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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

COORD. DE ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA


D.J. 16.06.2000 284
EMENTARIO Nº 1 9 9 5 - 2

09/05/2000

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N. 80.090-4 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. ILMAR GALVÃO


RECORRENTE: ALESSANDRO SCHIRRMEISTER SEGALLA
PACIENTE : JOSÉ CARLOS MARTINS OU JOSÉ CARLOS MARTINS PEREIRA
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

EMENTA: RECURSO DE HABEAS CORPUS INTERPOSTO CONTRA DECISÃO


DENEGATÓRIA PROFERIDA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRETENSÃO AO
TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL POR INFRAÇÃO AOS ARTS. 7º, IX, DA LEI Nº
8.137/90 C/C O ART. 16, § 6º, DA LEI Nº 8.078/90. EXPOSIÇÃO À VENDA DE
MERCADORIA COM PRAZO DE VALIDADE VENCIDO.
A tipificação da figura penal definida no art. 7º, IX, da Lei
nº 8.137/90, por ser norma penal em branco, foi adequadamente preenchida
pelo art. 18, § 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor, que define
como impróprio ao uso e consumo produto cujo prazo de validade esteja
vencido.
A exposição à venda de produto em condições impróprias ao
consumo já configura o delito, que é formal e de mera conduta,
consumando-se com a simples ação do agente, sendo dispensável a
comprovação da impropriedade material.
Recurso de Habeas Corpus improvido.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os


Ministros do Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso ordinário em habeas
corpus.
Brasília, 09 de maio de 2000.

MOREIRA ALVES PRESIDENTE

ILMAR GALVÃO RELATOR


09/05/2000 285
PRIMEIRA TURMA

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N. 80.090-4 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. ILMAR GALVÃO


RECORRENTE: ALESSANDRO SCHIRRMEISTER SEGALLA
PACIENTE : JOSÉ CARLOS MARTINS OU JOSÉ CARLOS MARTINS PEREIRA
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO - (Relatar): Trata-se de


recurso ordinário que se insurge contra acórdão do Superior Tribunal de
Justiça, que, em sede de habeas corpus substitutivo de recurso impetrado
em benefício de José Carlos Martins, não concedera a ordem, mantendo
decisão do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, que
afastara pretensão de trancamento da ação penal movida contra o paciente
por infração ao art. 7º, inc. IX, da Lei nº 8.137/90 c/c o art. 18, §
6º, da Lei nº 8.078/90 (exposição à venda de mercadoria com prazo de
validade vencido).

Registra a ementa do acórdão recorrido:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE


RECURSO ORDINÁRIO. ART. 7º, INCISO IX, DA LEI Nº 8.137/90 (LEI
DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TIREUTÁRIA, ECONÔMICA E CONTRA AS
RELAÇÕES DE CONSUMO) E ART. 18, § 6º, INCISO I, DO CBDC. JUSTA
CAUSA.
I - A própria conceituação de dolo mostra que não há
necessariamente incompatibilidade entre o fato de um crime ser
de perigo presumido e a exigência, no campo penal, da
responsabilidade subjetiva e pessoal. Da mesma forma, inocorre
a pretensa ausência de compatibilidade com a norma penal em
branco, mormente de complementação ham61aga (de igual
instância legislativa).
II - A conduta do comerciante que expõe à venda
matéria-prima ou mercadoria, com o prazo de validade vencido,
configura, em princípio, a figura típica do art. 7º, inciso
IX, da Lei nº 8.137/90 c/c o art. 18, § 6º, da Lei nº
8.078/90, sendo despicienda, para tanto, a verificação
pericial, após a apreensão do produto, de ser este último
realmente impróprio para o consumo. o delito em questão é de
perigo presumido (Precedentes).
Writ indeferido.”
Em longo arrazoado, reitera o recorrente a alegação de que a
denúncia se baseou apenas no documento lavrado pelos fiscais do
Departamento de Inspeção de Alimentos, que serviu de base para a
instauração do inquérito, segundo o qual a mercadoria apreendida estaria
com prazo de validade vencido, sem que houvesse prova bastante da sua
impropriedade real ou concreta para o consumo.

