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“TRABALHO FINAL DE POESIA PORTUGUESA III”

Análise comparativa d’Os Lusíadas, de Luiz de Camões, e


Mensagem, de Fernando Pessoa.

por
ANNELISE PAZ E SILVA
EDYLENE DANIEL SEVERIANO
PABLO BAPTISTA RODRIGUES
THAIS LIMA DE OLIVEIRA SANTOS
(Alunos do curso de Português-Literatura)

Monografia de término de curso apresentada


ao professor Ary Pimentel, na disciplina
Fundamentos da Cultura e Civilização da
América Hispânica (LEN 361).
Faculdade de Letras / UFRJ
Rio de Janeiro, 2o. semestre de 2013.

Resumo: Neste artigo, buscaremos analisar a relação d’Os lusíadas, de Luís de Camões,
com a expansão marítima portuguesa. Nossas observações se deterão nos três primeiros
cantos dessa obra, levando em consideração como ocorre a representação dos povos que
tiveram contato com os lusitanos, no projeto das Grandes Navegações. As interpretações
aqui passam pelos conceitos elaborados pelo filósofo mexicano Leopoldo Zea (2005). E
também do medievalista americano Patrick J. Geary (2005). Pretendemos então, enxergar
o “estrangeiro camoniano” sobre uma perspectiva contemporânea.

Palavras-chave: Os lusíadas, estrangeiro, expansão marítima.


1. A busca do mar: o pioneirismo português

E, se mais mundo houvera, lá chegara.


(CAMÕES, 2011, p. 248 – VII, 14)

O verso retirado do Canto de número VII d’Os lusíadas pode ser tomado como
síntese da ambição portuguesa na conquista do mundo do século XV, pois se outros
mundos existissem, acreditamos que lá também teria uma bandeira portuguesa. Da
América à Ásia, da Europa à África, o povo português se fez presente. O pequeno estreito
de terra localizado na Península Ibérica obedece a sua própria geografia, de estar de frente
para o mar, lançando-se às águas do Oceano Atlântico.

Mais do que a pura coincidência geográfica, pode-se levantar inúmeras causas que
determinaram a expansão marítima portuguesa no século XV. Não se relaciona a esse fato
histórico apenas um único motivo, mas um série de sucessivos momentos da História
ocorridos na Península e no mundo europeu medieval, como um todo. O historiador
português José Hermano Saraiva aponta em seu livro, História Concisa de Portugal, as
possíveis causas que influenciaram a nação portuguesa para se lançar ao mar. Cito
Saraiva:

Diferentes respostas têm sido dadas a essa pergunta: situação geográfica do território,
desproporção entre a evolução demográfica e os recursos internos, experiência navegadora das
populações do litoral, existência de ciência náutica adiantada, desenvolvimento da burguesia e
crescente necessidade de ouro, ideologia de classe (espírito mercantil do burguês, espírito de
cavalaria do nobre, espírito de aventura do povo, espírito de cruzada dos clérigos e dos reis), acções
pessoais, especialmente a do infante D. Henriques, etc.” (SARAIVA, 1978, p. 129-130)

Como ouvimos, não há apenas uma resposta para as Grandes Navegações


ocorridas em Portugal, o que nos permite afirmar com certeza que o empreendimento
português do século XV, em sua origem, é altamente complexo. Seja pela primeira
característica apontada, como a questão geográfica, ou tantas outras, como o surgimento
de uma ciência náutica avançada na Península, o desenvolvimento da burguesia nacional,
o papel do Estado na figura do Infante D. Henriques. Só podemos concluir com total
precisão, que o projeto das navegações foi a “gigantesca epopeia colectiva, sem receio de
exagerar o uso das palavras. A história do mundo não pode escrever-se sem numerosas
referências” (SARAIVA, 1978, p. 129) a Portugal.

O conjunto de possíveis respostas, levantadas por Saraiva (1978), nos chama a


atenção pelo envolvimento de uma burguesia portuguesa recém-formada, em que se tem
uma classe voltada para um comércio marítimo. Questões de base religiosa, onde para os
clérigos e a nobreza, “cristianização e conquista”, eram formas de servir a Deus e ao rei.
E sobre tudo, o próprio conhecimento marítimo oriundo da experiência dos povos do
litoral, e que tem seu auge com a Escola de Sagres. Essas características começam a se
configurar no século XII.

É somente no século XV que as contradições internas de Portugal se solucionam,


fazendo com que a expansão marítima será um consenso entre os portugueses. A
estabilização permitiu ao país lidar com a mudança demográfica, que ocorreu em toda
Europa pós-sistema feudal, tratar do cenário de crise econômica e social, tendo
definitivamente o mar como “possibilidade de uma vida melhor e a libertação de um
sistema de opressões”.

