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BRASILIANIST AS,

HISTORIOGRAFIA E
CENTROS DE -

DOCUMENTA AO

Regina da Luz Moreira

início da década de 1970 vê surgir desses centros, que, sem sombra de dúvida,
no Brasil os primeiros centro de cumpriram importante papel na mudança
documentação voltados para a pes­ do enfoque dado pelo governo à questão da
quisa histórica: o Centro de Documentação proteção do patrimônio documental do
do Instituto d e Filosofia e Ciências país, e cujo marco pode ser considerado o
Humanas da Universidade de Campinas-, projeto de modernização técnico-ins­
Unicamp (1971); o Centro de Memória Ser titucional do Arquivo Nacional (1979-80).
cial Brasileira, do Conjunto Universitário
Cândido Mendes (1972), e o Centro de
Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil - Cpdoc, da 1. Os braslllanlstas e a
Fundação Getúlio Vargas (I973). AI�m historiografia
disso, a Fundação Casa de Rui Barbosa
sofre uma revitalização nesse período. A década de 1960, no que diz respeito à
Mas do que isso, observa-se o próprio pesquisa histórica, foi marcada pelo fenô­
despertar da consciência nacional - ainda meno do brasilianismo, quando o interesse
que em ritmo lento, quase imperceptível­ dos norte-americanos se traduziu e m
para a importância da preservação de docu­ numerosos financiamentos para a reali­
mentos, públicos e privados, como parte zação d e pesquisas s o b r e O Brasil.
que silo do patrimônio documental da na­ Motivadas inicialmente pela surpresa da
ç ã o : u m a v e r d a d e i r a "d e s a r t e r i o s ­ revolução cubana (1959)- que desperta as
c1erização" da memória, etapa fundamental agências de financiamento e as univer­
de um processo maior, que é o de sua pró­ sidades norte-americanas para a neces­
pria vivificaçao. sidade de conhecer a América Latina e,
Este artígo tem por objetivo analisar as assim, melhor avaliar a política externa dos
condições que propiciaram o surgimento EUA - grandes levas de s ociólogos,

bllllD, Hu"w�_. Rio« J_in:I, voI. J, n. 5, 1990, p. 66.14.


BRASUlANlSTAS, HlSTORIOORAPlA E a:NTROS DE DOCUMENTAÇÃO .7

anlrOpólogos, cientistas políticos, e, prin­ "Os pesquisadores americanos, em dez


cipalmente, historiadores passam a vir para anos de trabalho, fizeram um levanta­
cá com o objetivo de explicar a história mento completo da história do Brasil
política e econômica do país, estabelecen­ (...). Os integrantes dessa comunidade
do, assim, seu perfil como nação. -os chamados 'brazilianislS' -levan­
Somente no fmal da década, contudo, os taram questOes rigorosamente genéricas
brasilianistas' se fazem presentes na gran­ (...) ou então dados mi/lUcioses ( ...).
de imprensa, quando da edição maciça de Sempre que a pesquisa envolve assun­
seus livros aqui no Brasil. A questão cen­ tos politicamente delicados parece que
tralizada pelas resenhas, no entanto, não era um estrangeiro é mais bem recebido (...)
os brasilianistas e as idéias por eles lança­ os americanos também são vistos como
das, mas o brasilianismo, chegando algu­ terriveis agentes da elA, ladrOes de ar­
mas a apresentar questionamentos sobre a quivos secretos e devassadores de uma
extensão do interesse mais geral dos norte­ intimidade que deveria ficar oculta ( ...)."
americanos pelo país.
Pouco a pouco, "brasilianista" deixou de Ou ainda, segundo Fernanda Massi:
ser uma designação temática, tomando-se
um rótulo com forte conotação pejorativa, "Um artigo assinado por Nélson Wer­
empregado pela imprensa, para quem a neck Sodré, publicado no terceiro
polêmica era a disputa entre os estrangeiros número de Moyimenro [de21 dejulho de
e os nacionais, ou seja, entre os brasilianis­ 1975) pode ser definido como um
'concentrado' de todo tipo de critica
tas e os intelectuais e a comunidade aca­
dirigida aos brasilianistas: a perigosa
dêmica brasileira. Freqüentemente, é colo­
invasão do Brasil por pesqui sadores
cada em dúvida a qualidade científica dos
no r t e-americanos, os trabalhos
trabalhos desenvolvidos pelos brasilianis­
'encomendl\dos' de certos brasilianis­
tas; além disso, sua condição é considerada
tas, a acumulação desnecessária 'de
pri vilegiada em relação à dos brasi leiros, na
dados, o privilégio de estrangeiros a
medida em que possuem generosas verbas
. lerem acesso a arquivos brasileiros"
para a pesqUIsa e tem acesso a arqUIvos
"

