regras próprias e bastante
nenhum outro pudesse ser comparado. Katniss se diversas daquelas que regem as relações políticas e sociais
autodefine, ao longo do romance, precisamente assim, como
na atualidade, predomina, por parte das personagens -e, em
uma garota diferente das demais, com qualidades e defeitos
particular, da protagonista, pois é através de seu discurso
que fazem dela, mesmo que involuntariamente, mais
que temos acesso à sociedade em que vive-, um
interessante, bonita e inteligente.
Esse retrato condiz com aquele das produções descolamento em relação à realidade e uma predominância
culturais que, segundo Aline Valek, redatora, roteirista e de conflitos internos e alheios à vida que as cerca.
bloguqie

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9 De acordo com a Wikipédia, já foram vendidas mais de 23 milhões de cópias por todo o mundo, fazendo com que a trilogia integre a lista dos livros mais

vendidos no mundo. Informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_livros_mais_vendidos. Segundo reportagem do jornal Folha de
São Paulo de 04/01/2014, Suzanne Collins, autora de Jogos Vorazes, é recordista de vendas no Kindle, aparelho de leitura de livros digitais da Amazon.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/01/1392972-segmento-juvenil-vive-boom-de-formula-dos-romances-distopicos.shtml.
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Collins parece, assim, ter optado pelo caminho mais Nesse contexto, o primeiro livro da série surge como
fácil, colocando um ótimo enredo de lado, para dar destaque um prólogo de 400 páginas para um outro romance no qual o
a um romance juvenil que, apesar de se passar no futuro, universo distópico será substituído por um universo
mantém, como mencionamos, a mesma estrutura de outros eutópico, que aponte “o que fazer após a ditadura e seu
romances adolescentes atuais de sucesso. Além disso, o livro sistema de apoio ruírem”.1 Pode ser que Em chamas, livro
parece apontar para um movimento maior, de revolta, tendo que dá sequência a Jogos Vorazes, seja uma alusão à Panem
em vista a insatisfação popular que a protagonista relata incendiada por revolucionários que será retratada. Mas
desde as primeiras páginas, mas do qual o leitor não possui também pode ser que seja apenas a continuação da história
da Garota em chamas, Katniss Everdeen, e seu dilema
nenhum vislumbre.
amoroso.

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11 SARGENT, Lyman Tower. Do Dystopias Matter? In: VIEIRA, Fátima (ed.). Dystopia(n) Matters: On the Page, on Screen, on Stage. Newcastle: Cambridge

Scholars Publishing, 2003, p. 10. Tradução minha. O excerto original, que apresenta uma definição de eutopia, é o que segue: “But the problem is what to do
after the dictatorship and its supportive apparatus go, and that is where we need eutopia.”
João Gabriel Mostazo
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: j.mostazolopes@gmail.com
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Finalmente me tornei um poeta contemporâneo

Como disse Humberto Mendes Como disse Roberto Bibini Como disse Robinson Crusoé
Em A porta do Diabo Em Por qué comer duraznos Em Tomber dans le restaurant
Traduzido por Ricardo Bosch Traduzido por Marcos Palhures Traduzido por Juan Almostásin
Como Devil’s Door Como Por quê comêr pêssegos Como La queda en el comedor
Citado por Lázslo Vega Citado por Lawrence Chad Citado por Jean-Pierre Langlois Aujourd’oui
Em Da poética esclarecida Em The formidable structure Em Deux problèmes ordinaires
Sobre Letícia T. M.: Sobre Luana Maldini: Sobre Inês Conrado das Dores Côrtes Sóbria:
Não raspe, querida. Deixe assim. Por trás. Eu quero por trás. Aí.
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Triângulo de acrílico sobre praia

Uma mulher muda uma vela de lugar


Pela décima vez.
Outra ergue um totem de madeira
Sem nem saber que o faz; Em uma casa (que está aqui
Devia agradecer a deus Na falta de melhor imagem
Pelos joelhos que tem. De falsa geometria de acrílico),
Cada um dos espetáculos
Enquanto isso numa taboa de corte Ocupa o vértice que lhe cabe.
Um corte aguarda um fio que lhe abra – Cada qual respeitosamente alheio
Já palpita em hipótese Aos outros e à maré cheia
E parece entusiasmado com isso Pesquisa minucioso
(Deseja cumprir com competência O silêncio que melhor lhe cabe.
Mas competência ele não pode ter).
Eu os observo, ileso,
Um deus de uma classe dominante Mastigando bolachas de areia
Toma a forma de um cisne atrapalhado
Para subverter a Inutilidade,
Durante os quais, numa boate da corte,
Instantes como esse são ignorados.
Longos episódios mitológicos
Desconsiderados
Quando os garçons oferecem conjuntos de blocos de montar
Sobre bandejas de prata.
Fábio Mariano
Graduado em Estudos Literários pela Unicamp e professor.
Contato: whoishirion@gmail.com
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Travessia

Não foi na estrada.


O cinema, que já fora a ponte entre mim e Germano
Quando vi Bernardo pela primeira vez, pensei que
seria uma espécie de ruína aquilo de conhecer alguém cuja Mabel, foi também a ponte entre mim e Bernardo, embora ele
beleza não se pode superar. Não sei até que ponto as coisas só tenha sido informado disso algum tempo depois. Durante
se transformavam em escudo, em trauma, em para-raio, em nossa infância, Cartago abrigou, por certo tempo, um cinema
pedra ou em barril de nitroglicerina: os olhos dele bastante interessante (que fora, em primeiro lugar, um
despedaçavam as pessoas a quem se direcionavam, não em cineclube universitário) localizado numa antiga escola
arrogância, mas numa espécie de suspensão que me profissionalizante na Rua Lírio Negro, entre um açougue e uma
lembrava um caderninho que eu roubara de um professor de loja de aluguel de trajes de gala. Foi ali que, pela primeira vez,
literatura, em cuja capa li pela primeira vez os versos
vi: um filme de Costa-Gavras; o documentário A Sociedade do
preferidos de Ezra, Let us go then, you and I, When the evening
Espetáculo, de Guy Débord; Exílios, filme argelino que me fez
is spread out against the sky Like a patient etherized upon a
table, e então nada; o caderninho em branco que guardei compreender o que significava uma metáfora, numa cena em
para rabiscar, de vez em quando, alguns retratos. Tentei que um dos personagens enterra o próprio violino ao decidir
algumas vezes esboçar aquele rosto, mas só alguns dias abrir mão de sua roupagem cultural francesa e buscar suas
depois de conhecer Germano Mabel e a mãe de Bernardo, origens argelinas; e as obras primas do cinema britânico dos
Heloísa Dantas (sobre quem preferiria não ter que falar, se anos 60. Lá também, na sala única e de cadeiras duras de
essa escolha me fosse dada), é que pude finalmente conhecer madeira do Kino, foi que o vi.
a criação perfeita de um ventre perfeito num invólucro Germano, depois de me descrever seu melhor amigo e
perfeito. Heloísa, que me foi apresentada por Germano no
irmão, me fez compreender que logo eu o conheceria. E embora
segundo café que tomamos, era alta, muito alta, e altiva; era,
minha relação com Bernardo fosse a mais distante possível,
em poucas palavras, um desses membros inconfundíveis de
uma aristocracia milenar, que será reconhecido pela própria tínhamos a mesma sede incurável de filmes; como eu, ele não
radiação da bomba atômica, à qual se revelará, na hora tinha visto nem um décimo dos filmes que Germano conhecia.
decisiva, imune. E só de uma mulher como aquela é que Éramos, assim, parceiros naturais do Kino, que contava com um
poderia surgir um homem como Bernardo Dantas Moura. café/bar para discussão depois de cada sessão.
ocinema
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O dono, Décio, conhecia de longa data Heloísa Dantas, captação, o tipo de linguagem empresarial que aprendíamos
e costumava conversar conosco sempre. Sobre o pai de nas festas a repudiar sem ter aprendido a compreender.
Bernardo pouco sabíamos, e me parecia que nenhum dos Bernardo, após termos visto um filme argentino sobre um
dois estava interessado na troca de informações sobre quem professor, se lembrou de uma bronca que foi dada em um
fora ou o que fizera. Órfão Bernardo não era, mas era como babaca de sua sala, um desses metidos a intelectual que
se fosse. Diante de Décio, se comportava do modo como esse sonha desbancar o professor de história, mas sabe menos
gostava, conversando numa relação bastante horizontal. Os história que o professor de biologia. Tita, Décio, o professor
anos que ele e o outro dono (cujo nome não sabíamos e quem virou pra ele e disse É, o sonho acabou, mas ainda vende na
não conhecíamos) demoraram pra conseguir uma sala padaria, Eu já volto, foi assim que Décio disse, Eu já volto, e
própria foram, a passos largos, sendo carcomidos pela de fato voltaria, alguns minutos depois, justificando, com
própria cidade. Aos poucos o cinema esvaziava; cada vez muita polidez, que tivera um problema burocrático,
menos pessoas compareciam. As conversas, que quase expediente ao qual sempre recorria. Décio ainda conversou
sempre contavam com algum metido a intelectual que, no conosco por mais duas vezes; depois, saiu em turnê com sua
fundo, era só um aluno de cursinho ainda desprovido do seu banda por alguns meses; quando voltou, o Kino já tinha
miraculoso ingresso para a universidade, foram se tornando assumido a condição de sonho estilhaçado, a impossibilidade
triângulos entre mim, Bernardo e Décio. Depois disso, o (dolorosa) de se manter.
próprio Décio, firme, se tornou mais calado. Não tínhamos
idade nem malícia suficiente para perceber o que estava
acontecendo, e nem mesmo para ver aqueles filmes; mas
tínhamos o ímpeto, e o sonho de que o ímpeto bastasse. E no
rosto de Décio o que víamos era só cansaço, talvez porque a
seleção de filmes se tornasse cada vez mais difícil, já que o
mundo parecia (como sempre parece) caminhar para um
abismo e a qualidade do Kino continuava impecável; talvez
porque a ausência significasse mais esforços de publicidade,
captação, o tipo de
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Eu e Bernardo já tínhamos nos aproximado Foi por isso que não pude, por mais que quisesse
fatalmente, e já nos tornáramos, nesse ponto, algo mais que compartilhar a dor disso com ela, convidá-la à última sessão
companheiros de cinema. Só não naqueles momentos. Era do Kino, ao piccolo finale que o cinema se reservou. Décio já
um processo alquímico: íamos ao cinema e, quando saíamos, não estava mais presente, a banda o ocupava cada vez mais, e
éramos eu e um filme, ele e um filme, mas nunca eu e um a sensação de que algo aconteceria foi a única coisa que nos
passado e um filme ou eu e um presente ou eu ou ele e manteve firmes em presenciar aquela espécie de funeral. O
qualquer coisa a mais; nada do que nos acontecera até ali último filme que vimos, combinamos na entrada, não seria
servia a não ser que passasse, fundamentalmente, por uma discutido, a não ser que o Décio estivesse lá, o que era uma
evocação do filme, uma comparação. Qualquer pessoa que forma de garantir pelo menos um de dois confortos: o de que
tentasse compreender uma conversa entre nós três (e mais não teríamos de ver, na cara de Décio, o choro que ele
tarde nós dois) precisaria ter visto o filme; qualquer uma que sempre nos escondera ou o de termos recebido uma espécie
o tivesse visto só precisaria se sentar e escutar com atenção. de sinal de que as coisas seriam reversíveis. Não o vimos.
O que acontecia depois daqueles filmes não era só Quando saímos, Bernardo quis ir ao café, e tomamos, pela
insubstituível, era a prova de que existe uma espécie de primeira vez, cervejas numa quantidade razoável para
aproximação no mundo, algo que poderia parecer termos de voltar de táxi, e não caminhando, para casa. A
adolescente ou infantil, não fosse tão frágil quanto a fase sessão teve pessoas chorando, um sentimentalismo piegas,
entre a infância e a adolescência. Miriam, que sempre insistia que quase estragou a tristeza de verdade, aquela que se pede
em me acompanhar ao Kino, não compreendia o que que seja piegas para se ver a recusa ao papel da pieguice; de
acontecia ali, e nas duas vezes em que tentei levá-la, ela resto, havia ali pessoas que vieram sinceramente dar um
tentou fazer algum tipo de relação entre o que acontecia em último adeus, entre elas algumas que, não por hipocrisia, mas
sua vida e algum aspecto do filme, e não o inverso. E isso, na por alguma circunstância, faziam parte das estatísticas de
nossa gramática das exceções ao mundo, dos sonhos (ainda esvaziamento da sala de cadeiras duras. Em algum ponto da
que dilacerados), não era só completamente proibido; era conversa, que fatalmente se voltou ao filme que víramos,
absolutamente imperdoável. percebi que Bernardo tentava me dizer algo, e que, no
entanto, falhava. Ele olhava com os olhos duros para uma
garrafa, que girava apoiando com o indicador, inclinada, para
a esquerda e
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entanto, falhava. Ele olhava com os olhos duros para uma deve ser assim), e então foi a minha vez de apoiar com o
garrafa, que girava apoiando com o indicador, inclinada, para indicador um copo (e não uma garrafa) de cerveja, de girá-lo
a esquerda e de novo para a direita. Tita, ele disse, Você sabe para a direita e para a esquerda, e dizer Eu não amo a a
que minha mãe conhece o Décio, e eu disse Claro Bernardo, Miriam, eu não amo Miriam Gagliardi, Bernardo, com o que
ele vive falando e você também sempre fala disso, acho que ele pareceu de alguma forma satisfeito, não como um abutre
ele é até, e então percebi que estava atrapalhando, calei-me, que espera a sua vez, mas simplesmente satisfeito por eu ter
ao que ele, olhando para mim, mas não mais como alguém finalmente conseguido dizer isso, ainda que, até aquele
que gira uma garrafa, e sim como quem já perdeu a passagem momento, não houvesse nenhum indício, na minha cabeça,
de volta para essa dimensão, que já sabe que não vai voltar, de que eu não amasse minha namorada, e a verdade é que
ou que acredita piamente que não vai voltar, e tendo se até ali eu a amava, mas logo depois Bernardo me diz Meu pai
conformado com isso, é incapaz de se reconhecer na mesma nunca ficou sabendo, embora ele tenha sabido de outros
dimensão de onde nunca deveria ter saído, Ela teve um caso casos dela, Bernardo, qual é a última lembrança que você tem
com ele alguns anos atrás, e então me bateu uma vontade do seu pai?, Ele falava muito “fode”, “foder”, “foda-se”,
louca de perguntar mais sobre isso, perguntar, enchê-lo de mesmo quando eu era criança, o que não é merda nenhuma
perguntas, ali, depois de um filme, de devorar toda a de situação temporal, mas que pode ajudar, e então, por
informação que ele tinha sobre isso, mas o que eu consegui algum momento, pensei no modo como Décio evitava
foi só ouvi-lo, como que sussurrando, perguntar Por que você constantemente falar qualquer coisa derivada de foda-se,
não trouxe a Miriam hoje?, o que era um pouco cruel da parte fodido, foder, e como preferia falar buceta, caralho, cú sujo,
dele, e mais cruel da minha parte, permitir essa pergunta, ou qualquer coisa, mas não foda-se, sempre era elegante e dizia
permitir que a situação natural que essa pergunta cria, Por “acabar”, “dilacerar”, “dilacerado”, “deixa isso para lá”, mas
que sua namorada não está aqui enquanto nós nunca um foda-se, e então, olhando para Bernardo, percebi
compartilhamos a ligação mais intensa que existe no que ele deixava a cabeça cair um pouco sobre os ombros,
universo, e que pode não ter absolutamente nada a ver com tentando pensar no que Miriam ou Ezra falariam se vissem
amor ou com paixão ou com tesão, mas que fatalmente essa cena num filme, e acho que Ezra citaria seu poeta
desemboca em algo desse gênero (pelo menos para alguém preferido novamente, ou tergiversaria a citação, diria They
deve ser assim), e então foi a minha vez de apoiar com o had the experience but missed the meaning, and approach to
indicador um copo (e não uma garrafa) de cerveja, de girá-lo the meaningrestores the experience in a different form, beyond
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had the experience but missed the meaning, and approach to Eu, Tita Munhoz (sobrenome inventado pelo meu
the meaningrestores the experience in a different form, beyond irmão, apropriado por mim),
any meaning they can assign to happiness, ou eu mesma é que Eu, Tita Munhoz, não amo Miriam Gagliardi.
diria isso; o fato é que olhando para Bernardo, não pude
pensar em não pensar, e nem pensar em não dizer, e então
olhei para aquele par de olhos pastosos, que em tantos
momentos pareciam tão duros, e perguntei, vendo-o quase
cair de sono e de desatenção, Bernardo, o Décio é seu pai?,
coisa da qual imediatamente me arrependi, e olhando para
ele, o vi, mais uma vez, imerso em seus olhos pastosos como
só um verdadeiro aristocrata pode estar, e ele, olhando para
o lado, me disse A menina tropeçou e caiu, de um jeito
gratuito e inocente e cheio de preocupação como só uma
criança pode dizer, referindo-se a uma das putas que chegava
para trabalhar na rua detrás, e então olhou para mim, como
quem pensa em ajudar, mas desistindo por preguiça,
cansaço, tédio. Não sei dizer se ele ouviu minha pergunta, e
embora eu tenha feito um esforço para fazê-la de novo, as
palavras já não saíam.
Se reencontrei Décio depois disso? Sim.
Algum tempo depois.
Não foi na estrada. Num bar, onde ele era muito
conhecido, que serve acarajé e fica nos arrabaldes da cidade,
cuja travessia, saindo-se exatamente da minha casa, passa
invariavelmente pelo Kino.
Eu, Tita Munhoz (sobrenome inventado pelo meu
irmão, apropriado por mim),
Eu, Tita Munhoz, não amo Miriam Gagliardi.
Odorico Leal
Graduado em Letras pela UFC e mestre em Teoria Literária pela UFMG. Atualmente, é doutorando em
Literatura Brasileira pela USP, desenvolvendo pesquisa sobre o épico na poesia moderna, sob a orientação do
professor João Adolfo Hansen.
Contato: odoricoleal@gmail.com
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O conceito de kleos em Ilíada e Os Lusíadas

Na Ilíada, afirma o pesquisador húngaro Gregory Nagy,


resumo “kleos” significa não apenas glória, mas, mais
Partindo do conceito de “kleos”, termo grego para “fama” (em tradução especificamente, a glória do herói tal como conferida pelo
aproximada) tal como observado na poesia homérica, o presente artigo épico. Quando Aquiles escolhe a glória (kleos) ao invés do
procura explorar a representação que o discurso épico, tradicionalmente,
faz de si próprio dentro de sua cultura, tratando, de início, da poesia regresso (nostos, “regresso à casa”, mas também “canto sobre
homérica e, em seguida, mais detidamente, da épica camoniana. o regresso à casa”), ele alcança “o maior objetivo do herói:
sua identidade é posta em registro permanente através de
kleos”2. É significativo que Aquiles seja representado no
Em uma passagem do nono canto da Ilíada, os heróis papel de aedo justamente quando se retira da batalha com os
Ajax e Odisseu encaminham-se à tenda de Aquiles, para troianos, isto é, quando se afasta do campo autêntico de sua
oferecer tributo em nome de Agamenon, como modo de sanar kleos, pois, nesse momento, é pelo canto que ele procura
a ofensa que fizera com que Aquiles se retirasse do campo de manter-se ligado ao mundo épico da batalha. O que o
batalha. Ajax e Odisseu encontram o filho de Peleu cantando diferencia dos demais heróis gregos é que nenhum outro se
façanhas de heróis de tempos passados, acompanhado de uma encontra tão dramaticamente acossado pela consciência de
lira: que, para alcançar a glória, deverá morrer: sua própria mãe
imortal lhe comunica seu fado. Até a morte de Pátroclo,
Quando chegaram às tendas e naves dos fortes Mirmídones, contudo, o destino de Aquiles parece ainda em aberto. Chega,
Aí enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora sem muita convicção, a considerar a ideia de partir de Tróia
De cavalete de prata, toda ela de bela feitura, com os Mirmídones, divisando e desejando por um
Que ele do espólio do burgo de Eecião para si separara. momento seu próprio nostos. Aquiles, no entanto, não pode
O coração deleitava, façanhas de heróis decantando.1 ser Odisseu. Na Ilíada, é ele quem canta os heróis e deve
elevar-se, em sangrenta batalha, ao mesmo plano deles.
,jjjjjjjjoogg
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
1 HOMERO. Ilíada. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2011, canto IX, 185-189.
2 NAGY, Gregory. The Epic hero. In: A companion to ancient epic. Malden: Blackwell, 2005.
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Há outras instâncias ao longo do poema que reforçam veem-se em um vácuo cósmico. Mesmo com o advento da
essa espécie de consciência dos heróis em relação à imagem escrita, no mundo grego antigo, em meio aos constantes
pela qual os cantores os representarão. Em uma ocasião, o perigos de desintegração social devido a guerras e invasões,
tópico é observado negativamente, quando Helena lamenta- o canto funciona como o modo de um povo fixar, contra a
se para Heitor sobre o destino que lhes sobreveio: mutabilidade feroz do tempo, uma imagem eterna de si, daí a
importância da recitação dos poemas homéricos nos grandes
Triste destino Zeus grande nos deu, para que nos celebrem,
festivais.
Nas gerações porvindouras, os cantos excelsos dos vates3.
O poeta ocupa, desse modo, uma posição central
dentro da comunidade. Uma das passagens mais
No universo da tradição épica da Grécia arcaica,
emblemáticas da Ilíada é a descrição do escudo de Aquiles,
portanto, o tema da conquista de imortalidade por parte dos
que sua mãe Tétis encomenda a Hefesto, o ferreiro dos
heróis através do canto dos poetas é parte da estrutura social
da comunidade ali representada: trata-se de uma deuses. Hefesto prepara um gigantesco escudo e, nele, grava
reciprocidade fundamental para a caracterização de seu variadas cenas da vida grega, desde cenas de guerra até
ethos. As ações dos heróis encontram sua justificativa última cenas de disputas judiciais e casamentos, além de cenas
na imortalidade do epos, pelo qual são transmutados para pastoris. Trata-se de uma síntese das atividades do mundo
uma dimensão simbólica, tornando-se exemplares dignos de grego, o que, de certo modo, denota a característica essencial
culto. Ao mesmo tempo, os heróis fornecem a matéria para da narração épica no Ocidente - a da criação de um grande
os poetas, os grandes feitos. Nesse universo, sem o canto, a painel do universo cultural de uma comunidade. É de uma
memória se dispersa e, com ela, o próprio espaço cultural beleza poética sublime que esse escudo, que carrega a
que uma comunidade habita e compartilha; os homens imagem de todo o mundo grego, seja empunhado pelo herói
ononono que deve encarnar os valores mais altos desse mundo. Na
descr
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
3 HOMERO, op. cit., canto VI, 357-368.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ‘ 48

descrição do escudo, há uma breve imagem que sugere a na própria genealogia dos deuses gregos, essa relação entre
centralidade do canto para tal cultura. Se, na abertura da poesia e memória, poesia e imortalidade é sugerida. Na
Ilíada, encontramos os aqueus, em meio à guerra, cantando Ilíada, o motivo da imortalidade é mais do que uma mera
em honra de Apolo, como forma de sanar a fúria mortífera do utilização de um topos retórico convencional. É um elemento
deus ofendido, aqui os encontramos cantando em um definidor em uma cultura que, como nota Gregory Nagy, se
contexto de paz, em honra do filho do mesmo deus: apresenta como uma cultura do canto, isto é, uma cultura que
depende da celebração através do canto para plasmar sua
Moços e moças, no viço da idade, de espírito alegre, identidade5.
o doce fruto carregam em cestas de vime trançado. Em Homero se estabelece, portanto, a relação entre
Com uma lira sonora, no meio do grupo, um mancebo canto e imortalidade, subjacente à desejada harmonia entre
O hino de Lino entoava, com voz delicada, à cadência todas as esferas de vida do povo. Em Os Lusíadas, por sua vez,
Suave da música, e todos, batendo com os pés,
Camões também fará da imortalidade pela celebração
compassados,
poética um tema fundamental. A abertura de seu poema
Em coro, alegre, o canto acompanhavam, dançando com
conjuga memória, canto e imortalidade. O poeta cantará as
ritmo4.
armas e os barões assinalados que se lançaram ao mar,
O que se sugere nessa passagem é a condição
E também as memórias gloriosas
harmoniosa de uma comunidade em que todas as esferas de
Daqueles reis, que foram dilatando
vida estão entrelaçadas – o trabalho, a cultura, o culto aos A Fé, o Império, e as terras viciosas
deuses. No centro, um jovem com a lira, cantando o hino de De África e de Ásia andaram devastando;
Linos, filho de Apolo e da musa Calíope, a musa da poesia E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando6.
épica, filha de Zeus e da Memória – como se pode atestar, na
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4 HOMERO, op. cit., canto XVIII, 567-572.
5 Sobre o conceito de “cultura do canto”: NAGY, Gregory. The Ancient Greek Hero in 24 Hours. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2013.
6 CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003, canto I, estrofe 2.
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A lei da morte é o desaparecimento e o esquecimento. instante da evocação dos heróis. Nisso, o modo épico se
Ao longo do poema Camões retomará a compreensão dos desestrutura e dá lugar à expressão lírica do conflito que
feitos heroicos como libertação da lei da morte. Ao divide a persona de Camões no poema: a tarefa de cantar
alcançarem as Índias, os portugueses passam a existir sob heróis que não aspiram por kleos, barões “tão austeros, / tão
nova lei: rudos, e de engenho tão remisso”, como escreve no canto V, e
cantá-los ainda para um povo que lança seu poeta ao
Vós, que à custa de vossas várias mortes
desterro, “com pobreza avorrecida / Por hospícios alheios
A lei da vida eterna dilatais7
degradado”. Toda essa passagem é elaborada como um
diálogo entre poeta e Musas, em tom de súplica, e aquilo pelo
O conceito de kleos como glória conferida pelo canto
que Camões suplica é a reconciliação com sua própria tarefa.
épico permeia a épica camoniana, sendo fundamental para a
Essa reconciliação só lhe advém através da reafirmação da
compreensão das queixas do poeta ao final do sétimo canto.
ética em que baseia seu poema – “Que não no empregue em
Quando o Catual visita a frota portuguesa, observa os feitos
quem o não mereça” -, que lhe reconduz de volta à matéria
dos homens que “em retrato breve / a muda poesia ali
épica:
descreve”. É o momento oportuno para que Camões faça seu
herói narrar, como antes, diante do rei de Melinde, a Aqueles sós direi que aventuraram
memória dos heróis portugueses. Nesse preciso momento, Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
contudo, a narração é súbita e rispidamente interrompida Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
pela voz na primeira pessoa do poeta: “Mas, ó Cego! / Eu, que
Apolo e as Musas, que me acompanharam,
cometo insano e temerário / sem vós, Ninfas do Tejo”. A
Me dobrarão a fúria concedida,
visão do poeta é momentaneamente perdida no instante de
Enquanto eu tomo alento, descansado,
descrever o que há na muda poesia dos retratos, isto é, no Por tornar ao trabalho, mais folgado8.
ininini
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
7 CAMÕES, op. cit., canto VII, estrofe 3.
8 Idem, canto VII, estrofe 87.
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A determinação dessa ética é inspirada pela confiança


que o poeta sustenta em relação ao poder do próprio canto
épico, em relação à “kleos” que concede àqueles a quem
celebra. Esse conflito acompanha a persona épica de Camões
até o último canto. Uma das estrofes mais belas de Os
Lusíadas é atormentada pelas forças de oposição à “kleos” – o
esquecimento e a morte, que o poeta, o distribuidor de fama,
volta contra si mesmo, pondo em risco o cumprimento de sua
missão para Portugal:

Vão os anos descendo, e já do Estio


Há pouco que passar até o Outono;
A fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono.
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó Grã Rainha
Das Musas, co’o que quero à nação minha9.

Esse conflito infla de pessoalidade a épica camoniana.


Na poesia homérica, como notamos, o narrador mantém uma
atitude impessoal em relação à matéria que trata, não se
onononon

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9 CAMÕES, op. cit., canto X, estrofe 9.
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projetando para dentro da narrativa. Camões o faz, eventos e os diálogos sejam o foco de atenção constante11. A
largamente, evocando suas próprias peregrinações a serviço atitude de Camões, contudo, afasta-se bastante disso. Em Os
da coroa portuguesa, pelos mesmos mares de Vasco da Gama Lusíadas, há um conflito explícito entre a narração impessoal
e companhia, como demonstra a célebre estrofe: dos feitos portugueses e a experiência e as preocupações
pessoais de Camões. O temperamento do poeta espalha-se
Olhai que há tanto tempo que, cantando pelos cantos, e o ponto básico pelo qual fundamenta sua
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, inserção e sua autoridade dentro da narrativa relaciona-se
A fortuna me traz peregrinando, exatamente à kleos.
Novos trabalhos vendo, e novos danos:
No épico luso, como se sugere pela breve análise do
Agora o mar, agora experimentando
desfecho do canto VII acima, o tema será, contudo,
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Canace, que à morte se condena, modernamente problematizado pela reflexão crítica que
Numa mão sempre a espada, e noutra a pena10. explicita, em última instância, a separação entre canto e
comunidade. “Kleos” é um valor que só adquire objetividade
Embora haja muitas ponderações sobre os destinos e se inserido dentro de um ethos, de uma experiência comum
padecimentos dos personagens na Ilíada, tais ponderações que lhe possibilita exercer uma função real como
têm elas próprias caráter impessoal: pertencem à sabedoria fundamentador das ações e dos comportamentos dentro de
da comunidade. Homero não se põe em conflito com o seu um grupo. Esse contexto pragmático não existe para o épico
mundo e seus heróis. Já Camões se coloca, abertamente, em camoniano. Ainda assim, um motivo que anima Os Lusíadas é
conflito com Vasco da Gama. Na poesia homérica, reina o o elogio de “kleos” e, com isso, do próprio poeta, como
“desapego sereno” como princípio da narração épica, em que elemento basilar para a harmonia do povo português. Pela
o poeta oculta-se por trás de sua narração, permitindo que os glória que o canto épico concede aos feitos e homens
ononononono
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10
CAMÕES, op. cit., canto VII, estrofe 79.
11 Ver: On epic and dramatic poetry. Disponível online em: http://www.schillerinstitute.org/transl/schil_epic_dram.html.
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históricos interpenetram-se a história e o mito, a ação e a Ventos soltos lhe finjam, e imaginem
ideia. Essa reconciliação entre a espada e a pena, que Camões Dos odres e Calipsos namoradas;
representa em sua própria figura, é central em Os Lusíadas, e Harpias que o manjar lhe contaminem;
Descer às sombras nuas já passadas:
não por acaso se manifesta eloqüentemente nos decisivos
Que por muito e por muito que se afinem
cantos V e VII, em que os portugueses atravessam o Cabo das
Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,
Tormentas e em que chegam às Índias, respectivamente. A verdade que eu conto nua e pura
O fecho do canto V é particularmente significativo Vence toda grandíloqua escritura12.
nesse sentido. Vasco da Gama conclui sua narração ao rei de
Melinde com a afirmação jactanciosa da superioridade do Embora Camões, já na abertura do poema, compartilhe
feito português, pelo seu caráter verídico, em relação às da jactância do navegador, absorvendo para seu discurso a
ficções épicas dos antigos: alegação da superioridade dos feitos portugueses e,
consequentemente, de sua narração em relação à tradição, a
Cantem , louvem e escrevam sempre extremos apropriação desse discurso por Vasco da Gama, ao final de
Desses seus Semideuses, e encareçam, sua fala ao rei de Melinde, é seguida por uma reflexão do
Fingindo Magis Circes, Polifemos, poeta sobre os efeitos perniciosos do descaso de Portugal e
Sirenas que com o canto os adormeçam; de seus barões pela poesia, que culmina em uma crítica
Dêem-lhe mais navegar à vela e remos direta à Vasco da Gama:
Os Cicones, e a terra onde se esqueçam
Os companheiros, em gostando o Loto; Enfim, não houve forte capitão,
Dêem-lhe perder nas águas o piloto; Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.

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12
CAMÕES, op. cit., canto V, estrofe 88-89.
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Sem vergonha o não digo, que a razão


De algum não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe arte, não na estima.

Por isso, e não por falta de natura,


Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias, nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez, e tão austeros,
Tão rudos, e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso.

Às Musas agradeça o nosso Gama


o Muito amor da Pátria, que as obriga O discurso de Camões, aqui, entra em conflito direto
A dar aos seus na lira nome e fama com o de Vasco da Gama, exatamente no canto central do
De toda a ilustre e bélica fadiga: poema. O navegador português celebra o próprio feito,
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, julgando-o acima das “fábulas vãs, tão bem sonhadas” da
Calíope não tem por tão amiga, antiguidade. Contudo, sua jactância é indiretamente
Nem as filhas do Tejo, que deixassem explicada na máxima justa e simples: “quem não sabe arte,
As telas douro fino, e que o cantassem13. não na estima”. Esta é a ironia camoniana: Gama rebaixa a
popopo

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13
CAMÕES, op. cit., canto V, estrofe 97-99.
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glória dos antigos, associando a invenção poética ao Todos foram de fraca carne humana.
fingimento, contudo sua própria glória só é plenamente Mas a Fama, trombeta de obras tais,
atingida em uma “grandíloqua escritura”, que dá “aos seus na Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
lira nome e fama”, comunicando aos portugueses não apenas De Deuses, Semideuses imortais,
os fatos e as datas históricas, mas o sentimento e o Indígetes, Heróicos e de Magnos14.
significado da aventura nacional, acordando o país para o seu
próprio mito. Ao final do Canto IX, para enaltecer o poder de Estes mortais, “de fraca carne humana”, libertaram-se
“kleos”, Camões acena ainda para a origem histórica destes da lei da morte pelos feitos heroicos conjugados à kleos, a
“semideuses” que Vasco da Gama desanca, associando-os fama de tais feitos eternizada no canto épico, tornando-os
diretamente à Fama, “trombeta de obras tais”: fundamento para o ethos do povo.
Embora o canto V revele essa tensão entre herói e
Sobre as asas ínclitas da Fama, poeta, Camões celebra Vasco da Gama e os demais
Por obras valorosas que fazia, portugueses navegantes, pois seu compromisso é com “o
Pelo trabalho imenso que se chama muito amor da pátria” que obriga as Musas e, indiretamente,
Caminho da virtude alto e fragoso, o poeta, ao canto nacional. Esta obrigação, contudo, Camões
Mas no fim doce, alegre e deleitoso:
assume como missão, confiante, como se disse, na função
transcendente de kleos, base de sua autoridade no poema,
Não eram senão prémios que reparte
Por feitos imortais e soberanos
que lhe permite, ao fim do último canto, dirigir-se ao infante
O mundo com os varões, que esforço e arte Dom Sebastião, agora não para louvá-lo, como na abertura do
Divinos os fizeram, sendo humanos. poema, mas para orientá-lo, convocando-o para sua visão de
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, Portugal, alicerçada na reintegração do canto à comunidade.
Eneias e Quirino, e os dois Tebanos, Essa reintegração é efetuada exatamente por Os Lusíadas, o
Ceres, Palas e Juno, com Diana, que Camões parece querer representar simbolicamente pela
jhfg
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14
CAMÕES, op. cit., canto IX, estrofe 90-92.
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simbiose entre o feito português e sua obra, manifesta no A minha já estimada e leda Musa
paralelismo entre a travessia portuguesa do Cabo das Fico que em todo o mundo de vós cante,
Tormentas, ao meio do globo, e a estrofe exatamente ao meio De sorte que Alexandro em vós se veja,
de Os Lusíadas, no canto V, que dá voz ao “Cabo Sem à dita de Aquiles ter enveja15.
Tormentório”.
Camões encerra o poema retomando a sua própria A contradição entre canto e comunidade, contudo, não
figura como português em quem o plano da ação e o plano da é superada em Os Lusíadas. A narração da aventura nacional
ideia se harmonizam, agora em um tom mais sereno, que mostrou “novos mundos ao mundo” é o épico moderno
humilde, diante do rei, e ciente do feito heróico de sua por excelência justamente por essa percepção crítica de uma
própria obra máxima: ruptura dentro da cultura do próprio povo celebrado. O
épico, na medida em que busca erigir uma visão global,
Pera servir-vos, braço às armas feito, tende, por esse princípio constitutivo, a pôr em conflito a
Pera cantar-vos, mente às Musas dada; variedade de discursos que se debatem dentro de uma
Só me falece ser a vós aceito, cultura. Desse modo, o épico será tanto mais harmônico
De quem virtude deve ser prezada. quanto mais harmônica for a cultura do povo de que trata.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito Nesse ponto, convém citar a reflexão de Schlegel sobre a obra
Dina empresa tomar de ser cantada, de Camões, que contém insight valioso sobre a psicologia do
Como a pressaga mente vaticina povo português.
Olhando a vossa inclinação divina,
Camões não se confina ao Gama e à descoberta da
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
Índia ou mesmo ao poder e conquistas dos
A vista vossa tema o monte Atlante,
portugueses de seu tempo; o que de cavalheiresco,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
grandioso, belo ou nobre pudesse ser recolhido das
Os muros de Marrocos e Trudante,
tradições de seu país foi entretecido e incorporado à
teia de seu poema. Ele abarca toda a poesia de sua
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15 CAMÕES, op. cit., canto X, estrofe 155-156. nação; entre todos os poetas heróicos
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teia de seu poema. Ele abarca toda a poesia de sua nação; uma reconciliação com a kleos com a qual Camões cobriu a
entre todos os poetas heróicos tanto dos tempos antigos história do país, e que, não realimentada pela nação, a
quanto dos modernos, nunca houve, desde Homero, assombra, contudo, como fantasmagoria. O sebastianismo é a
nenhum outro tão intensamente nacional, ou tão amado e resposta mística a essa condição, e é esse dilema que
honrado por seus compatriotas quanto Camões. É como se
Fernando Pessoa, séculos depois, em diálogo silencioso e
os sentimentos nacionais dos portugueses, excluídos de
constante com Os Lusíadas, tentará resolver em sua própria
qualquer outro tema de meditação pela degradada
obra, especialmente em Mensagem, cujo tema é justamente o
condição de seu império, se centrassem e repousassem na
pessoa desse poeta, considerado por eles, e digno de ser imperativo de uma nova descoberta, de um novo
considerado por nós, como capaz de figurar em lugar de empreendimento nacional: “Dá o sopro, a aragem, - ou
todo um grupo de poetas, e ser, em si mesmo, uma desgraça ou ânsia -, / com que a chama do esforço se remoça,
literatura completa para seu país17. / e outra vez conquistemos a Distância – do mar ou outra,
mas que seja nossa!”.
Pode-se dizer que esse quadro que engloba tudo o que
há de nobre e belo na história de Portugal é a visão
camoniana de Portugal, para qual o poeta convoca Dom
Sebastião e todos os portugueses, visão, contudo,
constantemente abalada pela percepção daquela ruptura. Por
esse ponto de vista, pode-se pensar a história posterior de
Portugal como uma contínua autoavaliação à luz do mito da
nação tal como imortalizado no grande épico nacional. Os
portugueses posteriores a Camões terão de buscar uma nova
rota, descobrir um novo caminho pelo qual possam chegar a
jjjjj
17
SCHLEGEL, Friedrich. Lectures on the History of Literature. T. Dobson and son, 1818, p.102. Tradução minha.
João Miguel Moreira
Graduado em Letras pela UNICAMP. Mestre em Linguística na área de Letras Clássicas. Traduziu
o livro “Diógenes, o cínico”, de Luis E. Nevia, para a editora Odysseus. Publicou o livro
“Mausoleu” pela Editacuja, em 2009.
Contato: joaoauto@yahoo.com.br
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Rugas

As rugas que escrevinham minha cara Gaforinha de escolhas e trajetos,


são o que me divulga e me separa. acúmulo de vidas e dejetos.

