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MANA 10(2):415-438, 2004

RESENHAS

BORGES, Antonádia. 2004. Tempo de corre a vida das pessoas nesse lugar? A
Brasília: etnografando lugares-eventos partir daí, a política irrompe em espa-
da política. Rio de Janeiro: Relume ços inesperados. Criado apenas há uma
Dumará. 194 pp. década, o empoeirado Recanto das
Emas está marcado por uma preocupa-
ção com o lugar para morar. E é essa
Julieta Quirós inquietude que, cotidianamente, vin-
Mestranda, PPGAS/MN/UFRJ cula os moradores à política no seu sen-
tido nativo, isto é, ao Estado, ao gover-
Tempo de Brasília: etnografando luga- no, à burocracia, aos políticos.
res-eventos da política pode, talvez, a Ao descentrar seu trabalho etno-
princípio, chamar a atenção do leitor gráfico em relação a qualquer instân-
pelo fato de transcorrer no terreno do cia eleitoral, a autora consegue revelar
inclassificado. Antonádia Borges pode- que a política não constitui uma exte-
ria apresentar seu trabalho como uma rioridade que irrompe momentanea-
etnografia sobre “política”, sobre “po- mente na vida local; e, portanto, que as
líticas públicas”, sobre “políticas de eleições não constituem contexto etno-
moradia”, sobre “clientelismo”. Afor- gráfico privilegiado para falar sobre
tunadamente, contudo, nada disso política. Presumindo que a política é in-
acontece. A autora recusa, mais de separável do que poderíamos chamar
uma vez, a introdução de rótulos dis- de “o resto” — da vida social —, Tem-
tantes da realidade etnográfica que po de Brasília não tenta apenas estabe-
descreve, a saber, a vida — ou melhor, lecer uma relação entre ambos os ter-
o modo de vida — dos moradores do mos, mas também mostrar que, no Re-
Recanto das Emas, um assentamento canto das Emas, a política está no “res-
urbano localizado a 32 km de Brasília. to”, ou, nas palavras de Borges, que a
Com apurada observação sobre o vida do Recanto das Emas é uma “vida
que ali parece ser relevante, o trabalho política” (:49).
de Borges consegue interrogar — no Em Tempo de Brasília, o olhar se di-
sentido mais radical do termo — esse rige a um cotidiano no qual o político
mundo social, sem reprimi-lo em pro- se imiscui. Essa vida é retratada ao lon-
blemas teóricos ou categorias concei- go de cinco capítulos etnográficos que
tuais predeterminadas. Apesar de estar recorrem a uma série de categorias na-
orientada por um interesse em algo tivas que, segundo a autora, estrutu-
pensado como “político”, o ponto de ram a experiência dos moradores do
partida da autora parece ser intencio- Recanto das Emas: a invasão, o asfalto,
nalmente mais indefinido: como trans- o lote e, por fim, o tempo de Brasília.
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Longe de constituir um mero repertório número dos processos burocráticos que


representacional ou visão de mundo, cada pessoa carrega consigo, o anda-
essas categorias são tratadas como mento das inscrições, e também a lin-
idéias em ato. Ao apelar para a noção guagem das siglas: os moradores do
de lugar-evento para se referir a esses Recanto das Emas são hábeis conhece-
“lugares ou objetos que se manifestam dores do idioma de siglas dos diversos
como ações” (:11), a autora procura organismos da burocracia, vinculados
transcender uma perspectiva mera- ao planejamento territorial, com os
mente semântica; aproxima-se, ao con- quais mantêm contato diário. Um últi-
trário, de uma pragmática que restitui mo signo: as fórmulas com que o gover-
os modos segundo os quais as idéias no classifica a população a fim de ava-
são vividas e acionadas em contextos liar quem é merecedor desse dom pre-
específicos. cioso que é o lote. Um conjunto de re-
Graças a um trabalho etnográfico quisitos produz a fórmula, cada fórmu-
que combina, de maneira perspicaz, di- la produz uma série e a série, uma
ferentes esferas de intimidade cultural, identidade, a qual é expressa, por fim,
a autora consegue mostrar como, den- em números.