(Massi, 1988: 18).


tradicionalmente fechados aos últimos. O
e l o g i o , q u a n d o o c o r r e , é sempre
Na realidade, tais queslÕes relativas às
relativizado, principalmente em função do pesquisas estrangeiras - e, em especial, as
brasilianista, sendo que um dos aspectos norte-americanas - sobre o Brasil
mais destacados é O ineditismo de certos trouxeram à tona uma série de problemas
trabalhos, ou seja, de novas frentes de enfrentados pelo pesquisador brasileiro,
pesquisa a serem exploradas. que o colocavam em situação inferior face
A partir dos anos 70, verifica-se que, se ao brasilianista, a começar pela própria
por um lado os intelectuais fazem apre­ deficiência dos cursos de graduação, vol­
sentaçOes elogiosas aos livros dos brasi­ tados basicamente para a formação de
lianistas, por outro, a imprensa alerta para professores, e pela falta de uma estrutura
o "perigo da invasão" (Massi, 1988). eficaz que garantisse os recursos finan­
Em matéria publicada na revista Veja (n. ceiros necessários para o bom desempenho
168,de24 de novembro de 1971), intitulada profissional. Paralelamente, vale men­
"A história do Brazil: o passado do país está cionar o próprio expurgo verificado nos
sendo escrito em inglês", O jornalista Élio quadros universitários após o movimento
Gaspari afirmava: politico-militar de 1964: no caso da Univer-
68 ES11JDOS IDSTORlCOS - 1990/S

sidade de São Paulo, USP, por exemplo, a destruição de documentos, prestado ao


demissão do grupo mais significativo de Cader1lQs de Debate (1976), ao afirmar que
professores acabou dando origem ao para fugir a imposiçOes aleatórias - como
Centro Brasileiro de Pesquisas, CEBRAP, o pretexto de "segurança nacional" - 0l>"
responsável, inclusive, p e l a grande tava por se utilizar de formas mais viáveis
marginalização sofrida pelas primeiras e eficientes, como as bibliotecas públicas,
gerações de mestres em história e ciências arquivos estaduais e institutos históricos.
sociais. Segundo Michel Debrun, "os As questões levanradas pelas pesquisas
brnzilianists fizeram muito menos pelos es­ desenvolvidas pelos brasilianistas não
tudos da realidade nacional do que teriam ficavam, portanto, restritas às resenhas de
conseguido os pesquisadores brasileiros, se livros ou matérias específicas publicadas
não tivessem sido marginalizados nos pela grande imprensa. Ao longo da década
últimos anos" (Michael Debrun, 1976). de 1970 verificou-se, mesmo, um movi­
Deve-se acrescentar, ainda, a dificulda­ mento de retorno de tais questões ao interior
de de acesso a documentos, principal­ do mundo acadêmico, que passou a debatê­
mente pela inexistência de uma lei geral de las de modo mais intenso e sistemático. Tal
arquivos que o regulamentasse, bem como prática ficou registrada em diversas pu­
a depoimentos. Élio Gaspari (1971), refe­ blicações especializadas, em especial as da
rindo-se à pesquisa desenvolvida pelo editora Brasiliense (São Paulo), cujo Ca­
norte-americano Alfred Stepan (Os mi/i­ dernos de Pesquisa (1978) era dedicado à
tar�s na po/(tica: as mudanças de padrão história: "Tudo é história: será que devemos
na vida brasileira, Rio de Janeiro, Ar­ beber história como bebemos coca-cola?"
tenova, 1975) informa: Na realidade, detrás de todo esse discur­
so ideológico envolvendo a produção
"(... ) aos poucos, [ele] foi abrindo portas brasilianista, verificava-se o início de um
que, para muitos brasileiros, não só eslão processo a que René Dreifuss (Mesa redon­
praticamente fechadas, como também da, 1987) chamou de "vivificação da
são consideradas inabordáveis. 'Con­ memória": primeiro sua "desarterios­
versei com o marechal Cordeiro de clerização", para em seguida alimentá-la
Farias cinco vezes (...). Ele me ajudou
muito, inclusive porque, quando eu dizia A questão da preservação da memória