É um texto tramado em minha pele, Dança dos encontros, capoeira,


forjado pelo corpo e o atrito dele. turbilhão humano numa feira.

É um emaranhado que nasce como o buço Matagal de gatafunhos estrangeiros


A cortina da janela em que debruço. desbravado a foice, por grileiros.

É a erosão das águas e do vento Mescla de gritos, correria e vozes


A pegada do sentir que experimento. numa caçada aos monstros ferozes.

Estalactite do que a mente pensa, Mapa de circuitos e trilhas


sina que assina uma sentença. de onde nascem gentes e famílias.

Música de pedra, poema concreto, Rastro de passeios vadios,


tatuado em meu rosto por decreto. cinza da queima de pavios.

Fluxo de sons que por aí falei, O poema do que a gente erra


quando vira leito e letra e lei. e que, com a gente, o povo enterra.
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O Cantador

O homem que passa cantando


aqui por Sta. Isabel,
enche o mundo com seu canto
que sobe do chão ao céu.

Ele vem sempre à tardinha


de bicicleta ou a pé
e canta uma ladainha
que não entendo qual é.
O homem, soltando o canto,
Inda ontem ele veio enche o mundo, o peito, a
com seu canto calmo e alto, rua;
cantado de peito cheio, enche tudo e enche tanto
olho longe e pé no asfalto. que enche também a Lua.

De onde sai essa voz Seu canto, sereno e firme,


que enche a rua se ele passa é tão claro, fácil e certo
cantando, assim, para nós, que dá vontade de ir-me
com tanto gozo e de graça? ouvi-lo e vê-lo de perto.

Porque ele canta forte,


canta simples e tão bem,
que já não existe morte
e eu não sou mais ninguém.
Ricardo Gessner
Doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Sua dissertação de mestrado versa sobre o
livro Distraídos Venceremos, de Paulo Leminski, e foi defendida na mesma instituição, com o seguinte
título: “Paulo Leminski e uma poética da distração”. Atualmente desenvolve sua tese de doutorado,
também sobre a poesia de Leminski.
Contato: rigessner@yahoo.com.br
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 61

Na contramão: Toda Poesia – Paulo Leminski

Completa-se um ano da José Miguel Wisnick abordando de maneira geral as


publicação do volume Toda poesia – composições musicais de Leminski, faceta ainda pouco
Paulo Leminski, pela Companhia das conhecida do autor.
Letras. A coletânea obteve sucesso de Até hoje, livros como Caprichos e Relaxos (1983),
vendas a ponto de desbancar livros Distraídos Venceremos (1987) e La vie en close (1991), por
do porte de 50 tons de cinza, da exemplo, estão fora de circulação. Além disso, há as raridades
autora Erika Leonard James, bibliográficas de 40 clics em Curitiba (1976) – o primeiro
livro de poesia de Leminski, composto junto com o fotógrafo
permanecendo no topo da lista dos
Jack Pires e com tiragem limitada² –, bem como Polonaises e
mais vendidos¹. Mas, apesar de se
Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, ambos
falar em “sucesso de vendas”, talvez
publicados em edição independente, em 1980. Talvez seja
não seja possível falar em “sucesso editorial”, no que tange à
esse o motivo imediato do sucesso de vendas, afinal, há anos
organização do volume. os livros de Leminski permanecem esgotados. Em cada obra
A coletânea tem como proposta contemplar toda a é possível identificar se não um projeto, ao menos uma
produção poética de Paulo Leminski (1944 – 1989), com a preocupação organizacional, explicitada em suas
inclusão de comentários críticos e depoimentos sobre o poeta apresentações e prefácios. Tendo isso em mente, a coletânea
e sua obra. Finalmente divulgam-se poemas praticamente atual torna-se problemática em alguns aspectos.
desconhecidos, como os de Polonaises e Não fosse isso e era 40 clics em Curitiba, por exemplo, é um livro de
menos não fosse tanto e era quase, além de trazer um texto de poemas e fotos. Na verdade, são 40 plaquetes compostas
jjjj por uma fotografia e um poema.

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¹ O acontecimento foi divulgado em diversos meios; eis duas reportagens:
http://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2013/05/17/mais-pop-que-50-tons-de-cinza-livro-apresenta-leminski-complexo-a-geracao-do-facebook.htm;
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1355441.
² O livro teve uma reedição em 1990, também com tiragem limitada – de três mil exemplares –, permanecendo como item raro.
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por uma fotografia e um poema. Na coletânea Toda Poesia, entre os poemas curtos, quais conversavam ou rimavam
constam somente os poemas, sob a alegação do próprio com aquelas imagens.
editor, de que foram escritos antes das fotos e por isso
optou-se por não incluí-las. Ora, uma “opção” como essa Se os poemas foram escritos antes, durante, ou depois das
escamoteia a proposta inicial do livro, que é justamente fotos; se foram escritos pensando nelas ou não, pouco
estabelecer um diálogo intersemiótico – para utilizar um importa – o importante é que poema e imagem dialogam,
termo afeito a Leminski – entre duas manifestações artísticas relacionam-se. O atrito e/ou a convergência entre as duas
diferentes. Na mesma nota introdutória o editor ainda cita linguagens produzem novos sentidos, significações e
Leminski: “Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi possibilidades de interpretação. Se do ponto de vista
buscada a relação/contradição texto/foto. Os poemas editorial a inclusão das fotos ocasionaria outras dificuldades,
estavam prontos jᔳ. Ao fazer essa citação – retirada da não é o que diz o editor.
introdução de 40 clics em Curitiba que, por sua vez, não está Grande parte dos poemas pertencentes a Polonaises e
na seção “apêndice” da coletânea –, o editor tenta justificar Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase foram
sua opção, mas indiretamente reforça a mutilação da obra, posteriormente incluídos em Caprichos e Relaxos. Talvez por
pois, se a “relação/contradição texto/foto” foi o motivo de esse motivo os dois livros ficaram relegados ao título de
escolha dos poemas, essa é antes uma justificativa de “raridade bibliográfica”. Na coletânea, os poemas não
inclusão. O mesmo se aplica se nos reportarmos ao que Alice inclusos em Caprichos e Relaxos foram incorporados numa
Ruiz⁴ fala na apresentação de Toda Poesia: seção intitulada “Poemas esparsos”. Em relação a isso, duas
questões podem ser levantadas: 1) No caso de Não fosse isso
Em 1976, quando o fotógrafo Jack Pires chegou com a e era menos não fosse tanto e era quase, há um trabalho
proposta de fazer um livro em conjunto com Paulo, gráfico com a diagramação dos poemas: eles estão
espalhamos as fotos dele pelo chão e fomos procurando expandidos de tal forma que a granulosidade da tipografia
entre torna-se aparente, os poemas aparecem como se fossem
anúncios, placas comerciais ou peças publicitárias. É um
________________________________________________________________________________________________________________________________________
³LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia – Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
dadop. 14característico
(ênfase minha). e importante numa obra como a de
4 Ibidem, p. 8 (ênfase minha).
Leminski
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 63

torna-se aparente, os poemas aparecem como se fossem Winterinverno foi publicado em 2001 pela editora
anúncios, placas comerciais ou peças publicitárias. É um Iluminuras, na forma de um ‘álbum’ em que dialogavam
dado característico e importante numa obra como a de poemas de Paulo Leminski e desenhos de João Suplicy.
Leminski, que sempre se preocupou em relação aos meios de Optamos por manter somente os poemas, sem imagens, e
apenas os que ainda não haviam aparecido em livros
comunicação em massa, e que deles procurou se aproximar.
anteriores do autor.
Em Toda Poesia, isso é mencionado en passant na
apresentação; 2) a seção “poemas esparsos” traz os poemas O editor reconhece o diálogo entre poema e desenho,
de Polonaises e Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e mas mesmo assim “opta” pela exclusão das imagens sem
era quase não incluídos em Caprichos e Relaxos. Acontece que nenhuma justificativa.
originalmente eles fazem parte de um conjunto, e, se não É possível verificar, portanto, que os projetos poéticos
foram incluídos posteriormente, há algum motivo para isso, de Leminski ocupam um lugar menor nessa coletânea. Isso
o que também indica uma preocupação organizacional de tem seu ápice na seção “Apêndice”, da qual constam as
apresentações e prefácios de cada livro, misturados a
Leminski. Portanto, não são esparsos.
depoimentos e textos críticos. Ou seja, há um
Winterinverno é um livro póstumo, publicado em
desmembramento dos livros, que perdem sua organicidade.
2001. Traz poemas escritos espontaneamente durante as
Além disso, é importante lembrar que a introdução de 40
“noites de boemia”, em guardanapos, pedaços de papel,
clics em Curitiba não consta da coletânea, mesmo sendo
maços de cigarro, com desenhos de João Suplicy. Novamente
citada pelo editor.
temos a interação entre poema e imagem. A edição original
Leminski é largamente conhecido por sintetizar em
traz os fac-símiles dos textos; já a coletânea Toda poesia, não: sua poesia aspectos eruditos e populares. Falar em “projeto
as imagens foram suprimidas sem nenhuma justificativa. Eis poético” é algo delicado na crítica especializada. Ao
o que diz o editor em nota⁵: considerar os estudos publicados em livro (apenas os que
tratam especificamente de sua poesia), a maior parte enfoca
a constituição intertextual, seja em relação a movimentos
________________________________________________________________________________________________________________________________________
5 Ibidem, p. 360 (ênfase minha). artísticos
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 64

tratam especificamente de sua poesia), a maior parte enfoca É possível identificar, em vários momentos, a
a constituição intertextual, seja em relação a movimentos preocupação de Leminski não só a respeito de sua dicção
artísticos ou teóricos. Identificam-se concretismos, poética, como também da elaboração de projetos de livros.
tropicalismos, semioticismos à la Peirce, modernismos à la Basta, por exemplo, reportar-se às cartas enviadas a Régis
Oswald de Andrade, haicaísmos e orientalismos, poesia beat, Bonvicino para constatar. Logo na primeira epístola, diz6:
sintetismos, etc...
Desse amontoado intertextual, uns se preocupam em na capa da frente
demarcar uma dicção leminskiana – caracteristicamente na capa de trás uma foto da minha cara
leminskiana, de combinar aspectos eruditos e populares –, com um e colado no vidro do óculos esquerdo
outros empreendem esforço intelectual para demonstrar a
e o ? no outro
originalidade do Leminski-poeta em seu repertório múltiplo,
simétricos à capa da frente
e alguns até mesmo intentam enquadrá-la como sendo uma
poesia de vanguarda. Desse modo, para verificar como a
O projeto “e?” não foi levado a cabo, mas demonstra o
poesia de Leminski se constitui, estabelecem um corpus
interesse de Leminski até mesmo na apresentação gráfica de
poético que abarca toda a sua produção. Isso resulta numa
seu livro, ao insinuar que haja uma simetria entre os
visão esparsa, e a noção de “projeto” torna-se perigosa. Isso
caracteres e sua foto. Sugere-se uma íntima relação entre
reverbera na estruturação editorial da coletânea Toda
texto e figura, bastante coerente à sua proposta de um
Poesia: todos os indícios de um projeto poético estão
livro/álbum e que demonstra claramente a importância do
relegados a uma seção isolada, um mero “Apêndice”,
diálogo entre poema e imagem. Na própria carta isso se torna
misturados com textos de outros autores, escritos em épocas
ainda mais evidente com os rabiscos que Leminski faz: ele
diferentes, e que podem não ter relação com o que Leminski
circula o “e” (7ª linha) e o “?” (8ª linha), cada um com um
planejava para seus livros.
traço perpendicular
É possível identificar, em vários momentos, a
preocupação de Leminski não só a respeito de sua dicção
________________________________________________________________________________________________________________________________________
6 Ibidem, p. 360 (ênfase minha).
poética
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 65

traço perpendicular, compondo a imagem de um óculos. Mais Outro exemplo: no prefácio de Distraídos Venceremos,
à frente, na mesma carta, Leminski continua7: Leminski diz: “Nas unidades de Distraídos Venceremos, [...]
arrisco crer ter atingido um horizonte longamente
... voltei disposto a só produzir almejado: a abolição [...] da referência através da
o mais radical que eu pudesse rarefação”9. Ora, “rarefação” reverbera seu antigo projeto,
só o meu melhor que ia se chamar “rarefeito”. E, mais do que isso, fala-se
só aquilo de que sou capaz
em atingir “um horizonte longamente almejado”, ou seja,
se é que há isso
sugere-se (“arrisco crer”, ele diz) a consolidação de um
mas se houver eu vou fazer
projeto. Se Leminski faz essa declaração ironicamente, não
e acho que é: o e?
que ia se chamar rarefeito
anula a questão.
que ia se chamar radar No decorrer da década de 1980, Leminski logrou
mas vai ser essa conjunção difícil de dizer sucesso editorial com a publicação de Caprichos e Relaxos
que responde também aos que perguntam (1983) e Guerra dentro da gente (1986)10, conseguindo
e (depois do catatau) ? relativa projeção também como letrista de música popular.
A diferença é que, naquele contexto, o poeta tinha um
Ressalto de imediato a consciência icônica de Leminski projeto articulado, ao menos em relação a sua poesia, de
ao colocar entre parêntesis8 a indagação “depois do catatau” torná-la acessível ao grande público e, ao mesmo tempo,
na última linha, deixando de fora os caracteres “e” e “?”, e sem deixar de lado a possibilidade de constituir efeitos de
fazendo com isso uma remissão ao título de seu projeto. sentido mais sutis.
Outro exemplo: no prefácio de Distraídos Venceremos, A poesia como simples mercadoria, objeto vendável e
Leminski diz: “Nas unidades de Distraídos Venceremos, [...] fonte de lucro,
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7arrisco
LEMINSKI,crer
Paulo;ter atingido
BONVICINO, um
Régis. Enviehorizonte longamente
meu dicionário: cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999.
8 O parêntesis está desenhado à mão, e, portanto, foi feito depois de Leminski ter datilografado a carta.
almejado: a abolição [...] da referência através da
9 LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 7. Ênfase minha.
rarefação”
10
9.
Livro em prosa, infanto-juvenil.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 66

A poesia como simples mercadoria, objeto vendável e A dificuldade da literatura em se tornar mercadoria
fonte de lucro, é uma questão com que Leminski se reside no fato de a palavra ser “... essencialmente, política.
preocupou e sobre a qual refletiu. No texto “Arte inútil, arte
Portanto, ética”12. E isso é levado a um grau extremo na
livre?” (2012), por exemplo, faz um breve apanhado histórico,
poesia13:
contrapondo a função da arte nos tempos da Idade Média,
Renascença e Modernidade. A principal diferença é que, tanto
O puro valor da palavra está na poesia. Por isso é sempre
na Idade Média quanto na Renascença, a arte cumpria uma considerada mercadoria difícil. ‘Poesia não vende’ é um dos
função pré-estabelecida: “deleitar e instruir” (Idade Média), mandamentos do Decálogo mínimo de qualquer editor
ou simplesmente “deleitar” (Renascença). Com a ascensão sensato. Pois não vende mesmo. O destino da poesia é ser
social da burguesia, inaugura-se a Modernidade. A arte deixa outra coisa, além ou aquém da mercadoria e do mercado.
de ter uma função pré-determinada e torna-se mercadoria
nas mãos da classe burguesa; com exceção de uma, a Retomando Theodor Adorno, Leminski diz: “Em sua
literatura11: recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a
obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros
Certas artes, pintura, escultura, se prestaram melhor a essa
e radicais, de uma ‘negatividade’”14. Essa “negatividade” é
transformação em mercadoria eticamente neutra,
buscadora apenas de qualidades plásticas e cromáticas, nada menos do que a “negação” de tornar-se fonte de lucro e,
técnicas e sintáticas. (...) Ao ouvir falar em arte moderna, o por conseguinte, de inserir-se na dinâmica de consumo. A
burguês puxa o talão de cheques. Mas uma arte resistiu com arte, e principalmente a poesia, tornam-se objetos de
particular vigor a essa comercialização. E essa foi a resistência a esse contexto. Podem não ter uma função pré-
literatura, a arte que tem a palavra como matéria prima. Em estabelecida, mas resistem a essa sociedade mercantil. Isso
especial, a poesia, lugar onde a palavra atinge vigência não significa que a poesia não produza outros tipos de lucros.
plena, máxima, substantiva.
No ensaio “Inutensílio” (2012), Leminski diz: “O lucro da
poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos
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11 LEMINSKI, Paulo. Arte inútil, arte livre? In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 45.
12 Ibidem, p. 46. 13 Op. Cit.. 14 Ibidem, p. 49.
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No ensaio “Inutensílio” (2012), Leminski diz: “O lucro da entendem um trabalho concreto na


poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos hora
no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de enquanto os literati dizem:
produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da - o que é isso? que quer dizer? isso não é poesia.
utilidade.” 15. Em outras palavras, o que Leminski diz é: a Só me dou com cartunistas fotógrafos cineastas desenhistas
Tudo menos escritores
poesia tem a capacidade de não se tornar um utensílio, que
Dos quais acabei por ter grande horror
atende às necessidades de um mundo pragmático. A
(1999, p. 34)
literatura, e principalmente a poesia, podem escapar dessa
contingência e tornarem-se objetos de resistência.
Se Leminski logrou sucesso editorial, não foi por ter Leminski utiliza-se dessas técnicas para elaborar a sua
feito de sua poesia objeto mercantil. É importante lembrar poesia. E o faz para produzir outros efeitos, outros sentidos.
que Leminski também foi redator e conhecia as técnicas E isso não se aplica, necessariamente, a toda sua obra.
publicitárias. Seu interesse nesse campo era principalmente, Se por outro lado um livro como Distraídos Venceremos não
pelas relações intersemióticas no diálogo entre as várias obteve o mesmo êxito de vendas, não significa que não tenha
linguagens midiáticas. Noutra carta a Bonvicino, diz16: obtido êxito editorial, afinal, trata-se de outro projeto, como
diz no prefácio17: “Nas unidades de Distraídos Venceremos,
resultado do impacto da poesia de Caprichos e Relaxos (1983-
a propaganda meu meio de vida 1987) sobre a fina e grossa cútis da minha sensibilidade
me dá algumas satisfações lírica (...)”. Leminski inclusive estabelece um período, 1983 –
afinal 1987, que é o período entre a publicação dos dois livros, o
todo layoutman é um pouco poeta concreto
que evidencia sua preocupação programática.
e aliás é fantástico como os homens de arte das agências

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15 LEMINSKI, Paulo. Inutensílio. In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 87.
16 LEMINSKI, Paulo; BONVICINO, Régis. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 34.
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Em “Arte inútil, arte livre?” Leminski disse18: vida inteira de poesia. Uma vida totalmente dedicada ao fazer
poético. Curta, é verdade, mas intensa, profícua e original” 20.
Mal obram e mal pensam aqueles que reclamam da
A publicação da coletânea reforça uma imagem que se
renitência das casas editoriais em publicar poesia.
Deveriam mais é ficar alegres. A poesia, afinal, é a última construiu em torno de Leminski: a de um poeta despojado e
trincheira onde a arte se defende das tentações de virar despretensioso diante da escrita de poesia. E isso talvez pelo
ornamento e mercadoria, tentações a que tantas vezes fato de muitos estudos críticos projetarem na poesia
sucumbiram prazerosamente. leminskiana essa imagem, sem levar em conta as
especificidades de cada livro. Cabe olhar mais de perto para
Mas o apelo comercial de Toda Poesia – Paulo Leminski cada obra, para os efeitos de sentido que podem
é evidente. Possui página no Facebook19 e não é para proporcionar; elaborar interpretações ou chaves
explorar os recursos intersemióticos que essa “nova mídia” interpretativas de seus livros ou até mesmo de poemas
proporciona. Serve como meio de aproximação com o
específicos. Ao contrário de restringir sua obra em amarras
público, porém se realiza mais como divulgação de um
academicistas, esse gesto pode ampliar as possibilidades de
produto. As pessoas podem interagir com postagens de
interpretação para outros horizontes “ainda não atingidos”.
poemas, relatar suas impressões, render homenagens. O
público não tem obrigação de ler um criticamente um autor, Talvez trilhar outros caminhos que não passem pelo bordão
mas o projeto de Leminski permanece em segundo plano, do “erudito popular”. E desse modo, constituir outros meios
afinal, no volume Toda Poesia seus livros estão de compreender sua poesia.
desmembrados e suas partes, misturadas. Nesse sentido,
uma afirmação como a de Alice Ruiz, na apresentação da
coletânea, perde seu sentido: “Este livro é antes de tudo uma
ffff
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17 LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense. 1987. p. 07.
18 LEMINSKI, Paulo. Inutensílio. In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, p. 46.
19 Disponível em: https://pt-br.facebook.com/pages/Toda-Poesia-Paulo-Leminski/119334238256651.
20 LEMINSKI, Toda Poesia – Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 07.
Suene Honorato
Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professora do Departamento de Literatura da UFC.
Contato: suenehonorato@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 70

Quatro Ventas: A saga do menino bicho

— Se esse deus pôs no mundo, homem não tira – alguns meses, parrudo como tora de pau, ele já podia sentar
retrucou cuspindo na cara do padre João a índia brava. Não no chão de terra esperando o que lhe trouxessem pra comer
mandassem matar assim filho seu, que não queria. Vez em devorado. Nem choro se ouvia; somente o barulhar dos
quando também as plantas botam frutos enfezados, que a dentes destroçando o que lhe davam, fosse ou não de comer.
gente tira antes de vingar; nem por isso planta é igual gente. A mãe o chamava Dominguinhos, mas não os outros da
O menino ia viver! Ora, se não. aldeia, que cunharam na cara dele o nome de Quatro Ventas,
Tinha juntado um bando vindo da aldeia Gato Preto tantos eram os buracos do nariz. Não sabiam onde a índia-
pra levar o coisa estranha pro padre batizar. Mas o padre mãe tinha ido chocar aquele menino-bicho, com o qual
santo quase cícero disse que não benzia bicho, e que bicho aparecera uma manhã, de volta ao casebre à esquerda da
ruim era melhor matar, pra não salgar a terra de pecado, aldeia, e que logo foi abandonado pelos outros parentes. No
porque certamente era pecado que a mãe cometera pra ter estranhamento que Dominguinhos punha em todos, iam
nascido um filho assim. A mãe ficou de lado, olhando achando que era melhor matar logo o menino e enterrá-lo
enviesado a sentença dele. Não sabia que o menino lhe sentado, como a todos, no buraco perto do rio. Os parentes
nascera bicho em paga das surras que o marido lhe dera por disseram que ela devia passar veneno no bico do peito pra
um punhado de borra que se esfarelara, achando que ali criança definhar sozinha, sem culpa. Pois tava. Fingiu que sim
podia ler a traição que não cometera? Quando a criança e ficaram pensando que a força do menino botava melindre
nasceu, já o marido havia se refugiado no mato com outros no feitiço.
índios. A mãe ia resistindo, e cada um faz o que acha mais
Pois tava, que quando é que deixaria? Sempre ela, devido sem ficar ouvindo que assim não, assim sim, dos
durante os sete anos de vida que o menino-bicho ia outros seus parentes. E crescendo Dominguinhos, ia
completando, o tinha protegido. Foi assim desde que nascera, crescendo também a fome desarvorada. Labigós pedaços de
com a cara atrapalhada e as mãos retorcidas, parecendo que pau setas com pena pra ave nenhuma, tudo sumia na
a mucura ou outro bicho fedido ficasse passando o rabo pela garganta enorme de Quatro Ventas. A mãe cuidava de se
boca meio rasgada. Na sanha de fome esmerilenta, o menino- apartar dos parentes, pensando na vida que alimentava,
bicho ia crescendo mais do que as outras crianças índias. Em evitando que ele comesse a palhoça do casebre e morressem
alguns meses, parrudo como tora de pau, ele já podia sentar os dois enterrados sob a própria desgraça. Se ficasse de pé
agora, passava do seu
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 71

os dois enterrados sob a própria desgraça. Se ficasse de pé matriz, vendo de lá o rio tomado de barquinhos com mães
agora, passava do seu tamanho. E ela nem podia mais levantando seus filhos em oferecimento por alguma graça a
carregá-lo escanchado no cinto de embira. ser alcançada, pescadores sem o braço ou a perna levados pela
Foi por essa época que resolveram levar o menino ao cobra d’água pedindo cura de aflição, moças de ventre
padre João, na insistência da mãe de que o batismo cristão
volumoso suplicando que a criança não nascesse com cara
tinha serventia pra colocar modos de gente no menino-bicho.
de boto, plantadores com ramos de mandioca pra serem
O evento encheu as ruas da cidade. Veio povo de todas as
benzidos, e enxadas pro alto, mulheres com gamelas sobre as
paragens do Tocantins espiar o que diria o padre, com seu
cabeças pedindo fartura. E o padre João, ao ver o menino-bicho
bando de índios e caboclos postos ao lado em armamento
de olhos alheados amarrado nas tábuas fortes da carroça,
mirado, e as putas por detrás das casas pequenas protegidas
levantou a mão direita em riste e declarou:
a um seu olhar. Todos esperavam a palavra definitiva, a
– A comunidade de Boa Vista não deve padecer os
ordem de apagar da história da aldeia Gato Preto aquela
pecados alheios, dessa mãe que aqui se posta de branca santa!
aberração que assombrava a vizinhança da cidade e das
Quatro Ventas não batizo. Deve morrer e ser enterrado pelos
outras aldeias, portanto que já ia comendo o sossego das
seus parentes.
gentes nas conversas que sobre ele se esparramavam. E tinha
até missa aprontada: pra batismo ou velório? A mãe, índia – Se esse deus pôs no mundo, homem não tira –
paramentada pra grande decisão, vestia roupa de branco, retrucou cuspido na cara do padre João a índia brava, já
com pintura de jenipapo por debaixo do manto azul de santa arrancando a roupa de branca e o manto azul e botando no
que vai ter o filho salvo. lugar a cara de bicho que protege a cria, ensinando padre a
Nas ruas gritavam que era pra matar. Pediam em coro o rezar missa, sendo por deus segundo seu entendimento, e não
sacrifício, cada um na multidão rememorando o pecado pelo povo.
maior que a imolação expiaria. Veio vindo então a carroça Daquela vez, o padre mandou baixar as armas. Que fosse
com o menino quase gigante amarrado, a mãe à frente do embora então a comitiva apinajé e não voltasse ali até que se
cortejo com ar piedoso. Padre João esperava no largo da perdesse por completo a história desinfeliz daquela gente.
matri lalalala
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 72

Isolado na cabana à esquerda da aldeia, perto do muitos palmos abaixo, e cada um da aldeia jogava um
ribeirão onde vicejavam muriçocas e varejeiras, punhado de terra por sobre. Quatro Ventas não resmungava,
Dominguinhos perseguia kukrens. Na fúria da fome, viu só lambendo em volta a terra que lhe sujava as bochechas.
passar um cachorro, que com ele se solidarizou na procura Quando tamparam o buraco por completo, viram que nada se
da presa. Olhando ingênuo a graça do bicho prestativo, movia. Debaixo da terra, enterravam a memória ruim da Gato
apetitou dele. A mãe o surpreendeu já com os dentes afiados Preto, que voltaria à vida dos tempos antigos, sem susto nem
a morder a barriga do cão que latia em desespero. Correu pra fama difamada.
apartá-los, como fazia com a palha do casebre os utensílios No dia seguinte, todo o povo retornou ao lugar do
domésticos as roupas pra lavar. Mas Quatro Ventas reagiu enterro pra chorar o morto e terminar os rituais de
opinioso, mantendo a mãe à distância com a mão grande esquecimento. Ao chegarem, deram com a cova aberta, sem
espalmada contra os golpes dela, comendo pacientemente o terra por detrás, nos lados e ao fundo. Os mais fortes saíram
cachorro até sumirem os seus latidos, até ficarem no chão as à cata do agora já bicho gigante, batendo mato sem cães, sem
patas sem carne que já nem lembravam o bichinho de pássaros, tudo silenciado. Ao final de alguns dias, nada
minutos atrás. encontraram. A vida na aldeia foi escurecendo. De quando
A mãe fugiu, temendo que ela própria pudesse ser em quando, se ouvia um pio trágico de algum bicho que
comida aos gritos dali a alguns dias. Quatro Ventas, cada vez morria. As criações sumiam dos cercados. As crianças
maior, exigia alimento mais graúdo. Sozinho por uns dias, ficavam guardadas dentro de casa. E a mãe de Quatro Ventas
andou coxeando por volta da casa, rodeando as outras da abilolada, a arrancar os cabelos.
aldeia e pondo susto a toda gente, embora uma ou outra O cacique decretou que migrassem, pondo na terra a
criança viesse atentá-lo. A mãe reapareceu depois, já reunida malsância daquela gente, pois ali um bicho gigante tornara
ao cacique pra decidirem como impedir que a Gato Preto noite o dia. Fundaram outra aldeia, distante alguns tantos de
fosse toda engolida pela fome de Quatro Ventas. Na ameaça terra, mas ainda nas cercanias da cidade do padre João. Lá se
dos olhos vermelhos dele, a mãe assuntou que se punha em chamam Mariazinha e pensam que todo dia seguinte o sol
perigo; não podia mais defendê-lo. nasce nas bandas do babaçual, onde Quatro Ventas não pode
Decidiram, então, trapacear a morte e ir direto ao se esconder.
enterro. Vivo, foi posto sentado em cova aberta na mata,
muitos
Marcella Abboud
Doutoranda em Teoria e Crítica Literária pela UNICAMP.
Contato: marcellabud@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 74

Lavoura Arcaica: o incesto como símbolo ambivalente

resumo com a linguagem, visto que seu texto é inteiramente


O presente artigo tem como objeto de estudo o romance Lavoura construído em prosa poética, e mesmo que haja um filicídio
Arcaica (1975), de Raduan Nassar, cuja narrativa gira em torno da na conclusão do enredo, o incesto é a principal marca e o
saída do personagem André da casa da família, após um grande embate do romance.
relacionamento incestuoso com a irmã Ana. Tal relação entre
irmãos tem sido constantemente analisada pelo viés da Em Lavoura Arcaica, os consanguíneos que praticam o
interpretação do tabu social e da desordem causada na família: o incesto são irmãos e, para alguns críticos, é visto como a
romance resulta em filicídio, cometido pelo pai de André e cuja derrocada da família, uma vez que André, o protagonista e
vítima foi Ana.
O principal intuito deste texto é dar um estatuto diferente ao irmão incestuoso, vai embora de casa, deixando os familiares
incesto e desprovê-lo da predominância de uma predicação desolados e a lavoura abandonada. Em artigo dedicado ao
totalmente negativa. Para atingir tal desiderato, a presente reflexão
romance de Raduan Nassar e ao seu filme homônimo,
se valerá do respaldo teórico de Paul Ricoeur, em especial sua
análise acerca da questão do símbolo. Para Ricoeur, todo símbolo Henrique Codato e Miguel Heitor Braga Vieira reconhecem
tem um sentido escamoteado e é, por excelência, dúbio. Em certa dois modos de encarar o ato incestuoso: o incesto como
medida, é a garantia da dubiedade que permite deslocar o símbolo
do âmbito do negativo e realocá-lo no da ambivalência.
contravenção social – a partir da quebra do tabu, visto como
ato de desordem familiar. Propomos, com o presente artigo,
uma terceira via: o incesto como ato de amor,
Introdução
necessariamente ambivalente, uma vez que carrega uma
forte demonstração de afeto que não pode (e não consegue)
Se, em uma pesquisa, o título Lavoura Arcaica fosse
se desvincular da repulsa social.
lançado em um mecanismo de busca online, de certo que
Para atingir tal desiderato, recorreremos a Paul Ricoeur e a
teríamos como resultado imediato o termo incesto. Ainda sua Simbólica do Mal². O modo como Ricoeur trata o conceito
que não se desconsidere o domínio ímpar de Raduan Nassar de símbolo e a reelaboração do seu acervo simbólico nos
com a linguagem, visto que seu texto é inteiramente permite rever esse pensamento, visto que é preciso
construído compreender que, para Ricoeur
________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹CODATO, Henrique; VIEIRA, Miguel Heitor Braga. O incesto no livro e no filme Lavoura Arcaica. In : Todas As Musas: Revista de Literatura e das Múltiplas
Linguagens da Arte. São Paulo, 2011: v. 2, n. 2, p.76-93.
2 RICOEUR, Paul. A simbólica do Mal. Trad. de Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Edições 70, 2013.
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simbólico nos permite rever esse pensamento, visto que é Lavoura Arcaica
preciso compreender que, para Ricoeur, ele possui sempre
dois sentidos. Além disso, o Mal, para o autor, é algo que não
O livro de Raduan Nassar data de 1975 e é o primeiro
se pode conhecer diretamente, e que só permite uma
da escassa, porém marcante, produção literária do autor. Seu
interpretação necessariamente simbólica: ele é o símbolo por
enredo é simples e pode ser resumido em um parágrafo:
excelência. Esse duplo sentido constitui a natureza do ato
narra a história de André que, infeliz com a vida que tinha
mais comentado do romance, o incesto. Assim, a relação
sexual e amorosa entre os irmãos André e Ana pode ser com sua família, em uma fazenda de lavoura, foge de casa.
considerada ambivalente, pois carrega um discurso negativo, Depois da fuga, Pedro, o irmão mais velho (e primogênito)
ainda que fale majoritariamente de amor (e seja uma possível vai à procura de André e o encontra num quarto sujo de
demonstração de sua existência). pensão. Ao contrário do esperado, a conversa acalentadora
Dessa forma, poderemos deslocar a temática do incesto, do irmão mais velho não sensibiliza o filho pródigo:
em Lavoura Arcaica, da ordem do monstruoso3 e realojá-la no declarações desestabilizadoras são feitas pelo irmão fugido
campo que lhe é de direito: da ambivalência, que também que, apesar disso, retorna ao seio familiar4, como convém a
inclui o amor. Ao fazer isso, reelaboramos a própria cultura, parábola.
por meio das reinterpretações possíveis, considerando do Se há simplicidade na descrição do romance, ela se
conceito de símbolo. O caminho interpretativo que nos esvai completamente na construção das personagens, os
permite esse novo olhar e essa nova reinterpretação do
quais is constituem um núcleo familiar rural, com sete filhos.
símbolo está relacionada à presença constante da natureza na
O texto é construído, quase em sua totalidade, em primeira
descrição do romance, a qual faz parte da constituição
pessoa e o narrador é André, o filho que foge da família.
familiar - e pessoal - da própria personagem.
bababa
________________________________________________________________________________________________________________________________________
³ Esse adjetivo é correntemente utilizado para se referir ao incesto. Um exemplo disso é o artigo “Filicídio e incesto como atos monstruosos, em Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar”, do Professor Doutor Paulo R. B. Caetano (UFMG).
4 A intertextualidade com o texto bíblico foi amplamente explorada pelo autor e, no presente texto, não será objeto de análise.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 76