tro de um mesmo espaço, a política po- As evidências apresentadas por
de adquirir uma pluralidade de formas. Borges revelam como essas fórmulas
O capítulo I talvez seja paradigmático estatais induzem a comportamentos
a esse respeito. Por um lado, a política concretos, ao serem tomadas pela pró-
irrompe de forma aberta e impiedosa pria população como um conjunto de
através da invasão: ocupar certos espa- qualidades de referência: ser casado ou
ços como meio de reivindicação e pedi- solteiro; ter ou não ter filhos; trabalhar
do de lotes ao Estado aparece como lu- ou não trabalhar. Entretanto, o princi-
gar-evento constitutivo da vida do Re- pal requisito para poder participar da
canto das Emas. No caso apresentado inscrição nos programas de distribui-
pela autora, trata-se de um acampa- ção de lotes é possuir o título eleitoral
mento montado na sede da administra- do Distrito Federal, o que implica con-
ção regional da cidade, onde surgem tar com (e poder provar) um mínimo de
conflitos com a polícia e com os funcio- cinco anos de residência na capital —
nários públicos, assim como enfrenta- ou, em termos nativos, ter (e poder pro-
mentos partidários. Paralelamente, a var) tempo de Brasília. Assim, milhares
política surge de forma mais domesti- de pessoas circulam de casa em casa,
cada: a entrega de lotes é uma prática de cidade satélite em cidade satélite,
instituída e institucionalizada, em um de barraco em barraco, ocupando es-
programa de governo orientado para o paços, sendo abrigadas por parentes ou
assentamento urbano da população. conhecidos — literalmente, fazendo
Nesse esquema, as mesmas pessoas tempo —, para cumprir a exigência que
que invadem ou que alguma vez inva- lhes permitirá, por fim, encaminhar ofi-
diram fazem parte da lista dos que, cialmente sua demanda por um lote ao
cumprindo uma série de requisitos, in- Estado. E então, “as madrugadas nas
gressam nas filas dos circuitos adminis- filas, o cadastramento, a atualização
trativos e da espera burocrática. periódica do cadastro, o conhecimento
Desse modo, além dos acampamen- gradual das variáveis que “pesam” na
tos, no Recanto das Emas existem ou- fórmula que calcula a pontuação do
tros signos que falam da vida política: o candidato, a adequação entre os dados
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de que se dispõe e aqueles que devem algum modo de vida consumado, pare-
ser apresentados ao governo, a procura ce tratar-se, precisamente, de uma his-
de documentos que registrem a veraci- tória de variações contínuas: as pessoas
dade do que é declarado, a angustiante vão e vêm, passam da ilegalidade à le-
espera pela contemplação, intercalada galidade, e vice-versa.
por frustradas espiadelas no Diário Ofi- A diversidade de formas de habitar
cial e nos jornais, enfim, o nome na lis- é, então, uma diversidade de formas de
ta — a emoção inenarrável dessa expe- vivenciar o Estado, de experimentar a
riência —, a ocupação do lote, a cons- política. Uns pedem com o corpo; ou-
trução de um barraco e, mais uma vez, tros, por meio das listas, ou aos líderes
a espera pela escritura” (:157). locais; e outros ainda dão porque têm
Se levarmos em conta o fato de que um emprego na política. Pedidos que
as pessoas que um dia acampam e ocu- são efetivos graças a uma lógica para a
pam terras são as mesmas que outro qual Borges chama a atenção: “A polí-
dia ingressam nos circuitos burocráti- tica no Recanto das Emas apresenta-se
cos como destinatários “legais”, o ce- como a frágil administração de bens
nário do Recanto das Emas sugere uma construídos a um só tempo como abun-
espécie de variação contínua que, fe- dantes e escassos” (:48). O lote é um
lizmente, não é tratada por Borges co- recurso que o Estado dá, mas que não
mo contradição, nem tampouco aniqui- dá para todos. Sobre a base dos bens
lada em uma realidade coerente e uní- disponíveis e, ao mesmo tempo, insufi-
voca, absolutamente fictícia. A análise cientes, políticos e moradores se vincu-
da autora sugere que, mais que opções lam, jogando o jogo da política, do qual
contraditórias, invadir e inscrever-se poderíamos dizer que opera não tanto
em programas governamentais são al- a partir da exclusão quanto de uma in-
ternativas conexas, situacionalmente clusão diferencial sempre cheia de es-
acionadas. “O Barraco” e “O Lote” tal- peranças.