que o havia entrevistado, tudo ficava nacional durante muito tempo ficou restrita
mais fácil. Com o general Golbery do aos monumentos da nação. Somente em
Couto e Silva estive seis vezes'(...). No 1946, com a aprovação da nova Consti­
entanto, talvez mais preciosas que as tuição, foi introduzida a proteção ao patri­
quantrocentas páginas sobre o compor­ mônio documental. Esta preocupação, con­
tamento político dos militares (...) sejam tudo, não chegou a traduzir-se, em termos
as três caixas de papelão onde guarda os práticos, em medidas que capacitassem o
manuscritos das entrevistas que fez ... Arquivo Nacional com os recursos fman­
Num dos lados de cada caixa eSlão, em ceiros e técnicos - como uma lei geral de
letra miúda, nomes que no Brasil são arquivos, que até hoje não foi aprovada -
permanentemente envolvidos pelo necessários para garantir não apenas a pre­
rótulo 'ele não fala'. servação e conservação dos documentos
sob sua guarda, mas também o próprio re­
Esta dificuldade de acesso imposta ao c o l h i m e n t o a o s seus depósitos d a
pesquisador brasileiro foi reforçada por documentação produzida pela adminis­
Edgard Carone em depoimento sobre a tração pública federal.
BRASD.lAN1�AS. HlSTORIOGRAAA E CENTROS DE JXX:A
:UMENT ÇÃO 69

AIé O final da década de 1950 e início da Iidade dificultou e por vezes impediu o
de 1960, a preocupação com a memória tratamento e acesso a um volume consi­
documental biasileira ficava restrita a al­ derável de documentos, sobretudo os de
gumas poucas vozes, como José Honório períodos mais recentes" (Costa et alü,
Rodrigues, em especial no que diz respeito 1986).
aos períodos mais recentes de nossa
história De resto, as atenções voltavam-se O fato é que, seja pela característica
quase que exclusivamente para a docu­ específica dos acervos, seja pelas dificul­
mentaÇao pública relativa à Colônia e ao dades vivenciadas pelas instituições
Império, sob a guarda não apenas do Ar­ arquivísiticas, as novas tendências da
quivo Nacional, mas também de insti­ pesquisa histórica brasileira ressentiam-se
tuições como o Instituto Histórico e Geo­ da inexistência de uma política efetiva de
gráfico Brasileiro (IHGB) e o Museu proteção ao patrimônio documental da na­
Imperial de Petrópolis (Rio de Janeiro), ção, incluindo-se a preservação dos ar­
além dos arquivos públicos e institutos es­ quivos privados. Neste sentido, os centros
taduais. de documentação que surgem ao longo dos
A partir do final da década de 1960, anos 70 têm por objetivo principal a preser­
acentuou-se o descompasso entre os novos vação dos documentos contemporâneos,
interesses da pesquisa histórica brasileira, especialmente os privados.
cada vez mais direcionada para os docu­ De um modo ou de outro, é inegável a
mentos do período republicano, e as importância dos trabalhos desenvolvidos
condiçOes oferecidas pelas principais ins­ pelos brasilianistas - quanto mais não'seja
tituições arquivísticas. E aí, não apenas a pela divulgação de novos arquivos, ou de
própria car.ic terística dos acervos - em acessos até então vedados aos pesqui­
sua quase totalidade, como já afirmamos, sadores brasileiros - neste processo de
correspondia ao Brasil Colônia e Império "vivificação" da memória Tal importância
- mas as próprias dificuldades enfrentadas se toma mais nítida quando se fala de ar­
por aquelas instituiçOes transformaram-se quivos privados de políticos. Pouco consul­
em obstáculos ao desenvolvimento dos tados pelos pesquisadores brasileiros - a
trabalhos: grande exceção foi Hélio Silva, com o seu
Ciclo IÚ Vargas -, esses arquivos tiveram
"O Arquivo Nacional, criado em 1838, sua existência ratificada pelos brasilianis­
e os arquivos públicos estaduais e tas, que também alertaram o meio acadê­
municipais, organizados somente mico e a sociedade como um todo � a
após o advento da República, apresen­ importância desse tipo de fonte na constru­
tavam problemas de natureza diversa, çao da história do Brasil recente, facilitan­
que dificultavam o desenvolvimento de do, de ceno modo, a criação dos primeiros
suas atribuiçOes de recolher, preservar centros de documentaçao voltados paia a
e dar acesso aos documentos oriundos pesquisa histórica, como o Centro da Me­
dos órgãos da administrllÇao pública A mória Social Brasileira (CMSB), dp
inexistência de um modelo sistêmico de Conjunto Universitário Cândido Mendes
arquivos, bem como a carência de (em 1972) e o próprio Centro de Pesquisa e
recursos humanos e materiais contri­ Documentação de História Contemporânea
buiu, entre outros fatores, para que os do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getúlio
documentos gerados pelo poder público Vargas (em 1973).
fossem descartados de forma arbiuária e Na realidade, a produção brasilianista,
recolhidos assistematicamente. Tal rea- antecipando-se aos pesquisadores bra-
70 ES11JIX)S lDSTÓRlCOS - 19901.5