Praticamente todo acesso que temos à história de sua fuga, tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de
da opressão e de seu incesto é feito a partir do olhar de uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o
André e, por essa razão, não é possível adjetivar o incesto do segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância
romance como monstruoso, a não ser com a devida vênia, mórbida, em um enxerto junto ao tronco protuberância
isto é, que é claramente um adjetivo dado a posteriori pelos mórbida, em um enxerto junto ao tronco talvez funesto,
críticos, imbuídos do tabu que marca a sociedade pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a
contemporânea. O incesto, em Lavoura Arcaica, é da ordem distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do
do dúbio. tempo) definia as duas linhas da família.5
Os outros personagens que aparecem no romance são; Esse trecho é bastante paradigmático da visão que o
Ana, a irmã por quem André se apaixona; Lula, o caçula, com autor faz da sua própria imagem: ele é parte do lado negativo
quem André também tem um relacionamento incestuoso; da família, a ala sinistra, para fazermos alusão ao tronco
Iohánna, o pai; a mãe; e as três irmãs, Rosa, Zuleika e Huda: esquerdo. Essa parte, como demonstrado no trecho, opõe-se
ao direito: do lado funesto, está o afeto; do outro, a tradição.
Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, A dubiedade já aparece no tom irônico deste trecho, dado
ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por
que o afeto apresenta uma conotação negativa.
ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa,
Ademais, tal dicotomia é muito relevante para a
Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida
Presente investigação, haja vista a tentativa de evidenciar
eu, Ana, e Lula; à sua direita, por ordem de idade, vinha
primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua que há na derrocada familiar a opressão da tradição, muito
esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. mais que o amor. A anomalia, a protuberância mórbida seria,
O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do de fato, um enxerto ao tronco. Contudo, o tronco não é
tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de apresentado como sinônimo de firmeza, mas como de força
uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o bruta e complemente imóvel. Essa imagem da rigidez -
segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância bastante alegórica ao se falar em tradição - é reiterada pelo
mórbida, em um enxerto junto ao tronco talvez funesto, narrador, que constrói sua tentativa de fuga na distância que
________________________________________________________________________________________________________________________________________
5 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp.154-155.
pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a estabelece de casa, da qual ele tenta sair completamente -
distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do embora nunca consiga de fato:
tempo) definia as duas linhas da família. 5
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bruta e complemente imóvel. Essa imagem da rigidez - sombras: o avô, que aparece como uma espécie de penumbra
bastante alegórica ao se falar em tradição - é reiterada pelo assustadora no romance7 e no primogênito Pedro, cujo nome
narrador, que constrói sua tentativa de fuga na distância que não esconde uma espécie de rigidez tão naturalmente
estabelece de casa, da qual ele tenta sair completamente - imagética como um tronco, isto é, uma pedra.
embora nunca consiga de fato: Quando o pai, em algum momento é mencionado,
sempre lhe são atribuídos os sermões que se repetem como
Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha forma de negativar uma atitude. Seus valores, repassados por
contundência o meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!) parábolas e ensinamentos, procuram falar em comedimento
que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se e paciência. Aos olhos de André, o pai sempre oprimiu com
acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” seus ensinamentos, podando toda sombra de dúvida, anseio
– não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse e criatividade:
paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não
importava que eu, caminhando, me conduzisse para ...tudo, Pedro, tudo em nossa casa é morbidamente
regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir impregnado pela palavra do pai; era ele, Pedro, era o pai
claramente de meus anseios um juízo rígido, era um que dizia sempre é preciso começar pela verdade e
cascalho, um um osso rigoroso, desprovido de qualquer terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas
dúvida: “estamos indo sempre para casa”. 6 (grifo nosso) assim, eram pesados aqueles sermões de família, mas era
assim que ele os começava sempre, era essa a sua palavra
A relação forte com a tradição – marcada desde o título angular, era essa a pedra em que tropeçávamos quando
do romance pelo adjetivo “arcaica” – está ancorada crianças, essa pedra nos esfolava a cada instante, vinham
especialmente na figura paterna, Iohánna, e tem duas daí as nossas surras e as marcas no corpo...8
sombras: o avô, que aparece como uma espécie de penumbra
assustadora no romance7 e no primogênito Pedro, cujo nome
________________________________________________________________________________________________________________________________________
6 Ibidem, pp.33-34.
não esconde uma espécie de rigidez tão naturalmente
7 Diz o pai, em um sermão: “na doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o outro exemplo: é na memória do
imagética
avô comoasum
que dormem tronco,
nossas raízes,isto é, umaque
no ancião pedra.
se alimentava de água e sal para nos prover um verbo limpo” em Ibidem,, p.60.
8 Ibidem, p.41
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Pedro, meu irmão, eram inconsistentes os sermões do pai” apareciam enxertos de várias geografias, respondia
eu disse de repente com a frivolidade de quem se rebela, sempre com um arroto toso que valia por todas as
sentindo por um instante, ainda que fugaz, sua mão ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do
ensaiando com aspereza um gesto de reprimenda, mas logo pai: “Maktub”10.
se retraindo calada e pressurosa, era a mão da família saída
da mesa dos sermões; que rostos mais coalhados, nossos A ascendência sutilmente mencionada pelo texto (que
rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à é a do próprio autor, filho de imigrantes libaneses) não
cabeceira...9 aparece como sendo a causadora da dicotomia entre pai e
filho. Os valores que impregnam o discurso do pai poderiam
As referências à tradição têm fundamentação na ser visíveis em diferentes sociedades e não cultuam qualquer
cultura árabe, que é visível nos nomes das personagens, bem relação com a cultura árabe, necessariamente, tendo
como na referência a palavras do léxico. A figura do avô, por inclusive maior relação com o distanciamento urbano. Na
exemplo, aparece repetindo a palavra Maktub (em árabe, o realidade, é recorrente, dentro da cultura brasileira, que os
verbo escrever no pretérito, comumente traduzido por “está imigrantes e filhos de imigrantes sejam responsáveis por
escrito” numa referência cultural e religiosa à ideia de parte considerável da produção agropecuária nacional,
(pre)destinação). especialmente aquela voltada para subsistência. Este dado é
Em memória do avô, faço este registro: ao sol e às chuvas e fundamental para se pensar na própria relação da
aos ventos, assim como a outras manifestações da natureza personagem com a natureza e com a sua sexualidade: André
que faziam vingar ou destruir nossa lavoura, o avô, ao tem seu primeiro ato sexual com uma cabra, e depois se
contrário dos discernimentos promíscuos do pai – em que envolve com a irmã.
apa

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8 Ibidem, p.41. 9 Ibidem, pp.46-47. 10Ibidem, p.89.
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Além disso, reitera-se, dentro dessa circunstância, uma Diante de uma opressão tão forte e rígida como a
preocupação constante do pai: o cuidado com a lavoura, que exercida na lavoura, grande parte da fuga de André se dava,
lhe parece tão fundamental (e fundante) como a própria curiosamente, nos elementos da natureza: tirar seus pés do
família. Ela é parte constitutiva daquela realidade, e é preciso sapato e colocá-los na terra úmida é uma ação constante que
dedicar-se à ela para pertencer ao seio familiar. A relação marca sua liberdade, seu desejo e a necessidade de calma. A
com a lavoura, mote preferido dos sermões paternos e parte natureza de Lavoura Arcaica possui poder significativo e é a
da fúria revoltosa de André, está na necessidade de partir dela que consideramos a duplicidade de sentidos do
participar, a todo custo, da vida tão predestinada como a fala incesto. Se ela é o ponto de fuga da opressão, então a
predestinada como a fala do avô: Maktub, isto é, quem nasce liberdade, a felicidade e o regozijo, não podem ser partes de
ali, nela necessariamente labuta. Não só André se sentia um ato considerado necessariamente mal e negativo.
perturbado e oprimido, Lula, o filho caçula, revolta-se com a
volta do filho pródigo, e diz a André:
A natureza como chave interpretativa
Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os
sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a É possível afirmar que a natureza é, para Raduan
vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono Nassar, fonte de um arsenal quase inesgotável de referências
dos meus próprios passos; não nasci pra viver aqui, sinto e imagens utilizadas na construção do romance. Os
nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra, personagens, as paisagens, e inclusive os sentimentos mais
nem dos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva (...)
abstratos, ganham forma material no texto, a partir dos
André, vou sair de casa para abraçar o mundo, vou partir
aspectos naturais. Esse recurso tem forte poder imagético e
para nunca mais voltar, não vou ceder a nenhum apelo,
tenho coragem, André, não vou falhar como você...11 permite a compreensão da carga simbólica do incesto.
incestooo

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11Ibidem, pp.177-179.
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O filósofo francês Paul Ricoeur falava da movimento inevitavelmente redutor de uma interpretação
impossibilidade de o sujeito conhecer-se diretamente única, e é nesse sentido que ele propõe o conflito: “a
completamente: há sempre os signos que constroem a sua interpretação parte da determinação múltipla dos símbolos
memória e o seu acervo cultural e são os intermediários (...) mas cada interpretação, por definição, reduz essa
desse conhecimento. Seus textos hermenêuticos resultaram riqueza, esta multivocidade e “traduz” o símbolo segundo
em uma preocupação sincera em compreender os signos. uma grelha de leitura que lhe é própria”13. O que se está em
Nessa empreitada, Ricoeur formulou diferentes estudos, discussão é uma dialética da interpretação.
entre eles, uma hermenêutica dos símbolos, cuja principal Há um sentido primeiro – literal – e um sentido oculto
conclusão é “o símbolo faz pensar” . O que Ricoeur dizia era
12
no incesto na obra nassariana. O segundo pode ser
que o símbolo possui um duplo sentido: um opaco e literal e apreendido a partir da relação que o narrador estabelece
outro existencial e oculto. O primeiro guiaria a revelação do com a natureza. Desde o início do texto, já no segundo
segundo, haja vista que o símbolo comunica uma mensagem capítulo, André aponta os elementos da natureza como fonte
e, concomitantemente, escamoteia outra. de calmaria ao seu espírito agitado:
É nesse sentido escamoteado que residiria, então, a
possibilidade de interpretar que nos é tão cara para discutir Na modorra das tardes vazias na fazenda, era num sítio lá
romance nassariano a partir de uma nova visão. Para no bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da
Ricoeur, surge deste pensamento a alternativa de haver um família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida,
“conflito de interpretações”: em seu texto, o autor opõe uma cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia
interpretação psicanalítica de um texto à outra, hegeliana: na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso
àquela denomina arcaica – porque busca interpretar na de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos
própria origem do ser - e a esta, preceptora, porque tem sua todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de
preocupação no que sucede do ser. Ricoeur é consciente do paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas
movimento inevitavelmente redutor de uma interpretação eram essas liberando as vozes protetoras que me
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chamavam
12 No original, “le symbole donne à penser”. Optamos por essa tradução porque nos parece mais
única, e é nesse sentido que ele propõe o conflito: “a adequada.da varanda?
Outra depossível,
tradução que adiantavam
como a utilizada na versão
portuguesa de A Simbólica do Mal, é “o símbolo dá que pensar”.
13 RICOEUR, Paul. O conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Trad. de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1978. p.16.
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eram essas liberando as vozes protetoras que me Os sentimentos nutridos por Sudanesa redundam
chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, numa extrema personificação da cabra e num ato sexual
se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam entre os dois:
melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu
sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa
...tinha nos olhos bem imprimidos dois traços de tristeza,
com que se colhe um pomo).14
cílios longos e negros, era nessa postura mística uma
A natureza é, para André, um refúgio: nela, ele fica cabra predestinada (...) Schuda, paciente, mais generosa,
livre e protegido, distante daquilo que lhe causa febre, dor e quando uma haste túmida, misteriosa e lúbrica, buscava
no intercurso o curso do seu corpo...16
sofrimento, sendo um elemento de positividade em
diferentes momentos. O capítulo 4 é significativo para
A presença da natureza também é notada é quando
evidenciar a relação de André com a natureza, pois apresenta
André descreve a primeira dança de Ana: ela é descrita com
a cabra Sudanesa como primeiro objeto de desejo e cuidado
elementos naturais, como os olhos de tâmara, capaz de
do personagem:
tumultuar dores, “arrancando gritos de exaltação”17 de quem
assistia.
Sudanesa (ou Schuda) era assim: farta; debaixo de uma
cobertura de duas águas, de sapé grosso e dourado, ela O que acomete André não é a culpa pelo tabu, mas o
vivia dentro de um quadro de estacas bem plantadas (...) a sofrimento perene com as regras e imposições da família.
primeira vez que vi Sudanesa com meus olhos foi em um Quem oprime é a tradição, as regras do pai, os sermões sobre
fim de tarde que eu a trouxe para fora, ali entre arbustos perseverança e paciência. O que há no incesto, aos olhos de
floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã: eu André, é amor e positividade, marcado pela presença da
a conduzi com cuidado de amante extremoso15. natureza na cena em que o ato sexual é descrito. Verbis:
descrev
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14 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp.11-12.
15 Ibidem, pp. 17-18. 16 Ibidem, p.18. 17Ibidem, p.30.
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“...e era, Ana ao meu lado, tão certo, tão necessário que Seria uma leitura ingênua pressupor que só o amor
assim fosse, que eu pensei, na hora fosca que anoitecia, comove André. Há culpa nesse relacionamento e, por isso ele
descer ao jardim abandonado da casa velha, vergar o ramo possui caráter ambivalente. Poucas coisas são mais ocultas
flexível de um arbusto e colher uma flor antiga para os seus que o silêncio e foi o silêncio a marca que caracterizou Ana.
joelhos; em vez disso, com mão pesada de camponês, Ao longo de todo livro, não há nenhuma fala de Ana. Ao
assustando dois cordeiros medrosos escondidos nas suas mesmo tempo, ela é a personagem que permeia toda
coxas, corri sem pressa seu ventre humoso, tombei a terra, narrativa: praticamente todas as ações de André envolvem
tracei canteiros, sulquei o chão, semeei petúnias no seu Ana, direta ou indiretamente. O seu mutismo talvez seja um
umbigo; e pensei também na minha uretra desapertada outro grande símbolo, uma vez que existe uma primeira
como um caule de crisântemo, e fiquei pensando que leitura, de culpa, e outra, escamoteada, que envolve o amor
muitas vezes, feito meninos, haveríamos os dois de rir por André, mas que não podemos apreender completamente.
ruidosamente feito meninos, haveríamos os dois de rir O silêncio de Ana não é compreendido pela família. Pedro, o
ruidosamente, espargindo a urina de um contra o corpo do primogênito, conta para André:
outro, e nos molhando como há pouco, e tocando sempre
através das nossas línguas laboriosas a saliva de um com a mas ninguém em casa mudou tanto como Ana” ele disse
“foi só você partir e ela se fechou em preces na capela,
saliva de outro, colando nossos rostos molhados pelo nosso
quando não anda perdida num canto mais recolhido do
olhos, o rosto de um contra o rosto do outro, e só pensando
bosque ou meio escondida, de um jeito estranho, lá pelos
que nós éramos de terra, e que tudo que havia em nós só
lados da casa velha; ninguém em casa consegue tirar
germinaria em um com a água que viesse do outro...18”. nossa irmã do seu piedoso mutismo...19

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18Ibidem, pp. 113-114. 19 Ibidem, p.37.
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Duas leituras nos são dadas: a de Pedro, que ainda sem Considerações Finais
saber de nada, narra o sofrimento da irmã como metonímia
do sofrimento de toda família – um irmão foi embora e o Duas cenas do livro ainda merecem destaque para que
tronco rígido da união familiar se rompeu. Além da leitura de se possa considerar diferentes olhares sobre o símbolo do
Pedro, há o olhar do leitor de que o ato sexual se deu na casa incesto. A primeira delas é o encontro de Ana e André na
velha e que, quando André acordou, Ana já não estava ao capela, após terem tido a relação sexual; a segunda é o
lado dele, mas na capela, rezando em silêncio. Rezava por assassinato de Ana pelo próprio pai.
culpa? Rezava de saudade? Quando André desperta, percebe que Ana não está ao
Há um forte interdito cultural na religião: o sexo é seu lado – “eu que não sabia que o amor requer vigília”20 – e a
pecaminoso, especialmente se praticado com alguém encontra, de joelhos na capela, rezando enquanto chora.
proibido pelo tabu social, ou seja, o próprio irmão. No Pensando nisso, vislumbrando o possível desejo de redenção
entanto, considerar o silêncio de Ana apenas como culpa por parte de Ana, André afirma, em seu discurso, que o
seria reduzir outro símbolo em mera alegoria, descartando acontecido, ao contrário de um pecado, era um milagre:
seu poder oculto e sua segunda interpretação. Afinal, o leitor
sabe que Ana rodeia a casa velha, bem como sabe que se deu foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o
lá o ato sexual de André e Ana. É provável que a culpa seja o mesmo tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma
sentido mais evidente do mutismo de Ana, mas é também da deslealdade, e a certeza supérflua e tão fundamental de
natureza dúbia desse símbolo carregar a ambivalência de um contar sempre com o outro no instante de alegria e
significado: o silêncio de Ana é também saudade, ausência, nas horas de adversidade; foi um milagre, querida irmã,
pois se viu afastada de seu amor, André. descobrirmos que somos tão conformes em nossos
corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância
comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte
em nossas memórias, sem trauma para a nossa história;
foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos
______________________________________________________________
bastamos dentro dos limites da nossa própria
20 Ibidem, p.114.
______________________________________________________________
palavra, confirmando a palavra do pai de que a
____________
felicidade só pode ser encontrada no seio da família;
foi um milagre, querida irmã...” 21
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foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos Esse ritual se repete, ainda com mais ênfase e nutrido
bastamos dentro dos limites da nossa própria palavra, pelo ciúme, na festa de André, a recepção do filho pródigo:
confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode
ser encontrada no seio da família; foi um milagre, querida
...foi assim que Ana, converta com as quinquilharias
irmã... 21
mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa,
varando com a peste no corpo o círculo que dançava,
André fala em termos positivos: foi um milagre, uma
introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante
felicidade, alegria. A imagem do pai aparece como forma de
decadência (...) os braços erguidos acima da cabeça
justificativa, afinal, o pai havia dito que a felicidade está no serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lendo,
seio da família. E Ana era, para André, felicidade. Ainda que mais ondulante...22
houvesse culpa, o negativo, o monstruoso e o inadequado
não são atributos justos para o incesto.
A dança petulante e sexual de Ana desconcertava as
Por fim, a volta de André, que é acolhido pela família,
tradições da família: as irmãs tentavam impedi-la, Pedro
causa um último furor: Ana foge e só reaparece na cena final
vociferava ao Pai, a mãe chorava. O primogênito, cuja honra
do livro. Ela reaparece vestindo acessórios de prostitutas que
da família devia proteger, solicitou a vinda do patriarca. O pai
André colecionava em uma caixa, e que Ana roubou. Esse
veio ao encontro de Ana e não se conteve: matou a própria
roubo Esse roubo evidencia o ciúmes e o desejo de Ana em
filha, cuja sensualidade desafiava a rigidez da tradição.
provocar André, elucidando assim, seus sentimentos de
desejo e amor pelo irmão. É preciso notar que, aos olhos de André não esconde, ao final do livro, durante o
André, Ana sempre apresenta uma imagem muito assassinato de Ana, que era visível o peso da tradição até
sensualizada, sendo protagonista de cenas de danças sobre aquele homem que a cumpria como se lhe fosse tão
sensuais ao longo de todo o livro. A dança aparece natural. A força da Lavoura Arcaica se esvai. O patriarca
recorrentemente como um ritual de sedução entre os dois. sucumbe à violência da tradição e comete filicídio:
sedu violenciada
________________________________________________________________________________________________________________________________________
21 Ibidem, p.118. 22
Ibidem, p.189.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 85

...o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o


grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só
golpe a dançarina oriental (que vermelho mais
pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe
nos meus olhos!), não teria a mesma gravidade se uma
ovelha se inflamasse, ou se outro membro qualquer do
rebanho caísse exasperado, mas era o próprio patriarca,
ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera
divina (pobre pai!), era o guiado, era a tábua solene, era a
lei que se incendiava – essa matéria fibrosa, palpável, tão
concreta, não era descanada como eu pensava, tinha
substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea,
resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre
família a nossa, prisioneira de fantasmas tão persistentes!),
e do silêncio fúnebre que desabara atrás daquele gesto,
surgiu primeiro, como de um parto, um vagido primitivo

Pai!

O livro se encerra com um capítulo em “Memória de


meu pai”. O capítulo possui um tom misterioso que oscila
entre a ironia e a compaixão, refletindo sobre os acasos e
caprichos do tempo. A conclusão da trama nassariana será
também a nossa: a tradição é inevitavelmente opressora,
como “o gado sempre vai ao poço”.23
_____________________________________________________________
23 Ibidem, p.194.
_____________________________________________________________
______________
Rogério Sáber
Mestre em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Docente da Universidade do Vale do Sapucaí, e
Pesquisador do grupo “Minas Gerais: diálogos” (Unincor).
Contato: rogeriosaber@gmail.com
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A existência não vence em teu peito

O nevoeiro funde-se à minha arquitetura. As vigas não são mais


maciças, mas há permanência. A névoa oculta o semblante da mansão e
há ruídos e há permanência. Os ruídos são a tentativa de desvelamento.
Névoa: queda lenta e úmida e os segredos não são postos às claras. A
neblina é cúmplice do mistério, criadora do mistério. A casa permanece:
decadente, nostálgica, mas permanece. O ser humano passa.

Insistentes monossílabos ecoam à distância


enquanto percorro o vale desertado,
forçado a contemplar meu próprio fado,
coagido a aceitar minha inútil errância.

A audição torna-se apurada, e o som, denso:


a alma absorve, de fora para dentro, os obstinados barulhos.
Os alvéolos do espírito permanecem ocos e em silêncio;
enquanto a carne é fustigada pela crueldade dos pedregulhos.

Há miradouro a se alcançar quando tudo é deformado por excelência?


Haveria fuga da triste música carregada pelos ventos estivais?
Como ser o intérprete dos sons da própria existência,
se cada passo nos conduz a veredas infernais?

Replica o vale:
“Conforma-te com minha areia e vaga como tu podes!
Lembra-te de que minhas dunas se movem e cobrem os caminhos que estavam desnudos.
Prisioneira, a existência em teu peito não vence: limita-se a um coração que explode –
e que acompanha o meu batuque, até que os golpes se tornam fracos, fracos,
– mudos.”
Elisa Pagan
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: elisappagan@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 89

Romances expressos e amores em Ithaca Road

1. mundo, Rodrigo Teixeira resolveu financiar o projeto com o


próprio dinheiro, juntamente com dois sócios, reduzindo
Antes de qualquer consideração
então o orçamento para 500 mil reais. E foi quase um
sobre Ithaca Road1, talvez seja
fracasso total. Alguns escritores desistiram, entre eles,
interessante comentar as curiosas
Reinaldo Moraes, encarregado de escrever sobre a Cidade do
condições em que o livro foi escrito.
México, que disse em entrevista para a Folha, já em Julho de
Em 2007, o produtor Rodrigo
2013: “Livro sob encomenda só aceito se estiver passando
Teixeira idealizou a coleção “Amores
fome.” Lourenço Mutarelli chegou a terminar o trabalho, mas
Expressos”, em parceria com a
ficou tão insatisfeito com o resultado final de seu romance
editora Companhia das Letras. O
sobre Nova York que preferiu nem publicá-lo, em 2009.2
projeto: 16 escritores vão para
Adriana Lisboa terminou, em 2008, seu romance sobre Paris,
mamamam
diferentes partes do mundo colher uma história de amor que porém, segundo entrevista para a Folha, deparou-se com
será convertida em umdiferentes
romance, num estilo que deve ser uma “questão estrutural indissolúvel”, e não foi publicado3.
adaptável para o cinema. A coleção também conta com uma Atualmente, a série conta com 10 livros publicados pela
série de televisão, que estreou na TV Cultura em 2011. O Companhia das Letras, sendo que o último é o romance de
orçamento do projeto foi, inicialmente, de 1,2 milhão de Paulo Scott. Ithaca Road é o mais novo livro desta coleção
reais, para comprar as passagens e hospedar seus escritores. que tenta, aos poucos, se reestruturar e ganhar espaço no
Num primeiro momento, o projeto seria subsidiado pela lei mercado literário. O romance, no entanto, possui questões
Rouanet; diante do volume de reclamações de escritores, internas que podem ser extrapoladas para a própria
jornalistas e blogueiros, que acharam injusto o uso de tal proposta da coleção Amores Expressos, o que será explorado
quantia de dinheiro para hospedar pessoas em hotéis pelo adiante. Comecemos pelo livro.
mundo
_______________________________________________________________________________________________________________________________________
1 SCOTT, Paulo. Ithaca road. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013.
2 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1317373-encomenda-travou-escritores-da-colecao-amores-expressos.shtml
3 Ibidem.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 90

Narelle, protagonista do romance, é uma jovem cidadã Narelle tem todo um estilo tomboy4; alta, morena, descendente
neozelandesa, mestiça maori, que viaja para Sydney a pedido maori, anda de skate e não se importa com bolsas e sapatos.
do irmão Bernard. Este, que é dono do restaurante do qual Existe nela todo um estereótipo de mulher moderna, exótica,
Narelle será a gerente provisória, some misteriosamente sem que não liga tanto assim para a aparência, que faz sexo casual,
deixar pistas. No cenário dessa metrópole, Ithaca Road conta bissexual, que quer ser independente e bem sucedida: um
como é – e foi – a relação de Narelle com esse país. O livro é verdadeiro fetiche sexual da juventude moderna.
curto e enxuto; cerca de 100 páginas escritas numa Dentro do universo do romance, Narelle é tão sedutora
linguagem bem direta, com um excessivo e repetitivo uso de que absolutamente todos os personagens importantes,
pronomes pessoais, que confere ao romance um clima ocasionalmente, se sentirão atraídos e estarão em alguma
maquinal, bem pouco natural. Os diálogos, no mesmo estilo, situação de tensão sexual com ela. Mas, de todos que a
se dão por meio do discurso indireto, ou entre aspas no meio desejam, três figuras são particularmente interessantes para o
dos parágrafos, sempre num ritmo acelerado. Tal proposta romance: o síndico, um desconhecido e uma jovem com
de estilo se encaixa muito bem no clima frenético e “autismo leve” (como descreve Paulo Scott na série de
metropolitano que rege o romance. televisão baseada no livro).
Em Ithaca Road, Narelle se encontra com vários Ao entrar no restaurante de seu irmão, o Paddington
amigos de seu passado. Na pressa de se libertar de sua rotina Sour, Narelle conhece o síndico responsável pelo
e de sua família, quando mais nova, viajou para Sydney, estabelecimento. Ela descobre que o restaurante está num
entrou numa faculdade, depois desistiu, e no meio de tanta processo de falência e é avisada pelo síndico de que ela, por
indecisão decide que irá ser uma espécie de “caçadora de ser a gerente provisória, se responsabilizará pelos problemas
estampas”: uma pessoa que viaja pelo mundo à procura de do estabelecimento e deverá cooperar. E ela não poderá, em
estampas exóticas para grandes grifes. Ao mesmo tempo, hipótese alguma, sair do país. Logo na primeira metade do
Narelle tem todo um estilo tomboy ; alta, morena, 4 livro o síndico vai à casa em que Narelle está morando (a de
descendente maori, anda de skate e não se importa com seu irmão) para fazer o levantamento de bens, sob a ameaça
4Tomboy: menina que possui comportamentos masculinos; usa algumas roupas masculinas (como bermudas ou camisas) e gosta de brincadeiras "de rapazes",
bolsas e sapatos. Existe nela todo um estereótipo de mulher de que, se ela não cooperar, ele chamará força policial. É neste
ou seja, que envolvam elevada competitividade ou força física, tais como futebol, lutas ou subir em árvores. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria-rapaz
moderna, exótica, que não liga tanto assim para a aparência, momento que Narelle sofre o seu primeiro abuso. O síndico
que faz sexo casual, bissexual, que quer ser independente e encontra um cofre no apartamento. Narelle não conhece o
bem sucedida: um verdadeiro fetiche sexual da juventude código. Continua:
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 91

livro o síndico vai à casa em que Narelle está morando (a de destrancou a porta do apartamento por sua própria conta,
seu irmão) para fazer o levantamento de bens, sob a ameaça agradeceu por estarem se entendendo e saiu. 5
de que, se ela não cooperar, ele chamará força policial. É
neste momento que Narelle sofre o seu primeiro abuso. O Depois deste momento, o livro continua com a mesma
síndico encontra um cofre no apartamento. Narelle não linguagem mecânica, tranquilamente. Este trecho sugere
conhece o código. Continua: uma cena de abuso, mas o excessivo distanciamento com que
ele é narrado confunde o leitor, que, incrédulo, fica sem saber
Ele disse que não se preocupasse, não chamaria os policiais se o abuso realmente aconteceu. Ao final do livro, o síndico
desta vez, queria só a palavra dela de que não abriria
ataca novamente Narelle, que, desta vez, foge correndo
aquele cofre sem que ele estivesse presente. Ela se negou.
Então ele segurou firme seu pulso direito. Pediu que lhe
deixando-o sozinho numa sala do Paddington Sour; a cena
mostrasse o celular. Ela obedeceu. Pegou o aparelho, acaba sem explicações e confirma as suspeitas do leitor.
desligou, deixou sobre o tampo da mesa, deu uma olhada Após este primeiro contato violento com o síndico,
ao redor como se procurasse. Pareceu mais jovem e atlético Narelle conhece uma menina autista chamada Anna, e sua
do que antes, mais alto e ameaçador. “Não se preocupe... irmã Lakini, num parque da cidade. Anna gostava de
não vou ser violento... Quero só que voce preste bem
desenhar; ao final do livro, seus desenhos são a chave para
atenção no que eu vou dizer... A partir deste minuto, deste
exato minuto, voce vai me respeitar e vai me obedecer. que Narelle entenda o que está acontecendo com o
Estamos acertados?” Poderia ter avançado com as unhas restaurante de seu irmão. Esta menina, desenhando pessoas
contra seu rosto, buscado uma faca na cozinha, gritado, aleatórias no parque, tem a sorte de retratar várias cenas
reagido como se não houvesse consequências, mas onde está seu irmão, o que fará Narelle descobrir de um
concordou, apenas concordou. Depois de mais de uma hora
funcionário do restaurante que seu irmão está por perto e
de trabalho disse estar satisfeito e que chegaria ao
Paddington Sour às onze e meia da noite em ponto, que tudo não passa de um plano, que ela deve relaxar e
bbbbbbb continuar com as coisas normalmente. O curioso é que é
bbbbb
_____________________________________________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________________________ _____________________________________________________
5 SCOTT, Paulo. Ithaca road. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.31.
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Anna quem fará o esforço para ter contato com Narelle, com como ela é impotente frente aos abusos e aos outros
quem começa a passear regularmente. Num desses passeios, personagens não condiz com a sua personalidade tomboy e
as duas vão passar a noite em uma pousada e, durante a independente, nem com o ideal de heroína romanesca
madrugada, Anna seduz Narelle, elas se relacionam e moderna. Somado a isso, a linguagem mecânica do livro faz
dormem juntas. Não pretendo, nesta resenha, analisar a cena com que as cenas fiquem ainda mais inesperadas e frias. É
do ponto de vista moral; descrevo-a, simplesmente, pela possível entender a relação dela com Anna como uma relação
grande tranquilidade com que Paulo Scott tratou esse também impotente: Narelle foi chamada por Lakini para
assunto tão delicado e tão polêmico, e pela importância que ajudar a animar Anna, uma menina vista como frágil, que
esta menina tem na construção da personagem principal, necessita de cuidados especiais. Porém, é essa quem seduz
conforme irei argumentar. Narelle, trazendo-a para seu mundo. Com o passar do livro,
Por fim, no final do livro, Narelle conta a seu amigo essa grande impotência de Narelle parece ser aquilo de mais
Justin uma história antiga. Alguns anos antes, ela estava em peculiar no romance. O livro possui, na maior parte do
uma casa durante uma invasão policial na época das tempo, uma leitura fácil; conta a história de uma menina-
Olimpíadas de Sydney, quando, segundo o livro, estava fetiche qualquer, numa cidade qualquer. Mas estas partes em
ocorrendo grande repressão contra as comunidades particular representam uma força destrutiva para aquilo que
aborígenes que moravam na parte urbana da cidade. Nessa a personagem possui de mais clichê e previsível, colocando-a
parte, tão surpreendente quanto os abusos do síndico e a em situações que conseguem gerar um verdadeiro
cena de sexo com a jovem Anna, Narelle conta que foi desconforto no leitor, conferindo a ela uma profundidade
espancada violentamente por policiais, após discutir com um psicológica inesperada.
deles. Ensanguentada e debilitada, foi levada para o hospital, No desfecho do livro, após Narelle saber que seu irmão
onde um desconhecido – que ela sugere ser um dos policiais está em Sydney e que tudo não passa de um plano, após ter
– coloca a mão em suas partes íntimas enquanto lhe fala que ligar para seus pais e não conseguir lhes contar sobre
obscenidades em voz baixa. Estas cenas nas quais Narelle é seu irmão, após viver e relembrar histórias de abuso cada
tratada com excessiva brutalidade são completamente vez piores, ela é convidada por Lakini para dormir em sua
avessas ao comportamento que o leitor espera. A maneira casa com Anna, sugerindo que as duas terminariam juntas.
como ela é impotente frente aos abusos e aos outros Narelle toma poucas decisões por conta própria; ela é
personagens não condiz com a sua personalidade tomboy e seduzida o tempo todo, de maneira passiva, para vários
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Narelle toma poucas decisões por conta própria; ela é um retrato fiel dessa juventude, que é semelhante entre si
seduzida o tempo todo, de maneira passiva, para vários em qualquer metrópole do mundo, seja em Sydney, Paris,
lugares e pessoas. E assim, numa espécie de deus ex machina6 Nova York ou São Paulo.
às avessas, no auge de sua passividade, o livro termina. Em seu famoso texto “O narrador” 7, Walter Benjamin
Quando ela percebe que todos a estavam manipulando de diz que existem dois modelos de narrador: o do camponês
alguma forma, ela se vê finalmente livre para tomar uma sedentário e o do marinheiro viajante. Enquanto o primeiro
decisão por si só. Assim, decide nunca mais voltar ao reconta as narrativas que acumulou durante a vida, o outro,
Paddington Sour – por mais que o síndico a tenha alertado de justamente por viajar pelo mundo, é aquele que viveu as
que ela não poderia fazer isso. Com quem ela ficará, isso o próprias histórias e encontrou outros viajantes semelhantes
livro não responde. a ele com quem dividiu histórias. O ato de ser um viajante, de
não possuir uma rotina fixa, de se colocar em um modo de
2. vida que é visto, pela pessoa comum, como extraordinário e
Dentre as críticas feitas ao livro recém-saído do prelo, imprevisível, confere a ele um status de autoridade. Pode-se
um fator parece ser consenso: Ithaca Road consegue fazer dizer que esta é a ambição da coleção Amores Expressos:
um retrato interessante e coerente da chamada geração Z: transformar o escritor comum, sedentário, em um viajante.
jovens que não querem se fixar em algum lugar ou a alguém; Segundo Walter Benjamin, o surgimento da imprensa
desejo sexual sem preconceitos, aberto a novas – e polêmicas é um fator decisivo para a consolidação da forma romance na
– experiências; ausência do desejo de constituir família; tradição literária. Em seu texto, ele faz uma diferenciação
capacidade de manter relações, sejam amorosas, amigáveis entre narrativa e romance: enquanto a narrativa está ligada
ou profissionais, com diversas pessoas em diversas partes do à tradição oral, o romance está intrinsecamente ligado ao
mundo. Podemos dizer que o livro é, antes de qualquer coisa, papel, seja livro ou folhetim. A narrativa é a arte de contar
...........................................................................................................um devidamente uma história, seja à maneira do marinheiro ou à
maneira do camponês; é uma forma ligada ao intercâmbio de
6 Deus ex machina: expressão latina, que significa literalmente "Deus surgido da máquina". É utilizada para indicar uma solução inesperada, improvável e
retrato fiel dessa juventude, que é semelhante entre si em
mirabolante para terminar uma obra de ficção ou drama. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Deus_ex_machina
7qualquer
experiências vividas. O romance, por sua vez, é um produto
BENJAMIN,metrópole Walter. O narrador:do mundo, seja em Sydney,
considerações sobre a obra Paris,
de Nova
Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
York ouSão
cultura.. São Paulo.
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 197-221. íntimo do autor.
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devidamente uma história, seja à maneira do marinheiro ou à não ter conseguido obter de suas cidades mais do que
maneira do camponês; é uma forma ligada ao intercâmbio de informações cenográficas. Na série de televisão baseada na
experiências vividas. O romance, por sua vez, é um produto coleção, Daniel Galera comentou que, enquanto escrevia A
íntimo do autor. Cordilheira em Buenos Aires, pretendera escrever um
Com a imprensa, surge um conceito novo: a “romance universal”. "Dá para ambientar romances até na
informação. O poder da informação depende do quanto ela é Lapônia, como no filme ‘Os Amantes do Círculo Polar’”8, disse
verídica; ela só é válida se vier acompanhada de uma Adriana Lisboa, em entrevista para a Folha. O mesmo
explicação. Com ela, aparece a ideia de “intercâmbio de problema é evidenciado também por Alcir Pécora, em sua
informações”, força absolutamente destrutiva para o resenha sobre o romance Do Fundo do Poço se Vê a Lua, de
“intercâmbio de experiências” – a narrativa. Neste ponto, Joca Terron:
Walter Benjamin fala sobre a incapacidade que temos, nos
tempos que correm, de trocar experiências. Ouvir uma A vantagem evidente de mandar os autores às cidades
estrangeiras era que as conhecessem e fizessem
história com o intuito de se fazer mais sábio, dar um
ambientações menos canhestras. No caso de Terron, a
conselho, escrever um livro com “moral da história”, são
viagem foi inútil: dançarinas do ventre, cafetões
coisas que nos parecem completamente antiquadas. E isto
charmosos, tempestades de areia, vielas labirínticas,
ocorre porque a ideia de troca de experiências – a ideia de cortesãs misteriosas, aristocratas e hotéis decadentes,
sabedoria – foi perdida e substituída pelo ideal moderno de garotos pedintes, milícias fundamentalistas, xeiques
acúmulo de informações. É neste ponto que a coleção tarados... Há tantos estereótipos do Cairo que faz duvidar
Amores Expressos encontra um sério problema. A ideia de do interesse de ter ido até lá. 9
que escritores, em contato com diferentes culturas e pessoas,
seriam capazes de escrever uma história de amor que fosse, Da mesma forma, o livro de Paulo Scott não conta uma
de alguma forma, própria ou típica do lugar visitado, é história que possui real ligação com a cidade de Sydney; a
antiquada. Vários escritores, em suas viagens, mostraram história faz um retrato da sociedade capitalista e
não ter conseguido obter de suas cidades mais do que absolutamente globalizada que a geração Z habita. Narelle
8 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1703200707.htm
informações cenográficas. Na série de televisão baseada na .............................................................................................................................
9 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2205201016.htm
coleção, Daniel Galera comentou que, uma cidadã neozelandeza, descendente de maoris, que
trabalha numa empresa de moda que vende estampas do
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absolutamente globalizada que a geração Z habita. Narelle é Sydney. A cidade aparece como cenário, como figurino; o
uma cidadã neozelandeza, descendente de maoris, que livro dá ao leitor pequeninos relatos informativos de como é,
trabalha numa empresa de moda que vende estampas do atualmente, a vida mundana de uma metrópole australiana:
mundo todo para grifes também do mundo todo, e cujo onde comem, o que ouvem, o local onde andam de skate, a
namorado é um jornalista austríaco que está trabalhando no praia onde praticam surf, a rua que possui bares badalados.
Brasil. Todos esses substantivos que se referem a países e A importância de Sydney é meramente informativa e
nacionalidades, no livro, podem ser randomicamente cenográfica; a viagem só foi necessária para a criação do livro
substituídos até a exaustão; o romance permanecerá, grosso na medida em que encorajou o autor a escrevê-lo.
modo, o mesmo. Troquemos Sydney por São Paulo, Opera
House pelo Teatro Municipal, ou a repressão policial nas 3.
Olimpíadas pelas UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, e Ithaca Road é visto pelo próprio Paulo Scott como a
Narelle pode sentar em escadas que desempenharão seu trajetória do crescimento pessoal de Narelle. Segundo o
papel da mesma forma, aqui ou lá, e poderá pensar as autor, em entrevista 10:
mesmas coisas e tomar as mesmas decisões. O papel dessa
ambientação, da overdose de nomes de ruas, redes de fast- Esse retorno a Sydney desencadeia uma série de encontros
food, lojas, shoppings e praias, funciona antes como uma e situações limites que colocam ela em uma perspectiva
diferente, e a faz reavaliar ou ter de enfrentar coisas que
ambientação exótica, um figurino que irá dar um toque de
ficaram escondidas, esquecidas, apagadas, coisas que
requinte, uma falsa autoridade para a obra.
aconteceram em Sydney.
O que vem sem explicações, a narrativa dentro do
romance, é a história de Narelle. A ambientação e tudo o que E também:
pode vir sobre Sydney nos vem invariavelmente na forma de
informação; o que exemplifica a extrema dificuldade, ou até Ithaca Road é uma espécie de momento de acerto de contas
impossibilidade, de se narrar uma história própria de de Narelle com o passado.
...............................
10Vídeo “'Ithaca Road' de Paulo Scott”, disponível em www.youtube.com
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Narelle, pintada como mulher independente e dona de si, ou, ao contrário, parece ser exatamente a mesma
decidida, é impotente até as últimas páginas do romance. A pessoa, imutável, incapaz de absorver alguma experiência com
sugestão de que ela terminaria com a sedutora e frágil Anna o que ocorre com ela? Se a segunda hipótese for verdadeira,
é uma espécie de atestado final de sua incapacidade de tomar podemos ver, encenada por Narelle, a impotência central da
decisões por si só. O que o autor descreve como um acerto de coleção Amores Expressos. O desabafo, ou o oferecimento de
contas com o passado aparece, no livro, como um desabafo: mais uma informação sobre a vida de Narelle para o leitor
Narelle descreve o que lhe aconteceu no episódio do funciona como um arremedo de mudança real e efetiva da
“Quarteirão” (no qual ela foi abusada sexualmente por um personagem; da mesma forma, a grande disponibilidade de
policial). Seria o ato de proferir em voz alta o que ocorreu um informações – o conjunto, às vezes estereotipado, do figurino e
ato de superação, de crescimento pessoal, como diz o autor? do cenário das cidades visitadas – funciona como um
Será que, ao final do romance, Narelle se torna independente, arremedo da experiência no sentido benjaminiano.
Lidiana Garcia

Cursa Letras no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Bolsista SAE do projeto
“Bibliografias sobre Vanguardas Artísticas no século XX no Brasil”, sob a orientação de Maria Eugenia
da Gama Boaventura Dias do Departamento de Teoria Literária do IEL/UNICAMP.