vez sejam os capítulos que melhor ana- Ao lado do lote, o asfalto faz parte
lisam esse espaço flutuante. Neles, em desses bens escassos e abundantes. A
que se apresenta a trajetória de vida de observação e análise de uma série de
quatro mulheres, assim como o estudo atos governamentais, associados à
dos arquivos da polícia local, esses lu- inauguração de obras de pavimenta-
gares-eventos são retratados como ca- ção, torna possível compreender o as-
tegorias vividas e acionadas de forma falto mais como necessidade criada e
plural: o lote não é simplesmente o lo- imposta pelos governantes locais do
te; é o lote invadido, negociado, adju- que como demanda da própria popula-
dicado, escriturado, emprestado, ocu- ção. A produção de políticas públicas,
pado, roubado, alugado, vendido. assim, não parece envolver apenas uma
Nesse sentido, pode-se dizer que invenção do destinatário, mas também
Tempo de Brasília escreve uma histó- a da própria demanda. Com isso, dá-se
ria. O presente etnográfico de Borges a conversão do arbitrário em necessá-
adquire uma notável profundidade dia- rio: o asfalto aparece não só como um
crônica, pois o que hoje é quadra on- bem desejado e vantajoso, mas sobre-
tem foi invasão, o que é asfalto foi terra tudo como um bem imprescindível.
vermelha, o que é casa foi barraco. No Desse modo, Borges revela como
entanto, cabe destacar que, longe de aquilo que não porta o rótulo de “polí-
constituir uma história linear, dirigida a tico” é politizado. No contexto do Re-
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canto das Emas, o asfalto torna-se as- rializa, o tempo de Brasília gera suas
sunto político. Em primeiro lugar, ao se próprias linhas de fuga: incita a migra-
constituir como objeto de troca que cir- ção, ativa o nomadismo e a instabilida-
cula entre o governo e a população. Em de habitacional de todos os seus poten-
segundo, ao ser dotado de sentidos dís- ciais beneficiários. O trabalho de Bor-
pares de acordo com as facções políti- ges permite perceber que as próprias
cas locais. O conflito político entre os fórmulas do Estado acabam gerando o
partidos se expressa no asfalto, e o po- inesperado, produzindo um modo de
sicionamento dos moradores perante as vida que se afirma a si mesmo, e isso
obras enuncia lealdades partidárias. apesar de tudo.
Defender o asfalto, participar dos atos É sugestivo, nesse sentido, que
de inauguração — ou não fazê-lo — é Tempo de Brasília seja capaz de nos fa-
posicionar-se de um lado ou de outro lar de uma forma de experimentar o
da luta política local. Estado prescindindo de clichês do tipo
Ao explorar as trocas entre a popu- “resistência/hegemonia”. Ao contrário,
lação e os políticos fora do momento apresenta ao leitor um mundo social
eleitoral, a análise de Borges permite díspar e heterogêneo, onde é possível
observar que essa relação transcende a ver como o Estado captura e, ao mesmo
mera transação voto-favor. Em Tempo tempo, o que as pessoas conseguem fa-
de Brasília, o voto é instância exclusiva zer com essa sujeição. Novamente,
da política, nem a troca política se re- uma recusa em enquadrar a evidência
duz ao voto. Ao contrário, trata-se de etnográfica em esquemas inadequados
um processo ampliado e cotidiano de prova que, ao lado da preocupação na-
construção das relações de poder, de tiva com o lugar para morar, Tempo de
uma troca contínua, seriada e parcela- Brasília está baseado em uma preocu-
da. As obras públicas, argumenta Bor- pação da própria autora com o lugar
ges, devem ser algo sempre inacabado, como entidade etnográfica com rele-
pois a dívida é necessária para a conti- vância própria. Falando sobre si mes-
nuidade da relação. Assim, enquanto mo, o Recanto das Emas é capaz de fa-
em um lugar lotes estão sendo distri- lar sobre algo mais. Tempo de Brasília
buídos, em outro, obras de asfaltamen- transcende o microscópico, sem preci-
to estão sendo iniciadas; se em uma lo- sar apelar para grandes representações
calidade obras de saneamento estão ou idéias pomposas, e sem comprar, a
sendo providenciadas, em outra, inva- priori, nenhum mito sobre “a cultura
sores estão sendo erradicados ou realo- política brasileira”. Etnografia local-
cados. Nesse circuito, o tempo de Bra- mente situada que, não obstante, nos
sília irrompe como lugar-evento que permite pensar questões fundamentais
contém todos os demais: a invasão, o sobre o Estado e a democracia, bem co-
barraco e o lote compõem uma espécie mo repensar a “grande política”.
de limbo pelo qual todos têm de passar
durante mais ou menos cinco anos até
poderem ingressar nas listas estatais. O
tempo de Brasília é, então, o começo de
uma territorialização que, em teoria e
do ponto de vista do governo, culmina
no lote e se reafirma no asfalto. “Em
teoria”, porque à medida que territo-

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