'sileiros, acabou por reorientar a histo­ de Melo Franco, Virgfiio de Melo Franco,
riografia nacional, de um lado relativizando Olávio Mangabeira e Valentim Bouças,
a importância do período colonial e, de entre outros. Na época, sua contratação foi
outro, valorizando o período contem­ justificada pelo diretor da instituição, Or.
porâneo, até então praticamente ausente do Raul Lima, como único recurso para farer
universo da pesquisa acadêmica. frente à falta de verbas, bem como para
O primeiro sinal deste despertar da despenar no estudante brasileiro o interesse
sociedade para a necessidade de preservar pelo estudo da história recente do país. No
a memória recente do povo brasileiro se fez total, seriam cerca de 210 baús contendo
notar em 1971, quando membros da documentos administrativos do poder exe­
Comissllo Histórica das Forças Terrestres cutivo, referentes ao período de 1922 a
Nacionais determinaram as primeiras 1959, além de alguns arquivos privados
providências para uma grande operação de pessoais já doados ao órgão, como os de
levantamento de documentos dispersos João Neves da Fontoura, Joaquim Pedro
pelas várias regiOes do país. Para o desen­ Salgado Filho e Benoldo Klinger.
volvimento dessa tarefa, a comissllo contou A reação da comunidade acadêmica já
com o auxflio se fez sentir em outubro de 1972, quando
que participam do Projeto Rondon. da realização do I Congresso Brasileiro de
Já em setembro do ano seguinte, era Arquivologia. Nes<l! ocasião, a polêmica
anunciada a contratação, pela Coor­ ficou polarizada entre Stanley Hilton e
denadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal Hélio Silva. Para o pesquisador none­
de Nevei Superior (Capes), de Stanley Hil­ americano, "os historiadores brasileiros
ton (professor no Departamento de História abandonaram a pesquisa da história
do Williams College, de Massachussetts, contemporânea porque temem reaçllo
EUA), para implantar e dirigir o Centro de desfavorável ante a revelação de fatos que
Estudos de História Contemporânea do se preferia manter em segredo", o que era
Brasil, ligado ao Arquivo Nacional. Ao veementemente contestado pelo biasileiro:
professor none-americano caberia, ainda, o "( ... ) a observação nllo tem procedência e a
curso de teoria e prática da pesquisa prova é que os pesquisadores norte­
histórica, do program a de pós-graduaçllO da americanos, quando chegam ao Brasil,
Universidade Federal Fluminense, ficando procuram imediatamente o s autores
seus alunos responsáveis pela pesquisa e brasileiros de História Contemporânea do
catalogação dos documentos relativos ao Brasil" ? Rebateu ainda a afumação de Hil­
período governamental de Getúlio Vargas, ton, segundo a qual "os textos de história
já recolhidos ao Arquivo Nacional. contemporânea do Brasil terminam com o
. Sua escolha muito provavelmente se deu advento da República, e quando retratam o
não apenas por sua especialização em século XX, o fazem muito sumariam ente",
história contemporânea do Brasil- objeto o que demonstraria o desinteresse dos his­
de pesquisa em suas teses de mestrado e toriadores brasileiros pelo período con­
doutorado -, mas pelo próprio conhe­ temporâneo. No entender de Hélio Silva,
cimento que possuía sobre as fontes nllo só esse interesse existia, como en­
primárias contemporâneas brasileiras: contrava receptividade por parte das
entre 1966 e 1972, realizou cinco viagens famílias detentoras de arquivos de per­
de estudo ao Brasil, ocasião em que sonalidades imponanteS, que até facili­
pesquisou nos arquivos privados de Getúlio tavam a consulta li seus documentos.
Vargas, Oswaldo Aranha, Afrânio de Melo O que se verificou ocasillo foi
Franco, HildebrandoAcioli, Afonso Ari.nos principalmente uma rcaçlo à decisão de
BRASfi.1ANlSTAS, I-DSTORIOGRAAA E CENTROS DE ooc:t1MENTAÇÃQ 71