Contato: garcia.lidiana@yahoo.com.br
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A vingança de Diónysos: uma análise do prólogo d’As Bacantes

Introdução
resumo
O artigo proposto tem por objetivo analisar o prólogo O principal objetivo deste artigo é analisar o prólogo (v. 1-58) d’ As
d’As Bacantes com o intuito de investigar os elementos Bacantes, de Eurípides, seção na qual o deus Dioniso narra as razões
que o levaram a elaborar um projeto de vingança contra a família real
mítico-rituais da religião dionisíaca, presentes nessa seção de Tebas. Além de analisar os elementos ficcionais do prólogo, o artigo
da tragédia. Tais elementos fornecem subsídios para se focou-se na análise dos elementos míticos e históricos da religião
detectar a influência da religião dionisíaca, praticada na dionisíaca, abordando alguns mitos relacionados com o deus delirante e
alguns estudos que investigam as práticas rituais dionisíacas que
Grécia Antiga, sobre a composição do prólogo d’As Bacantes.
ocorriam na Antiguidade Grega. O artigo se divide em duas partes: a
Sendo assim, a hipótese que orienta este estudo é que o primeira explica a função do prólogo na peça e apresenta o mito
prólogo d’As Bacantes apresenta ao leitor² da peça algumas dionisíaco, no qual a tragédia se baseia. Nessa parte, realiza-se uma
práticas rituais relacionadas à religião dionisíaca, que eram análise do mito, elucidando as razões que induziram o deus Dioniso a
planejar uma vingança contra a família real tebana. A segunda parte do
desempenhadas pelas mulheres na Antiguidade Grega, e
artigo analisa a natureza dionisíaca e a sua manifestação mítico-ritual
aborda os principais mitos gregos que embasam tais práticas na Antiguidade Grega, recorrendo a estudos históricos que investigam a
rituais. prática do culto dionisíaco na sociedade helênica. A análise do artigo
O prólogo d’As Bacantes, e a tragédia em sua totalidade, visa identificar a influência da religião dionisíaca sobre a composição do
prólogo d’As Bacantes, seção rica em significados mitológicos e
dramatiza o mito de introdução da adoração de Dioniso em
históricos.
Tebas. Alguns estudiosos, como Kraemer³, compartilham da
tese de que As Bacantes, de Eurípides, escrita no século V a.C,
combina os elementos religiosos fixados pelo mito dionisíaco Entretanto, o helenista Dodds⁴ acredita que havia pouco
com as próprias observações de Eurípides sobre as práticas ou nada no culto oficial ateniense para inspirar Eurípides nas
rituais realizadas em seu tempo. descrições do culto dionisíaco presentes na sua tragédia. Para
o
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¹ Este artigo é parte de uma monografia, ainda em desenvolvimento, sobre a tragédia As Bacantes.
² É importante salientar que a tragédia As Bacantes foi produzida para ser encenada para o público ateniense que viveu no século V a.C. Dessa forma, o público
ideal da tragédia já conhecia, muito bem, o mito no qual a tragédia se baseava e conhecia, também, as práticas da religião dionisíaca que eram desempenhadas
nesse período da Antiguidade.
³ KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 57-61.
⁴ DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XXII-III.
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o autor, as referências tradicionais e primitivas sobre a I. Aspectos mitológicos no prólogo d’As Bacantes: a
religião dionisíaca n’As Bacantes devem-se, em alguma vingança por trás do mito
medida, às coisas que Eurípides viu ou ouviu na sua estadia na A tragédia As Bacantes foi escrita por Eurípides, o terceiro e
Macedônia⁵, onde a tragédia foi escrita. De acordo com último dos grandes trágicos que a tradição consagrou na
Plutarco⁶, na Macedônia o culto dionisíaco estava em seu Grécia (entre eles estão Ésquilo e Sófocles). A obra foi
quarto século suficientemente primitivo para incluir na representada pela primeira vez em Atenas no ano de 405 a.C.,
adoração os ritos de manipulação de cobras. um ano após a morte de seu autor Eurípides (Salamina, 480
Dessa forma, os ritos nos quais as mulheres, a.C. – Pela, 406 a.C.). O prólogo d’As Bacantes é um monólogo
convertidas em bacantes, são possuídas pela loucura recitado pelo próprio deus Dioniso e tem a função de situar a
dionisíaca estão expostos no prólogo d’As Bacantes. Para ação da peça em consonância com o contexto da tradição
Kraemer⁷, a peça de Eurípides fornece explicações mitológica, já conhecida pela comunidade grega,
relativamente francas sobre tais ritos praticados no culto de apresentando o tempo e o lugar em que ocorre a tragédia,
Dioniso; para o autor, de acordo com as passagens da tragédia, além de resumir os acontecimentos que ocasionaram a ira do
pode-se inferir que Eurípides conhecia os ritos dionisíacos deus e as suas consequências.
restritos aos iniciados na religião dionisíaca. As descrições Segundo Dodds⁸, o tom e o conteúdo desse prólogo
detalhadas na peça As Bacantes permitem argumentar que a podem ser associados a Afrodite na tragédia Hipólito, de
Eurípides: ambos os prólogos (de Hipólito e d’As Bacantes) se
tragédia descreve os rituais praticados pelas mulheres gregas
iniciam com a afirmação enfática da divindade do
anteriores ou contemporâneas a Eurípides.
personagem e mostram como essa divindade é menosprezada
e
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⁵ Em 408 a.C. Eurípides retirou-se de Atenas para viver na corte do rei Arquelau, em Pela, na Macedônia, onde morreu em 406 a.C. (EURÍPEDES. As Bacantes.
Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011).
⁶ PLUTARCO. Alexander, 2 (apud DODDS, 1986, p. XXII-III, cf. nota 1).
⁷KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 59-60.
⁸ DODDS, E. R. Commentary. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. 62.
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e desrespeitada por um mortal, razão pela qual o deus


elabora um projeto de vingança. Porém, Dioniso difere de
Afrodite, e de outros deuses familiares ao público, pois ele
não irá desaparecer da ação depois que sua mensagem for
entregue: o deus se apresentará para Tebas em forma
humana e cada membro do público deve estar ciente deste
fato, por isso Dioniso salienta esse ponto três vezes na sua
fala: “(...) minha forma divina pela de um mortal trocada” (v.
4). “(...) de mortal vesti o semblante e minha forma divina
mudei em natureza humana” (v. 53-54).
Nos primeiros dez versos do prólogo, Dioniso narra
milagres relacionados à sua origem divina. Um deles se refere
ao fogo sempre a arder em torno do túmulo e das ruínas da
casa de sua mãe Sêmele, que foi fulminada pelo raio de Zeus
(v. 5-8), infortúnio ocasionado pela vingança de Hera⁹.
____________________________________________________________________________________
⁹ No mito grego, Zeus se apaixonou pela princesa tebana Sêmele, filha de
Cadmo, o rei de Tebas. Quando Zeus procurou a jovem pela primeira vez, não o
fez na forma divina, mas sim na forma de um mortal. Quando Hera soube da
traição de Zeus e que ele teria um filho com a princesa tebana, a esposa irada
disfarçou-se na ama de Sêmele e a persuadiu para que desejasse ter Zeus na sua
forma divina, como Hera o tinha. Enganada pela deusa, Sêmele pediu a Zeus que
lhe concedesse a satisfação de apenas um desejo e o deus prometeu fazê-lo.
Quando a princesa tebana lhe pediu para que aparecesse como ele aparecera
para Hera, o deus visitou-a com um raio, fulminando o corpo de Sêmele e
tirando-lhe a vida. Zeus, então, retirou do corpo da jovem o filho imaturo, o
infante Dioniso. O pai divino abrigou na própria coxa o deus prematuramente
nascido, costurando-o dentro dela e quando chegou o momento adequado do
segundo nascimento do filho, o deu à luz no monte Nisa. Após o nascimento,
Zeus confiou o infante Dioniso a Hermes para que o levasse às amas divinas
(ninfas) que tomariam conta da criança em uma caverna.
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Segundo Kitto, esse milagre deveria ter sido suficiente primeiramente a Tebas, terra de seu avô Cadmo, para que se
para calar os sofismas de Cadmo acerca do envolvimento tornasse divindade manifesta e cultuada entre os mortais
amoroso de sua filha com Zeus, além de instilar alguns gregos.
questionamentos, sobre a natureza divina de Dioniso, no Segundo Dodds¹², os cultos dionisíacos não eram
espírito dogmático de Penteu. O segundo milagre refere-se à originários da Hélade, e Eurípides os representa, n’As
videira que o deus fez crescer em torno do túmulo de sua mãe. Bacantes, como uma religião universal realizada por
adoradores estrangeiros que chegavam a uma nova terra e
Dioniso – Chegado sou a esta terra tebana, eu, Dioniso, filho
de Zeus, dado à luz pela cria de Cadmo, Sémele, partejada introduziam o culto a Dioniso. De acordo com Eurípides, os
pelo fogo do relâmpago. (...) Vejo o túmulo de minha mãe, ritos dionisíacos são originários das montanhas da Lídia e da
fulminada pelo raio, beirando o palácio e as ruínas de sua Frígia, tal como é relatado em sua tragédia:
casa, esfumaçando ainda pela chama sempre viva do fogo de
Zeus: vingança de Here (...). Louvores a Cadmo que o lugar Dioniso: (...) Tendo deixado os campos preciosos da Lídia e da
erigiu em inviolável recinto: eu o velei sob racimadas Frígia, e percorrido os altiplanos da Pérsia, dardejados pelo
frondes da vinha¹⁰. [sic]. (v. 1-11). sol, as cidades muradas da Báctria e as paragens sinistras dos
Medas, a Arábia toda feliz, toda a Ásia que orla o mar salgado
De acordo com Kitto¹¹, os versos seguintes a essa com os altos muros de suas cidades repletas de Gregos
passagem (v. 12-20) reivindicam a universalidade da nova misturados com Bárbaros, venho a esta terra grega, mas só
depois de fazer que todos aqueles povos dançassem e de
religião que chega à Grécia. Dioniso relata as regiões da Ásia
haver fundado os mistérios meus, para que divindade
que percorreu e por onde difundiu os mistérios báquicos e
manifesta me torne entre os mortais.[sic]. (v. 12-20).
narra, também, que, a caminho da Grécia, chegou
primeiramente

_________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹⁰ EURÍPEDES. As Bacantes. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011, p. 19-139.
¹¹ KITTO, H. D. F. op. cit., 1990, p. 327.
¹² DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XX.
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Ainda de acordo com Dodds¹³, uma descoberta Cadmo!), e que de haver propagado as falaciosas núpcias a
moderna revela que o nome Bákkhos é o equivalente lídio de fulminara Zeus (...). Ainda que não o queira, sabedora será
Dioniso. esta cidade de a quanto importa ignorar os mistérios
Segundo Souza¹⁴, nos versos 13-54 é esboçada uma báquicos, e eu, tendo que defender minha mãe, hei de
situação contraditória. Por mais que Dioniso queira difundir mostrar-me aos homens como a divindade nela gerada por
a fama de sua natureza divina e ser considerado como tal, Zeus. [sic]. (v. 23-28 e v. 34-38).
propagando por toda a terra os seus mistérios, ou seja, os
rituais que o revelam como deus, são suas tias, as irmãs de Neste prólogo, portanto, encontra-se o escopo da peça
Sêmele, as primeiras que na Grécia o rejeitam, pois não tematizado, sendo apresentada a razão pela qual Tebas
acreditam que as histórias do amor de Zeus por Sêmele e a deverá ser subjugada para aceitar e cultuar Dioniso como um
consequente vingança de Hera sejam verdadeiras. Ágave, deus. Para tanto, Dioniso tornou Ágave e suas irmãs insanas,
Autônoe e Ino creem que a história é apenas “astuciosa e incutiu a loucura em todas as mulheres tebanas.
mentira de Cadmo” (v. 27), inventada para encobrir uma
(...) Dioniso dispõe de forças irresistíveis e avassaladoras;
vergonhosa mácula: Sêmele teria se apaixonado por qualquer
apresenta-se, ele próprio, como o mais enérgico
mortal e imputado a culpa das núpcias a Zeus, sendo este o
dissolvente dos poderes negativos da vontade, e, contra o
motivo pelo qual o deus a fulminou com seu raio.
que querem, todas as mulheres de Tebas agora são Bákkai
(Bacantes), uma vez que se revestiram das insígnias de
Dioniso: (...) as irmãs de minha mãe – as que menos o Bákkos (Dioniso). Restam agora os homens e, à frente
deviam ter feito – diziam que Dioniso não nascera de Zeus, deles, Penteu, o tirano que ousava travar, contra os deuses,
e que Sémele, seduzida por qualquer mortal, ao grande o “combate iníquo” (theomakhei)¹⁵. [sic].
deus imputava a mácula em seu leito (astuciosa mentira de

_________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹³ Ibidem, p. XX
¹⁴ SOUZA, E. Comentário. In: As Bacantes. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011, p. 77.
¹⁵ Ibidem, p. 77.
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Penteu, filho de Ágave e primo de Dioniso, é o ímpio distante e a memória disso só sobreviveu na forma mítica,
para quem o velho Cadmo confiou o governo de Tebas. O pois a nova religião tinha sido enraizada e aceita como parte
jovem rei é aquele que combate Dioniso “com o combate da vida grega. De acordo com Seaford¹⁷, o nome de Dioniso
iníquo” (v. 42), pois desrespeita e duvida da divindade do decifrado em uma tábua escrita no Linear B de Pilos indica
deus, declarando guerra contra Dioniso e suas bacantes. Por que os elementos históricos dos mitos de resistência ao deus
tal motivo sacrílego, Penteu se torna o particular adversário são de origens muito remotas e se referem a práticas rituais
de Dioniso que deverá ser obrigado a reconhecê-lo como milenares (a escrita micênica Linear B corresponde ao século
deus. XIV a.C.¹⁸).
Kraemer¹⁹ afirma que a adoração de Dioniso na Grécia,
Dioniso: Penteu, a quem Cadmo confiou o cetro régio – que por volta do século VII a.C., foi inicialmente associada aos
de filha sua nascera –, em mim combate o combate iníquo: festivais rurais que ocorriam no início da primavera. As
de suas libações me aparta, em suas preces me olvida. Mas
representações do deus nos mitos e na arte o retratavam de
hei de mostrar-lhe que deus eu sou, a ele e a todo o povo de
Tebas! (...) E se Tebas em fúria, de armas nas mãos intenta três formas: como uma criança, como um jovem andrógino
das montanhas arrancar as Bacantes, na batalha lançarei as com belos cachos e pele alva e, também, como um homem
Mênades. (...). [sic].(v. 39-43 e v. 45-47). maduro com barba. Dioniso era frequentemente relacionado
com representações fálicas, incluindo uma procissão chamada
II. A natureza de Dioniso e a manifestação mítico-ritual phallophória, na qual os adoradores desfilavam pelas ruas
carregando imagens em forma de falos. Os festivais
Segundo Dodds¹⁶, As Bacantes é uma peça sobre um dionisíacos compartilhavam de uma licença temporária para
evento histórico: a introdução na Grécia de uma nova religião. a embriaguez e para a expressão sexual – características dos
Quando Eurípides a escreveu, o evento estava em um passado festivais rurais. Dioniso também era considerado uma das
MAIS
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹⁶ DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XI
¹⁷ SEAFORD, R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Trad. de Richard Seaford. Warminster: Aris & Phillips Ltd, 2001, p. 44.
¹⁸ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 50.
¹⁹ KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 57.
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divindades responsáveis pela fertilidade dos homens, dos Porém, ainda de acordo com Kraemer²⁰, a adoração
campos e rebanhos de animais. Essas Dionísias rurais não dionisíaca era também associada a outros ritos de natureza,
eram restritas a um só sexo, mas envolviam a participação de aparentemente, mais restrita se comparados com os
toda a comunidade na invocação da proteção do deus, ocasião grandes festivais rurais. A tragédia de Eurípedes, encenada
na qual pediam bênçãos e agradeciam a abundância nas pela primeira vez no século V a.C., fornece uma rica
colheitas. descrição desses ritos praticados, em sua maioria, por
mulheres. A tragédia As Bacantes, cujo título significa
“mulheres adoradoras do deus Bákkhos”, dramatiza o mito
que narra a introdução do culto de Dioniso em Tebas, cidade
no norte da Grécia.
De acordo com Burkert²¹, Dioniso pode ser
considerado como o deus do vinho e do êxtase embriagante:
a embriaguez provocada pelo vinho era considerada a
intervenção de algo divino. Porém, pode-se acrescentar,
segundo Dodds²², que, para os gregos da idade Clássica,
Dioniso não era unicamente o deus do vinho. Ao citar
Plutarco, o autor revela:

(...) seu domínio é o todo – não só o fogo líquido na uva, mas


a seiva que se lança em uma árvore jovem, o sangue
pulsando nas veias de um animal jovem, todas as
misteriosas e incontroláveis marés que fluem e refluem na
vida da natureza²³.
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
²⁰ Ibidem.1979, p. 57-58.
²¹ BURKERT, W. op. cit., 1993, p. 318.
²² DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XI-XII.
²³ Ibidem. 1986, p. XII. Minha tradução (inglês-português).
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Em outras palavras, Dioniso era a abundância da vida. tirso envolto com hera – as insígnias de Dioniso). Com as
De acordo com Burkert²⁴, a experiência dionisíaca excedia mentes insanas e entregues a devaneios, elas vagueavam
largamente o aspecto alcoólico e podia ser independente pelos montes do Citeron e dançavam em íntima consonância
dele. A manía, palavra grega que nomeia o estado de com a natureza: essas mulheres dominadas pelo poder do
devaneio, designava a “loucura, o entusiasmo, o frenesi deus haviam perdido a sua identidade social.
inspirado”²⁵ pela experiência dionisíaca nos ritos. Esse êxtase
Pode-se notar, assim, que a tragédia de Eurípides
dionisíaco não era algo alcançado por um único indivíduo,
retrata o ritual de adoração a Dioniso, ao narrar
mas sim um fenômeno de massas que se propagava de modo
detalhadamente o êxtase dos órgia²⁷ dionisíacos:
contagioso.

Dioniso: Primeira cidade na Hélade, foi Tebas que soltei


Em termos mitológicos, isto significa que o deus está
ululante! As mulheres revesti de pele de corço e em suas
constantemente rodeado do enxame e frenesim dos seus
mãos depus o tirso, dardo de hera envolto. Já que as irmãs
adoradores e adoradoras. Quem se entrega a este deus
arrisca-se a perder a sua identidade social e a “ser louco”. de minha mãe – as que menos deviam ter feito – diziam que
Isto é ao mesmo tempo divino e terapêutico²⁶. [sic]. Dioniso não nascera de Zeus (...) por isso mesmo para fora
de portas as toquei com o aguilhão da insânia. Agora, de
Essa passagem de Burkert relaciona-se com alguns mente alheadas, vagueiam pelos montes. Impus-lhes os
trechos do prólogo d’As Bacantes (v. 28-34), nos quais paramentos das minhas orgias, e toda a feminina estirpe de
Dioniso narra o seu poder para incutir a loucura e o frenesi Tebas, todas as mulheres que na cidade havia (...) lá estão
(manía) nas mulheres tebanas convertidas em bacantes com as filhas de Cadmo, no meio das fragas, sob os verdes
(portavam o corpo vestido com pele de corço, seguravam o pinhos. [sic] (v. 21-35).
tirso envolto com hera – as insígnias de Dioniso). Com a
mentes insanas e
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
²⁴ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 318.
²⁵ LIDDELL & SCOTT. A Greek-English Lexicon. 1996, p. 1079. Minha tradução (inglês-português).
²⁶ BURKERT, W. op. cit., 1993, p. 318.
²⁷ Práticas de iniciação, cultos secretos. LIDDEL & SCOTT. op. cit., 1996, p. 1246. Minha tradução (inglês-português).
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Segundo Burkert²⁸, o sinal exterior e o instrumento da De acordo com Lesky³³, Dioniso era considerado o
metamorfose provocada pelo deus é a máscara que reflete a deus-máscara – a máscara transferia ao portador a força e as
fusão entre Dioniso e o seu adorador. Nesse sentido, Bákkhos propriedades do deus e dos demônios por ela representados.
é o nome que se refere tanto ao deus quanto ao adorador. Nesse sentido, o Dioniso d’As Bacantes reveste-se com a
Sendo assim, pode-se afirmar que, na tragédia de
máscara humana, com a forma humana de seu adorador (que
Eurípides, as bacantes portadoras das insígnias de Dioniso
utiliza as insígnias dionisíacas), sem que por isso deixe de ser
estão possessas pelo deus e refletem a divindade e o poder
de Dioniso, pois elas são a manifestação divina do próprio o deus, já que Bákkhos é o próprio Dioniso e, ao mesmo
Bákkhos. De acordo com Kerényi²⁹, quando cultuavam a tempo, o próprio adorador.
Dioniso, as mulheres adoradoras ficavam sozinhas. Nenhum
homem podia estar presente enquanto elas representavam Dioniso: (...) Por isso, de mortal vesti o semblante e minha
os papéis das deusas (ninfas que cuidaram do infante forma divina mudei em natureza humana. Mas, vinde vós, ó
Dioniso) associadas ao deus. Quem as observasse de longe as Tíaso meu, mulheres que deixastes o Tmolo, baluarte da
veria nas formas discerníveis do frenesi, ou seja, da manía Lídia, e desde as bárbaras nações a meu lado estais e por
delirante imposta pelo deus. Por isso, as mulheres que companheiras tenho. Vinde! Erguei os vossos tamborins
rodeavam Dioniso eram chamadas de mainades³⁰ (termo que oriundos da Frígia, por Reia-Madre e por mim achados. Que
deriva do radical do verbo grego maínomai³¹) que significava em redor da morada de Penteu ressoem e toda a cidade de
“furiosas, frenéticas, mulheres loucas”³², ou de bakkhaí, o Cadmo vos olhe! Por mim, nas quebradas do Citeron me
termo feminino de bákkhoi, que identificava tanto o deus ajuntarei às Bacantes, a dirigir os seus coros. [sic]. (v. 48-58).
quanto as suas adoradoras.
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
²⁸ BURKERT, W. op. cit., p. 318.
²⁹ KERÉNYI, K. Os deuses gregos. Trad. de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Editora Cultrix, 2000, p. 201.
³⁰ Mênades. Minha tradução (grego clássico-português).
³¹ No dicionário A Greek-English Lexicon, “mênades” corresponde ao verbo grego maínomai (LIDDELL & SCOTT. A Greek-English Lexicon. 1996, p. 1073).
³² Ibidem. 1996, p. 1073. Minha tradução (inglês-português).
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Versényi³⁴ faz uma análise sobre a representação de deus dos muitos deleites, e o desmembrador de homens,
Dioniso como um deus-máscara e os significados dessa devorador de carne crua, assassino frenético. Homem-mulher
simbologia para a natureza dionisíaca. Segundo o autor, (...), por Dioniso é a existência antes da separação dos
opostos³⁵.
enquanto os deuses tradicionais do panteão olímpico mantêm
as distinções que os separam dos homens e insistem na Sendo assim, de acordo com Versényi³⁶, Dioniso é o deus
distância entre o divino e o mortal, Dioniso é o único deus que da metamorfose. Ele transforma a si mesmo e aparece com “o
faz o oposto. O deus delirante abole os obstáculos que o aspecto que lhe aprouve” [sic] (Bacantes, v. 482). Esse
separam do humano, ele rompe com todas essas distâncias entendimento da natureza dionisíaca é apropriado para a
em seu culto. A união com o deus nos ritos extáticos, representação de Dioniso como um deus-máscara, uma vez
provocada pela “loucura”, é o presente de Dioniso para o que a máscara pode representar tudo aquilo que o deus
homem, e é aquilo que o eleva acima do mundo humano. Isso transforma. A máscara não tem essência, ela pode ser
significa que a natureza divina pode ser compartilhada pelo colocada e descartada, pode ser completada com qualquer
homem, e significa, também, que, ao transformar o homem, conteúdo. Além de representar a dualidade do deus, a
Dioniso transforma a sua própria imagem. Na realidade, a máscara tem a função de dissolver uma identidade, uma
própria natureza dionisíaca define-se na transformação e na personalidade:
contradição; nas palavras do autor, Dioniso é:
Nas mãos de Dioniso todo homem se transforma em mera
máscara (...), possuído, inspirado e completado por nada além
(...) o deus da vida, da geração, do poder criativo, e o deus
do deus. O êxtase revela o próprio indivíduo como uma
da morte, da degeneração, da destruição; deus da bem-
máscara, um veículo sem essência para a divindade. Nesse
aventurada transformação, alegria e terror extático, sentido, vemos o possuído rasgando, freneticamente, os laços
selvageria; curador, benfeitor, salvador, alegria dos mortais, que o ligam com essa (...) mascarada existência (mortal)³⁷.
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
³⁴ VERSÉNYI, L. Dionysus and Tragedy. In: The Review of Metaphysics, 1962, vol. 16, n.1, p. 85-86.
³⁵ Ibidem. 1962, p. 86. Minha tradução (inglês-português).
³⁶ Ibidem.1962, p. 86-87.
³⁷ VERSÉNYI, L. Dionysus and Tragedy. In: The Review of Metaphysics, 1962, vol. 16, n.1, p. 85-87. Minha tradução (inglês-português).
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Considerações Finais
Como deus do vinho, Dioniso é o “deleite dos mortais” e
“dador de muita alegria”, como relatado na Ilíada³⁸. O deus O estudo proposto teve como objetivo analisar o
desfaz todas as preocupações, traz o sono e o esquecimento prólogo da tragédia As Bacantes. Na análise, foi salientada a
da miséria cotidiana. Porém, de acordo com Lesky³⁹, é função do prólogo na peça: situar a ação da tragédia em
necessário salientar que para Dioniso não bastam orações e consonância com o contexto da tradição mitológica. Dessa
sacrifícios; a relação do homem com ele não se limita a dar e forma, o prólogo tem o papel de apresentar ao público o mito
receber: o deus deseja o homem por inteiro, e, quando dionisíaco e resumir os acontecimentos que ocasionaram as
contrariado ou menosprezado, torna-se terrível, como na ações vingativas de Dioniso na tragédia. Após a exposição, por
vingança narrada no prólogo d’As Bacantes. Todavia, quando parte do deus, do sacrilégio que a família real de Tebas
é devidamente cultuado, Dioniso arrasta o homem para o cometera contra ele, aludindo ao seu mito de nascimento, as
êxtase do seu culto e o eleva acima de todas as misérias razões de sua cruel vingança estão justificadas. Depois disso,
humanas. Dioniso pode colocar seu projeto de vingança em prática:
primeiro enlouquece todas as mulheres tebanas, inclusive
suas insolentes tias: Ágave, Autônoe e Ino. A próxima etapa da
vingança concentra-se na queda de seu principal inimigo: o
jovem rei Penteu.
Portanto, pode-se concluir que o prólogo d’As Bacantes
é uma seção constituída por expressivos elementos
dionisíacos que aludem às práticas rituais do culto a Dioniso
______________________________________________________________ praticado na Hélade. A tragédia As Bacantes é uma peça que
³⁸ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de
______________________________________________________________ tematiza a introdução na Grécia de uma nova religião, e o
Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
_____________
prólogo apresenta ao seu público ou, no caso contemporâneo,
1993, p. 322.
³⁹ LESKY, A. A Tragédia Grega. Trad. de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de ao leitor, uma forma mais restrita do rito dionisíaco, aquele
Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, p. 74. associado aos cultos de mistérios que eram praticados, em sua
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 109

maioria, por mulheres denominadas “bacantes”. Outro


elemento dionisíaco importante presente no prólogo é a
máscara dionisíaca que reflete a fusão entre Dioniso e o seu
adorador. É mascarado como um mortal que Dioniso se
apresenta ao público no prólogo, sendo que este fato não faz
com que o deus perca a sua natureza divina, uma vez que, em
sua religião, Dioniso transfere sua divindade ao adorador por
meio da máscara ou pela possessão báquica.
Dessa forma, o artigo procurou elucidar e analisar os
elementos da religião dionisíaca presentes no prólogo,
investigando tais práticas mítico-rituais. Na análise, ficou
clara a influência da religião dionisíaca na composição do
prólogo d’As Bacantes e a importância de se conhecer, ainda
que brevemente, os significados relacionados com essa
religião praticada na Antiguidade Grega. Tal conhecimento
pode auxiliar na leitura e compreensão do prólogo d’As
Bacantes. Considerar o contexto no qual a tragédia estava
inserida, no momento de sua concepção, contribui para a
compreensão do texto literário e também possibilita ao leitor
o contato com o conhecimento proveniente de uma diferente
cultura.
Pedro Couto
Cursa Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Unicamp.
Contato: pedrozaff@hotmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 111