Retomar a história das Grandes Navegações vai de encontro com o proposto por
Camões n’Os lusíadas. A grande obra camoniana, buscando cantar o feito do povo
lusitano, entrará em forte diálogo com a história desse povo. As motivações apresentadas
por Saraiva serão o resultado da conquista de todo o mundo conhecido do século XV: a
conquista de Ceuta, cidade islâmica no norte da África, em 1415; a descoberta das Ilhas
do Atlântico, em 1418-1483; Bartolomeu Dias e a chegada ao extremo sul do continente
Africano, o Cabo da Boa Esperança, 1487-1488; a chegada às Índias por Vasco da Gama,
1498, alvo da epopeia camoniana; e a expedição de 1500 com o descobrimento do Brasil
por Pedro Álvares Cabral.

2. Do que nos fala Os lusíadas?

As armas e os barões assinalados


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados…
(Canto I, 1)

Publicado em 1572, Os lusíadas, de Camões, se tornariam a representação lírica


do grande espírito português no século XV: As Grandes Navegações. Como nos é
apresentado na Proposição, a sugestão dada pelo grande poeta português é cantar “As
armas e os barões assinalados/ Que, da Ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca dantes
navegados”, se lançaram ao mar, na busca de um novo caminho para as Índias. Porém,
mais do que cantar os grandes feitos lusitanos, Camões em sua épica, nos apresenta uma
obra realizada em grande eloquência e beleza, composta de uma “escandalosa” visão
ético-religiosa, bem como a crítica à ideologia vigente, que ultrapassa o seu tempo,
tornando-o contemporâneo.

De modo geral, Camões constrói Os Lusíadas ao molde clássico, baseando-se nos


poemas homéricos e fundamentalmente na epopeia virgiliana. Temos as partes
tradicionais como Proposição, Invocação e Narração, e há também uma Dedicatória. Em
relação a toda tradição literária do Ocidente de seu tempo, a obra camoniana não peca em
absolutamente nada, indo além das fontes de inspiração: “Cesse tudo o que a Musa antiga
canta,/ Que outro valor mais alto se alevanta.” (Canto I, 3). Luís de Camões então, nos
oferece além “de partes fixas […] e Narração” (BERARDINELLE, 2000) que emolduram
a história portuguesa, “toda uma reflexão sobre a vida, sobre a história, sobre o autor e o
poema”. (BERARDINELLE, 2000). O grande poeta português nos apresenta sua crítica
ao mundo da vã cobiça portuguesa, que em nada mais é que o sentido humano mais
universal. Não é um gênero “classicamente” épico, apesar das referências, mas Os
lusíadas é uma “Epopéia de novos tempos, tempos contraditórios, […] que adquirem
modernidade e se afirmam como a grande epopéia do Renascimento europeu”.
(BERARDINELLE, 2000)

3. Camões e o estrangeiro

CALIBÃ — A falar me ensinastes, em


verdade. Minha vantagem nisso, é ter ficado
sabendo como amaldiçoar. Que a peste
vermelha vos carregue, por me terdes
ensinado a falar vossa linguagem.

(SKAKESPEARE, 2000, p. 23)

Tida como uma das últimas peças de William Shakespeare, A tempestade, foi
escrita entre os anos 1611-12, sendo bem próxima da produção d’Os lusíadas, de Luis de
Camões. A peça se passa em uma Ilha, cenário principal para o desenrolar da trama.
Sentimentos como a inveja, amor e lealdade, e sobretudo o poder, são características dos
personagens shakespearianos, entre eles, Próspero, o despojado Duque de Milão, sua filha
Miranda e seu invejo irmão Antônio. O rei de Nápoles, Alonso. Calibã nativo da Ilha e
filho da bruxa dominada pela magia de Prospero. E Ariel espirito controlado, também,
pelo Duque de Milão.

O pequeno trecho da peça de William Shakespeare, que escolhemos aqui, suscitou


o seguinte questionamento: se Camões, assim como o grande dramaturgo inglês, foi
cuidadoso na representação do contato entre povos de culturas diferentes. Em
Shakespeare temos Calibã, o escravo selvagem e disforme que se dirige a Próspero, o
legítimo duque de Milão, proferindo uma maldição. A linguagem do conquistador dada a
Calibã só serve para maldizer, não é melhoramento de condição, não retirando o escravo
de sua condição inferior ao do duque. A questão aqui, é da linguagem do dominador
“dada” ao dominado. Isso nos remete até mesmo, as questões coloniais de dominação,
presente no tempo desses dois autores.