entregar a um estrangeiro tal incumbência, com a implantaÇão de novas técnicas de


ato que MO apenas feria os interesses da preservação e, principalmente, com a
história política nacional, como também recuperação da informação, veio, de certo
desvalorizava o pesquisador brasileiro,jus­ modo, a encontrar ressonância na própria
tamente no momento em que este pro· ênfase à informaçllo atribuída pelo governo
fissional procurava se afirmar: em nenhum em sua política técnico·dentífica Segundo
país do mundo ocorreria a possibilidade de Regina Lúcia de Moraes MoreI (1979), "a
se entregar a um estrangeiro o encargo de intensificaçllo das iniciativas de política
organizar documentos até então desconhe­ científica nos fins da década de 1960 [cor­
cidos das autoridades nacionais, só se respondia] ao fortalecimento do estado".
justificando caso constatada a ineficiência A preocupação do governo brasileiro
ou incapacidade de seus profissionais em com o desenvolvimento científico e tecno­
assumir tal encargo. Por outro lado, a pró­ lógico foi adquirindo maior consistência e
pria realização do I Congresso Brasileiro de amplitude no final da década de 1960. A
Arquivologia refletia a preocupação dos primeira iniciativa governamental de
profS
I sionais propor, de forma explícita e sistematizada,
ensino da arquivologia no país, mas tam­ a adoção de uma política científica e
bém com a segurança dos documentos ofi­ tecnológica para o país encontra-se no
ciais e privados e a implantação de novas Programa Estratégico de Desenvolvimento
técnicas voltadas para a preservação dos (PED), estabelecido para o período de
papéis. 1968-1970. O programa previa: o for­
talecimento dos mecanismos financeiros de
amparo a seu desenvolvimento, além de
recomendar o das instituiçoes nacionais de
2. A poUUca clentlflca e pesquisa; o incentivo à formação de
tecnológica e os centros de pesquisadores; a reorientação do ensino
documentaçao voltados para a u n i v e rsitário, c o m ê n f a s e na pós­
pesquisa histórica graduação, aliado à uma política de amparo
aos pesquisadores.
No Brasil, tradicionalmente, é es cassa a Nesse sentido, a partir do governo do
importância atribuída às ciências sociais. presidente Artur da Costa e Silva foi
Na atuaçllo do entao Conselho Nacional de tomada uma série de medidas visando pro­
Pesquisa (CNPq) - até a década de 1960 a mover uma significativa mobilizaçllo de
única instituiçllo de apoio à pesquisa junto recursos - através de financiamentos do
com a CAPES -, pode-se observar, por próprio governo e de agências e fundaçOes
exemplo, uma nítida predominância das estrangeiras - e dotar o aparelho estatal de
ciências naturais e exatàs. Somente em uma estrutura institucional adequada Entre
1966 as ciências sociais - na realidade, as elas, devem ser destacadas: "a estruturação
ciências sociais e humanas: administração, das atividades de ciência e tecnologia em
antropologia, ciência política. direito, termos de Sistema Nacional de Desenvol­
economia, educaçllo, história, psicologia e v i m e n t o C ie n t í f i c o e T e c n o l ó g i c o
sociologia - foram, incorporadas aos (SNDCf); a criaçllo, em 1%9, do Fundo
setores do conhecimento reconhecidos pela Nacional de Desenvolvimento Científico e
instituiçllo, e em 1976 esta área deixou de Tecnológico (FNDCI); a estrulwaçAO da
ser a que menos recursos recebeu. Financiadora de Estudos e Projetos (Finep)
No entanto, a preocupação com a segu­ enquanto Secretaria Executiva do FNOCr;
rança dos documentos públicos e privados, a criação de uma Secretaria-Geral adjunta
72 E511JDQS ,"�TORlCOS - 1990/5