Noite Quente

Padilha abriu o documento em branco. "Noite quente minado. Da minha varanda quem ler que imagine como é,
do inferno, já é madrugada e nem sombra de sono". Desde quem narra é que não vai ficar perdendo tempo com
que chegou em casa, aquele mormaço, aquela coisa de deixar descrição, assim como todo o resto". Foi lá Padilha caminhar
suado e fazer vestir-se só pra entrar em contato com algo na varanda como qualquer coisa imaginada, onde só se sabe
que sirva de absorvente. Ficou por tempos estirado na cama, que há um cachorro e um monte de cocô no escuro.
depois no chão. Aí se levantou para andar. "Noite quente da Ontem acordou com dor de cabeça. Faltou ao trabalho
porra, não dá nem pra ficar aqui fora." Sentou e ficou e ficou na sua casa chupando cigarro. "Vou tacar esses
recostado na parede chapiscada até sentir coceira. "Não tem cigarros na privada". Não jogou. Ficou lá pensando como
solução aqui nesse lugar, vou dar um tapa." seria louca a experiência de ver todo o mundo implodindo.
Custou mesmo a achar o cigarro. "Orra, onde é que tá "Deitei e fiquei assim, esperando minha empregada entrar
esse demônio? Nem dois parágrafos e três xingamentos, tanto dentro de si que no final parecesse uma bola de gude.
quem me ler é certeza de chamar de pseudo-bukowski, de Se todo mundo ficasse assim, que caralho de festa a vida
acha-que-palavrão-vai-te-fazer-beatnik.". Achou! "Noite com seria". Refletiu um sobre ser boca suja, estirado no sofá. "Dor
sol! Vou fumar até me pegar dormindo com o cigarro na de cabeça da porra, só me faz pensar em merda".
boca". E recostou-se na parede chapiscada; sentiu coceiras e Hoje, ainda estava a andar na varanda e a se recostar
não se levantou. Lá, chupando o cigarro, quieto, no escuro, na parede. "Juro que vou mandar arrancar esse inferno da
como um pontinho vermelho que parecia câncer, pastou. parede! Puta coceira que dá". Levantou e foi fumar mais um
Pensou em ereção. Negócio magnífico esse de ereção. "Eu cigarro enquanto pensava em frases soltas. "Pirão rima com
não penso em nada e a coisa já fica rija. Não, não estou de leitão. Perdiz rima com imperatriz". E a coisa toda se dava em
pau duro, mas às vezes acontece". Continuou a pensar sobre um calor insuportável. "Quarenta graus às três da manhã,
ereções, sobre a biologia desinteressante da coisa. A verdade mas não é possível uma brincadeira dessas. Tivesse um
é que estava quente e o diabo não conseguia dormir, nem ventilador, nem isso. Estranhe o leitor, né? Tenho
Padilha. Levantou, foi andar na varanda. "De noite nessa empregada, mas não presto nem pra arranjar um ventilador
varanda é uma coisa de louco, quem tem cachorro sabe como de teto". A empregada não era exclusivamente da casa, era
é se sentir um vietnamita plantando arroz num campo uma diarista. "Já pensei em trepar com ela, mas tem filho, e
huhuhhu
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 112

esse negócio de sair com gente que já tem filho me dá medo". insuportável. "Ô Diabo, te vendo a alma da minha
O Padilha chupava um cigarro pensando agora no quanto empregada". O Diabo não respondeu. "Tonto é quem pensa
amava trabalhar. "Carimbo papel, rodo na cadeira e tenho ar que só se delira no Saara". Estava vendo a miragem de um
condicionado. Grande merda. Sou feliz?" Não era. Não era copo cheio de cerveja. Cerveja o deixava sonolento. Bateu
nem ao menos no trabalho, girando na cadeira feito uma para a cozinha procurar. Cantarolou: nessa merda de
criança, nem em casa nessa noite quente. Noite quente geladeira não tem cerveja, não tem cerveja, não tem cerveja.
demais pra dormir, pra não pensar em palavra de baixo Voltou pra varanda só pra pisar no cocô. Deu menos
calão, pra organizar a cabeça e pra se sentir feliz. "Calor filho importância do que o mundo todo esperava que fosse dar, e
da puta". Já pensou em rezar, mas no meio voltou a pensar partiu pra mamar outro cigarro. Fumou a coisa toda e foi
em ereção. Vinha na sua cabeça a imagem de um pinto muito, lavar o pé. A água estava quente. "Mas não pode ser verdade!
muito, muito grande; e um mar de fogo atrás e o diabo Mil vezes inferno nesse caralho!" E lotou a área de serviço
acordado. "Mas nem pensar em mulher eu consigo nesse com palavrão.
calor, meu Deus? Pra que isso? Pra quê? Pra quê?" E foi De pés lavados, pôs-se a pensar na casa. Iria para
fumar mais. E viu com desconsolo que, se a coisa seguisse algum lugar mais perto da cidade. Lá, "longe" de tudo, nos
assim, o maço não ia dar conta. "E quem me lê deve estar bairros de subúrbio, não tinha o que fazer. Quarta noite sem
pensando também que 1) não sei narrar, ou o narrador não dormir, outras por outros motivos, e em um lugar no centro
sabe 2) cigarro é tão démodé, coisa de quem quer parecer estaria se acabando nos botecos, nas baladas, onde fosse. "Na
legal, parecer "cool", intelectual das menininhas. Vícios são balada faz calor, não faz? Mas dane-se, faz calor até em casa".
vícios, até os da prosa. O narrador coloca o que ele quiser na E pensava já no absurdo de que tanto faz um calor com um
prosa, mesmo coisas da moda, se quiser reclamar, liga pra monte de bêbado pulando como um calor com um são,
ele". Não sabia mais no que pensava. Decidiu deitar-se pra sozinho, fumando até ficar roxo. Sentou na parede
ver se agora o bonde do sono andava. Deixou o corpo cair no chapiscada e ficou a pensar no seu bom humor, repetindo:
colchão e veio a piada: "Não olha pro lado, Gaetaninho, quem "eu sou o engraçadão da turminha, sou o fanfarrão do
tá passando é o bonde". Riu sozinho. "Bosta de calor". Queria trabalho, sou..." E lá passou por um tempo inenarrável. Que
uma medição de temperatura, porque aquilo era horas eram? “Que horas são” “Nem a droga do narrador
insuportável. sabe”
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 113

sabe! Mas agora também tanto faz". O cigarro não acabava, e mesmo meu cérebro derretendo". Não dormiu. Fumou mais
Padilha já se sentia enjoado. Com dor de cabeça e enjoado. outros cigarros, dois ao mesmo tempo. Desconsolo. Imaginou
Foi deitar-se e no caminho pro colchão espantou que, se estivesse vivo amanhã, xingaria a mãe do chefe, e iria
pensamentos sobre ereções. "Minha cuca tá que tá começar a encher a cara ao meio dia. Quis vender sua alma. O
impossível hoje!" Começou a achar que era por causa dos Diabo não respondeu. Nem sei mais que horas são! Vou
palavrões invocando símbolos fálicos a todo momento. E de deixar estar, hora ou outra essa desgraça acaba, e eu
fato era. "A gente repete muito alguma coisa e fica pensando desmaio. Aí sabe-se lá quando eu acordo. Grande merda essa
em coisa parecida depois". Mas sentiu-se aliviado porque de dormir.
durante o dia só pensava em desgraças. "Desgraça de vida, Fecho os olhos e só vejo a terra esturricando e a visão
desgraça de cachorro, desgraça de vizinha gostosa da rua da turvada de calor. Mas que noite quente! Esse sol que todo
frente". Padilha fazia o tipo galã. Fazia errado. "E no fim das mundo chama de lua. Eu não compro, eu sei o que é uma
contas vai me sobrar a empregada mesmo". mentira, uma palhaçada, eu tô ficando paranoico".
"Tem muita porra errada na vida. Começando por ela E riu-se. Onde estava? Não sabia se era o quarto ou se
própria". Resmungava perambulando pela cozinha. "Quem era a varanda. Era a varanda, porque sentiu coceira.
ligar pro narrador que avise que ela, a vida, tá mesmo Ruminava a bunda da empregada. A essa hora ela não
estragada desde o começo". Levantou e foi puxar outro representava tanto perigo assim, e o moleque podia até
cigarro, espantando-se que tinha bastante ainda. Fumou cuidar. Batia no rosto e pensava na porra que estava dizendo
dentro do quarto mesmo, não esperava mais nada. Queria ele pra si mesmo. "Cuidar de cria dos outros? Só amarrado!
entrar dentro de si e virar uma bola de gude. E as horas Prefiro ficar acordado pra sempre". Pegou no maço e sentiu
congeladas. "A única coisa que essa porra de calor não que tinham mais cigarros, viu graça. Era uma piada na sua
derreteu ainda". Começou a pensar no seu cérebro concepção, era o Diabo que não conseguia dormir. Quem
derretendo como um sorvete de morango e escorrendo pelas visse Padilha aceitar aquela loucura não acreditaria.
suas orelhas. Começou a ver turvo, os olhos foram tornando- Encostou-se e não sentiu mais coceira. Com a boca seca e
se pesados, uma leseira bateu na cabeça. Era sono que tossindo, pegou mais um cigarro. Passou a brincar com os
começara a sentir. "Mentira! Com esse calor de bosta é fósforos e ver como aquele palito parecia-se com um pênis
mesmo duro
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 114

duro. "Ah, mas que porra é essa? Será que eu curto a coisa e
não sei?" Estava aceitando as coisas que o cérebro derretido
lhe impunha. Fechou os olhos. Abriu num estalo. Quanto
tempo passou? "Nada, evidentemente. Ainda está escuro e
ainda tenho cigarros".
E perguntava-se pra que tanto calor. Falou com Deus.
Deus dormia. Uma vez leu num livro que Deus existia e era
um canalha. Nunca acreditou tanto. Pegou-se pensando em
um daqueles pênis eretos atravessando o coração de Deus
feito uma flecha. E tudo atrás ardendo em chamas. "Feito
essa noite do capeta". E nada do Capeta. "Porqueira de vida!
Como é que pode tanto tempo nesse calor?" Estava no
escuro e não ia acender as luzes; na sua cabeça, o
aquecimento das lâmpadas só iria agravar o calor. Não
enxergava o relógio, por consequência. Dilema. "Acendo a luz
pra ver as horas enquanto ardo em chamas ou fico como
estou e espero essa porra toda clarear?" Aí sentiu um medo
irracional: ia amanhecer e com a manhã ia a vir a porra do
inferno daquele sol maldito e o Diabo ia começar a trabalhar.
"É bom que o dia não foi feito pra dormir". Depois pensou
que a luz do dia quem sabe o aliviasse, apesar do calor maior.
"Bobagem! Nunca mais vou ver o dia".
Levantou-se e foi pro interruptor. Quis ligar as luzes,
enxergar além do fracasso da noite, as coisas na varanda e os
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 115

cocôs de cachorro. Hesitou e viu no escuro as luzes se Arrependeu-se até os ossos. Sentia a água fervendo nas
acendendo e um incêndio em tudo. O mundo está acabando, carnes. "Puta que pariu me socorre". Quem socorreu? O
só pode ser! E o maço, o maço... Quantos cigarros vêm num diabo estava acordado. "Exatamente o que pensei: banho de
maço? Essa bosta não acaba". Deu pra contar cigarros no suor! Da porra do suor!"
escuro. Perdeu a conta quatro vezes, mas imaginou Ao sair do banheiro, fez careta e parou. Já se sentia
bastantes, dezenas, milhares. Nunca mais gastaria na droga sujo. Um porco. Porco. Já o chamaram disso antes. Porco. Que
do cigarro, nem negaria pros transeuntes na rua. "Engraçado, era um porco? Era tudo muito engraçado. Pensou por
fumar nesse calor me dá vontade de me acabar numa poça da minutos na palavra "porco". Mais uma palavra pra pensar.
água". Parou um minuto. Lembrou das coisas sobre ereções Porco.
que tinha pensado. "Porra! Não senti vontade de mijar ainda. Saiu do banheiro. "Puta que pariu que cheiro de
Será?" Deu pra andar. Não queria pensar na ideia do xixi. desolação”. Foi para a sala sentar-se. Pegou no maço para
Sentiu nojo de si mesmo. E a impressão era da noite fumar outro cigarro, mas distraiu-se com a escuridão. Via as
esquentar mais. partes superiores das paredes de fronte para a janela se
"Banheiro. Banheiro. Banheiro". Bateu pro banheiro e clareando e teve a súbita convicção de que amanhecia. Saiu
se fechou lá. Sentiu tudo fresco e pensou no chuveiro como o feito um raio pra fora e deparou-se com o breu. "É a pupila
grande herói da noite. "Desgraça de água quente. Chuveiro de dilatada dando pião em mim. Ou esse narrador bunda-mole.
suor do diabo". Fedia. Cheirou suas axilas e pensou em Ou eu estou voltando a ficar paranoico, ou é tudo coisa desse
crianças. Quando era menor, diziam que era bastante fedido, desgranhento. Pode ser que. Não. Aliás, e se. Sim, só tem dois
nunca se importou. "Cruzes. O jeito é esse chuveiro". Hesitou acordados aqui. Eu e o Diabo. O Diabo é o narrador. Diabo de
por não se sabe quanto. Quanto valia a higiene? Muito? Deu narrador!" Entrou na sala da mesma forma que saiu. Pegou
pra querer tomar banho mesmo e abriu o chuveiro. A coisa os cigarros, mas não fumou. "Ahá! Quem vai me fazer fumar
foi caindo e ele olhando horrorizado. "Essa água parece tão agora? Quem? Quem?". Deixou o maço na camisa e pôs-se a
fresquinha". Estava reticente, foi se aproximando e alguma ruminar sobre narradores, providência e Deus. Lembrou-se
coisa nele queria entrar de uma vez. Entrou. "Porra! Porra! da canalhice Dele. Esbravejou palavrões e ficou quedado na
Porra! Sai, sai, sai, sai". Pulou pra fora aos escorregões. cozinha, pois tinha caminhado até lá. “E se Deus for o
Arrependeu-se até os ossos. Sentia a água fervendo nas narrador
carnes. "Puta que pariu me socorre". Quem socorreu? O
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narrador, e não o Diabo, como pensei?". Sentiu sede. O pobre "Aguinha sujinha, paradinha, fresquinha". Levantou e
do Padilha sentia sede. Já havia fuçado na geladeira em busca bruscamente deu descarga. Apreciou o barulho. "Barulho
de cerveja e sua memória o rememorara que não havia água. rima com entulho. Sede rima com água". Voltou a sentar.
Desolou-se. "Beber xixi". Ecoou na cabeça dele tal período. Sentia-se tremelicando. De olhos fechados, via uma fonte
"Não. Xixi não!" E voltou ao banheiro como que com mil jorros de água, amarelos. Bateu no rosto e foi dar
resmungando. "Nada de beber xixi, Padilha! Nada. Água da outra descarga. "Duas descargas, para garantir, para
torneira, tem água da torneira". Com as ideias embaralhadas, garantir". Ficou um tempo em pé pensando um pouco em
imaginou-se urinando nas mãos. Chegou ao banheiro com o nada, um pouco em morrer.
aspecto de quem subiu uma ladeira infinita. Lá, abriu a Minutos depois lá estava o Padilha de quatro em cima
torneira. "E sem surpresa nenhuma o Padilhão aqui descobre do vaso. "Se alguém me pega de quatro agora... Que mal há?
que a bosta da água da torneira está quente”. Mas xixi não Estou sozinho. Hoje só presto contas a Deus; nem a ele. Estou
beberia. Estava resoluto, os delírios que cessassem. "De sozinho. Já me vi fazendo coisa pior, que mal há? Nem Deus.
Poderia estar fodendo gente casada, poderia estar casado
quantos delírios é feita uma noite dessa? Quente de te fazer
(hirc), mas estou sozinho. Não há mal, não". E botou os dedos
filosofar, rapaz!". Uma cadeira, um vaso sanitário e um
na água do vaso. "Tá fresca essa porra, não é possível".
Padilha numa noite quente. Diabo. Levantou-se. De frente ao
Suspendeu o ato. Imóvel, de quatro, achou tudo aquilo muito
vazo, examinou-o com pausados suspiros. Pensou em
suspeito. E se fosse pegadinha? "É uma pegadinha!". Olhou de
cigarros. Tirou do bolso da camisa e acendeu. Enquanto
novo para o vaso. Quarenta e poucos anos de vida na
tragava a fumaça dentro do banheiro, pensou em suicidar-se
malandragem pra numa noite quente se prestar a isso.
fumando com tudo fechado até sobrar monóxido de carbono Padilha indignava-se. Decidiu esperar para comprar água. Já
e um cadáver contente. "Morrer com o cu cheio de nicotina... ia se levantando quando, ao tirar o maço do bolso, deu-se a
Quem vai dar falta? O filho da empregada que nunca criei, tragédia. Ploc foi o barulho. E lá, dentro do vaso, flutuavam
mas que poderia criar?". Achou melhor que ninguém sentisse vários cigarrinhos, todos molhados, todos inúteis. "Quero
falta. Não teve coragem de fechar a porta e sentou-se na muito chorar!". E o homem de ontem foi a criança do agora.
cadeira. Voltou a examinar o vaso. Sentia-se demente. Não chorou. Fez beiço, fez birra e cara feia. “E morrer já não
"Aguinha sujinha, paradinha, fresquinha". Levantou e da
bruscamente deu descarga. Apreciou o barulho. "Barulho
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dá mais. Nossa senhora, eu mereço realmente isso?". E foi moleque. E o som da risada. E aquele sentir humilhar-se que
sendo acometido por um crescente sentimento de "não tenho inundou tudo. A vontade de viver foi-se esvaindo, esvaindo.
bosta nenhuma a perder." Deu uma terceira descarga. E o "Ah...". E nem palavrão queria mais dizer. Padilha sentiu
mesmo Padilha estava, momentos depois, protagonizando a vergonha, mas tanta vergonha, que desistiu de lutar.
a cena memorável. Abraçado ao vaso, mergulhou a cabeça e Cochilou, recostado no sofá, derrotado. E o que restou da
começou a beber a água feito um cachorro. Estava realmente noite quente foi aquilo de mais humilhante que fica na peleja
fresca. E ele arfava. Que o Diabo lembre-se pra sempre do dia com si mesmo. Aquele sentimento de impotência contra
em que o Padilha bebeu água da privada. Há mais! Ficou lá coisas tão banais e tão gigantes ao mesmo tempo.
por dez ou quinze minutos se esbaldando! Bebeu até se
afogar e se afastar do vaso numa crise de tosse. Não cria .
Mais um momento e lá estava enfiando os braços no vaso.
Dando descarga com a cabeça dentro e outras mil peripécias.
Ao fim, sentou-se na cadeira, encharcado do peito para cima.
Sentiu um alívio, como se a noite inteira fosse gradualmente
refrescando-se. E ao fechar os olhos, viu a verdade. O cosmos,
e a sua passagem de menino pra homem. Sentiu-se
revigorado. Caminhou para a sala. A noite continuava quente.
Sentou-se no sofá e começou a sentir-se pequeno. Como se
tivesse bebido, se esbaldado em toda a humilhação do
mundo. E todo aquele sentido que havia encontrado esvaiu-
se. "Não há ninguém. Que mal há?". Sentiu-se apertado. "Não
devo nada a ninguém". De olhos fechados via suas pernas
entrando dentro do seu umbigo, lenta e dolorosamente. E o
diabo, a empregada, o pênis em ereção, todos rindo.
Gargalhando. Jurou ver um pênis rolando no chão, feito
moleque. E o som da risada. E aquele sentir humilhar-se que
inundou tudo.
Matheus Romanetto
Cursa Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP.
Contato: matheus.romanetto@hotmail.com
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Tempus fugit: o Mecânico e o Orgânico no Manifesto Futurista

A publicação do opúsculo “Le Futurisme”, de F. T. resumo


Marinetti, no jornal parisiense Le Figaro, em 20 de fevereiro
Por meio da análise das teses, narrativas e jogos metafóricos contidos
de 1909, é tradicionalmente considerada importante por no
no “Manifesto Futurista”, busca-se delimitar a relação que se
mínimo dois motivos. Do ponto de vista da historiografia da estabelece entre as figuras da máquina, do homem e da natureza,
arte moderna, trata-se do momento fundador de um dos tomadas como sujeitos com funções e atributos diferentes, dentro da
movimentos de maior proeminência do começo do século XX. poética do texto. Construídas a partir da oposição entre três
Do ponto de vista dos estudos literários, o texto amplifica um qualidades diferenciais – vida, energia, poder –, elas reúnem traços
fundamentais do pensamento estético e político de Marinetti,
dos embates (ou acordos) que percorriam as vanguardas de
tornando-se subsequentemente disponíveis para elaborações e
então – aquele entre política e estética –, valendo-se de um desconstruções, na continuidade do movimento futurista.
gênero que suas edições posteriores fariam questão de
assinalar no título: o manifesto. O impacto da obra chegou a
desse gênero, que se consolidou gradualmente como um
tal ponto que, já na época de sua primeira aparição, essa
distintivo do movimento. O desenvolvimento do futurismo
opção ajudou a redefinir o destino da arte europeia que
integrou sua elaboração massiva de manifestos a um sistema
estava por vir:
de performances, em que as obras eram espalhadas na forma
Movimentos subsequentes, como o vorticismo, dadaísmo, de panfletos ou declamadas publicamente. Nesse contexto,
surrealismo, ou os situacionistas, produziram diferentes os dois olhares que transformam “Le Futurisme” em um
combinações de manifestos e obras de arte, mas todos eles marco da mentalidade artística moderna são, na verdade,
partilham com o futurismo o que deveria ser considerada a sua
herança: a centralidade do manifesto (tradução nossa).1 polos de uma cisão mais ampla na produção teórica que se
defronta com essa estruturação da prática futurista, e de
De fato, não só o futurismo é lançado ao público por modo geral com a de todos os grupos do mesmo período. As
meio de um manifesto, como boa parte da produção de seus abordagens historiográficas tomam o texto como documento
principais artistas – Marinetti, Carrà, Boccioni, dentre outros nu dos projetos motrizes do movimento; garantem a
– consiste em uma sucessão de textos trabalhados dentro validade da análise enfatizando seu caráter diretivo, “na
deess
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medid
¹ PUCHNER, Martin. Poetry of the revolution: Marx, manifestoes and the avant-garde. Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 93.
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Medida em que, na práxis escrituária vanguardista, sobre o “Manifesto Futurista” (título que substituirá
manifesto e programa se articulam, na maioria dos casos, doravante o original) insere-se em um contexto maior de
indissoluvelmente”2. As abordagens literárias, preocupadas significação, em que as obras individuais se entrelaçam em
não só com o conteúdo exposto, mas também com a forma um todo cuja coerência não pode ser garantida a princípio,
em que ele é expresso, e a maneira como ela participa da mas que estabelece relações de continuidade e
constituição histórica do gênero em questão, definem como descontinuidade sensíveis entre elas. Abrem-se inúmeras
leitura mais apropriada aquela que trata o texto como objeto questões sobre as operações textuais que garantem a
em si, e não meramente como antecipação da produção de constituição do grupo, a teatralidade futurista, seu
outras obras, na medida em que, segundo uma imaginário e suas relações com a política europeia do início
metalinguagem particular, a forma textual reproduz aquilo do século passado.
que se proclama ou defende: O que aqui se propõe é avaliar o texto de Marinetti de
um ponto intermediário entre as concepções historiográfica
O manifesto constitui-se em obra de vanguarda por excelência
e literária da teoria, tratando-o como de natureza artística e
na medida em que articula uma proposta estética crítica (a
antiarte) e, ao mesmo tempo, é sua práxis (gesto polêmico e tendo em mente a maneira complexa como se integra, tanto
contestatário)3. aos outros escritos do autor, quanto à própria formação do
Tamanha é a proeminência dessa estratégia no gênero que ajudou a consolidar como momento essencial da
futurismo que o formato do gênero é assimilado por alguns modernidade artística, mas sem desprezar o modo como é
autores como equivalente da própria proposta do possível enxergar, no caráter programático com que se
movimento: “a forma do manifesto se torna o próprio apresenta, um caminho específico para essa própria
conteúdo do futurismo”4; “o gênero central futurista integração. Trata-se, em outras palavras, de avaliar o
transforma a arte, então, em uma mistura de arte e conteúdo que ali se apresenta, não como pura norma de toda
manifesto, que poderia ser chamada arte-manifesto” a produção futurista, mas como arcabouço de imagens, temas
(traduções nossas)5. Assim, qualquer análise que se debruce e teses que se acumulam, disponibilizando-se na
sobre continuidade
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2 GELADO, Viviane. Poéticas da transgressão. São Paulo: EdUFSCar, 2006. p. 38.

3 Ibidem, p. 39. 4 PUCHNER, op. cit., p. 75. 5 Ibidem, p. 93


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continuidade do movimento como fonte de sobrecarga simbólica sensível, que deve ser compreendida
desenvolvimentos possíveis, que podem reafirmar, adaptar caso desejemos atingir uma leitura clara dos traços acima
ou negar suas versões originais. apontados.
Esse processo se justifica pela presença, Quando da publicação do manifesto no Le Figaro, a
particularmente na obra de Marinetti, de constantes carreira de Marinetti encontrava-se em um período de
reutilizações e reelaborações de ideias que já haviam surgido transição, tanto política quanto esteticamente. De particular
em momentos anteriores, com a liberdade típica daquilo que relevância é que sua produção poética concentrava-se ainda
Marjorie Perloff aponta como “a ênfase no artista como sobre os mesmos paradigmas simbolistas que o futurismo
improvisatore” (tradução nossa) . Assim, a título de exemplo,
6 viria a negar mais tarde, com as propostas da parole in
uma das teses do manifesto de 1909 – “Nós queremos libertà e outros recursos textuais. “[Marinetti] estava
glorificar a guerra – única higiene do mundo”7 – torna-se escrevendo, ainda em 1909, versões decadentes de lírica
título de um texto publicado posteriormente, “Guerra, a única Baudelairiana” (tradução nossa)9. A densidade
higiene do mundo”8. surpreendente de imagens que se sobrepõem e encadeiam
Como objeto de estudo particular, propõe-se em “Le Futurisme” pode ser, portanto, remetida aos
esclarecer a relação que o “Manifesto Futurista” estabelece mecanismos propostos pelos próprios simbolistas e ao seu
entre tecnologia, homem e natureza. Ao longo do texto, louvor da obscuridade e da sugestão. Não se deve daí
surgem imagens e metáforas envolvendo a máquina, nunca depreender, entretanto, que a escrita de Marinetti possa ser
como ser isolado, mas como corpo que interage com os reduzida a uma atualização de velhas metas estéticas. Pelo
mundos animal e humano, em última instância com o contrário: aqui, o jogo imagético é reapropriado objetivando
desenvolvimento da história como fruto de determinadas uma redação que produza impacto forte: para que um texto
disposições de força. Essa interação se dá em meio a uma se torne um manifesto, “é necessário violência e precisão”
lmfrfr (trad
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6 PERLOFF, Marjorie. The futurist moment: avant-garde, avant guerre, and the new language of rupture. Chicago: The University Of Chicago Press, 2003. p. 81.
7 MARINETTI, Filippo Tommaso. O manifesto futurista. In: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais
poemas metalinguísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 92.
8 Ver PERLOFF, op. cit. 9 PERLOFF, op. cit., p. 67.
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(tradução nossa)10, diz o autor a Henri Maasen, em uma carta externalização da vontade” (tradução nossa).14 Os quatro
enviada ainda naquele ano. As metáforas, metonímias e jogos elementos naturais, figuras presentes no ideário ocultista,
que preenchem o manifesto operam sempre ao lado de outra surgem no “Manifesto Futurista” como significantes bem
figura de linguagem, qual seja, a hipérbole. É o constante delimitados por um código de oposições mútuas.
exagero do que se diz ou descreve que dá ao texto sua As menções ao fogo são inúmeras, passando, além dos
potência primária, sua velocidade. exemplos que já demos, pelas imagens de “frutos
É nesse quadro, aliás, que surge uma de suas apimentados”15, “violência (...) incendiária”16, pela
qualidades mais interessantes: um elemento plástico muito denominação dos futuristas como “incendiários de dedos
presente nas descrições. O vermelho e o negro, em particular, carbonizados”, e até pela concreta aparição de um “fogo nas
saltam à vista se nos permitirmos alguma sinestesia. Há o prateleiras das bibliotecas”17. De modo geral, esse elemento
“ferro vermelho da alegria”11, “caldeiras infernais”, “negros está associado à impetuosidade criativa. A água, em oposição,
fantasmas que se mexem no ventre vermelho”12, o Sol que determina eventos destrutivos: são as “corredeiras e
surge de posse de uma “espada vermelha”13 em oposição à redemoinhos de um dilúvio”, que levam os lugarejos festivos
noite que se passava em vigília. Surge gradualmente por trás “até o mar”; é o velho canal”18 que abaterá as bibliotecas; é a
dessa coloração forte a ideia de fervor, calor, de fogo. Aqui é morte que “escorre olhares veludosos do fundo das poças”19;
Hjartarson quem dá uma primeira direção à análise, ao a sensibilidade que se verte na “urna funerária”20; o tubarão-
sugerir que “Marinetti se apropria de teorias ocultistas automóvel cuja destruição os pescadores assistem perplexos.
contemporâneas, integrando seus elementos mágicos e À terra, liga-se um gênero mais passivo de dano,
proféticos ao projeto futurista e à sua concepção estética de quando não uma conservação mumificante. Quando os
eleme futuristas

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10 HJARTARSON, Benedikt. Myths of rupture. In: Modernism: volume 1. Philadelphia: John Benjamin’s Publishing Company, 2007. p. 182.
11 MARINETTI, op. cit., p. 91. 12 Ibidem, p. 89. 13Ibidem, p. 90. 14HJARTARSON, op. cit., p. 187. 15 MARINETTI, op. cit., p. 90.
16 Ibidem, p. 92. 17 Ibidem, p. 93. 18 Ibidem, p. 89. 19 Ibidem, p. 90. 20 Ibidem, p. 93.
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futuristas sofrem seu acidente, a “lama” é “fortificante” 21; nas Ao longo de nossa análise, surgirão os usos dessa
enchentes, é o Pó, conteúdo que a água carrega, aquilo que estrutura. Esboçamo-la adiante, num diagrama composto de
destrói; dão-se aos opositores do movimento picaretas e dois eixos: um vertical, que se poderia chamar transitivo, e
martelos para que escavem “os fundamentos das cidades outro horizontal, que se poderia chamar criativo. O círculo
veneráveis”22. O ar é, enfim, símbolo de um estado de denota a interioridade do corpo que engendra a criação, seja
transição, que compreenderemos mais adiante. Marinetti ele o do futurista ou o da máquina. Os pontos extremos do
quer ver os Anjos primeiros voarem, cantar o “voo deslizante espaço cartesiano assim obtido corresponderão a momentos
dos aeroplanos”23, e mesmo estar ao lado de seu aeroplano futuros da interpretação: as combinações entre conservação
quando seus herdeiros matarem-no, sucedendo o “voo e destruição (terra + água), transitividade e destruição (ar +
brilhante de suas imagens”24. É às “estrelas inimigas”25, para água), entendidas como representantes de maneiras
o “céu violeta”26, para o alto, enfim, que se lança seu diferentes de arruinar, antecipam já o que diremos do
movimento e desafio. maquinismo, posteriormente.
Que atribuamos à aparição do céu e das estrelas a
presença do elemento aéreo, justifica-se por uma outra
característica desse conjunto semântico: os elementos
definem, além de princípios ativos, uma topologia própria,
que liga determinados tipos de ocorrência dos fenômenos
naturais a posições diferentes no espaço. Assim, a chama é
fenômeno interior, e a água destrói exteriormente; o ar situa-
se acima, a terra situa-se abaixo.

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21 Ibidem, p. 91. 22 Ibidem, p. 93. 23 Ibidem, p. 92.
24 Ibidem, p. 93. 25Ibidem, p. 89. 26 Ibidem, p. 90. Figura 1: Estruturação dos quatro elementos
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Para começar a sondar o sentido do “Manifesto Estes, nos momentos em que se confundem com o
Futurista”, é preciso situar esse imaginário natural em relação maquinário, fazem-no por outro caminho, compondo-se em
a outros recursos de que Marinetti se vale ao longo da obra. A uma associação concreta, que não confunde suas
oposição (grosso modo) entre elementos criativos e individualidades (o futurista sobre o veículo, por exemplo).
destrutivos, encontra um primeiro eco interessante na relação Daí a ambiguidade de uma poética que, como veremos,
que o autor estabelece entre biologia e tecnologia. Aqui, a procura promover “um assalto violento contra as forças
natureza e os frutos da sociedade não se dividem. Pelo
desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante dos
contrário, confundem-se forçosamente: “a ênfase na matéria e
homens”32, mas que em última instância subjuga os próprios
sua interpenetração com o sujeito humano equivale à fusão
humanos.
dos mundos orgânico e inorgânico” (tradução nossa)27. As
A relação entre os três componentes que aparecem
máquinas despontam, tanto como agentes, quanto como
nas citações acima pode ser compreendida a partir de um
objetos de fascínio. Mas ao mesmo tempo em que ajudam os
conjunto mais amplo de oposições permutáveis, em que os
homens a dominar o mundo anímico (“nós íamos esmagando
sobre o umbral das casas os cães de guarda”28), elas guardam termos em questão associam-se em duplas opostas ao
aspectos animais: acariciam-se seus peitos, e é afinal em um elemento restante, a partir de um traço discriminante,
“tubarão atolado”29 que culmina o acidente de Marinetti. São producente de hierarquia. Quando máquina e animal se
as locomotivas como “enormes cavalos de aço”30 e os assimilam, ganham controle sobre o fator humano. Quando
automóveis com “grossos tubos como serpentes de fôlego máquina e homem se compõem, ganham controle sobre o
explosivo”31 que ele quer cantar. A natureza (que compreende fator natural. Mas homem e animal nunca se unem em um
os quatro elementos e o reino animal) é signo de energia e combate contra a máquina. Neste caso, a assimilação permite
descontrole, especialmente quando assimilada (sob a forma da que os futuristas cacem como “novos leões”33 a própria
metáfora ou da analogia) pela tecnologia e pelos homens. Morte, porém nada mais.

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27 WELGE, op. cit., p. 550. 28 MARINETTI, op. cit., p. 90. 29 Ibidem, p. 91. 30 Ibidem, p. 92. 31 Ibidem, p. 91. 32 Ibidem, p. 91.
33 Ibidem, p. 90.
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Essa súbita emergência de uma figura antes estranha, a máxima de Lefebvre segundo a qual “[a] história desdobra-
que impede que completemos um círculo de rivalidades se em ‘natureza’ e ‘humano’. O homem desdobra-se em
perfeito com a tríade já conhecida, é sintoma de uma fratura ‘natureza’ e ‘história’”36. Por um lado, a continuação da
mais profunda. Hewitt já a delineia ao reconhecer, como história se dá com a união da energia animal com as
oposição primordial na obra de Marinetti, a própria luta qualidades políticas (dominadoras) humanas na forma da
entre o natural (como força de discórdia, particularmente na máquina; por outro, o homem é ser vivo que se contrapõe
figura do corpo biológico) e o humano (como polo de aos frutos mecânicos de sua história. De fato, tudo que é
concordância, particularmente na figura do Estado). A louvado no homem é, no “Manifesto Futurista”, remetido
máquina aparece como síntese desses dois potenciais: àquilo que acentua a vida. Ele é proclamado perante os
“homens vivos da terra”37 pelos “jovens, fortes e vivos
É nos trabalhos iniciais que a máquina representa todas as futuristas”38, em oposição àqueles que “não se lembra[m]
energias que tornam o capitalismo tão curiosamente mesmo de ter vivido”39. Aqui, o tema da força biológica
autotransgressor e produtivo. Ela é o símbolo dos antagonismos
cruza-se com o da juventude, do novo. Em nosso tratamento,
produtivos que confrontam Homem e Natureza e alimentam a
produtividade histórica, por meio de sua regeneração dos optamos por pensar sua construção investigando os motivos
recursos naturais e energias, e dos objetos materiais que produz que o transformam em um traço pertinente da identidade do
(tradução nossa).34 grupo artístico.
O “Manifesto Futurista” pode ser encarado como um
Eis o “nascimento do Centauro”35: compósito de grito de independência, um esforço de afirmação contrário
homem e animal, a máquina executa essa mediação, no aos velhos. O plano pronominal é particularmente revelador
caminho do texto, justamente com a predicação da quanto a isso. Durante a primeira metade do texto, há uma
tecnologia, ora como potência semelhante à do mundo divisão entre “eu e meus amigos”40, e Marinetti lidera seus
animal, ora como extensão do movimento humano. Aqui, vale companheiros. A partir do momento em que a declaração do
a______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
máxima de Lefebvre hhuhu
34 HEWITT, op. cit., p. 147.
35 MARINETTI, op. cit., p. 89.
36 LEFEBVRE, Henri. Introdução à modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 158.
37 MARINETTI, op. cit., p. 91. 38 Ibidem, p. 93. 39 Ibidem, p. 94. 40 Ibidem, p. 89.
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manifesto se anuncia explicitamente, porém, o texto se cinde característica da nação recém-unificada, ambiciosa de
entre um “nós” – os futuristas – e um “você”, cisão que fortalecer-se e criar uma face que lhe seja própria. Assim,
introduz uma rica ambiguidade. Sempre que o “você” é Marinetti lança-se em uma discussão contra o acúmulo das
evocado, não se lhe dá a voz (“Suas objeções? Basta!”41), ou coisas velhas em seu país. Os alvos diretos da polêmica
fala-se por ele (“Você quer portanto apodrecer?”42). O pertencem à materialidade estética: põem-se em questão os
diálogo nunca é permitido, e inclusive o grupo ou indivíduo museus, os quadros, as esculturas, tomados como
representado por esse pronome é excluído do público alvo instituições ou objetos cuja função principal é conservar. Não
do texto. Os futuristas surgem já como autoridade – “ditamos obstante, o tema nacional revela-se subjacente a várias das
nossas primeiras vontades”43 –, mas falam exclusivamente imagens que já mencionamos, completando a polissemia do
para os “homens vivos”44, não para o interlocutor a quem texto. Falar em canais ou em urnas funerárias é, sem sombra
negam participação. de dúvidas, falar da herança romana da Itália. O futurismo
Mas se “você” não é alguém “vivo”, quem é ele? quer uma nação desembaraçada de si mesma, de tudo que é
Poderíamos pensá-lo como o próprio leitor, caso em que o idoso (na classificação de Marinetti, as coisas com mais de 40
texto estabeleceria uma relação belicosa com ele desde o anos de idade, e lembrando que a unificação completou 39
início. Há, entretanto, mais a ser dito. O elemento bélico está anos em 1909). Nesse sentido, pedir que “desviem o curso
certamente presente, mas sua aparição no plano da dos canais para inundar as sepulturas dos museus” é pedir
interlocução resolve-se no da nacionalidade e temporalidade. que mudem o curso da história, da velharia romana, por
Embora seja possível ver aí uma apologia do conflito entre assim dizer.
nações, prefigurando a retórica que faz do movimento “ao Alguns outros fatores são evocados, ainda que em
mesmo tempo expansivo e centrado nacionalmente” vínculo indireto com a nação ou em oposição a ela,
(tradução nossa)45, a briga principal do futurismo é da Itália simbolizando o mundo que se quer abandonar. O primeiro
contra ela mesma, contra seu passado, mais especificamente. deles é o Oriente, que aparece associado ao marasmo e à
Historicamente, podemos identificar esse conflito como uma morte nas figuras da mesquita e sua preguiça nativa, e das
huhu
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
41 Ibidem, p. 94. 42 Ibidem, p. 92. 43Ibidem, p. 91. 44Ibidem, p. 91. 45WELGE, op. cit., p. 550.
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argolas bizantinas que envolvem os cadáveres. O segundo é a fascistas. Puchner49 assinala que a ênfase que os partidos
a lógica e a matemática. Enquanto é noite e a vigília comunistas punham no conhecimento teórico recebia à
prossegue, os futuristas discutem nas “fronteiras extremas direita uma contrapartida que figurava como estímulo à
da lógica”46, mas com o raiar do dia e sua saída alucinada, as prática imediata, potente, desimpedida das barreiras do
lâmpadas lhes ensinam a menosprezar seus “olhos pensamento. O sujeito futurista é aquele que se entrega à
matemáticos”. No limite, é a atenção prestada aos potência criativa até seus limites, que maximiza sua ação
“raciocínios persuasivos”47, representados pela bela imagem com doses cada vez maiores de energia. Seu vínculo com a
dos ciclistas contra o automóvel, que provoca o acidente. Na questão da máquina é o que nos acompanhará até o final da
verdade, o uso desse termo não pode passar de uma meia- análise.
verdade: Marinetti não bate o veículo por descontrole, mas A menção à “velha Itália” retoma a questão
porque fica entediado com as discussões dos dois, e prefere vitalista/biológica num terceiro viés. Os museus são
sair logo delas. cemitérios, diz-se, e os profissionais que lidam com o
Um terceiro fator é a religião, tema forte pela presença passado, como professores e arqueólogos, são a “gangrena”50
do Vaticano em solo italiano, e que surge nas imagens dos da nação. Aí revela-se um traço fundamental do texto. A
sonhos crucificados nos museus, na morte salpicada de gangrena é a falência por falta de circulação, por falta de
cruzes, na prece extenuada do canal. Pode-se concluir dessa movimento. Na menção a esse detalhe, o manifesto encontra
série que Marinetti rejeita o interesse pelo conhecimento de sua constituição basilar: este é um texto sobre morte, e nele
suas máquinas ou pela espiritualidade. Propõe uma filosofia não se opõem vida e necrose, mas tipos diferentes de morte,
da ação, do movimento de certo modo desprovido de cálculo, como resultados de vidas distintas.
como fica claro na ordem de que ele e os amigos “saiamos da Pensemos na sequência temporal da obra. Marinetti
Sabedoria”, rumando à “embriaguez dos cães raivosos”48. abre no presente, falando do que fazia até passar por sua
Essa teoria da pura ação antecipa um dos canais que experiência de quase-morte, que lhe serve de inspiração para
tornará posteriormente possível a aliança entre futuristas e declarar aquilo que quer e fará no futuro. O discurso vai,
huhu entãh
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
46 MARINETTI, op. cit., p. 89. 47 Ibidem, p. 90. 48 Ibidem, p. 90. 49 PUCHNER, op. cit., p. 82. 50 MARINETTI, op. cit., p. 92.
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então, ao pretérito, falando como a Itália era; volta ao futuristas desejam é a morte por esgotamento, a exaustão de
presente, com a reprovação da contemplação artística atual, quem fez muito e se esvaiu: ar + água, destruição pelo
e salta para um futuro ainda mais distante, em que o grupo movimento. Se cantam o prazer, o trabalho e a revolta53, é
futurista é extinto. Uma vez mais, enfim, retorna-se ao somente na medida em que eles consomem suas multidões.
presente para lançar o desafio às estrelas. Nessa sequência, Apenas assim se compreende a apologia da violência e da
repete-se duas vezes uma estrutura que parte de um relato velocidade. Ambas constituem movimentos centrífugos, que
pretérito, passando pelo momento atual e ultrapassando-o.
retiram o homem de si mesmo. De certo modo, retiram-no do
Mas o futuro aparece, ora como mero projeto, ora como fim
próprio mundo.
definitivo. O texto não narra o desenvolvimento desse projeto,
Se para Perloff “o manifesto é situacional por operar
que fica, por assim dizer, a ser contado pelos próprios atos
no tempo e espaço reais” (tradução nossa)54, a ambição do
dos artistas. Mas afinal por que isso tudo? Por que lançar um
documento é justamente abolir essas categorias, levando a
mito escatológico sem uma gênese?
experiência ao absoluto55, onde o ser se esvai; e o meio para
É que “a Mitologia e o Ideal místico estão
essa superação é a velocidade, que se equivale à beleza56,
ultrapassados”. Marinetti quer “abalar as portas da vida”51.
assim como a arte se equivale à Injustiça57, no compasso
Viver, no futurismo, não significa experimentar o mundo tal
exato de sua desmedida. Nota-se que o próprio manifesto
qual um plano ótimo, mas esgotar essa própria vida, dar-se
perde sua função com a concretização do ideal futurista –
“de comer ao Desconhecido”52. Ora, o desconhecido não é a
própria morte? Mas temos aqui duas mortes diferentes. morre, por assim dizer –, na medida em que, se sua
Marinetti pretende evitar a morte letárgica, ou seja, a capacidade performativa é o processo de extinção de tudo
degenerescência pela imobilidade, pela retenção, pela aquilo que se situa de maneira estanque em relação a um
atenção ao passado, ou, mais simplesmente, a morte natural: referencial temporal ou espacial, o cumprimento de sua meta
terra + água, destruição por definhamento. O que os nada mais é que a inscrição do caráter “manifestário”
futuristas huhuhu
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
51 Ibidem, p. 89. 52 Ibidem, p. 90. 53 Ibidem, p. 92. 54 PERLOFF, op. cit., p. 90. 55 MARINETTI, op. cit., p. 92.
56 Ibidem, p. 91. 57 Ibidem, p. 94.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 129