Sustenta que o art. 18, § 6º, do Código de Defesa do


Consumidor, que considera impróprios para o consumo os produtos cujos
prazos de validade estejam vencidos, admite o instituto da solidariedade
entre o comerciante e o fabricante do produto, que é manifestamente
incompatível com os princípios albergados no Direito Penal, que não
admite a culpa presumida.

Assevera, ademais, inocorrer o crime previsto no art. 7º, IX,


da Lei nº 8.137/90, mas, sim, mera infração sanitária, na conduta do
comerciante que expõe à venda mercadorias impróprias ao consumo.

Defende a necessidade do exame de corpo de delito para


comprovação da impropriedade do produto para o consumo, cuja falta
constitui nulidade insanável, aduzindo que, no caso concreto, a
mercadoria foi inutilizada, o que impede aferir-se a sua impropriedade.

Refuta o argumento do acórdão recorrido de que nos delitos de


perigo abstrato não se presume dolo ou culpa, bastando a presunção de
perigo, pois considera que tal entendimento vai de encontro à vedação da
responsabilidade objetiva, que não permite a mera suposição, e ao
princípio da presunção de inocência, que exige a comprovação da
culpabilidade.

Alega a atipicidade da conduta, diante da ausência de


comprovação de perigo concreto, não se podendo presumir que determinado
produto é impróprio para o consumo por conter a data de validade
vencida, sendo necessária a demonstração do perigo real mediante a
realização de exame pericial nos produtos apreendidos.
Por fim, invoca os princípios da proporcionalidade e da
razoabilidade e sustenta que as normas penais em branco não podem ser
preenchidas por regras fundadas na responsabilidade objetiva.

Pede o provimento do recurso para reformar o acórdão do


Superior Tribunal de Justiça e trancar a ação penal.

Admitido o recurso pelo despacho de fl. 514, os autos subiram


a esta Corte.

A Procuradoria-Geral da República, em parecer da lavra do


eminente Subprocurador-Geral Mardem Costa Pinto, opinou nos termos
seguintes (fls. 524/527):

“O presente Recurso de Habeas Corpus deve ser


parcialmente conhecida e improvido.
É que o recorrente pretende seja examinada nesta
instância a aplicação dos princípios da proporcionalidade e
razoabilidade ao caso concreto, tese esta que não foi
formulada perante o Superior Tribunal de Justiça e,
conseqüentemente, não mereceu exame por aquela Corte de
Justiça, bastando conferir o acórdão de fls. 453/458 - volume
3. Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal é incompetente para
analisar, em primeira mão, a referida tese, sob pena de
incorrer em supressão de instância.
(...)
No mérito, quanto às demais alegações, o recurso não
deve ser provido.
Em que pesem os fundamentos elencados pelo
recorrente, não há como dar guarida ao pedido de trancamento
da ação penal. Em primeiro plano, cumpre ressaltar que o
artigo 7º, inciso IX, da Lei nº 8.137/90, tido como violado
pelo denunciado, é norma penal em branco adequadamente
preenchida pelo Código de Defesa do Consumidor, artigo 18,
parágrafo 6º. Dos três incisos deste último dispositivo legal,
encontra ressonância no caso concreto o disposto no item I,
que assim define, verbis:

“ § 6º São impróprios ao uso e consumo:

I - os produtos "cujos prazos de validade estejam


vencidos.”