para Desenvolvimento Científico e ciarnento das pesquisas. Nesse sentido, os


Tecnológico e Desenvolvimemto Industrial program as de desenvolvimento científico e
n a Secretaria d e Planejamento.e tecnológico têm em comum a ênfase dada
Coordenação Geral; a elaboração de Planos à infonnação, mais especificamente à
Nacionais de Desenvolvimento (PND's); a recuperação da infonnação, ao proces­
elaboração de Planos Básicos de Desenvol­ samento t é c n i c o de informações
v i m e n t o Científico e Tecnológico atualizadas - resultantes basicamente de
(pBDCT 's)" (Schwartzman, 1982). trabalhos de pesquisas. no fonnato de
Em julho de 1969, o Decreto-Lei n' 719 relatórios, periódicos, preprinls etc. -,
criava o Fundo Nacional de Desenvol­ fundamental para o melhor desempenho
v i m e n t o Científico e T e c n o l ó g i c o das pesquisas.
(FNDCT), através do qual seria dado apoio Foi esta ênfase à infonnação que não
aos programas e projetos considerados apenas possibilitou, mas até mesmo
prioritários para o desenvolvimento favoreceu a criação, durante a década de
científico e tecnológico, principalmente 1970, de centros de documentação voltados
para a implantação do PBDCT, que, por sua para a pesquisa histórica, área que até então
vez, reafirmava a maior parte das ini­ não havia sido incluída entre as prioritárias.
ciativas propostas no PED, a serem Embora com objetivos práticos precisos,
alcançadas através da ação convergente de esses centros uveram sua eXlStencl3 Jus-
• • • • •

uma série de medidas. Destinava-se, por­ tificada pela necessidade de sistematizar as


tanto, a proporcionar recursos para a infonnaçOes na área das ciências sociais, de
fonnação de recursos humanos e adaptação modo a tomá-Ias acessíveis ao pesquisador.
científica e tecnológica junto às univer­ O primeiro programa do .governo des­
sidades e instituições de pesquisa, bem tinado àárea cultural, contudo, só surgiu em
como para a criação de uma infra-estrutura 1975, quando a Finep, através do Programa
de apoio e informação técnica para a de Apoio à Cultura (Procul tura),
pesquisa. Dois anos mais tarde, o governo, simplificou a aprovação e liberação de
visando acelerar a incorporação de novas recursos para a implementação de projetos
tecnologias pelo sistema produtivo, na áréa de ciências sociais. Visando tanto
redimensiona o papel da Finep, que assume ao aperfeiçoamento e ampliação dos
a secretaria-executiva do FNDCT. programas de pós-graduação quanto à
A tônica comum de todos os planos e realização de pesquisas em tomo das quais
programas governamentais pode ser seriam desenvolvidas as atividades
traduzida na preocupação com o desenvol­ prioritárias das instituições, este programa
vimento tecnológico do país, de modo a - extinto em 1978, sendo substituído, no
melhor capacitar as indústrias e com isso início do ano seguinte pelo Proglama de
promover mais rapidamente o desenvol­ Apoio às Ciências Sociais (PACS)
vimento econômico. De modo geral, beneficiou, entre outras, instituições como
portanto, tratava-se de uma estratégica de o Arquivo Nacional, o Cpdoc, a Fundação
desenvolvimento baseada na interação de . Casa d e Rui Barbosa, a Biblioteca
três conjuntos: as universidades e os centros Nacional, o projeto sobre a história da
de pesquisa científica, elementos fun­ República em Minas GeJais, desenvolvido
damentais para a fonnação do pesquisador pelo Departamento de História da UFMG e
qualificado; os institutos de pesquisa a Fundação João Pinheiro, além do Instiblto
tecnológica; a empresa, que, na qualidade Universitário de Pesquisas do Rio de
de beneficiária última da nova tecnologia, Janeiro (Iuperj) e do Plano Diretor do
também participava do esforço de finan- Museu Nacional.
BRASD...lANlSTAS,IDSTORIOORAAA E CENTItOS DE OOC\JMENTAÇÀO 73