na história, que passa a ser eterno movimento e aniquilação, “eterno”, supera as limitações da biologia. Sua única fraqueza
e elimina a necessidade de um objeto textual que execute é a necessidade do toque humano para que possa ser gerada.
essa tarefa: Ambos os princípios podem ser ilustrados com a cena do
acidente de carro: “A gente o acreditava morto, meu bom
[O Futurismo] celebra a emoção não pelo aqui e agora, mas pelo
tubarão [o automóvel], mas eu o despertei com um só
momento de seu desaparecimento. […] Nada deve ser
transformado em ontologia, nem mesmo a temporalidade que carinho no seu dorso todo-poderoso, e ei-lo ressuscitado,
nega toda ontologia, […] E o Futurismo não odeia nada mais do correndo a toda velocidade sobre suas barbatanas”59. O
que a nostalgia (tradução nossa).58 mecânico torna possível aquilo que Marinetti concebe como
a abolição do tempo e do espaço. Tomados como os limites
A oposição dinâmica entre homem, natureza e da própria vida, tempo e espaço são também limites da
máquina retorna, portanto, embasada em um ponto de vista criatividade humana; daí o interesse do futurista em
anterior ao que apresentamos, e que o engloba. Lembremos: ultrapassá-los. A máquina se lhe afigura, portanto, como
a tecnologia, quando assimilava características animais, ideal máximo, pois é ser que chega ao topo da ambição do
contrapunha-se ao homem na medida em que amplificava a artista/político: cria incessantemente e exponencialmente.
energia violenta daquilo que não é humano; quando Mas como para os seres vivos não é possível, apesar de tudo,
associada a caracteres humanos, contrapunha-se ao animal superar a mortalidade, resta-lhes apenas a alternativa de
na medida em que potencializava o impulso dominador do aproximar-se incessantemente da condição maquínica, sem
homem. Ora, o esquema faltante, que associaria homem e nunca atingi-la inteiramente. Para o animal, essa não é
animal contra a máquina, pode ser finalmente entendido realmente uma escolha. Ser irracional, limita-se a viver, na
como o conflito que torna possível as situações anteriores: força de seus impulsos comuns, algo próximo da potência da
aquele que se dá entre vida e morte. tecnologia. Para o homem, há a possibilidade de fazer uso da
A máquina surge como aquilo que, não sendo orgânico, máquina como amplificador de suas capacidades reais. É
e portanto, do ponto de vista da decomposição natural, nesse sentido que a tecnologia aparece no “Manifesto
“eterno Futurist
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58 HEWITT, op. cit., p.108-109. 59 MARINETTI, op. cit., p. 91.
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Futurista”, como canal que potencializa a ação. Mas essa seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e
amplificação acarreta, inevitavelmente, uma decomposição máquina geram-se um ao outro em um circuito fechado que
do corpo humano, pois o submete a cargas de energia que ele antecipa o desdobramento de uma genealogia linear”
não foi concebido para suportar: “em sua economia, o corpo (tradução nossa)61 – no sentido de que a máquina, filha do
torna-se um meio, um processo, e entra em um sistema de homem, altera sua condição, mas no limite o supera em sua
troca energética que necessariamente destruirá sua entidade linhagem.
autônoma” (tradução nossa) . A caminhada rumo ao ideal
60 De fato, do ponto de vista político (nacional), como
futurista vem à custa do esvaimento do homem. Marinetti aponta Welge, “o futurismo vai em geral contra a
julga isso sem dúvida preferível à alternativa de conservar a descentralização e dissolução do sujeito humano. (…) essas
vida, mas torná-la medíocre. Assim chegamos à oposição tendências, em última análise, reforçam, e não debilitam, a
entre letargia e esgotamento, e encontramos seu lugar na autonomia do sujeito” (tradução nossa)62, pois não se trata
estrutura semântica do texto. A morte lenta é característica de mergulhar a subjetividade em uma homogeneidade
do animal, que vive mais intensamente, mas degenera pelas ideológica, que a extingue como parte do todo. Mas, em todo
mãos da própria natureza. O homem está a princípio âmbito produtivo, o desenvolvimento da criatividade só pode
submetido ao mesmo processo, sem nem a possibilidade de ser concretizado como pura “dissolução” do sujeito. A morte
viver os ímpetos enérgicos da irracionalidade animal – violenta é o mais próximo que o homem consegue chegar da
quanto mais nos momentos em que se prende à lógica, sem imortalidade, propriedade exclusiva do ser mecânico.
ultrapassar suas “fronteiras extremas”. É o caso do professor Procuramos sintetizar nossas conclusões na Figura 2.
e do arqueólogo. O sujeito futurista, indo na contramão, é Os vértices do triângulo maior correspondem aos três polos
aquele que deplora essa condição, e incrementa sua vivência de nossa discussão. Cada lado forma uma dupla constituída
com o uso da tecnologia, dominando o mundo à sua volta pelos elementos em suas extremidades. As alturas partindo
tanto mais criativamente quanto mais acelera a chegada de de cada vértice e extrapolando os lados opostos indicam a
seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e oposição que se estabelece entre a dupla correspondente
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máquina
60 HEWITT, op. cit., p. 155.
61 SOMIGLI, Luca. Legitimizing the artist: manifesto writing and European modernism, 1885-1915. Toronto: Toronto University Press, 2003. p. 125.
62 WELGE, op. cit., p. 551.
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oposição que se estabelece entre a dupla correspondente Diz Hjartarson: “os manifestos dos movimentos avant-
(lado) e o terceiro elemento (vértice), do ponto de vista garde são performances retóricas complexas, visando à
daquilo que é comum à dupla, e que está representado em transformação do sujeito moderno” (tradução nossa)63.
itálico no fim das setas. Nos pares de opostos resultantes, o Compreende-se assim o espírito antimatemático dos
primeiro termo é sempre aquele equivalente à dupla, e o futuristas, e também o porque de retratarem seu fim. É que a
segundo o equivalente ao termo restante. O triângulo interno autodestruição (lembremos que a juventude futura admirará
indica a morte como princípio de uma estruturação mais a atual) é a real concretização do projeto de Marinetti para a
básica, que opõe os três termos em função da maneira como dupla subjetividade político-artística. Esse télos revela-se
falecem (ou deixam de falecer), e que é indicada nos mesmo na definição das fronteiras de seu grupo. Não são
parênteses abaixo dos nomes de cada elemento. todos que chegaram aos 30 anos, mas porque alguns já o
fizeram, Marinetti diz que “nós já dissipamos os tesouros, os
tesouros de força, de amor, de coragem e de áspera vontade
(...) a perder o fôlego”64. Vem então à tona a curiosa geografia
do fim do documento – aquilo que apontamos anteriormente
como uma topologia demarcada segundo os quatro
elementos naturais. Em seus últimos parágrafos, os futuristas
situam-se no cume do mundo. Falam de cima para baixo,
ordenam que seus ouvintes (os homens da “terra”)
“levantem antes a cabeça”65. Falam com o coração nutrido de
fogo, da potência criadora (portanto autodestruidora) do
presente, e lançam seu desafio às estrelas, ao “céu (...)
palpável e vivo”66, aos ares que anunciam a novidade
mortífera.
_____________________________________________________________
63 HJARTARSON, op. cit., p. 178. 64 MARINETTI, op. cit., p. 94.

Figura 2: Diagrama estrutural do “Manifesto Futurista”. 65 Ibidem, p. 94. 66 Ibidem, p. 90.


ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 132

Quando já estiverem esgotados, os jovens de hoje


terão seus últimos momentos ao lado de uma fogueira
miserável – e o último som que ouvirão será o da chuva, que
traz em sua monotonia o anúncio do fim. Eis, finalmente, a
natureza “transitória” do ar: ele demarca justamente a
passagem da criação máxima à destruição máxima; o
momento da morte mesma, que, já em suas primeiras
aparições, anunciava-se indiscriminada na “boca imensa e
torta do vento”67.

_____________________________________________________________
67Ibidem, p. 90.
Daniel Serrano
Professor de língua portuguesa.
Contato: damelser@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 134

Empresa Lanifícios Tejo LDA.

um prédio ardido não tem miolo janelas serão


nem carne interna orifícios
nem polpa de uma caixa

não tem recheio um prédio ardido orifícios laterais


é pele apenas na parede
embalagem de uma praça

uma piscina vazia poderá ser buraquinhos enfim


um prédio que ardeu por onde a fábrica
vazava
será talvez o prédio que ardeu
uma praça (não vazam as fábricas ardidas porque não são piscinas)
com parede
vazava barulho
sim uma praça de máquina
uma caixa
sem tampa vazava talvez
cheiro
uma praça que é uma caixa vazada, de fábrica
o prédio ardido
e vazava
diz-se dos buracos na fachada: gente
janelas pela porta
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 135

gente que todo dia vê-se enfim tudo que se


enchia passa
e vazava pela janela
de uma fábrica
entrava que não vaza mais)
e saía
por entre os buracos de um prédio ardido
e que não passa mais um olho acha
muito
passa gente pela rua de trás do que ali não se acha
que agora
vê-se acha o que por trás
pelas janelas da frente e de trás se passa
mesmo do outro lado da rua
mesmo da outra margem do rio e acha
– pensa que acha –
(passa gente o que ali se achava
e passa mais
acha mesmo
passa vento barulho
que sacode a roupa de máquina
nos varais
cheiro
e perto das roupas passa um carro de fábrica
pela rua de trás
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e acha
que houve na cabeça
e que estava de que quem via
e vê nada
uma fábrica queimada
vaza (a rigor vê
uma vila o que não via
antes de arder)
vara
uma vida uma fábrica ardida
passa a ter
vira o que não tinha
uma vala e perdeu
Jessica Sallasa
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: jcsallasa@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 138

A reelaboração dos jovens de J. K. Rowling em Morte Súbita

1. O rótulo propagado
aqueles que, apesar de nunca terem lido nada da autora
O romance Morte Súbita, britânica, se sentem instigados a conhecer esse novo romance
publicado recentemente no Brasil pela promessa de uma trama supostamente mais bem
pela editora Nova Fronteira, é de elaborada. Assim, ao darem tal rotulação, o único objetivo não
autoria de J. K. Rowling, a mesma da desejado pelas editoras seria proibir a leitura de Morte Súbita,
famosa saga juvenil Harry Potter. pois o fato de ser um romance para adultos é mais um atrativo
Entretanto, a contracapa do livro já comercial do que uma advertência aos leitores.
previne: esse é um romance para De acordo com a contracapa da editora Nova Fronteira,
adultos. Essa preocupação da edição o romance atrairia o público adulto por narrar os
brasileira (e também da edição acontecimentos de uma pequena cidade cercada de mistérios,
original da Little, Brownoriginal da Little, em
and Company) Brown and
distanciar intrigas, suspenses e revelações. Mas esse vilarejo, Pagford,
Rowling da reputação Company) em distanciar
de escritora juvenil Rowling
pode ser da seria, “num primeiro momento, apenas uma pequena cidade,
compreendida como umareputação
estratégiadede escritora
divulgaçãojuvenil pode
para atrair como outra qualquer, a qual pode ser comparada ao nosso
ser compreendida
diferentes públicos. A princípio, são atraídos como
aqueles uma
que bairro, ou à cidade de cada um de nós”. A partir dessa
leram algum livro de J. K.estratégia
Rowling de divulgação
e que esperampara atrair
encontrar descrição, podemos depreender que aquilo que a editora
em Morte Súbita uma diferentes
nova públicos.
trama arquitetada por utiliza para caracterizar esse romance como adulto é o fato de
mecanismos já conhecidos. Nesse caso, inserem-se os jovens Rowling distanciá-lo da descrição fantástica que permeia a
adultos que acompanharam Harry Potter na infância e que saga Harry Potter e aproximá-lo do mundo do leitor. Seria o
hoje buscam uma evolução da obra à altura do compromisso com a realidade e com os problemas do
amadurecimento dos seus antigos leitores. A posteriori, estão cotidiano que o afastariam do universo juvenil.
aqueles que, Além disso, o
vídeo comercial veiculado na internet pela editora2 destaca a
complexidade das personagens de Morte Súbita. Em tom de
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¹Disponível em: www.littlebrown.co.uk/TheCasualVacancy.page. suspense, o locutor inicia: “Você acha que você se conhece. As
pessoas acham que te conhecem. Todo mundo tem um
segredo...”.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 139

Além disso, o vídeo comercial veiculado na internet Em Morte Súbita, embora não fique evidente, o enredo
pela editora2 destaca a complexidade das personagens de do romance também é regido pelas ações de personagens
Morte Súbita. Em tom de suspense, o locutor inicia: “Você jovens. Porém, ao contrário dos livros anteriores, o que
acha que você se conhece. As pessoas acham que te possibilita a esses o poder de alterar o mundo ao redor não é
conhecem. Todo mundo tem um segredo...”. As personas a prática da coragem e benevolência, mas da covardia e
desse romance surpreendem o leitor e a si próprias a todo egoísmo diante de conflitos familiares. Com receio de
instante, estabelecendo outra relação de verossimilhança crescerem e se tornarem iguais aos pais, eles agem
capaz de igualar a nossa complexidade à das novas impulsivamente e, muitas vezes, até se surpreendem com os
personagens de J. K. Rowling. Dessa forma, até que ponto as resultados dos próprios atos. Além disso, são personagens
situações despidas de eufemismos, o relato das nódoas do complexos e em constante modificação, de maneira que
cotidiano e a elaboração de personagens complexos existem e dificultam ao leitor a plena compreensão da coerência de
sustentam um relato experiente, de acordo com o que a editora seus comportamentos.
compreende por essa definição, é o que pretendemos analisar. Stuart Hall, filho da orientadora educacional, Tessa, e
do vice-diretor do colégio, Colin, procura ir de encontro aos
2. Convicções antigas em estilo renovado padrões de comportamentos que impedem a prática de sua
autenticidade. Conscientemente determinado a ser fiel aos
A saga Harry Potter ficou estereotipada por enaltecer seus instintos, o jovem busca, na verdade, fazer aquilo que os
o altruísmo e a amizade, especialmente entre adolescentes. seus pais desaprovariam. Junto com o seu amigo Andrew
Harry, Roni e Hermione, junto com o auxílio de outros alunos Price, ele fuma, usa drogas e é caracterizado como um garoto
de Hogwarts, são os responsáveis, no final da saga, pelo problemático.
retorno da paz no mundo dos bruxos, depois de afastarem Andrew, por sua vez, apesar de também não ter uma
Voldemort, um bruxo maligno. boa relação familiar, procura, em direção contrária à do
Em Morte Súbita, embora não fique evidente, o enredo amigo, não fazer nada que desagrade o seu desequilibrado
do romance também é regido pelas ações de personagens
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pai, Simon. O menino que tem em casa, pelas atitudes do
2 Disponível em: http://www.mortesubitaolivro.com.br.
jovens. Porém, ao contrário dos livros anteriores, o que próprio pai, exemplos do que é agir irracionalmente, o
possibilita a esses o poder de alterar o mundo ao redor não é repudia apenas ocultamente, sem a intrepidez de Stuart.
a prática da coragem e benevolência, mas da covardia e Diferentemente de Colin, Simon não é adepto do diálogo, da
egoísmo diante de conflitos familiares.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 140

amigo, não fazer nada que desagrade o seu desequilibrado meio da descrição dos segredos e angústias dos habitantes do
pai, Simon. O menino que tem em casa, pelas atitudes do vilarejo Pagford e do bairro periférico Fields, com os quais o
próprio pai, exemplos do que é agir irracionalmente, o narrador procura familiarizar quem lê. À vista disso, cada
repudia apenas ocultamente, sem a intrepidez de Stuart. capítulo do romance transmite a sensação de ser uma cena
Diferentemente de Colin, Simon não é adepto do diálogo, da regida pelo ponto de vista de uma personagem específica, sem
paz familiar e das aparências. a presença de interpelações narrativas e juízos de valor
Já a terceira adolescente destacada nessa trama é daquele que narra.
Sukhvinder Jawanda, uma garota com Q.I. e beleza abaixo do Quem de fato parece controlar o universo ficcional e
padrão familiar, que sofre bullying na escola e em casa. Os recebe destaque desde as primeiras páginas é Barry
pais, Parminder e Vikram, embora médicos, não notam que a Fairbrother, um sujeito que passa o seu último dia escrevendo
filha faz cortes no pulso todas as noites com a lâmina de uma um artigo sobre a jovem marginalizada Krystal Weedom e que
gilete. morre subitamente no estacionamento do clube de golfe com
Ocultados pela aparência de jovens revoltosos, são uma hemorragia cerebral. Apesar do seu falecimento no
esses personagens que enxergam e apresentam aos leitores começo do romance, Barry é o eixo conector de todas as
de Morte Súbita os conflitos que os outros habitantes do personagens e intrigas que ocorrerem em Pagford após a sua
pequeno vilarejo Pagford fingem não ver. Imersos em seus morte. É o sujeito que dá título ao romance Morte Súbita e ao
problemas particulares e mantendo uma boa imagem original em inglês, The Casual Vacancy.
pública, muitos fecham os olhos para fatos que acontecem Por ter sido em vida conselheiro na administração do
até dentro de casa. É apenas por esses adolescentes que Conselho Local, a sua súbita morte abre uma vaga que será
descobrimos que a aparentemente pacata Pagford esconde acirradamente disputada por três candidatos da cidade: Miles,
segredos, perversidades, injustiças, traumas infantis e uma Colin e Simon. Mas além da desestabilidade na política local, a
alta taxa de exclusão social. falta de Barry Fairbrother também influenciará na vida de
No enredo, entretanto, a importância dessas jovens que pouco se interessam pelos assuntos formais do
personagens não é evidente, sobretudo nos primeiros vilarejo, pois o antigo representante político tinha consciência
capítulos. Os adolescentes são pincelados aos poucos no social.
meio da descrição dos segredos e angústias dos habitantes
do vilarejo Pagford e do bairro periférico Fields, com os quais
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 141

Howard Mollison, diretor do Conselho, promove a favoráveis à defesa de Fields e denegrir a conselheira que
candidatura do seu filho Miles para ter apoio na sua proposta defende o bairro, é na verdade consequência de vinganças
de fazer com que o bairro periférico Fields deixe de fazer particulares dos filhos dos envolvidos. Andrew procura
parte das obrigações do vilarejo, junto com a clínica de abortar os planos de Simon como revide pelas tantas vezes
reabilitação para dependentes químicos, de modo que que ele, o irmão mais novo e a mãe foram espancados.
Pagford volte a ser habitado apenas por famílias tradicionais. Sukhvinder também posta uma mensagem anônima em
Em contrapartida, a Dra. Parminder Jawanda, antiga amigade vingança às ofensas de sua mãe Parminder, enquanto Colin é
Fairbrother e também membro do Conselho Distrital, conta exposto pelo filho adotivo, após descobrir que Stuart é
com a candidatura de Colin Wall para a defesa do bairro e de usuário de drogas.
seus moradores, em memória das lutas políticas do falecido Embora postadas por motivos e autores diversos, as
amigo. Já o terceiro interessado na vaga, Simon Price, não é mensagens são enviadas pelo perfil invadido de Barry
apadrinhado por nenhum membro do Conselho e não deseja Fairbrother, que foi alterado para “O Fantasma de Barry
influenciar nas questões políticas do vilarejo, pois seu Fairbrother”. Neste e em outros momentos de Morte Súbita, as
interesse é puramente financeiro. personagens sentem a presença do fantasma do falecido que,
Quando as campanhas eleitorais começam, mensagens mesmo ausente, controla a trama. As suas boas ações são
caluniosas surgem no site do Conselho. Simon Price é lembradas, a sua presença é sentida e temida, e o seu caráter
acusado de comprar mercadorias roubadas e de interceptar auxiliador é exposto aos leitores pelas lembranças que vêm à
notas na gráfica onde trabalha. Colin Wall, que guarda o tona no cotidiano dos habitantes do vilarejo. Nem mesmo
segredo de ser portador de um transtorno obsessivo nessa vingança juvenil o seu nome é preservado.
compulsivo, é acusado de sonhar fantasias e de tocar nas Entre o receio e a saudade, Krystal Weedon parece ser
crianças da escola onde é vice-diretor. Até Parminder, que é quem mais lastima a morte de Barry Fairbrother. A menina de
conhecida na cidade pelo seu comportamento resguardado, é Fields, sobre quem Barry escrevia o artigo no seu último dia,
denunciada por nutrir uma paixão pelo falecido Fairbrother. tem medo da possibilidade de um fantasma que vigie e julgue
Entretanto, o que no ambiente pré-eleições parece ser suas atitudes, mas também sofre pela falta de Barry, a única
uma artimanha política para prejudicar os candidatos pessoa a quem podia recorrer em momentos de urgência.
favoráveis à defesa de Fields e denegrir a conselheira que
defende o bairro, é na verdade consequência de vinganças Fairbrother, por também ter nascido em Fields e ter tido a
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 142

Fairbrother, por também ter nascido em Fields e ter da narrativa, a jovem Krystal passa a ter relevante papel no
tido a oportunidade de estudar nos excelentes colégios do restante da trama. Em determinado capítulo, ao ser agredida
vilarejo de Pagford, defendia, em vida, a continuidade desse por um dos homens que mantinha relações sexuais com
privilégio para as crianças carentes que, assim como ele, Terri, a garota verbaliza a falta que a proteção de Barry lhe
poderiam mudar o rumo do seu futuro tendo uma educação faz: “– Eu vou contar pro Sr. Fairbrother – se ouviu dizer,
de qualidade. O artigo que escrevia para o jornal no dia em soluçando. Não sabia de onde tinha tirado aquilo. Era a coisa
que morreu era sobre como estudar na mesma escola que os mais idiota que podia ter dito” 3. Sem ninguém que pudesse
pagfordianos poderia transformar a vida de tantos jovens ajudá-la, ou no mínimo entendê-la, a única alternativa que
carentes, como a de Krystal Weedon. encontra para proteger e sustentar Robbie é engravidar de
A menina, criada pela mãe, Terri, e sem conhecer o pai, Stuart Wall.
convive com o vício dessa e com as suas tentativas falhas de Nesse ponto, porém, a composição narrativa que vinha
reabilitação de uma dependência química. Com o receio sendo composta anteriormente é reelaborada. A
constante de a mãe perder a guarda do seu irmão de três complexidade das personagens que se revelava ao leitor
anos, Robbie, Krystal ainda tem que conviver com a quando este acompanhava as suas reflexões contraditórias
insalubridade do lar e com a entrada constante de homens deixa de ser trabalhada, pois os capítulos param de fornecer
que vão ter relações sexuais com Terri. E, assim como os diferentes perspectivas dos fatos, de acordo com o indivíduo
outros jovens de Pagford, Stuart, Andrew e Sukhvinder, em destaque, e o narrador passa a emitir indiretos juízos de
Weedon também almeja um futuro diferente daquele de sua valor. As personagens não entram mais em conflito consigo
mãe, porém deseja isso para que Robbie não seja mais uma mesmas realizando ações e tendo pensamentos que as
vítima da mesma situação deplorável. surpreendem, pois o foco narrativo está dedicado
Na dinâmica interna do enredo, que aumenta o unicamente ao desenvolvimento de Krystal, e não mais em
destaque dado a determinadas personagens com o decorrer todos os conflitos de um pequeno vilarejo.
da narrativa, a jovem Krystal passa a ter relevante papel no Além disso, abandona-se a descrição do contexto
restante da trama. Em determinado capítulo, ao ser agredida coletivo, do conflito político e dos problemas públicos de
________________________________________________________________________________________________________________________________________
3 ROWLING, J. K. Morte Súbita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p.329.
por um dos homens que mantinha relações sexuais com Pagford que vinham sendo desenvolvidos em primeiro plano
Terri, a garota verbaliza a falta que a proteção de Barry lhe narrativo, para fornecer uma solução dicotômica ao romance
faz: “– Eu vou contar pro Sr. Fairbrother – se ouviu dizer, e às suas complexidades. Os moradores de Pagford, inclusive
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 143

Além disso, abandona-se a descrição do contexto futuro melhor pelo remo, esporte que praticava, ou por
coletivo, do conflito político e dos problemas públicos de qualquer outra profissão, que se mostram como alternativas
Pagford que vinham sendo desenvolvidos em primeiro plano para Krystal após a morte de Fairbrother. Apenas a presença
narrativo, para fornecer uma solução dicotômica ao romance dele possibilitava algumas dessas escolhas. Mas sem a figura
e às suas complexidades. Os moradores de Pagford, inclusive masculina protetora, a menina se degrada ao tentar mudar a
os jovens de lá, que desde o início do romance são retratados sua realidade. A única saída que consegue enxergar para a
como mesquinhos e até medíocres – já que a morte de Barry ascensão social é engravidar de um menino rico.
representa apenas uma vaga aberta no Conselho Distrital –, Essa decisão é tomada ao chegar um dia em casa e
são contrastados aos de Fields, na qual a maioria da encontrar o homem que a estuprou deitado no seu colchão
população, apesar de ser descrita como lasciva, é sem camisa e Robbie, de apenas três anos, nu. Decide
caracterizada como ingênua e benévola. Com isso, Morte engravidar de Stuart naquela manhã. Deixa Robbie no banco
Súbita, que até então estabelecia um vínculo com a temática da praça e vai com o adolescente para o matagal. O
social, ao descrever o corte de benefícios sociais imposto a garotinho sujo e mal-encarado ficou algum tempo sozinho na
pequenos vilarejos, como Pagford, e a complexidade interna praça e foi visto por muitos habitantes de Pagford, mas
das personagens, com segredos revelados, dúvidas e caráter ninguém se preocupou com ele. Talvez “se a criança fosse
dúbio, passa a descrever uma sociedade simplista. mais limpinha”, as pessoas não teriam confundido “aqueles
A representante máxima da classe oprimida e sinais evidentes de negligência com a desenvoltura, a dureza
moralmente boa do romance é Krystal Weedom. O narrador e a capacidade de se virar sozinho”4. Algum tempo depois,
dá ênfase à sua história de menina submissa em virtude de porém, cansado de ficar esperando, Robbie vai procurar
sua situação econômica e pelo fato de ser mulher. Não é a Krystal e cai em um riacho. Sukhvinder, que passava perto,
inserção social a partir da escola e nem a esperança em um tentou socorrê-lo, mas trouxe à superfície apenas o corpo
futuro melhor pelo remo, esporte que praticava, ou por ainda quente do pequeno defunto. Desesperada com a morte
qualquer outra profissão, que se mostram como alternativas do irmão por conta do seu descuido, Krystal injeta heroína na
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para Krystal
4 ROWLING, op.após a morte de Fairbrother. Apenas a presença
cit., p.491. própria veia: sabia que não ia resistir, e era esse o seu desejo,
dele possibilitava algumas dessas escolhas. Mas sem a figura só pensava que “tentando salvá-lo, ela o tinha matado” 5.
masculina protetora, a menina se degrada ao tentar mudar a
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ainda quente do pequeno defunto. Desesperada com a morte da trama altera também a forma como tal relato vinha sendo
do irmão por conta do seu descuido, Krystal injeta heroína na elaborado. Em determinada parte do romance, o narrador foca
própria veia: sabia que não ia resistir, e era esse o seu desejo, em Krystal e esquece-se da disputa política e da temática dos
só pensava que “tentando salvá-lo, ela o tinha matado” . 5
segredos que todos guardam. Para fortalecer a crítica social
Depois desse clímax, Stuart abandona a sua obsessão sobre as injustiças que uma menina sem possibilidades como
pela autenticidade e até acaba se aproximando do pai. ela enfrenta, opta-se por simplificar o relato e personagens
Começa a sentir, como Colin, medo das suas atitudes. criando um ambiente dicotômico e dramático que contrasta ao
Sukhvinder vira a heroína do vilarejo e dos Jawandas. E até relato verossímil do início do romance.
Andrew acaba se aproximando de Simon por outros motivos. Entretanto, ainda com essa mudança de perspectiva, é
Apenas a jovem Krystal teve a sua imagem denegrida e importante afirmar que a personagem adolescente continua
morreu sem conseguir se reconciliar com a mãe. sendo quem guia o movimento narrativo e com quem o
Dessa forma, o novo romance adulto de J. K. Rowling narrador fica mais próximo e empenhado em acompanhar,
possui, de fato, situações com nódoas, relatos descritivos e desde que guardadas as devidas proporções, já que os jovens
ausência de eufemismos, como a descrição do estupro que complexos e contraditórios de Morte Súbita enfrentam conflitos
Krystal sofreu e dos sofrimentos e angústias que a falta de e problemas mais próximos à realidade, pois, conforme afirmou
perspectiva causa nos moradores de Fields. A elaboração das Alcir Pécora6, esse romance de Rowling recusa a “mágica” de
personagens é também mais complexa do que daquelas da Harry Potter e preocupa-se em relatar a dureza das situações,
saga Harry Potter, pois, como foi exposto, é complicado atitude que só enriquece a obra. Além disso, os jovens do
determinar os sentimentos que os guiam e por vezes os romance, ao contrário de lutarem contra o mal, o procuram na
surpreendem em determinados momentos. Porém, a esperança de se encontrar. São jovens com máculas, e os
suposição de uma possível alteração no conflito central da responsáveis por esse romance ser destinado para adultos.
trama altera também a forma como tal relato vinha sendo
elaborado. Em determinada parte do romance, o narrador
6 PÉCORA, Alcir. Romance adulto de J. K. Rowling acerta ao se dedicar a tema social, mas erra em estilo. São Paulo, 2012. Disponível em:
foca em Krystal e esquece-se da disputa política e da
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/84410-livro-adulto-de-jk-rowling-acerta-ao-se-dedicar-a-tema-social-mas-erra-em-estilo.shtml
temática
5 Ibidem, p. dos
480. segredos que todos guardam. Para fortalecer a
crítica social sobre as injustiças que uma menina sem
possibilidades como ela enfrenta, opta-se por simplificar o
Victor Simões Lobato
Cursa Estudos Literários no IEL/UNICAMP, é músico e explorador das artes.
Contato: victors.lobato@hotmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 146

Alquimia

Do sombrio apego ao chão


pés correntes estéreis
de células de areia, de ervas, de órgãos, de cadeias
abandono, solidão caótica de vozes
de ideias,
submissão ao subsolo
E a alheia lógica superficial
aterrado em desconsolo
ganhou fôlego, proporção, vida
cava-se mais fundo
virou natural
e além do chumbo, longe da gris angústia
Entendendo
Sinapses são raízes
Um brilho fugidio
Estendendo
um lume, vislumbre,
pra beber direto das nuvens
um maleável minério:
lúcidas águas, espiralando diretrizes,
Da macia terra intocada irrompe um mistério.
Inspirar ar virgem, desafiando vertigens

Suspensos tensos tons, vibrou uma cor rara.


Até Sol frutificar
Escavada uma nova escala,
Como aprendeu da Terra,
Despertas harmonias soaram através
Ouro de dentro brota.
de dúvidas, de grés, de esferas, de grãos
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 147
Criação

A Ausência
Chama
A Essência
Queima
O Nada
Diz: Luz!
A Presença
Espiral
Condensa imensa potência
A sentença:
Ser que sente
E pensa.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 148

Vermelho

A cor do nosso interior


que aflora em vigorosa
rosa mística fonte
de vida entre meus braços
sente que é teu sangue
que condensa força
e iniciativa que
Pulsa
e incentiva a existência

Vermelho vida
Calor latente
Fogo que sente
Thiago Andreuzzi
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: thiago.literato@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 150

O Humanizador

O humanizador é uma máquina revolucionária dessa Esta é uma outra parte do tratamento: mediante o
época moderníssima. Sua função consiste em humanizar o pagamento de uma quantia do lucro de um mês de banco e
ser humano, que, perdido no meio da multidão, ou trancado duas crianças, o humanizador passa a funcionar e ajuda a
em seu escritório/casa trabalhando compulsivamente e, nas combater o problema da superpopulação em lugares com
pausas, vendo o noticiário da TV, perdeu a capacidade da altíssimas taxas de natalidade, e garante com sucesso que a
empatia e da compreensão verdadeira do mundo. sociedade mantenha seu funcionamento sem grandes
Seu funcionamento se dá pela inserção de sentimentos, problemas.
sobretudo a compaixão e o amor, no caráter mecanizado do Apesar desse seu maravilhoso sistema, o humanizador,
doente. É uma máquina de cerca de dois metros de altura, de no começo, encontrou certa resistência por parte de artistas,
modo que pessoas muito baixas não sejam capazes de entrar como o poeta agora desconhecido e de grande sucesso que
nela para a o processo de reversão de reificação. Até o escreveu os seguintes versos:
momento, tem se mostrado um produto muito útil e eficaz,
resgatando perfeitamente a humanidade de quem se coloca a humanizador
passar pelo procedimento, o qual é dolorido e longo. humana é a dor2
Com a aparência de uma donzela de ferro, seu design
evoca terror e erudição, além de converter-se facilmente em Em uma clara referência à dor causada durante o
uma legítima donzela de ferro, caso o paciente enlouqueça e processo de cura. Provavelmente, ele teria passado pela
comece a defender os direitos básicos dos que ainda não grande máquina quando esta ainda não poderia ser
foram humanizados. Até hoje, não foi registrado nenhum
convertida em uma donzela de ferro. De qualquer forma, o
caso desses em todo o mundo. E, embora os documentos
poeta deixa claro a eficácia da máquina, uma vez que afirma
sejam de posse única da empresa, esta é de uma
que a dor é humana.
transparência fenomenal.

1A empresa também aceita, no lugar das duas crianças, quatro idosos ou um casal gay.
2 ANÔNIMO. Fragmento 22 T. In: Poetas perdidos.
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Alguns desses artistas chegaram a propor o absurdo de e naquele dia [...] deve ter descido
que o amor não é algo definível ou, segundo os menos a terra
pessimistas, algo difícil de se definir. Mas os engenheiros do aquele lugar
humanizador o programaram com as emoções mais sinceras
encontradas nos filmes de alta bilheteria, na literatura e, pois os amantes logo começaram
sobretudo, nos ensinamentos dos pastores e padres cristãos. a se [...]
os conhecidos logo começaram
Há, portanto, cerca de 99% de chance de ele estar correto
a se [...]
em relação ao amor. Sendo assim, quem passa pelo
os es[...]hos logo começaram
humanizador não corre o risco de se tornar homossexual ou a se [...]
libertino. É totalmente seguro. Eliminam-se sujeitos como o
poeta, também já esquecido, do século XXI, que escreveu os eram homens com mulheres
seguintes versos: homens com homens
e mulheres com mulheres
cada um ali […] [...]re3
um cigarro aceso no chao
proximo da branca estatua
lembrava um incenso aceso O humanizador, máquina revolucionária e com alta
mas nao se poderia [...]r se preocupação com o social, acaba por ser uma das soluções
ele ali estava para este efeito mais belas e concretas para o nosso dia a dia, para podermos
ou nao aprender a viver a vida da maneira como se deve ser vivida.