O dispositivo citado é taxativo ao afirmar que a


impropriedade do produto para uso ou consumo advém do
vencimento do prazo de validade fixado para o mesmo. Diante da
disposição categórica da norma, é irrelevante a eventual
comprovação, através de perícia, da propriedade ou
impropriedade material do produto, tendo em vista tratar-se de
delito de perigo abstrato, caracterizando-se com a mera
transgressão da norma.
Certo é que os demais incisos do referido artigo de
lei necessitam de eventual constatação técnica para concluir
pela real impropriedade do produto mas, no caso concreto, os
fatos descritos na denúncia atendem, de pronto, ao conteúdo da
norma, eis que o denunciado expôs à venda produtos com prazos
de validade vencidos.
A responsabilidade do comerciante no caso concreto,
como afirmado pelo Ministério Público (fl. 448), não se
sujeita à discussão sobre a potencialidade nociva do produto,
já que este, estando com a data de validade vencida, deve ser
imediatamente retirado do mercado em obediência à norma legal.
Não se trata de admissão de responsabilidade
objetiva, como bem sustentou o aresto impugnado, eis que o
caráter objetivo da responsabilidade, inaceitável pelos
princípios norteadores da culpabilidade no Direito Penal
Brasileiro, não se relaciona com a natureza da infração, nem
com o fato de estar o caso concreto sujeito a enquadramento em
norma penal em branco. O certo é que o dolo eventual está
presente, manifestado pela conduta livre e consciente de expor
à venda produto não mais comercializável, ou melhor,
legalmente previsto como impróprio para o consumo, causando
lesão ao interesse jurídico da coletividade.
A alegação de atipicidade da conduta por
inexistência de dano concreto revela-se improcedente, eis que,
como já afirmado, o delito em tela é de perigo abstrato,
caracterizando-se com mera transgressão da norma.
Sendo assim, não merece prosperar o pedida de
trancamento da ação penal em trâmite na Primeira Vara Criminal
de Itaquera-SP.
Diante do exposto, somos pelo conhecimento parcial,
com o improvimento do recurso.”

É o relatório.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
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09/05/2000 PRIMEIRA TURMA

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N. 80.090-4 SÃO PAULO

v O T O

O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO - (Relator): Embora o parecer


da douta Procuradoria-Geral da República aponte que o recurso não pode
ser conhecido em relação à aplicação, ao caso concreto, dos princípios
da razoabilidade: e da proporcional idade, porquanto não fora submetida
ao Superior Tribunal de Justiça, pelo que se pode inferir da petição
recursal, tal alegação foi feita pelo recorrente apenas como reforço do
fundamento atinente à inaplicação do princípio da responsabilidade
objetiva.

Basta, para constatação, a leitura da extensa petição de


recurso ordinário para chegar-se à conclusão de que os pontos debatidos
pelo recorrente resumem-se, basicamente, na atipicidade do fato e na
demonstração da culpabilidade.

Tenho por irretocável o acórdão recorrido, que afastou a


pretensão ao trancamento da ação penal, por entender configurado o tipo
penal do art. 7º da Lei nº 8.137/90 c/c o art. 18, § 6º, I, do Código de
Defesa do Consumidor. Dele registro (fls. 454/458):

“O caso não retrata hipótese de trancamento da


persecutio criminis in iudicio ou de sua eventual nulificação.
A combinação do disposto no art. 7º, inciso IX, da Lei nº
8.137/90 com o insculpido no art. 18, § 6º, I, do CBDC para
definir o conteúdo da expressão Nem condições impróprias ao
consumo” não enseja qualquer situação de responsabilidade
penal objetiva. Se o dolo próprio da responsabilidade penal
subjetiva e pessoal é, em essência, consciência e vontade de
realizar o tipo objetivo, a assertiva - de lado a elogiável
combatividade evidenciada na impetração - carece de suporte na
dogmática jurídico-penal. O caráter objetivo da
responsabilidade, repudiado pelo princípio da culpabilidade
(art. 18, incisos I e II e parágrafo único, do C.P. e, segundo
E.R. Zaffaroni, apontando similar regra constitucional
argentina, art. 5º, inciso II da nossa Lex Máxima), diz com a
inaceitável prescindibilidade do dolo e da culpa. Nunca, data
venia, com a natureza da infração. A responsabilidade objetiva
não se identifica, de pronto, com a estrutura legal de ser a
norma penal incompleta, na forma de norma penal em branco de
complementação homóloga (complemento de mesma instância
legislativa, na taxionomia de Nilo Batista) e nem com o fato
de ser de perigo abstrato, o delito em tela. Havendo, pois,
como requisito para a adequação típica, a vontade e
consciência da realização dos elementos do tipo objetivo,
incabível falar-se de responsabilidade objetiva (a quaestio
acerca da culpa refoge ao problema suscitado na impetração).
Superado este tópico, inicialmente, merece
transcrição a manifestação do Parquet local da lavra do culto
Procurador de Justiça Dr. Luiz Cyrillo Ferreira Júnior, a
saber: “O crime previsto no art. 7º, inciso IX, da Lei nº
8.137/90 é formal e de perigo abstrato, não dependendo para
sua configuração que o produto com prazo de validade vencido
venha a ser submetido a perícia, que ateste sua
imprestabilidade para o consumo.