Desse modo, os cenlros de documen­ das universidades nas atiyjdades de levan-


tação que surgem na década de 1970 tamento de acervos arquivisticos com valor
voltados basicamente para a pesquisa histórico, estimulou, por seu lado, o sur­
histórica serão de natureza diversa daqueles gimento de centros de documentaçlio
implantados nas demais áreas científicas e vinculados aos estabelecimentos federais
tecnológica: em que pese a aparente iden­ de ensino.
tidade de objetivos - a recuperação da
informação -, se diferenciam em relação
ao tipo dos documentos que constiwem 3. Conclusllo
seus acervos. Assim, enquanto os centros
de documentação já tradicionais se encar­ O trabalho desenvolvido pelos brasilia­
regam do processamenlO técnico de infor­ nistas rep nesenta, sem sombra de dúvidas, .
maçOes awalizadas - onde a tônica é a importante contribuição não apenas no
rapidez não só de sua recuperação, mas crescimento das ciências sociais e em sua
talT\bém, e principalmente, do seu "enve­ institucionalização como ciência, mas tam­
lhecimento -, resultante de trabalhos de bém no próprio início do processo de "de­
pesqúisas, os novos centros se dediCam � sarteriosclerização" da memória nacional.
organização, preservação e divulgação de Para alguns, sua impor1ância está no
acervos históricos. nível de informação quantitativa intro­
Por outro lado, esses novos centros de d u z i d a , p r i n c i p a l m e n t e p o r terem
documentação podem ser caracterizados desenvolvido pesquisas em um período
em dois grandes grupos, em função do tipo pouco explorado. Outros ressaltam ainda o
de acervo constiwído. O primeiro deles é fato de terem sido responsáveis pela
integrado por centros usualmente vin­ introdução de novas questOes, ou mesmo
culados às universidades, cujo acervo é pela recolocação de questOes antigas, o que
formado a partir do desenvolvimento das atuou favoralmente na ampliação dos
diversas linhas de pesquisa, caracterizan­ debates, em espa.ial no campo da história
do-se, portanto, como um conjunto não­ política e econômica
orglinico de documentos: trata-se, em geral, Com relação ao surgimento dos centros
de cópias (reprográficas e micrográficas) de documentação voltados para a pesquisa
de documenlOs de arquivos, bibliotecas e histórica, podemos afirmar que o conjunto
museus, cuja acumulação não obedece a da produçãO brasilianista chama a atenção
uma linha de acervo pré-estabelecida, mas .da comunidade acadêmica e, em seguida,
sim aos interesses de pesquisa. O outro
-
da sociedade em geral para algumas
grupo é formado por aqueles centros que questões. A primeiIa delas diz respeito à

definiram previamente sua linha de acervo existência de fontes documentais até então

em função seja de um período histórico, pouco ou nada explo radas, como os ar-
seja das características do(s) produtor(es) quivos privados pessoais, de interesse para
de documentos (pessoa ou instituição). a história republicana e de utilizaçllo
Nestes casos, a formação do acervo é vol­ precária, por ainda se encontrarem sob a
tada para atender às necessidades de uma guarda das famOias. Outra questão
comunidade mais ampla de usuários. tada pela produção brasilianista é a
Ainda a panir de 1975, esse movimento relacionada com o acesso aos documentos,
de apoio às ciências sociais foi reforçado uma vez que é apontada a facilidade com
com a nova política nacional de culwrli que os arquivos slIo abenos à consulta dos
definida pelo Ministério da Educação e none-americanos. Na realidade, a restrição
Culltura, que, ao estabelecer a participação ao pesquisador brasileiro se dá menos nos
74 ESnJOOS IDSTÓRlCOS - 1990/S