3 ANÔNIMO. Fragmento 69 T. In: Poetas perdidos.


Matuyama
Bacharel em Estudos Literários, revisora e tradutora.
Contato: liviasayuri@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 153

in memorian

noventa e um anos
outono inevitável kyuju issai
duas folhas pendem aki sakerukoto no dekinai
ochikakatta niami no ha
Júlia Ciasca Brandão
Graduanda em Estudos Literários pela Unicamp e professora na escola Kreativ. É pesquisadora do Centro de
Pesquisa sobre Utopia (U-topos), do grupo Renascimento e Utopia, do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL-Unicamp), e faz parte da equipe de tradução, revisão e diagramação da revista MORUS – Utopia e
Renascimento.
Contato: jciasca@uol.com.br
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 155

O Truque do Grilo

Introdução

Gustav Meyrink, nascido em 1868, austríaco e


ilegítimo, obrigado a exercer, por quase trinta e cinco anos,
serviço bancário, finalmente torna-se escritor, editor e
tradutor de grandes autores como Dickens e Kipling.
1917. Meyrink publica em Bremen um livro de contos,
Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Entre eles, Das Grillenspiel
(O Truque do Grilo), o conto que você vai ler a seguir, é uma
representação da insensatez humana. O autor, que
enfrentava os percalços da primeira Guerra Mundial (1914 –
1918) e, por esta razão, conhecia o cenário em que reinam a
crueldade, a desordem e a insensatez, é crítico, sarcástico e
nada piedoso com os seus contemporâneos.
Neste texto, Meyrink demonstra sua habilidade em
inserir as personagens entre o fantástico e o real, entre o
sonho e a vigília. Através das escolhas corretas, o autor incita
o medo no leitor, e depois o desconstrói -, muitas vezes com
o uso da sátira -, porque, afinal, o medo nasce da superstição
e da insensatez, principais elementos que se opõem ao
desenvolvimento e ao progresso do espírito humano.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 156

Das Grillenspiel O Truque do Grilo


Gustav Meyrink Gustav Meyrink
»Nun?« fragen die Herren wie aus einem Munde, als — E então? — perguntaram os senhores como se falassem
Professor Goclenius rascher, als es sonst seine Gewohnheit por uma única boca, quando o professor Goclenius adentrou
war, und mit auffallend verstörtem Gesicht eintrat, »nun, hat o salão mais rápido do que de costume, e com uma feição
man Ihnen die Briefe ausgefolgt? – Ist Johannes Skoper schon notadamente perturbada.
unterwegs nach Europa? – Wie geht es ihm? Sind — E então, entregaram-lhe as cartas? O Sr. Johannes Stoper
Sammlungen mit angekommen?« – riefen alle durcheinander. já está a caminho da Europa? Como ele está? As coleções
»Nur das hier«, sagte der Professor ernst und legte ein estão vindo com ele? — gritaram todos desordenadamente.
Bündel Schriften und ein Fläschchen, in dem sich ein totes, — Apenas isto aqui — disse seriamente o professor,
weißliches Insekt in der Größe eines Hirschkäfers befand, auf estendeu um pacote de anotações sobre a mesa, junto com
den Tisch, »der chinesische Gesandte hat es mir selbst mit um pequeno frasco, dentro do qual se encontrava um inseto
dem Bemerken übergeben, es sei heute auf dem Umweg über morto e esbranquiçado, do tamanho de um besouro. — O
Dänemark angekommen.« próprio mensageiro chinês me revelou que ele chegou hoje
»Ich fürchte, er hat schlimme Nachrichten über unsern através do desvio pela Dinamarca.
Kollegen Skoper erfahren«, flüsterte ein bartloser Herr — Temo que ele tenha notícias graves a respeito do nosso
hinter der Hand seinem Tischnachbar zu, einem colega Stoper — sussurrou um homem com rosto barbeado,
greisenhaften Gelehrten mit wallender Löwenmähne, der – disfarçando com as mãos, ao seu vizinho de mesa, um velho
wie er selbst, Präparator am naturwissenschaftlichen cientista com uma grande juba de leão flutuante, que – como
Museum – die Brille auf die Stirn geschoben hatte und mit ele próprio, taxidermista no museu de ciências naturais –
tiefstem Interesse das Insekt in der Flasche betrachtete. apoiou os óculos na testa testa e escrutinizou o inseto de
Es war ein seltsames Zimmer, in dem die Herren – sechs an dentro do frasco com profundo interesse.
der Zahl und sämtlich Forscher auf dem Gebiet der O salão no qual os senhores se encontravam – em número
Schmetterlings- und Käferkunde – saßen. eram seis, e todos pesquisadores na matéria de borboletas e
besouros – era estranho.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 157

Ein stumpfer Geruch von Kampfer und Sandelholz verstärkte Um aroma abafado de cânfora e sândalo exacerbava a
aufdringlich den Eindruck des fremdartig Totenhaften, das impressão de uma atmosfera peculiar e mortífera, em razão
von den Igelfischen, die an Schnüren von der Decke dos peixes-espinho que caíam do teto pendurados por
herabhingen – glotzäugig, wie abgeschnittene Köpfe barbantes – com olhos esbugalhados, como uma audiência de
gespenstischer Zuschauer – von den weiß und rot cabeças decepadas -, das máscaras diabólicas brilhantes,
grellbemalten Teufelsmasken wilder Indianerstämme, von vermelhas e brancas, oriundas de linhagens insulares, dos
den Straußeneiern, den Hairachen, Narwalzähnen, ovos de avestruz, das goelas de tubarão, dos dentes de baleia,
verrenkten Affenkörpern und all den tausenderlei grotesken dos corpos contorcidos de macacos e de todas as formas
Formen einer fernen Zone ausging. grotescas e vis surgidas de suas zonas remotas.
An den Wänden über den braunen wurmstichigen Das paredes atrás dos armários, marrons e repletos de
Schränken, die etwas Klösterliches hatten, wie das morsche vermes, que tinham algo de mosteiral, como a fraca luz do
Licht des Abendrots aus dem verwilderten Museumsgarten entardecer vinda do selvagem jardim do museu, que entrava
herein durch das bauschige Gitterfenster spielte, hingen, através das grades da janela em forma de bulbo, pendiam
liebevoll in Gold gerahmt, gleich ehrwürdigen Ahnenbildern quadros amavelmente emoldurados em dourado, os retratos
verblaßte Porträts ins Riesenhafte vergrößerter já desbotados de veneráveis percevejos e grilos
Baumwanzen und Maulwurfsgrillen. excessivamente ampliados.
Verbindlich den Arm gekrümmt, verlegenes Lächeln um die Os braços espalhafatosos, o sorriso envergonhado, o nariz
Knopfnase und die gelben, kreisrunden Glasaugen, den pontudo, os olhos de vidro amarelos e redondos, o chapéu
Zylinderhut des Herrn Präparators auf dem Haupte, beugte cilíndrico de Doutor Taxidermista sobre a cabeça, curvou-se,
sich in der Haltung eines vorsintflutlichen Dorfschulzen, der na atitude do prefeito de uma cidadezinha que se deixa
sich zum erstenmal im Leben photographieren läßt, ein fotografar pela primeira vez, em um canto como um bicho
Faultier aus der Ecke, umwipfelt von baumelnden preguiça, brincando com as peles de cobra penduradas.
Schlangenhäuten.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 158

Den Schwanz in den dämmrigen Fernen des Ganges Um crocodilo de doze metros, a cauda recolhida no escuro e
geborgen und die edleren Teile laut Wunsch des distante corredor, as partes mais nobres recém-envernizadas
Unterrichtsministers im Frischlackiertwerden begriffen, em razão do expressivo desejo do ministro da educação,
starrte der Stolz des Institutes, ein zwölf Meter langes contemplava a arrogância do instituto com seu olhar desleal
Krokodil, mit treulosem Katzenblick durch die de felino através da porta de ligação da câmara.
Verbindungstür herein ins Gemach. –
O Professor Goclenius tomou lugar, desamarrou o barbante
Professor Goclenius hatte Platz genommen, die Schnur von
do pacote de anotações e leu as primeiras linhas, entre o
dem Briefbündel gelöst und die einleitenden Zeilen unter
murmurar dos presentes:
Gemurmel durchflogen.
— Datado é de Butão, região sul do Tibete, e do dia primeiro
»Datiert ist es aus Bhutan – Südosttibet – und zwar vom 1.
Juli 1914 – also vier Wochen vor Kriegsausbruch; der Brief de julho de 1914, isto é, quatro semanas antes da eclosão da
war demnach länger als ein Jahr unterwegs«, setzte er dann guerra: a carta ficou por mais de um ano em trânsito — disse
laut hinzu. »Kollege Johannes Skoper schreibt hier unter o professor em alto som. — O colega Johannes Stoper escreve
anderem: ›Über die reiche Ausbeute, die ich auf meiner aqui, entre outras coisas: “Irei relatar na sequência a respeito
langen Reise aus den chinesischen Grenzgebieten durch da rica exploração que realizei em minha longa viagem às
Assam in das bisher unerforschte Land Bhutan machte, fronteiras chinesas, de Assam às ainda inexploradas terras de
werde ich Ihnen nächstens ausführlich berichten; heute nur Butão; a respeito das estranhas circunstâncias da pequena
kurz über die seltsamen Umstände, denen ich die descoberta, feita hoje, de um grilo branco”.
Entdeckung einer neuen weißen Grille‹«. — O professor Goclenius apontou para o inseto no frasco. —
– Professor Goclenius deutete auf das Insekt in der Flasche – “Agradeço aos bhat, chamados deste modo pelos xamãs, que
»›verdanke, die von den Schamanen zu abergläubischen os utilizam para fins supersticiosos, e, simultaneamente,
Zwecken gebraucht und ”Phak“ genannt wird, ein Wort, das palavra que representa um insulto para tudo o que está
zugleich ein Schimpfname ist für alles, was einem Europäer
nivelado aos europeus e homens da raça branca.
oder weißrassigen Menschen ähnlich sieht.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 159

Also: Eines Morgens erfuhr ich von lamaistischen Pilgern, die Pois então: soube certa manhã, por peregrinos budistas que
nach Lhasa zogen, es befinde sich unweit meines seguiam para Lhasa, a pouca distância do acampamento no
Lagerplatzes ein sehr hoher, sogenannter Dugpa – einer qual me encontrava, que existia por ali um grande sacerdote
jener in ganz Tibet gefürchteten Teufelspriester, die, an ihren chamado Dugpa – um pastor diabólico temido em todo o
scharlachroten Kappen kenntlich, behaupten, direkte Tibete, reconhecível pela sua capa vermelho-escarlate, do
Abkömmlinge des Dämons der Fliegenschwämme zu sein. qual dizem ser descendente direto dos enxames das moscas
Jedenfalls sollen die Dugpas der uralten tibetischen Religion diabólicas. De qualquer forma, os dugpas pertenceriam à
der Bhons angehören, von der wir so gut wie nichts wissen, religião milenar dos böns, a respeito da qual nós quase nada
und Nachkommen einer fremdartigen Rasse sein, deren sabemos; e descendem de uma estranha raça, cuja origem
Ursprung sich im Dunkel der Zeit verliert. Jener Dugpa, perdeu-se na escuridão dos tempos. Esses dugpas, contavam-
erzählten mir die Pilger und drehten dabei voll me muito supersticiosamente os peregrinos, enquanto
abergläubischer Scheu ihre kleinen Gebetsmühlen, sei ein conservavam-se acanhados em seu pequeno circulo de reza,
Samtscheh Mitschebat, das ist ein Wesen, das man nicht obedeciam a um mestre, o Samtscheh Mitschebat, um ser que
mehr mit dem Namen Mensch bezeichnen dürfe, das ”binden não pode mais ser designado homem, que conseguia, hábil e
und lösen“ könne, dem, kurz und gut, infolge seiner agilmente, como resultado de suas habilidades, ‘atar e
Fähigkeit, Raum und Zeit als Wahnvorstellungen zu desatar’ o espaço e tempo, vendo através das ilusões dos
durchschauen, nichts unmöglich sei auf Erden zu vollbringen. outros, e para ele nada era impossível de ser realizado em
terra.

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1 Os baht são seguidores da religião bön, seita aborígine do Tibete que

coexiste com o budismo e se opõe a esta tradição religiosa em seus


preceitos e rituais. Também são chamados de dugpas ou “capas-
vermelha”.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 160

Es gäbe, sagte man mir, zwei Wege, um jene Stufen zu Haveria, disseram-me, dois caminhos para ascender os
erklimmen, die über das Menschentum hinausführen: den degraus e transcender a humanidade: o das ‘luzes’, o da
einen, den des ”Lichtes“ – der Einswerdung mit Buddha – unificação com Buda; ou o segundo, seu oposto: o caminho
und einen zweiten, entgegengesetzen: den ”Pfad der linken da ‘mão esquerda’, do qual apenas o nascido dugpa saberia o
Hand“, zu dem nur ein geborener Dugpa die Eingangspforte portão de entrada, um caminho fantasmagórico e cinza,
wüßte – ein geistiger Weg voll Grauen und Entsetzlichkeit. repleto de crueldade. Estes já ‘nascidos’ dugpas - mesmo que
Solche ”geborene“ Dugpas kämen – wenn auch sehr em escasso número – proviriam de pontos definidos no céu
vereinzelt – unter allen Himmelsstrichen vor und wären e, quase sempre, surgiriam estranhamente nas famílias
merkwürdigerweise fast immer die Kinder besonders especialmente simples.
frommer Leute. ”Es ist“, sagte der Pilger, der es mir — É como — disse o peregrino que me contava — se a mão
erzählte,”wie wenn die Hand des Herrn der Finsternis ein do senhor das trevas pingasse um veneno na Árvore Sagrada.
giftiges Reis aufgepfropft auf den Baum der Heiligkeit“, und E só havia um meio de reconhecer se o espírito de uma
man wisse nur ein Mittel, an einem Kinde zu erkennen, ob es criança estava ligado aos dugpas ou não, que era: se o vértice
geistig zum Bunde der Dugpas gehört oder nicht, das ist – do redemoinho dos seus cabelos ia da esquerda para a
wenn der Haarwirbel auf dem Scheitel von links nach rechts, direita, e não ao contrário.
statt umgekehrt, läuft. Imediatamente, eu revelei – por pura curiosidade - o desejo
Ich sprach sofort – rein aus Neugierde – den Wunsch aus, den de estar face a face com o mencionado e grande dugpa, mas o
erwähnten hohen Dugpa zu Gesicht zu bekommen, aber mein líder de minha caravana, ele próprio um tibetano do oeste,
Karawanenführer, selber ein Osttibeter, widersetzte sich mit opôs-se com tenacidade. Tudo aquilo seria uma grande
Hartnäckigkeit. Das alles sei dummes Zeug, Dugpas gäbe es besteira, não existiam dugpas no território do Butão coisa
im Bhutangebiet überhaupt nicht, schrie er in einem fort, nenhuma, exclamou ele sem interrupção, que um dugpa não
auch würde ein Dugpa – schon gar ein Samtscheh Mitschebat iria revelar a um branco as suas artes e muito menos o
– nie und nimmer einem Weißen seine Künste zeigen. Samtscheh Mitschebat.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 161

Der allzu eifrige Widerstand des Mannes wurde mir immer A excessiva ansiedade e oposição do homem me pareciam
verdächtiger, und nach stundenlangem Kreuz- und cada vez mais suspeitas e, após horas de perguntas cruzadas
Querfragen brachte ich denn auch aus ihm heraus, daß er e indiretas, consegui lhe arrancar que ele mesmo pertencia à
selbst Anhänger der Bhonreligion sei und ganz genau wisse – religião dos bön e que, seguramente, saberia – devido à
aus der rötlichen Färbung der Erddünste, wollte er mir coloração avermelhada da terra fina – que um ‘informante’
vorlügen – daß ein ”eingeweihter“ Dugpa in der Nähe weile. dos dugpas estaria por perto.
”Aber er wird dir niemals seine Künste zeigen“, schloß er — Mas ele nunca lhe revelará suas artes — concluindo
jedesmal seine Rede. sempre desta maneira.
”Warum denn nicht?“ fragte ich schließlich. — Mas por que não? — perguntei finalmente.
”Weil er die – Verantwortung nicht übernimmt.“ — Porque ele não assume... A responsabilidade.
”Was für eine Verantwortung?“ forschte ich weiter. — Que responsabilidade? — investiguei a seguir.
”Er würde infolge der Störung, die er damit im Reiche der — Pela desordem por ele causada, ele seria enredado em um
Ursachen anrichtet, von neuem in den Strudel der perene turbilhão e não estaria mais sujeito à encarnação, ou
Wiederverkörperung verstrickt werden, wenn nicht etwas coisa pior.
noch viel Schlimmeres.“ Interessava-me saber mais sobre a misteriosa religião dos
Es interessierte mich, Näheres über die geheimnisvolle bön e, por isto, perguntei:
Bhonreligion zu erfahren, und ich fragte daher: ”Hat ein — Segundo sua crença, o homem possui alma?
Mensch nach deinem Glauben eine Seele?“ — Sim e não.
”Ja und Nein.“ — Como assim?
”Wieso?“ Como resposta, o tibetano segurou um punhado de grama e
Als Antwort nahm der Tibeter einen Grashalm und machte laçou um nó:
einen Knoten hinein: ”Hat das Gras jetzt einen Knoten?“ — A grama agora forma um nó?
”Ja.“ — Sim.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 162

Er löste den Knoten wieder auf. ”Und jetzt?“ Ele desfez o nó:
”Jetzt hat es keinen mehr.“ — E agora?
”Genauso hat der Mensch eine Seele und hat keine“, sagte er —Agora não tem mais nada.
einfach. — Do mesmo modo, a pessoa tem uma alma e também não
Ich versuchte es auf eine andere Weise, mir ein Bild über tem — disse ele simplesmente.
Eu tentei, de outra maneira, compor um retrato de sua
seine Ansicht zu machen: ”Gut, nimm an, du wärest auf dem
representação.
schrecklichen, kaum handbreiten Gebirgspaß, den wir
— Então, se assumíssemos que você, lá do terrível e alto
neulich überschritten, in die Tiefe gestürzt – hätte deine
penhasco que acabamos de atravessar, tivesse despencado
Seele weitergelebt oder nicht?“
nas profundezas... Sua alma teria continuado a viver ou não?
”Ich wäre nicht abgestürzt!“ — Eu não teria despencado!
Ich wollte ihm anders beikommen, deutete auf meinen Queria atingi-lo de outro modo, então, apontei-lhe meu
Revolver: ”Wenn ich dich jetzt totschieße, lebst du dann revolver:
weiter oder nicht?“ — Se eu lhe desse agora um tiro mortal. Você continuaria a
”Du kannst mich nicht erschießen.“ viver ou não?
”Doch!“ —Você não pode atirar em mim.
”Also versuch's.“ — Posso, sim!
Ich werde mich hüten, dachte ich bei mir, das wäre eine — Então tente!
schöne Geschichte, ohne Karawanenführer in diesem Nem pensar! Pensei comigo mesmo. Seria uma bela história,
grenzenlosen Hochland umherzuirren. Er schien meine poder cavalgar por aí, sem um guia de caravana, nestes
Gedanken erraten zu haben und lächelte höhnisch. Es war planaltos sem fronteiras. Ele parecia adivinhar meus
zum Verzweifeln. Ich schwieg eine Weile. pensamentos e sorriu com desdém. Era desesperador. Eu me
calei por um momento:
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 163

”Du kannst eben nicht ’wollen‘“, fing er plötzlich wieder an. — Simplesmente você não pode querer — recomeçou —, por
”Hinter deinem Willen stehen Wünsche, solche, die du trás de seu querer estão desejos que você conhece, e outros
kennst, und solche, die du nicht kennst, und beide sind que você desconhece, e ambos são mais fortes que você.
stärker als du.“ — O que é a alma, então, segundo a sua crença? — perguntei
”Was ist also die Seele nach deinem Glauben?“ fragte ich irritado — Eu, por exemplo, eu tenho uma alma?
ärgerlich; ”habe zum Beispiel ich eine Seele?“ — Sim.
”Ja.“ — E quando eu morrer, minha alma continuará vivendo?
”Und wenn ich sterbe, lebt meine Seele dann weiter?“ — Não.
”Nein.“ — Mas a sua, você quer dizer, a sua viverá, quando você
”Aber deine, meinst du, lebt weiter, wenn du stirbst?“ morrer?
”Ja. Weil ich einen – Namen habe.“ — Sim. Porque eu tenho... Um nome.
”Wieso einen Namen? Ich habe doch auch einen Namen!“ — Como assim um nome? Eu também tenho um nome!
”Ja, aber du kennst deinen wirklichen Namen nicht, besitzest — Tem, mas você não conhece o seu verdadeiro nome,
ihn also nicht. Das, was du für deinen Namen hältst, ist nur porque este você não possui. O que você considera um nome
ein leeres Wort, das deine Eltern erfunden haben. Wenn du é apenas uma palavra vazia, inventada pelos seus pais.
schläfst, vergißt du ihn, ich vergesse meinen Namen nicht, Quando você está dormindo, você o esquece. Eu não esqueço
wenn ich schlafe.“ meu nome, enquanto durmo.
”Aber, wenn du tot bist, weißt du ihn doch auch nicht mehr!“ — Mas quando você estiver morto, não o saberá mais! –
wandte ich ein. retruquei.
”Nein. Aber der Meister kennt ihn und vergißt ihn nicht, und — Não. Mas meu mestre o conhece e não se esquece dele,
wenn er ihn ruft, so stehe ich wieder auf; aber nur ich und e quando ele o chamar, então voltarei a me levantar; apenas
kein anderer, denn nur ich habe meinen Namen. Kein eu e ninguém mais, porque apenas eu possuo o meu nome.
anderer hat ihn. Das, was du deinen Namen nennst, das Nenhum outro o possui. Isto que você chama de seu nome,
haben viele andere mit dir gemeinsam – so wie die Hunde“, muitos outros têm em comum com você... Como cachorros —
murmelte er verächtlich vor sich hin. Ich verstand die Worte murmurou para si mesmo, com desprezo. Contudo,
zwar, ließ es mir aber nicht anmerken. compreendi suas palavras, e não deixei que ele percebesse.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 164

”Was verstehst du unter dem ’Meister‘?“ warf ich scheinbar — O que você entende, quando diz mestre? – lancei sem que
unbefangen hin. soasse suspeito.
”Den Samtscheh Mitschebat.“ — O Samtscheh Mitschebat.
”Den, der hier in der Nähe ist?“ — Aquele que está aqui por perto?
”Ja, aber nur sein Spiegelbild ist in der Nähe; der, der er in — Sim, mas só o seu reflexo está por perto. Aquele que é real
Wirklichkeit ist, ist überall. Er kann auch nirgends sein, wenn está por toda a parte. Pode também não ser, se ele quiser.
er will.“ — Então, ele consegue ficar invisível? — Contra minha
”Er kann sich demnach unsichtbar machen?“ Wider Willen vontade, precisei sorrir. — Você quer dizer que ele pode
mußte ich lächeln. ”Du meinst: einmal ists er innerhalb des existir, simultaneamente, dentro do espaço-tempo do mundo
Weltenraumes und dann außerhalb; einmal ist er da – und e também fora dele; isto é: ora ele pode estar aqui, ora não
dann ist er wieder nicht da?“ mais?
”Ein Name ist doch auch nur da, wenn man ihn ausspricht, — Um nome só está aqui, quando é pronunciado e não está
und nicht mehr da, wenn man ihn nicht ausspricht“, hielt mir mais, quando não pronunciado — censurou o tibetano.
der Tibeter vor.
— E você poderia, por exemplo, tornar-se um mestre?
”Und kannst zum Beispiel du auch ein ’Meister‘ werden?“
— Sim.
”Ja.“
— Então, iriam existir dois mestres, não é?
”Dann wird es also zwei Meister geben, was?“
Internamente sentia que eu triunfava, e era clara a minha
Ich triumphierte innerlich, denn offen gestanden verdroß
irritação pela arrogância espiritual daquele homem; agora eu
mich der geistige Hochmut des Kerls; jetzt hatte ich ihn in
o tinha derrubado, pensei. (Minha próxima pergunta seria:
der Falle, glaubte ich (meine nächste Frage hätte gelautet:
Qual dos mestres teria razão, se um deles desejasse fazer o sol
wenn der eine Meister die Sonne scheinen lassen will und
der andere regnen, welcher behält recht?); um so mehr brilhar, e o outro desejasse fazer chover?); de modo que
verblüffte mich die sonderbare Antwort, die er mir gab: perturbou-me ainda mais a estranha resposta que ele me deu:
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 165

”Wenn ich ein Meister sein werde, dann bin ich doch der — Se fosse mestre, eu seria o Samtscheh Mitschebat. Ou você
Samtscheh Mitschebat. Oder glaubst du, es könnte zwei pensa que poderiam existir duas coisas, inteiramente iguais
Dinge geben, die einander vollkommen gleich sind, ohne daß em essência, sem que fossem a mesma coisa?
sie ein und dasselbe wären?“ — Mas de qualquer modo, vocês são dois, não apenas um; se
”Immerhin seid ihr dann zwei und nicht einer; wenn ich os encontrasse por acaso, vocês seriam duas pessoas, não
euch begegnete, wäret ihr zwei Menschen und nicht einer“, uma — repliquei.
widersprach ich.
O tibetano curvou-se para o chão, onde havia vários cristais
Der Tibeter bückte sich, suchte unter den in Menge
de calcita, escolheu um que fosse especialmente
umherliegenden Kalkspatkristallen einen besonders
transparente, e disse com desdém:
durchsichtigen aus und sagte spöttisch: ”Halte das ans Auge
und schau den Baum dort an; du siehst ihn nunmehr doppelt, — Segure isto próximo aos seus olhos e mire aquela árvore
nicht wahr? Aber sind es deshalb – zwei Bäume?“ ali; doravante, você a vê em dobro, não é mesmo? Mas
Ich wußte ihm nicht gleich etwas zu entgegnen, auch wäre seriam, então, por esta razão, duas árvores?
es mir schwer gefallen in mongolischer Sprache, deren wir Eu não sabia como contradizê-lo, era também difícil discutir
uns zur gegenseitigen Verständigung bedienen mußten, ein um tema tão complicado em mongol, língua da qual ambos
so verwickeltes Thema logisch zu erörtern: ich ließ ihm nos servíamos para atingir uma compreensão mútua: deixei-
daher seinen Triumph. Innerlich konnte ich aber nicht genug o, pois, triunfar. No entanto, internamente ainda não me
staunen über die geistige Gelenkigkeit dieses Halbwilden mit deixara convencer pela parca espiritualidade daquele
seinen schiefen Kalmückenaugen und dem selvagem, com seus profundos olhos calmucos² e capa suja.
schmutzstarrenden Schafspelz. Es ist etwas Seltsames um Havia algo muito estranho nesse povo proveniente dos
diese Hochlandasiaten, äußerlich sehen sie aus wie Tiere, planaltos asiáticos: por fora, assemelham-se a animais, mas,
aber rührt man an ihre Seele, kommt der Philosoph zum no momento em que sua alma é tocada, o filósofo vem à tona.
Vorschein. Busquei retomar o ponto de partida de nossa conversa:
Ich griff wieder auf den Ausgangspunkt unseres — Você acredita, então, que o dugpa não me mostraria suas
Gespräches zurück: ”Du glaubst also, der Dugpa würde mir artes, porque ele... se recusa a assumir a responsabilidade?
seine Künste nicht zeigen, weil er die – Verantwortung _________________________________________________________________________________
ablehnt?“ 2 Calmucos são um povo nômade, de origem mongol e adeptos à

religião budista, que estabeleceram-se nas antigas terras Nogais,


conhecida hoje como a região da Calmúquia.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 166

”Nein, gewiß nicht.“ — Não, é claro que não mostraria.


”Wenn ich aber die Verantwortung übernähme?!“ — Mas e se eu assumisse a responsabilidade?
Das erstemal, seit ich den Tibeter kannte, geriet er außer Pela primeira vez, desde que conheci o tibetano, vi-o perder
Fassung. Eine Unruhe, die er kaum bemeistern konnte, lief o comedimento. Uma inquietação que ele não conseguia
über sein Gesicht. Der Ausdruck wilder, mir unerklärlicher dominar revelou-se em sua face. Uma impressão selvagem,
Grausamkeit wechselte mit dem eines tückischen uma inexplicável crueldade confundia-se com uma alegria
Frohlockens. Wir haben in den vielen Monaten unseres traiçoeira. Ao longo dos muitos meses que passamos na
Beisammenseins oft wochenlang Todesgefahren aller Art ins companhia um do outro, muitas vezes enfrentamos, por
semanas a fio, vários perigos mortais de todo o tipo.
Auge geblickt, haben schauerliche Abgründe überschritten
Cruzamos terríveis abismos instáveis sobre meras pontes de
auf schwankenden, nur fußbreiten Bambusbrücken, daß mir
bambu, da largura de nossos pés, e o meu coração até parava
vor Entsetzen das Herz stillstand, haben Wüsten durchquert
de bater, tão grande era meu terror, percorremos desertos e
und sind fast verdurstet, aber niemals verlor er auch nur eine
quase morremos de sede, mas nunca, nem por um minuto,
Minute sein inneres Gleichgewicht. Und jetzt? Was konnte
ele perdeu seu equilíbrio interior. E agora? Qual poderia ser
die Ursache sein, daß er mit einemmal so außer sich geriet?
a razão que o fazia sair de si desta vez? Eu observava como
Ich sah ihm an, wie in seinem Hirn die Gedanken sich jagten.
na sua mente, os pensamentos se debatiam e perturbavam
”Führe mich zu dem Dugpa, ich werde dich reichlich sua mente.
belohnen“, redete ich ihm eifrig zu. — Leve-me ao dugpa e você será recompensado
”Ich will es mir überlegen“, antwortete er endlich. generosamente. — disse para ele, fervoroso.
— Quero pensar a respeito. – Respondeu finalmente.

Es war noch tiefe Nacht, da weckte er mich in meinem Zelt. Já era madrugada, quando ele me acordou em minha
Er sei bereit, sagte er. Er hatte zwei unserer zottigen tenda. Estava pronto, disse. Já selara dois de nossos vilosos
Mongolenpferde, die nicht viel höher sind als große Hunde, cavalos mongóis, que não eram muito maiores do que
gesattelt, und wir ritten hinein in die Finsternis. grandes cães, e nós cavalgamos escuridão adentro.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 167

Die Leute meiner Karawane lagen um die verglimmenden As pessoas de minha caravana permaneceram em torno da já
Reisigfeuer herum in festem Schlaf. extinta fogueira, em sono profundo. Horas se passaram e nós
Stunden vergingen, und wir wechselten kein Wort; der não trocamos palavra sequer; o cheiro peculiar do almíscar,
eigentümliche Moschusgeruch, den die tibetischen Steppen que domina as estepes tibetanas nas noites de julho, e a
in Julinächten auszuströmen pflegen, und das eintönige monotonia do sibilo das genistas³, com o roçar das patas dos
Zischen des Ginsters, wie die Beine unserer Pferde nossos cavalos, me entorpeceram tanto que eu, para me
hindurchfegten, betäubte mich fast, so daß ich, um wach zu manter desperto, fui obrigado a olhar fixamente as estrelas
bleiben, unverwandt emporblicken mußte zu den Sternen, que, vistas destes planaltos selvagens, tinham algo de
die hier in diesem wilden Hochland etwas Loderndes, fulgurante, vívido, como pedaços de papel incendiados. Uma
Flackerndes haben wie brennende Papierfetzen. Ein sensação crescente brotou dentro de mim, a ponto de encher
meu coração de inquietude.
erregender Einfluß geht von ihnen aus, der das Herz mit
Quando a aurora rompeu sobre os topos das montanhas,
Unruhe erfüllt.
percebi que os olhos do tibetano estavam muito abertos e,
Als die Morgendämmerung über die Berggipfel kroch,
sem piscar, miravam constantemente um ponto do céu. –
bemerkte ich, daß die Augen des Tibeters weit offen standen
Compreendi que sua alma não estava presente.
und, ohne zu zwinkern, immerwährend auf einen Punkt am Perguntei algumas vezes se ele conhecia a morada do dugpa,
Himmel starrten. – Ich sah, daß er geistesabwesend war. sem precisar atentar o caminho, mas não obtive qualquer
Ob er denn den Aufenthalt des Dugpas so genau kenne, daß resposta.
er nicht auf den Weg zu achten brauche, frage ich ihn ein — Ele me puxa como um imã puxa o ferro — balbuciou,
paarmal, ohne eine Antwort zu bekommen. finalmente, sua língua parecia pesada, como se ele estivesse
”Er zieht mich, wie der Magnetstein das Eisen anzieht“, lallte dormindo.
er schließlich mit schwerer Zunge wie aus dem Schlaf. No meio do dia não descansamos uma vez sequer, ele
Nicht einmal mittags machten wir Rast, immer wieder trieb continuamente forçava seu cavalo a manter a velocidade. Eu
er stumm sein Pferd zu neuer Eile an. Ich mußte im Sattel precisei comer sentado na sela meus poucos pedaços de
meine paar Stücke gedörrtes Ziegenfleisch verzehren. carne de cabra defumada.
_____________________________________________________________
3 Genista é um gênero botânico de noventa espécies de arbustos da

família das Fabaceae. Esses arbustos toleram os solos pobres e


necessitam poucos cuidados para cultivo.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 168

Gegen Abend hielten wir, um den Fuß eines kahlen Hügels Ao final da tarde paramos ao pé de uma colina nua e arcada,
biegend, in der Nähe eines jener fantastischen Zelte, wie man próximo a umas tendas fantásticas, frequentemente
sie im Bhutan zuweilen zu Gesicht bekommt. Sie sind encontradas no Butão. Elas eram negras e pontiagudas na
schwarz, oben spitz, unten sechseckig mit aufwärts
parte de cima, tinham forma de hexângulo na parte de baixo,
gebauchten Rändern, und stehen auf hohen Stelzen, so daß
bordas ascendentes e salientes, e estavam sobre altas
sie einer riesigen Spinne gleichen, die mit dem Bauch die
palafitas, que faziam com que se assemelhassem a aranhas
Erde berührt.
Ich hatte erwartet, einen schmutzigen Schamanen mit gigantes, cujo ventre encostava na terra.
verfilztem Haar und Bart zu treffen, eines der wahnsinnigen Esperava encontrar um xamã sujo, de cabelos emaranhados e
oder epileptischen Geschöpfe, die unter den Mongolen und barba, uma dessas figuras desvairadas e epilépticas comuns
Tungusen häufig sind, die sich mit dem Absud von entre os mongóis e os tungus, que se ocupam com o absurdo
Fliegenschwämmen betäuben und dann Geister zu sehen de voar, anestesiam os crentes, creem ter visto fantasmas e
glauben oder unverständliche Prophezeiungen ausstoßen; proferem profecias ininteligíveis: ao invés disso, estava
statt dessen stand da – unbeweglich – ein Mann vor mir, gut diante de mim – imóvel – um homem - uns bons seis pés de
sechs Fuß hoch, auffallend schmal im Wuchs, bartlos, das altura -, impressionantemente alto e magro, sem barba, a
Gesicht olivgrünlich schimmernd, von einer Farbe, wie ich sie
face verde-oliva brilhante, de uma cor que eu nunca tinha
noch nie bei einem Lebenden gesehen, die Augen schräg und
visto antes em toda a minha vida, os olhos caídos e separados
unnatürlich weit auseinander. Der Typus einer mir
de uma forma pouco natural. Na minha concepção, um tipo
vollkommen fremden Menschenrasse.
Seine Lippen, gleich der Gesichtshaut faltenlos wie aus totalmente estranho à raça humana.
Porzellan, waren scharfrot, messerdünn und so stark Seus lábios, assim como a pele lisa de seu rosto, eram como
geschwungen – besonders an den weit empor gezogenenen porcelana, fortemente avermelhados, finos como faca e
Mundwinkeln – wie unter einem erbarmungslosen muito oscilantes – especialmente nos cantos, desenhados
erstarrten Lächeln, daß sie aussahen, als seien sie aufgemalt. para cima, compunham um sorriso impiedoso e atônito.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 169

Ich konnte den Blick nicht von dem Dugpa wenden – lange Eu não conseguia desviar os olhos do dugpa –por muito
nicht – und wenn ich jetzt daran zurückdenke, möchte ich tempo – e, se agora torno a pensar nisso, gostaria de dizer de
fast sagen: ich kam mir vor wie ein Kind, dem der Atem uma vez: sinto-me como se fosse uma criança que prende a
stehenbleibt vor Entsetzen beim Anblick einer plötzlich aus respiração de pavor ao ver uma máscara surgir
dem Dunkel auftauchenden grauenhaften Maske.
repentinamente da escuridão.
Auf dem Kopf trug der Dugpa eine glattanliegende
Na cabeça, o dugpa vestia uma capa vermelho-escarlate, lisa
scharlachrote Kappe ohne Rand; im übrigen bis zu den
Knöcheln einen kostbaren Pelz aus orangegelb gefärbten e sem bordas, no corpo até os tornozelos, uma custosa peliça
Zobel. de zibelina laranja-amarelada. Ele e meu guia não trocaram
Er und mein Führer sprachen kein Wort mitsammen, ich uma palavra sequer, eu presumo, no entanto, que se
nehme jedoch an, daß sie sich durch heimliche Gesten entendiam através de gestos secretos, pois, sem perguntar o
verständigt haben, denn ohne zu fragen, was ich von ihm que eu queria dele, o dugpa, de repente e sem intermédios,
wolle, sagte der Dugpa plötzlich und unvermittelt, er sei declarou-se de acordo em mostrar-me o que eu desejasse,
willens mir zu zeigen, was immer ich wünsche, doch müsse mas eu deveria assumir e afirmar toda a responsabilidade,
ich ausdrücklich alle Verantwortung, auch wenn ich sie nicht mesmo desconhecendo-a.
kannte, übernehmen. Declarei-me - naturalmente – preparado de imediato. Para
Ich erklärte mich – natürlich – sofort bereit.
demonstrá-lo, eu deveria tocar a terra com minha mão
Ich sollte zum Zeichen dafür mit der linken Hand die Erde
esquerda, exigiu ele.
berühren, verlangte er.
Eu o fiz.
Ich tat es.
Schweigend ging er sodann eine Strecke voraus, und wir Calado, ele andou um pouco à frente e nós o seguimos até
folgten ihm, bis er uns niedersitzen hieß. que ele nos pedisse para nos abaixarmos.
Es war eine tischähnliche Bodenerhebung, an deren Rand Nós nos posicionamos nas bordas de um levantamento do
wir uns lagerten. chão, similar a uma mesa.
Ob ich ein weißes Tuch bei mir trüge? Se eu levava comigo um lenço branco?
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 170

