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SOBRE OS TELHADOS

Como escrevi algures, tive a sorte de ter Padre Alípio Maia e Castro como orientador espiritual
durante algum tempo, em São Paulo. Volta e meia me convidava a olhar as coisas por sobre os
telhados. Jamais esquecerei desta figura de linguagem e do tanto que me encantei por ela.
Acima dos telhados nos desligamos dos respeitos humanos, somos convidados à caridade,
redistribuímos valores, descartamos supérfluos e temos a chance de olhar mais longe, libertos
das tantas paredes que nos enclausuram.

Eis que me cai nas mãos o opúsculo “O Diabo Coxo”, de Luiz Vélez de Guevara, escrito no
século XVI. Liberto por Dom Cleofas de sua redoma - na qual estava aprisionado,- o Diabo Coxo
o convida a ver o mundo sobre os telhados, mas com diabólica indiscrição. Desprezando toda e
qualquer privacidade, veem e comentam cenas de alcova, satisfazem aquela curiosidade
daninha, típica dos que têm dificuldade em amar, como os fofoqueiros e os maus. Aqui
testemunham a morte de um trapaceiro, lá uma feiticeira a preparar drogas restringentes para
remendar uma donzela que casará no dia seguinte, ali um taberneiro adulterando um barril de
vinho e acolá a dama de Dom Cleofas a trai-lo.

Ver acima dos telhados, e não através deles, é algo que se aprende com amadurecimento.
Sinto-me constrangido pela falta de entendimento na infância e na juventude, arrogantes e
soberbas. Confesso que, menino, achava estranho, para não dizer estúpido, o hábito de pessoas
mais velhas andarem com os óculos acima da testa. Ora, pensava, ou usam os óculos ou não
usam. O mestre tempo encarregou-se de me fazer entender e agora sou eu quem faço o
mesmo, na fábrica, na redação, no supermercado. Enxergo bem à distância e cada vez menos
de perto, a menos que a iluminação sobre o que leio seja intensa.

Pois na história se dá o contrário. Com hipermetropia congênita, enxergamos melhor o que anda
por perto e sem clareza o que já vai longe. Também por isto temos dificuldade em aprender com
o passado, que vemos baço e amplo. Como admitir que a escravidão, como sistema legal, tenha
perdurado até o século XIX? Por estas e por outras é que escuto sempre com alguma reserva os
que depositam sua fé no decantado estado de direito. Porque se um pelourinho é símbolo
indelével da cruel didática empregada contra os que desobedeciam ou fugiam de seus donos,
também é parte de um arcabouço jurídico que o admitia conservado em praça pública.

A lei também pode legitimar a eliminação de inimigos do status quo, como Tiradentes, que teve
seu corpo esquartejado e a cabeça exposta. Coisas como esta se deram tanto aqui quanto além
fronteiras. Desafiar a ordem vigente e portanto a lei e quem a garante é sempre uma empreitada
arriscada. É melhor morrer de pé do que viver de joelhos, disse certa vez Emiliano Zapata. Morto
numa armadilha do general Guajardo, teve seu corpo exposto ao público em Cuautla. Foram, em
seus respectivos tempo e lugar, exemplos do que sucederia aos que seguissem os sediciosos.

Bestialidades, porém, não são apanágio de um lado ou de outro, mas da própria humanidade.
Em Canudos, para tomar um exemplo maiúsculo de crueldades e incompreensões, deu-se o
empalamento do Coronel Tamarindo, cuja triste figura permaneceu na estrada por cerca de três
meses com o objetivo de atemorizar os militares que ousassem atacar Belo Monte e o
Conselheiro. A campanha faria ainda muitos estragos, culminando em miséria e desolação.

Na Roma antiga, Espartacus lideraria uma revolta que inscreveria seu nome na galeria dos
inconformados com a má sorte. Debelada a rebelião os romanos, com propósitos didáticos,
crucificaram cerca de seis mil rebeldes, os expondo ao longo da Via Ápia. Há não muito, pelas
mãos de nossos colaboradores portugueses, fiquei sabendo que em 1926 o governo socialista
do México perseguiu com brutalidade a Igreja Católica, chegando ao cúmulo de fuzilar um padre,
o Padre Pro. Diante do pelotão de fuzilamento, diante de jornalistas convidados para cobrir o
evento, Padre Pro pediu para rezar. Ao erguer-se, abriu os braços em forma de cruz e morreu
com a coragem dos santos. Foi apenas mais um que tombou pelas mãos do governo socialista
no país de Guadalupe. O Papa Pio XI reagiu à barbárie, emitindo a Encíclica Iniquis Afflictisqque,
deplorando o circo de horrores que transcorria naquela país. Com ou sem telhados, a história
humana é de fato um desastre. É muito estranho, aliás, que nada se aprenda sobre este período
terrível da terra dos astecas, digno do terror francês e do inferno bolchevique.

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