arquivos privados do que na esfera pública,


especialmente junto aos ministérios mi­ Notas
Iilares e o das RelaçOes EXleriores, cujos
1. Noção empregada pela primeira vez em
arquivos até hoje têm seus acessos dirigidos
1969 por Franci.s c o de Assis Barbosa. na
por regimentos próprios.
apresentaçio de Brasil: de Gelúlio a Castelo,
No entanto, a contribuição mais sig­
livro de Thomas Slridmore. e que acaba sendo
nificaliva se verificou em termos do adotada pelos próprios norte- americanos.
processo de "desarteriosclerizaçao" da 2. Jornal O Estado de SIlb Paulo, 20 OUL
memória nacional, em especial no que se 1972. Em: Arquivo COlle1l1e do Cpdoc: hislÓria
refere, embora indiretamenle, ao início da do Cpdoc - artigos. entrevistas. reportagens.
aluaçao do Estado neSle processo. Foi
através da pressllo primeiro da comunidade
acadêmica e, em seguida, da sociedade em
geral que o Estado brasileiro despertou para
BIbliografIa
a necessidade da preservaçao da memória
documental do país, bem como de apoio e
ABRANCHES, Sérgio Henrique. 1982. "As
incentivo às ciências sociais, embora de
ciências sociais e o Estado: comentários so­
início a lílulo de pesquisa voltada para o bre a política cienúfica e tecnológica e a
desenvolvimento social. institucionalização da ciência social no Bra­
A partir de 1976, quando enlão, pela sil". BIB, Rio de Janeiro, n.13, I.sem., p.45.
. . . .
CADERNOS de debale, I. 1976. "HiSlória do
.

pnrnelra vez, as ClenCl3S SOCiaiS come·


' .

Brasil." São Paulo. Brasiliense.


ç a r a m a receber apoio do FNDCT,
CADERNOS de pesquisa, 4. 1978. 'Tudo é
podemos deleclar não apenas um con­
história.: será que devemos beber história
siderável crescimento das mesmas, mas, como bebemos coc:a-<:ola"!"
principalmente, sua institucionali7.ação. No COSTA,Célia Maria Leile; LOBO, Lúci. Lah­
entanto, o reconhecimento do valor da mayer; MOREIRA. Regina da Luz. 1986.
produçao de conhecimento científico por Uma eSlraJégia de definiçllb de linha de
acervo. Rio de Janeiro, FGV/CP DOC, p. 3.
parte das ciências sociais ainda é precário,
GASPARI, Élio. 1971. "A hislÓria do Brazil: o
a partir do momento em que freqüente­ •

passado do país está sendo escrito em inglês".


menle lhes é exigida uma aplicabilidade Veja. São Paulo, n. 168,24 nov., p. 36.
imediata, ao mesmo lempo em que é ig­ MASSI, Fernanda Peixoto. 1988. BrasjJianis­
norada a utilização dos resultados de suas m.os, fbrazilianists' e discursos brasileiros.
pesquisas no processo decisório das São Paulo,lDESP.
MESA redonda: acervos arquivísticos. 1987.
empresas, sejam elas públicas ou privadas.

Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
E necessário, portanto, que se dê con-
Nacional. Rio de Janeiro, n. 22. p. 171-85.
tinuidade a eSle processo de reconhe­ MICHEL Dobrun; o jogo das ideologias. 1976.
cimento por parte do Estado, da relevância Veja. São Paulo. n. 384, 14 jan., p.3.
sóci<H:ullural do conhecimento produzido MOREL, Regina Lúcia de Moraes. 1979.
pelas ciências sociais, e conseqüentemenle Ciência e Estado: a polÍlica cU!nJíftca no
Brasil. São Paulo, T. A. Queiroz. p. 56.
que se garanta a continuidade do apoio
SCHWARTZMAN , Simon (org.). 1982.
financeiro necessário, inclusive em termos
Unive rsidades e institu.ições no Rio de
da continuidade dos trabalhos desenvolvi­ Janeiro. Brasflia. CNPq. p. 152.
dos pelos centros de documentação. Con­
forme Sérgio H. Abranches (1982), "éde se •

esperar que não ocorram novos ciclos de


'desinstilucionalização' ou de discrimina­ Regina da Luz Moreira é pesquisadora do
ção financeira", seja por que motivo for. Cpdoc.

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