“Caracteriza o crime previsto no art. 7º,


IX, da Lei nº 8.137/90, a conduta de dono de
farmácia que mantém medicamentos com prazo de
validade vencido expostos nas prateleiras, sendo
fantasiosa a versão revelada de que se utilizava dos
medicamentos em questão para decora as prateleiras,
pois a figura é de ordem formal e, portanto, a
consumação se antecipa ao momento da exposição
dolosa do medicamento inservível” (Apelação. nº
1.051.455/7, julgado em 03/04/1997, 1º Câm., Rel.
Juiz Eduardo Goulart, RJTA-CRIM- 35/129).

Mais, ainda, irrelevante venha a ser constatado por


perícia que o produto apresentava condições de ser consumido.

“A conduta do comerciante que expõe à


venda produto com o prazo de validade vencido é
suficiente para a caracterização do crime previsto
no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90 c.c. o art. 18, §
6º, I, da Lei 8.078/90, sendo irrelevante que após a
apreensão da mercadoria se constate, através de
análise laboratorial, que a mesma ainda era própria
para o consumo, visto que o delito em apreço é de
perigo abstrato, aperfeiçoando-se com a mera
transgressão da norma incriminadora,
independentemente de comprovação da impropriedade
material ou real do produto” (Apelação nº 986.425/8,
Julgado em 27/02/1996, 13ª Câm., Rel. Juiz Roberto
Mortari, RJTACRIM – 30/110).
“O delito do art. 7º, IX, da Lei nº
8.137/90, é formal e de mero perigo presumido, sem a
necessidade de constatação da existência de perigo
concreto, bastando à sua configuração a comprovação
de vender, ter em depósito para vender ou expor à
venda, ou, de qualquer forma, entregar a matéria
prima ou mercadoria, em condições impróprias de
consumo, sendo irrelevante o local de exibição dos
produtos apreendidos” (Apelação nº 1.001.755/1,
Julgado em 19/03/1996, 14º Câm., Rel. Juiz Oldemar
Azevedo, RJTACRIM – 30/104).
“Tratando-se de crime contra as relações
de consumo, consistente na venda de medicamentos com
o prazo de validade vencido, é desnecessária a
realização de prova pericial a fim de aferir se o
produto ainda se prestava para o uso eficaz, pois,
por tratar-se de crime de perigo abstrato, o tipo
previsto no art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, se
aperfeiçoa com a mera transgressão da norma
incriminadora” (RT – 750/600).” (Fls. 349/350).