Percebe-se desde o primeiro Canto d’Os lusíadas a relação conflituosa entre os


portugueses e aos nativos das cidades com as quais a frota lusitana se deparava ao
desembarcar. Um dos importantes aspectos desta investigação é se a relação camoniana
do estrangeiro é somente marcada pela linguagem, assim como apresentada entre
Próspero e Calibã, ou Camões nos revela outra posição frente ao par “civilizado” versus
“bárbaro”.

Entre os grandes pesquisadores que buscam a compreensão do histórico par


“civilizado” versus “bárbaro”, utilizo a elaboração do filósofo mexicano Leopoldo Zea,
em sua obra Discurso desde a marginalização e a barbárie (ZEA, 2005). Retomando os
texto tradicionais temos, basicamente três formas de desenvolvimento da dialética
“civilizado” versus “bárbaro”. A primeira retoma a própria origem da palavra ‘bárbaro’,
baseada nos relatos do historiador Heródoto de Halicarnasso.

Herótodo nos descreve de, forma verossímil e fabulosa, o contato de seu mundo
grego, e sua relação “com o mundo além da Hélade”. Ao qualificativo ‘bárbaro’, balbus
do latim, temos o indivíduo que balbucia, gagueja, repete as palavras e silabas, e de forma
mais complexa passa a ser todo homem que não compartilha perfeitamente da língua
grega. (ZEA, 2005, p. 57) O bárbaro, nessa noção, de forma bem simplificada, é aquele
que não fala bem o grego. Percebe-se que a representação de Shakespeare está mais
próxima dessa definição, mas não podemos deixar de observar que há uma evolução desse
logos. Calibã domina a linguagem, tanto que a utiliza para amaldiçoar, não havendo
portanto, choques sonoros. Mas a questão ainda é puramente linguística, pois é por meio
da fala que temos a delimitação do “evoluído” e do “não-evoluído”.

Inicialmente temos essa primeira noção tradicional da oposição “bárbaro” versus


“civilizado”, como a questão pertencente a linguagem, e uma certa evolução desse logos
visto claramente em A tempestade. Com o surgimento do Império Romano teremos a
relação modificada para além da língua grega; a questão é regida agora pelas leis do
Estado romano, algo que não se concentra exclusivamente na fala. Todos podem almejar
a cidadania romana, e questões étnicas não são definidoras como na sociedade grega.
Porém essa oposição só perduraria até a queda de Roma e o surgimento do Cristianismo,
como nova forma de unificação dessa sociedade. Novamente a relação de enxergar o
outro é modificada passando agora para cristão e não-cristãos. Cito Zea (2005):

Constantino, para salvar o Império, para dar unidade nova a um Império dividido entre Ocidente
e Oriente, tem de fazer dessa doutrina um instrumento. Cristianizando o Império, cria um logos
novo que possa manter a ordem do logos como lei e direito já não pode manter. Dentro do logos
novo, ou verbo cristão, podem ter morada os homens de todas as raças e culturas. […] Mas fora
desta ordem estarão, uma vez mais, os pagãos, os não-cristãos, os bárbaros novos: forma nova de
marginalização e de barbárie.” (ZEA, 2005, p. 75)

Apesar de uma nova organização dessa sociedade romana em decadência, agora


regida pela lei do Cristianismo, a oposição “bárbaro” e “civilizado” permanece, sendo
colocada como “cristãos” versus “pagãos”. Inicia, talvez aqui mais fortemente com a
institucionalização da fé cristã por Constantino, a reação de séculos posteriores, da
Europa já totalmente cristianizada, frente a povos que não compartilhem de sua fé.

Parece-nos que a representação do estrangeiro que Camões nos oferece n’Os


lusíadas é de um povo profundamente religioso, resultado histórico dessa atitude política
do imperador Constantino, tendo como resultados bem posteriores uma Europa Medieval
cristianizada. É nessa continente europeu que Portugal se firmará como Estado-nação.
Lembremos que somente por meio da religião, tanto na expansão sobre os mouros na
Península, como pelo documento Manifestis probatum assinado pelo papa Alexandre III,
que o Condado Portucalense, torna-se finalmente independente. Vemos então, como a
relação “civilizado” e “bárbaro”, se apresenta logo no Canto I:

Eis aparecem logo em companhia


Uns pequenos batéis, que vem daquela
Que mais chegada à terra parecia,
Cortando o longo mar com larga vela.
A gente se alvoroça e, de alegria,
Não sabe mais que olhar a causa dela.