Ich suchte vergeblich in meinen Taschen, fand aber nur im Eu procurei inutilmente nos meus bolsos, mas encontrei no
Rockfutter eine alte, verblaßte, zusammenlegbare Karte von forro apenas um mapa velho e dobrável da Europa,
Europa (ich hatte sie offenbar die ganze Zeit meiner (carregava-o devidamente comigo por toda a viagem na
Asienreise bei mir getragen), Ásia).
breitete sie zwischen uns aus und erklärte dem Dugpa, die Desdobrei-o entre nós e expliquei ao dugpa que o desenho
Zeichnung sei ein Bild meiner Heimat. mostrava o retrato de minha terra natal.
Er wechselte einen raschen Blick mit meinem Führer, und Troquei um rápido olhar com meu guia e, novamente, vi na
wieder sah ich auf dem Gesicht des Tibeters jenen Ausdruck face do tibetano uma expressão de odiosa maldade, que já
haßerfüllter Bosheit aufleuchten, der mir schon am Abend havia notado na noite anterior.
vorher aufgefallen war. Se eu gostaria de ver a magia do grilo?
Ob ich den Grillenzauber zu sehen wünschte?
Concordei com a cabeça e, neste instante, tornou-se claro o
Ich nickte und war mir im Augenblick klar, was kommen
que estava por vir: um truque conhecido – a provocação de
würde: ein bekannter Trick – das Hervorlocken von Insekten
insetos da terra através de apitos ou algo similar.
aus der Erde durch Pfeifen oder dergleichen.
Correto, eu não estava enganado; o dugpa deixou ouvir um
Richtig, ich hatte mich nicht getäuscht; der Dugpa ließ ein
gorjeio baixinho e metálico (produzido por um sino pequeno
leises, metallenes Zirpen hören (mit einem kleinen, silbernen
e prata comum, que eles carregam consigo) e imediatamente
Glöckchen, das sie versteckt bei sich tragen, machen sie das),
und sofort kamen aus ihren Schlupfwinkeln im Boden eine surgiram de seus esconderijos no chão vários grilos,
Menge Grillen und krochen auf die helle Landkarte. arrastando-se sobre o mapa.
Immer mehr und mehr. Sempre mais e mais.
Unzählige. Incontáveis.
Ich hatte mich schon geärgert, wegen eines läppischen Já estava irritado, em decorrência desta obra de arte boba,
Kunststückes, das ich bereits in China oft genug gesehen que já havia presenciado vezes suficientes na China, e que me
hatte, einen so mühvollen Ritt unternommen zu haben, aber custara uma cavalgada tão laboriosa, mas o que se revelaria
was sich mir jetzt darbot, entschädigte mich reichlich: die agora, compensou-a ricamente: os grilos não eram apenas
Grillen waren nicht nur eine wissenschaftlich ganz neue uma espécie cientificamente nova -, o que já os tornava
Spezies – daher an und für sich schon interessant genug –, sie interessantes o suficiente -, como comportavam-se de modo
benahmen sich auch höchst absonderlich. muito estranho.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 171

Kaum hatten sie nämlich die Landkarte betreten, liefen sie Mal tinham pisado no mapa, corriam anarquicamente e em
zuerst planlos im Kreise herum, dann bildeten sie Gruppen, círculos, depois formavam grupos, que compunham, entre si,
die einander mißtrauisch musterten. um mosaico suspeito.
Plötzlich fiel auf die Mitte der Karte ein regenbogenfarbener De repente, no centro do mapa surgiu um foco de luz da cor
Lichtfleck (er stammte von einem Glasprisma, das der Dugpa do arco-íris (oriundo de um prisma de vidro, que o dugpa
gegen die Sonne hielt, wie ich mich rasch überzeugte), und segurava contra o sol, surpreendendo-me violentamente) e,
ein paar Sekunden später war aus den bisher friedlichen poucos segundos depois, os, até então pacíficos grilos,
Grillen ein Klumpen sich auf die schauderhafteste Weise amontoavam-se de modo terrível no mapa, tornando-se
gegenseitig zerfleischender Insektenleiber geworden. Der corpos de insetos reciprocamente mutilados. A visão era
Anblick war zu ekelhaft, als daß ich ihn schildern möchte. mais nojenta do que eu jamais gostaria de descrever. O
Das Schwirren der tausend und abertausend Flügel gab einen zumbido das milhões e milhares de asas resultava num tom
hohen, singenden Ton, der mir durch Mark und Bein ging, ein alto, cantado, que me percorria pela medula até as pernas,
Schrillen, gemischt aus so höllischem Haß und grauenvoller um guincho, composto da mistura do ódio diabólico e da
Todesqual, daß ich es nie werde vergessen können. morte agonizante, que nunca mais poderei esquecer.
Ein dicker, grünlicher Saft quoll unter dem Haufen hervor. Um suco denso e esverdeado escorria debaixo do monte.
Ich befahl dem Dugpa augenblicklich innezuhalten – er hatte Eu pedi ao dugpa que parasse por um instante, ele já havia
das Prisma bereits eingesteckt und zuckte nur die Achseln. recolhido o prisma e apenas encolheu os ombros.
Vergebens bemühte ich mich, die Grillen mit einem Stock Inutilmente, eu me esforcei em afastar os grilos com um
auseinander zu treiben: ihre wahnwitzige Mordlust kannte pedaço de madeira: sua desvairada vontade de matar já não
keine Grenzen mehr. conhecia limites.
Immer neue Scharen liefen herbei und türmten den Cada vez mais novos enxames corriam e escalavam
zappelnden, scheußlichen Klumpen höher und höher – nervosamente a massa contorcida, hedionda, mais e mais
mannshoch. alta – da altura de um homem.
Auf weite Strecken war der Erdboden lebendig von Em uma grande área em meu entorno, o chão tornou-se vivo,
wimmelnden, tollgewordenen Insekten. Eine weißliche, repleto de insetos enlouquecidos. Uma massa esbranquiçada,
aneinandergequetschte Masse, die sich der Mitte zudrängte, esmagada, que pressionava seu centro, possuída por um
nur von dem einen Gedanken beseelt: morden, morden, único pensamento: matar, matar, matar.
morden.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 172

Einige der Grillen, die halbverstümmelt von dem Haufen Alguns dos grilos que caíam semi-mutilados do monte e não
herabfielen und nicht mehr hinaufkriechen konnten, conseguiam mais rastejar para cima feriam-se a si mesmos
zerfetzten sich selbst mit ihren Zangen. com suas pinças.
Der schwirrende Ton wurde bisweilen so laut und grausig O zumbido se tornou, então, tão alto e tão terrivelmente
schrill, daß ich mir die Ohren zuhielt, weil ich es nicht mehr estridente que eu tapei meus ouvidos, porque pensava não
länger glaubte ertragen zu können. conseguir mais suportá-lo.
Gott sei Dank, endlich wurden der Tiere weniger und Graças a Deus, finalmente os animais foram diminuindo e
weniger, die hervorkriechenden Scharen schienen dünner zu diminuindo, o zumbido tornou-se mais fino e, de repente,
werden und hörten schließlich ganz auf. parou por completo.
”Was macht er denn noch immer?“ fragte ich den Tibeter, als — O que ele ainda está fazendo? — perguntei ao tibetano,
ich sah, daß der Dugpa keine Miene machte, aufzubrechen, quando vi que o dugpa não demonstrava ter intenção de
vielmehr angestrengt seine Gedanken auf irgend etwas zu parar, parecia esforçar-se em concentrar seus pensamentos
konzentrieren schien. Er hatte die Oberlippe hochgezogen, so em algo. Tinha levantado os lábios superiores, de modo que
daß ich seine spitzgefeilten Zähne deutlich sehen konnte. Sie pude ver claramente seus dentes pontiagudos. Eles eram
waren pechschwarz, vermutlich von dem landesüblichen negros como a peste, provavelmente devido ao hábito desse
Betelkauen. povo de mascar betel.
”Er löst und bindet“, hörte ich den Tibeter antworten. — Ele separa e une. — Ouvi o tibetano responder.
Trotzdem ich mir beständig vorsagte, daß es ja nur Insekten Apesar de repetir para mim que se tratava apenas de insetos,
gewesen waren, die hier den Tod gefunden hatten, fühlte ich eu havia encontrado a morte aqui e sentia meu exterior
mich doch aufs äußerste angegriffen und einer Ohnmacht atacado e próximo a uma força interna, e a voz soava como se
nahe, und die Stimme klang, als käme sie aus weiter Ferne viesse de muito longe: “Ele separa e une”.
her:”Er löst und bindet.“
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 173

Ich begriff nicht, was das bedeuten sollte, und begreife es Não compreendi o que isso deveria significar e ainda hoje
auch heute nicht; es geschah auch nichts weiter, was auffällig não compreendo; também não aconteceu mais nada de
gewesen wäre. Warum ich trotzdem noch – vielleicht relevante depois disso. Por que, ainda assim, – talvez por
stundenlang, ich weiß es nicht mehr – sitzen blieb? Der Wille, horas, eu não sei mais – permaneci sentado? A vontade de
aufzustehen, war mir abhanden gekommen, ich kann es nicht levantar me foi tomada, não consigo justificar isso de outro
anders nennen. modo.
Allmählich sank die Sonne, und Landschaft und Wolken Gradualmente, o sol se pôs e a paisagem e as nuvens
nahmen jene schreiend rote und orangegelbe adquiriram uma improvável coloração gritante avermelhada
unwahrscheinliche Färbung an, die jeder kennt, der einmal in e laranja-amarelada, que só conhece aquele que foi ao Tibete.
Tibet war. Man kann den Eindruck des Bildes nur mit den – A impressão desse quadro só pode ser comparada à das
barbarisch bemalten Zeltwänden europäischer paredes rusticamente pintadas das camadas das
Menageriebuden, wie man sie auf Jahrmärkten sieht, Menageriebuden⁴, como aquelas que encontramos nas
vergleichen. – Jahrmärkten. - Eu não conseguia mais me livrar daquelas
Ich konnte die Worte nicht loswerden:”Er löst und bindet“; palavras: “Ele separa e une”; continuamente, elas se
nach und nach bekamen sie etwas Schreckhaftes in meinem tornavam mais assustadoras na minha mente; - na fantasia, a
Hirn; – in der Phantasie verwandelte sich der zuckende massa espásmica de grilos transformava-se em milhões de
Grillenhaufen in Millionen sterbender Soldaten. Der Alp soldados mortos. O ápice de um enigmático e monstruoso
eines rätselhaften, ungeheuerlichen Verantwortungsgefühls, sentimento de responsabilidade tornou-se uma tortura para
das für mich um so folternder war, als ich in mir vergeblich mim, sufocava-me e eu, inutilmente, tentava buscar sua raiz.
nach seiner Wurzel suchte, würgte mich. Então, o dugpa parecia ter desaparecido e, ao invés de sua
Dann wieder schien es mir, als sei der Dugpa plötzlich compleição, - vermelho-escarlate e verde-oliva – estava a
verschwunden, und statt seiner stünde da – scharlachrot und estátua tibetana de um deus da guerra.
olivgrün – die widerwärtige Statue des tibetischen _________________________________________________________________________________
4 O termo Menageriebuden, de origem francesa, designa o estande no
Kriegsgottes.
qual ocorria uma apresentação pública de várias espécies para
apresentação pública. Isso podia ser visto nas feiras anuais ou
quermesses.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 174

Und ich kämpfte gegen den Anblick, bis ich die nackte E eu lutava contra a visão, até que apareceu, frente aos meus
Wirklichkeit wieder vor Augen hatte, aber es war mir nicht olhos, novamente a nua realidade: o pó da terra que voava do
genug Wirklichkeit: die Erddünste, die aus dem Boden chão, os picos glaciais irregulares, as montanhas no
stiegen, die zackigen Gletschergipfel der Bergriesen am horizonte, o dugpa com sua capa vermelha, eu mesmo com
fernen Horizont,der Dugpa mit der roten Kappe, ich selbst in
minhas roupas meio europeias, meio mongóis e, então, a
meinen halb europäischen, halb mongolischen Kleidern,
tenda preta com suas patas de aracnídeo, tudo isto não
dann das schwarze Zelt mit den Spinnenbeinen – alles
poderia ser real! Realidade, fantasia, ficção, o que era real, o
konnte doch gar nicht wirklich sein! Wirklichkeit, Phantasie,
que era aparência? E, em meio a isso, meu pensamento
Vision, was war echt, was Schein? Und mein Denken
divergia dele próprio à medida em que o medo inseparável e
dazwischen immer von neuem auseinanderklaffend, wenn
a terrível responsabilidade cresceu novamente em mim.
die drosselnde Angst vor dem unfaßbaren, fürchterlichen
Mais tarde, muito mais tarde - na viagem para casa – o medo
Verantwortungsgefühl wieder in mir aufstieg.
cresceu na minha lembrança como uma planta venenosa que
Später, viel später – auf der Heimreise – wuchs die
eu, inutilmente, quero arrancar. À noite quando não consigo
Begebenheit in meiner Erinnerung wie eine wuchernde
dormir, soa baixinho e pavorosamente em meu interior a
Giftpflanze, die ich vergebens ausreißen will.
Nachts, wenn ich nicht schlafen kann, dämmert leise in mir frase e o que ela deveria significar: “Ele separa e une.”, e eu
eine grauenhafte Ahnung auf, was der Satz bedeuten mag: procuro sufocá-la, para que ela não consiga tornar-se
”Er löst und bindet“, und ich suche sie zu ersticken, daß sie palavra, como quando queremos sufocar o fogo irrompido no
nicht zu Wort kommen kann, so wie man ein ausbrechendes Reno⁵ – Mas nada adianta para que eu me defenda – no
Feuer im Keim ersticken möchte. – Aber es hilft nichts, daß espirito, vejo como a morta massa de grilos levanta uma
ich mich wehre – im Geiste sehe ich, wie aus dem toten poeira avermelhada, formando uma nuvem que se propaga
Grillenhaufen ein rötlicher Dunst aufsteigt und zu no céu, como monções fantasmagóricas e assustadoras que
Wolkengebilden wird, die sich, den Himmel verfinsternd wie valsam para o oeste.
die Schreckgespenster des Monsuns, nach Westen wälzen. – __________________________________________________________________________________
5 O autor se refere aos episódios na guerra, em que se ateava fogo na

região do Reno.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 175

Und auch jetzt wieder, wo ich dies schreibe, überfällt's mich E agora, novamente, quando eu escrevo isto, cai sobre mim, -
– ich – ich – – – –‹ eu – eu – eu ---.”
Hier scheint der Brief plötzlich abgebrochen worden zu — A carta aqui parece ter sido interrompida bruscamente. —
sein«, schloß Professor Goclenius; »leider muß ich Ihnen Concluiu o professor Goclenius — Infelizmente, devo contar
jetzt mitteilen, was ich auf der chinesischen Gesandtschaft aos senhores o que a embaixada chinesa comunicou-me da
über das unerwartete Ableben unseres lieben Kollegen morte inesperada do nosso querido colega Johannes Stoper
Johannes Skoper im fernen Asien ...« Der Professor kam nicht na longínqua Ásia. ---
weiter; ein lauter Schrei der Herren unterbrach ihn: O professor não seguiu em frente, pois um grito alto, vindo
»Unglaublich, die Grille lebt ja noch, jetzt nach einem Jahr! dos senhores, o fez parar:
Unglaublich! Einfangen! Sie fliegt davon!« rief alles wild — Incrível, o grilo ainda vive, mesmo após um ano! Incrível!
durcheinander. Der Forscher mit der Löwenmähne hatte das Apanhem-no! Ele está escapando! — exclamou de modo
Fläschchen geöffnet und das anscheinend tote Insekt selvagem e confuso. O pesquisador com a juba de leão abrira
herausgeschüttelt. o pequeno frasco e derramara o inseto aparentemente
Einen Augenblick später war die Grille zum Fenster morto.
hinausgeflogen in den Garten, und die Herren rannten in Um instante mais tarde, o grilo saíra pela janela afora e, em
ihrem Eifer, sie einzufangen, an der Tür den greisen seu entusiasmo para apanhá-lo, os senhores quase
Museumsdiener Demetrius, der ahnungslos hereinkam, um atropelaram na porta o zelador do museu, Demetrius que,
die Lampe anzuzünden, beinahe über den Haufen. sem saber de nada, entrava no salão para acender a luz.
Kopfschüttelnd sah ihnen der Alte durch das Gitterfenster zu, Sacudindo a cabeça, o velho os observava pela janela
wie sie draußen mit Schmetterlingsnetzen umherjagten. gradeada, como tentavam caçar para lá e para cá, munidos
Dann blickte er zum dämmernden Abendhimmel empor und com redes de borboletas. Então, mirou o crepúsculo no céu
brummte: »Was in der schrecklichen Kriegszeit doch die noturno e murmurou:
Wolken für merkwürdige Formen annehmen! Da sieht jetzt — Como nestes tempos terríveis de guerra as nuvens
eine wieder mal ganz so aus wie ein Mann mit einem grünen adquirem formas estranhas! Ali tem uma que é igualzinha a
Gesicht und roter Kappe; wenn er die Augen nicht so weit um homem com um rosto verde e capa vermelha; se seus
auseinanderstehen hätte, wäre es fast wie ein Mensch. olhos não fossem tão separados, seria quase um homem.
Wahrhaftig, man könnte noch abergläubisch werden auf Realmente, ainda poderíamos ser tão supersticiosos como
seine alten Tage.« nos velhos tempos.
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Referências Bibliográficas

Edição de Das Grillenspiel utilizada para a tradução


MEYRINK, Gustav. “Das Grillenspiel”. In: Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Band VI. Leipzig: Kurt Wolff Verlag, 1917. pp. 66-87.

Edição de Das Grillenspiel utilizada nesta revista


MEYRINK, Gustav. “Das Grillenspiel”. In: Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch.. Disponível em:
http://gutenberg.spiegel.de/buch/flederm-5684/9.

Dicionários utilizados
GRIMM, Jakob und Wilhelm. Deutsches Wörterbuch. Göttingen: Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, 1998-2014.
Rheinisches Wörterbuch. Göttingen: Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, 2002-2014.

Bibliografia
LALOU, M. Les Relions du Tibet. Paris: Presses Universitaires de France, 1957.
LOPEZ, D. Religions of Tibet in Practice. Princeton: Princeton University Press, 2007.
MEYRINK, G. Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Band VI. Leipzig: Kurt Wolff Verlag, 1917.
TUCCI, G. Die Religionen Tibets und der Mongolei. Stuttgart: Kohlhammer, 1970.
ULRICH, B – ZIEMANN, B. Krieg im Frieden: die umkämpfe Erinnerung an den Ersten Weltkried: Quellen und Dokumente. Frankfurt:
Fischer Taschenbuch, 1997.
Thiago Andreuzzi
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP.
Contato: thiago.literato@gmail.com
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 178

Os mendigos

Introdução

Edward John Moreton Drax Plunkett (24 de Julho de Na citação, é possível observar a importância do
1878, Londres – 25 de Outubro de 1957, Dublin), 18º Barão irlandês para o escritor estadunidense, que o compara a
de Dunsany, foi um escritor irlandês do fim século XIX e Poe na sensibilidade a “valores dramáticos e ao
primeira metade do século XX. significado de palavras e detalhes isolados, e muito
Seus escritos convergem muito com os escritos do melhor equipado retoricamente com um estilo lírico
Fantástico, tendo ajudado a consolidar o estilo no século XX,
simples, baseado na linguagem da Bíblia do Rei James”2.
encontrando seguidores como H. P. Lovecraft, J.R.R., Tolkien,
Lord Dunsany foi veterano da Guerra dos Bôeres e
C. S. Lewis e outros. Destes, Lovecraft dedicou, a Dunsany,
algumas páginas, de seu livro O Horror Sobrenatural em da 1ª Guerra Mundial, deixou uma obra bastante vasta de
Literatura1, repletas de admiração: onde se destacam suas peças para teatro e seus contos e
novelas. Entre seus escritos, podemos citar, entre outros,
Insuperável na feitiçaria da prosa cantante cristalina e The Gods of Pegana (1905), A Dreamer’s Tale (1910), The
supremo na criação de um mundo adorável e langoroso de
Book of Wonder (1912), A Night at na Inn (1916), etc.
cenários exóticos iridescentes [...] cujas histórias e peças
curtas formam um elemento quase único em nossa literatura.

____________________________________________________________________________________________________________________________________
1 LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em Literatura. Trad. de Celso M. Paciornik, São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 115.
2 Ibidem, p. 116.
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The Beggars3 Os Mendigos

I was walking down Piccadilly not long ago, thinking of Eu estava descendo a rua Piccadilly4 não há muito
nursery rhymes and regretting old romance. tempo, pensando em rimas infantis e lamentando o velho
romance.
As I saw the shopkeepers walk by in their black frock-
Quando eu vi os lojistas a caminhar por aí em seus
coats and their black hats, I thought of the old line in nursery sobretudos pretos e seus pretos chapéus, pensei no velho
annals: “The merchants of London, they wear scarlet.” verso das coletâneas infantis: “Os mercadores de Londres,
The streets were all so unromantic, dreary. Nothing eles vestem escarlate”.
could be done for them, I thought — nothing. And then my As ruas estavam tão desromantizadas, melancólicas.
Nada poderia ser feito por elas, eu pensei – nada. E então
thoughts were interrupted by barking dogs. Every dog in the
meus pensamentos foram interrompidos por cães ladrantes.
street seemed to be barking — every kind of dog, not only Todos os cães na rua pareciam estar latindo – todo tipo de
the little ones but the big ones too. They were all facing East cão, não apenas os pequeninos, mas também os grandões.
towards the way I was coming by. Then I turned round to Eles estavam encarando o leste, o caminho por onde eu
vinha. Então, eu me virei para olhar e tive esta visão, na
look and had this vision, in Piccadilly, on the opposite side to
Piccadilly, do lado oposto das casas, assim que você passa o
the houses just after you pass the cab-rank.
ponto de táxi.
Tall bent men were coming down the street arrayed in Homens altos e curvados estavam vindo rua abaixo
marvelous cloaks. All were sallow of skin and swarthy of envoltos em capas maravilhosas. Todos tinham um amarelo
hair, and most of them wore strange beards. They were doentio na pele e cabelos escuros, e a maioria deles
ostentava estranhas barbas. Eles vinham vagarosamente, e
coming slowly, and they walked with staves, and their hands
eles caminhavam com cajados, e suas mãos se estendiam
were out for alms. pedindo esmolas.

______________________________________________________________ _______________________________________________________________
3
Disponível em:
____- 4Uma das principais (e maiores) ruas de Londres, onde se localiza a
http://www.flashfictiononline.com/fpublic0030-beggars-lord-dunsany “Mayfair”, um centro comercial.
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All the beggars had come to town. Todos os mendigos vieram à cidade.
I would have given them a gold doubloon engraven Eu lhes teria dado um dobrão de ouro gravado com as
with the towers of Castile, but I had no such coin. They did torres de Castela, mas eu não tinha tal moeda. Eles não
pareciam pessoas a quem fosse cabível oferecer a mesma
not seem the people to who it were fitting to offer the same
moeda que se usaria para pagar o táxi (Ó palavra
coin as one tendered for the use of a taxicab (O marvelous,
maravilhosa, malfeita, certamente a senha de alguma ordem
ill-made word, surely the pass-word somewhere of some evil maligna em algum lugar). Alguns deles vestiam capas
order). Some of them wore purple cloaks with wide green púrpuras5 com largas bordas verdes, e a borda verde era
borders, and the border of green was a narrow strip with uma faixa estreita em alguns, e alguns vestiam capas de um
some, and some wore cloaks of old and faded red, and some velho e desbotado vermelho, e alguns vestiam capas violetas,
wore violet cloaks, and none wore black. And they begged e nenhum vestia preto. E eles mendigaram graciosamente,
assim como deuses possivelmente mendigam por almas.
gracefully, as gods might beg for souls.
Eu fiquei perto de um poste de luz, e eles surgiram
I stood by a lamp-post, and they came up to it, and one
para ele, e um se lhe dirigiu, chamando o poste de luz de
addressed it, calling the lamp-post brother, and said, “O irmão, e disse, “Ó poste de luz, nosso irmão do escuro, há
lamp-post, our brother of the dark, are there many wrecks by muitos naufrágios ao teu redor nas marés da noite? Não
thee in the tides of night? Sleep not, brother, sleep not. There durmas, irmão, não durmas. Houve muitos naufrágios, e não
were many wrecks an it were not for thee.” foram por ti.”

_____________________________________________________________
5Segundo o dicionário online www.dictionary.com, a cor púrpura se

relaciona com um alto nível de hierarquia: “3. The rank or office of a


cardinal” e “5. Imperial, regal, or princely rank position”. Pode-se
conferir também a segunda entrada: “2. Cloth or clothing of this hue,
especially as formerly worn distinctively by persons of imperial, royal, or
other high rank”.
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It was strange: I had not thought of the majesty of the Isso foi estranho: eu não havia pensado na majestade
street lamp and his long watching over drifting men. But he da lâmpada de rua e sua longa vigília sobre os homens à
was not beneath the notice of these cloaked strangers. deriva. Mas ela não passava despercebida a esses estranhos
de capa.
And then one murmured to the street: “Art thou
E então um deles murmurou para a rua: “Estás
weary, street? Yet a little longer they shall go up and down, cansada, rua? Por algum tempo ainda eles vão subir e descer,
and keep thee clad with tar and wooden bricks. Be patient, e manter-te coberta com piche e tijolos de madeira. Sê
street. In a while the earthquake cometh.” paciente, rua. Logo o terremoto vem.”
“Who are you?” people said. “And where do you come “Quem são vocês?” as pessoas disseram. “E de onde
from?” vocês vieram?”
“Quem pode dizer o que somos,” eles responderam,
“Who may tell what we are,” they answered, “or
“ou de onde nós viemos?”
whence we come?”
E um deles voltou-se para as casas manchadas de
And one turned towards the smoke-stained houses, fumaça, dizendo, “Abençoadas sejam as casas, porque
saying, “Blessed be the houses, because men dream therein.” homens sonham dentro delas.”
Then I perceived, what I had never thought, that all Então eu percebi o que eu nunca havia pensado, que
these staring houses were not alike, but different one from todas estas fitantes casas não eram semelhantes, mas
another, because they held different dreams. diferentes umas das outras, porque elas sustinham
diferentes sonhos.
And another turned to a tree that stood by the Green
E um outro se voltou para uma árvore que ficava em
Park railings, saying, “Take comfort, tree, for the fields shall pé próxima ao cercado do Green Park6, dizendo, “Fique
come again.” tranquila, árvore, pois os campos voltarão uma vez mais.”

____________________________________________________________
6 Parque que acompanha boa parte da rua Piccadilly.
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And all the while the ugly smoke went upwards, the E ao mesmo tempo a feia fumaça ia para cima, a fumaça
smoke that has stifled Romance and blackened the birds. que havia sufocado o Romance e empretecido os pássaros.
This, I thought, they can neither praise nor bless. And when Isto, eu pensei, eles não podem louvar nem abençoar. E,
quando eles a viram, levantaram suas mãos em direção a ela,
they saw it they raised their hands towards it, towards the
para as milhares de chaminés, dizendo, “Observa a fumaça. As
thousand chimneys, saying, “Behold the smoke. The old coal-
antigas florestas de carvão, que dormiram tanto tempo nas
forests that have lain so long in the dark, and so long still, are trevas, e ainda assim permanecem, agora estão dançando e
dancing now and going back to the sun. Forget not Earth, O voltando para o sol. Não te esqueças da Terra, ó nossa irmã, e
our brother, and we wish thee joy of the sun.” nós te desejamos a felicidade do sol.”
It had rained, and a cheerless stream dropped down a Havia chovido, e uma correnteza desmotivada caía de
dirty gutter. It had come from heaps of refuse, foul and uma sarjeta suja. Ela viera de montes de lixo, asquerosos e
esquecidos; havia juntado por seu caminho coisas que
forgotten; it had gathered upon its way things that were
estavam abandonadas e que foram para sombrios esgotos
derelict, and went to somber drains unknown to man or the
desconhecidos do homem e do sol. Foi esta taciturna corrente,
sun. It was this sullen stream as much as all other causes that tanto quanto todas as outras causas, que me fizeram dizer, em
had made me say in my heart that the town was vile, that meu coração, que a cidade era vil, que a Beleza estava morta
Beauty was dead in it, and Romance fled. nela, e o Romance fugiu.
Even this thing they blessed. And one that wore a Até esta coisa eles abençoaram. E um deles, que usava
purple cloak with broad green border, said, “Brother, be uma capa púrpura com larga borda verde, disse, “Irmã,
hopeful yet, for thou shalt surely come at last to the mantém a esperança, pois tu com certeza chegarás, por fim,
ao deleitável Mar, e encontrarás os pesados, enormes, e
delectable Sea, and meet the heaving, huge, and travelled
viajados navios, e regozijar-te-ás por ilhas que conhecem o
ships, and rejoice by isles that know the golden sun.” Even
dourado sol.” Assim, eles abençoaram a sarjeta, e eu não senti
thus they blessed the gutter, and I felt no whim to mock. ânimo para caçoar.
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And the people that went by, in their black unseemly E os transeuntes que iam, em suas capas
coats and their misshapen, monstrous, shiny hats, the inconvenientes e seus disformes, monstruosos, brilhantes
beggars also blessed. And one of them said to one of these chapéus, também os abençoavam os mendigos. E um deles
disse a um desses cidadãos escuros: “Ó próprio gêmeo da
dark citizens: “O twin of Night himself, with thy specks of
Noite, contigo estão manchas brancas no pulso e pescoço
white at wrist and neck like to Night’s scattered stars. How
como as dispersas estrelas da Noite. Como temerosamente tu
fearfully thou dost veil with black thy hid, unguessed desires.
escondes com o preto teus ocultos, indecifráveis desejos. Eles
They are deep thoughts in thee that they will not frolic with
são pensamentos profundos em ti que não se alegram com a
colour, that they say ‘No’ to purple, and to lovely green
cor, que eles dizem ‘Não’ para o roxo, e, ao amável verde, ‘vá
‘Begone.’ Thou hast wild fancies that they must needs be embora’. Tu tens selvagens fantasias que precisam ser
tamed with black, and terrible imaginings that they must be domadas com o preto, e terríveis imaginações que devem
hidden thus. Has thy soul dreams of the angels, and of the assim ser escondidas. Tem a tua alma sonhos dos anjos, e das
walls of faëry that thou hast guarded it so utterly, lest it muralhas do mundo das fadas que tu guardaste tão
dazzle astonished eyes? Even so God hid the diamond deep inteiramente, por temor ao ofuscamento de olhos atônitos?
down in miles of clay. Assim Deus escondeu o diamante fundo em milhas de barro.

“The wonder of thee is not marred by mirth. “A maravilha de ti não é danificada pelo júbilo.

“Behold thou art very secret. “Olhe, tu és muito secreto.

“Be wonderful. Be full of mystery.” “Sê maravilhoso. Sê cheio de mistério.”

Silently the man in the black frock-coat passed on. And Silenciosamente, o homem de sobretudo preto passou.
I came to understand when the purple beggar had spoken, E eu vim a entender, quando o mendigo púrpuro havia
that the dark citizen had trafficked perhaps with Ind, that in falado, que o cidadão escuro tinha provavelmente traficado
his heart were strange and dumb ambitions; that his com a Índia, que em seu coração havia ambições estranhas e
dumbness was founded by solemn rite on the roots of mudas; que sua mudez foi fundada pelo rito solene nas raízes
ancient tradition; that it might be overcome one day by a da tradição antiga; que isto talvez seja superado, um dia, por
cheer in the street or by some one singing a song, and that when this um estímulo na rua ou por alguém cantando uma canção, e
shopman spoke there might come clefts in the world and people peering que quando este vendedor tiver falado, fendas no mundo
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ancient tradition; that it might be overcome one day by a da tradição antiga; que isto talvez seja superado, um dia, por
cheer in the street or by some one singing a song, and that um estímulo na rua ou por alguém cantando uma canção, e
when this shopman spoke there might come clefts in the que quando este vendedor tiver falado, fendas no mundo
world and people peering over at the abyss. poderiam vir e as pessoas espiariam, de cima, o abismo.
Then turning towards Green Park, where as yet Spring Então, se voltando para o Green Park, onde ainda não
was not, the beggars stretched out their hands, and looking
era primavera, os mendigos estenderam as mãos e, olhando
at the frozen grass and the yet unbudding trees they,
para a grama congelada e para as árvores ainda sem brotos,
chanting all together, prophesied daffodils.
eles, cantando todos juntos, profetizaram os narcisos.
A motor omnibus came down the street, nearly
running over some of the dogs that were barking ferociously Um ônibus motorizado veio rua abaixo, quase
still. It was sounding its horn noisily. atropelando alguns dos cães que ainda latiam ferozmente.
And the vision went then. Ele foi soando a sua buzina ruidosamente.
E então a visão se foi.
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Referências bibliográficas

Edição de The Begggars utilizada para a tradução


DUNSANY, Lord. The beggars. In: A Dreamer’s Tales. Disponível em:
http://www.gutenberg.org/cache/epub/8129/pg8129.html

Edição de The Beggars utilizada nesta revista


DUNSANY, Lord. The beggars. In: A Dreamer’s Tales. Disponível em:
http://www.gutenberg.org/cache/epub/8129/pg8129.html

Bibliografia
LOVECRAFT, H. P. O Horror Sobrenatural em Literatura. Trad. de Celso M. Paciornik São Paulo: Iluminuras, 2007.
DUNSANY, Lord. Los Mendigos. Disponível em: http://elespejogotico.blogspot.com.br/2009/08/los-mendigos-lord-dunsany.html
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Grã Bretanha: Penguin Popular Classics: Penguin Books, 1994.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Disponível em: http://www.elivros-gratis.net/livros-gratis-william-shakespeare.asp
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 186

Créditos das imagens

Capa; p. 3; p. 21; p. 26; p. 35; p. 38; p. 44; p. 56; p. 59; p. 68; p. 72; p. 85; p. 87; p. 96; p. 109; p. 117; p. 132; p. 136; p. 144; p. 148;
p. 151: Fotos da Arcádia do IEL, por Ana Maria F. Côrtes.
p. 17: Foto da Arcádia do IEL, por Elisa Pagan.
p. 19: (TEMPO NO ESPELHO) Gravura “Portret van Gillis van Breen”(s/d), de Hendrick Goltzius. Disponível em:
https://www.rijksmuseum.nl/en/explore-the-collection/overview/hendrick-goltzius/objects#/RP-T-2000-1,3.
p. 23: (HÁBITO) Pintura "Nu feminino de costas" (1894), de Eliseu Visconti. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_ivan.htm.
p. 37: (TRIANGULO DE ACRÍLICO SOBRE PRAIA)Fotografia “Sand und Brandung” (2006), de Tobias Rütten. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sand_und_Brandung.jpg.
p. 40/43: (TRAVESSIA) Desenho “Leading to the sea shore” (2007), de Jessica Murrieta. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/jessica-m/1264648652/.
p. 50: (O CONCEITO DE KLEOS EM ILÍADA E OS LUSÍADAS) Pintura "O Navio de Vasco da Gama" (c1880), de Ernesto Casanova.
Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vasco_da_Gama%27s_ship.jpg.
p. 53: (O CONCEITO DE KLEOS EM ILÍADA E OS LUSÍADAS) Pintura “A Fúria de Aquiles” (1737), de Charles Antoine Coypel.
Disponível em:
http://pt.wahooart.com/@@/8Y37Q8-Charles-Antoine-Coypel-F%C3%BAria-de-Aquiles-(3).
p. 57: (RUGAS) Foto sem nome (s/d), de Roberto Barresi. Disponível em:
http://pixabay.com/pt/soro-fisiol%C3%B3gico-o-ch%C3%A3o-rachado-seca-99597/.
p. 58: (O CANTADOR) Desenho SEM NOME (2014), de Elisa Pagan.
p. 84: (LAVOURA ARCAICA: O INCESTO COMO SÍMBOLO AMBIVALENTE) Gravura “Hibiscus and blue heron on a tree stump
(1782), de Matsumura Goshun. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hibiscus_and_blue_heron_on_a_tree-stump.jpg.
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p. 86 (A EXISTÊNCIA NÃO VENCE EM TEU PEITO) Gravura: “Solo (Melancholia)” (1881), de Cyprian Kamil Norwid. Disponível em:
http://fbc.pionier.net.pl/owoc/results?queryType=-
6&query=%22rysunek%22&hostsId=n8&roleId=type&action=DistributedSearchAction&QI=07229D60A413C003A0E1A562463F03A
1-7
p. 99: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchus” (1510-1515), de Leonardo da
Vinci. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Julius_Kronberg_Bacchanal.jpg.
p. 103: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchanal” (1710-1720), de Alessandro
Magnasco e Clemente Spera. Disponível em:
http://it.wikipedia.org/wiki/Bacco_(Leonardo)#mediaviewer/File:Jean.jpg.
p. 108: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchanal” (1921), de Julius Kronberg.
Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alessandro_Magnasco_and_Clemente_Spera_-_Bacchanal_-_Google_Art_Project.jpg.
p. 111: (NOITE QUENTE) Foto “Cigarrete 1” (2007), de Sheilla Tostes. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/sheilatostes/1304332796/.
p. 135: (LANIFÍCIOS TEJO LDA.) Foto "Empresa Lanifícios Tejo Lda - 1889", de Pedro Calixto. Disponível em:
http://www.panoramio.com/photo/21525662.
p. 146/147: (CRIAÇÃO/VERMELHO) Pintura “Sunset” (s/d), de Adelsteen Norman. Disponível em:
http://f-picture.net/fp/3652e98d96684f25adab42a972d8eb2d.

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