«Que gente será essa esta? (em si deziam)


Que costume, que Lei, que Rei teriam? »

(Canto I, 45)

Temos aqui um trecho do primeiro Canto, onde a frota lusitana está a navegar no
Índico e detém-se na ilha de Moçambique, sendo recebida pelo Mouros. Repare que a
inquietação dos tripulantes é justamente pela diferença religiosa, marcada pelo vocábulo
“Lei” em primeiro plano. Temo um única voz aqui, a pluralidade é marcada por “em si
deziam”. Foi um perturbação coletiva dos lusitanos frente aos moçambicanos, “Que gente
será essa esta? Que costume, que Lei, que Rei teriam?” Em outro trecho temos:

O mesmo o falso Mouro determina


Que o seguro Cristão lhe manda e pede;
Que a Ilha é possuída da malina
Gente que segue o torpe Mahamede.
Aqui o engano e morte lhe imagina,
Porque em poder e forças muito excede
À Moçambique esta Ilha, que se chama
Quíloa, mui conhecida pola fama.”
(Canto I, 99)
Ainda no Canto I vemos o aprofundar desse questionamento. Como podemos
perceber a preocupação vista pela frota lusitana não nos parece ser limitada pela
linguagem, mas sim por outros fatores, principalmente o da fé. Temos o “falso Mouro”,
o “torpe Mahamede”, frente ao “seguro Cristão”. Camões mostra sua habilidade quando
podemos ver em sua obra profundo diálogo com a contemporaneidade. O século XXI
apresenta, ainda hoje, a complexidade histórica da relação “eu” e o “outro”, do
considerado “civilizado” e o “bárbaro”. E apesar da superioridade dos lusitanos, Camões
nos deixa escapar que seu povo é “determinada” pelos falso Mouro.

Termino meu trabalho citando o medievalista Patrick J. Geary, em que diz sobre
o atual cenário da Europa:

No topo, grandes corporações multinacionais e instituições cientificas quase sempre (ou sempre)
fazem uso do inglês, deixando de lado as tradições linguísticas locais. Já na base da pirâmide, há
um aumento considerável do número de pessoas de origens árabe, turca, norte-africana, indiana e
de outras partes da Ásia. Esses imigrantes continuam falando árabe, turco e outras línguas muito
diferentes das faladas pela classe média europeia. Essa mudança, recebida com hostilidade e medo,
e vista como uma novidade, é na verdade um retorno a um modelo muito mais antigo de
diversidade étnica. De fato, a Europa está começando a se parece com seu passado.” (GEARY,
2005, p. 55)

O cenário que Patrick J. Geary nos apresenta ainda é o da Europa, e da difícil


relação do contato do europeu com o estrangeiro. E o que surpreende é a volta da
importância do logos, baseado em uma relação muito mais diversificada. Mas esse logos
traz consigo os costumes, as práticas sociais, e novamente a religião. O grande conflito
ainda presente é o do mundo mulçumano frente a um mundo que ainda apresente
influência cristã, mesmo que possamos discutir a noção de mundo europeu pós-
cristianismo. Luis de Camões portanto, com Os lusíadas, nos permite iluminar esse
debate o tornando altamente enriquecedor, e comprovando que o mesmo ainda é carente
de possíveis repostas.
REFERÊNCIAS:
BERARDINELLE, C. Estudos Camonianos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira :
Cátedra Padra António Vieria, Instituto Camões, 2000. Disponivel em:
<http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/livropub/camoes.html>.
Acesso em: 13 Março 2014.

CAMÕES, L. D. Os lusíadas. Porto: Porto Editora, 2011.

GEARY, P. J. O mito das nações. Tradução de Fábio Pinto. São Paulo: Conrad Editora
do Brasil, 2005.

MACEDO, H. Camões e a viagem iniciática. Rio de Janeiro: Móbile editorial, 2013.

SARAIVA, J. H. Histórica Concisa de Portugal. [S.l.]: Publicações Europa-America,


1978. 129-133 p.

SKAKESPEARE, W. A tempestade. eBooksBrasil.org, 2000. Disponivel em:


<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/tempestade.html>. Acesso em: 2014 Março 18.

ZEA, L. Discurso desde a marginalização e a barbárie seguido de A filosofia latino-


america como filosofia pura e simplesmente. Tradução de Luis Gonzalo Acosta Espejo;
Maurício Delamaro e Francisco Alcidez Candia Quintana. Rio de Janeiro: Garamond,
2005.

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