E, mais adiante: “Aliás, a argumentação apresentada


a fls. 3/8, que se refere a aspectos de responsabilidade civil
e administrativa, não se contrapõe à recepção da conduta do
paciente como típica.
Não se questiona, de qualquer forma, a necessidade
de perícia para aqueles casos que não estão ligados ao prazo
de validade do produto.
Grande parte dos julgados juntados pelo impetrante
(fls. 9/10 e 12/14) refere-se à necessidade na constatação
técnica diante da violação de normas do Código Sanitário
Estadual que, data venia, não pode ser confundida com a
conduta objeto da ação penal que ora se analisa.
A capitulação prevista no art. 7º, inciso IX, da Lei
nº 8.137/90, que faz menção a condições impróprias para
consumo, vem explicitada pelo art. 18, § 6º do Código de
Defesa do Consumidor, onde em seus três incisos trata de
situações diversas, que comportam tratamento também diferente.
Assim é que os incisos II e III, por óbvio, exigem a
constatação pericial para que se comprove a sua impropriedade
para o consumo.
De outro lado, o inciso I é categórica ao dispor que
materializa-se como impróprio para o consumo o produto que
esteja com prazo de validade vencido.
Assume o comerciante a responsabilidade de manter
exposto à venda apenas produtos que estejam dentro da data de
validade.
O dolo eventual está presente, manifestado pelo bem
impróprio ao consumo exposto à venda. A essência do crime está
na lesão ao interesse jurídico da coletividade. Nesse sentido
RJTACRIM – 31/99.
Esse interesse coletivo só será protegido se a norma
tiver seu alcance amplo, responsabilizando o agente pela
exposição do produto impróprio, diante da materialização do
perigo abstrato, suficiente para caracterizar a delito” (Fls.
350/351).
Aliás, evidenciando não se tratar de hipótese de
concessão do writ, disse, com multa propriedade a culta
Subprocuradora-Geral da República Dra. Laurita Hilário Vaz, in
verbis: “Em primeiro lugar, diz o mencionado artigo:

“Art 7º. Constitui Crime contra as


relações de consumo:
(...)
IX. vender, ter em depósito para vender ou
expor a venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou
mercadoria, em condições impróprias ao consumo.”

Referido dispositivo é norma penal em branco que


encontra, in casu, seu adequado complemento no Código de
Defesa do Consumidor (vide art. 18, da Lei nº 8.078/90):

6º. São impróprios ao uso e consumo:


I. os produtos cujos prazos de validade
estejam vencidos.
(...)
Entender irrelevante a fixação de um prazo de
validade, vencido o qual o produto não deve ser consumido, é
atentar, flagrantemente, contra qualquer tutela que se
pretenda dar aos direitos do consumidor. Afinal, se se requer
como condição para que um produto seja posto em
comercialização, que se fixe um prazo de validade do produto,
não se entende possível sua desconsideração para caracterizar
um crime contra as relações de consumo, posto que é claro que,
após referido prazo, o produto não tem mais garantia de estar
integro em suas qualidades e apto a ser consumido.
Se assim não fosse, poderia o fabricante do produto
prever prazo maior do que o real prazo de validade do mesmo,
ou dispor no rótulo: “próprio para ser consumido até que se
prove que ele não está mais adequado para este fim...” É o que
pretende o impetrante, o que é totalmente inadmissível.
Ademais, é certo que a responsabilidade do
comerciante por eventual dano mais grave sofrido por um
cidadão consumidor de produto com prazo de validade vencido
não está sujeita a discussões sobre a potencialidade nociva,
já que o produto vencido deve ser prontamente descartado por
encontrar-se fora das condições possíveis de consumo” (Fls.
447/448).
Como precedente, tem-se, ainda, v. aresta do
Pretório Excelso que indica válida a incriminação nos termos
do art. 7º, inciso IX, da Lei nº 8.137/90 c/c o art. 18, § 6º,
inciso I, do CBDC, bem assim, reconhece o tipo cama de perigo
presumida. Senão vejamos:

“I. Crime contra relações de consumo (L.


8.137/90, art. 7º; IX): imputação atípica.
Não realiza o tipo do art. 7º, IX, da L.
8.137/90 o depósito, em estabelecimento industrial,
de produtos impróprios ao consumo “porque vencido o
respectivo prazo de validade (CBDC, art. 18, § 6º,
I)”, porém, não destinados à venda e sim “conforme a
denúncia mesma” à utilização como insumo na
fabricação de medicamentos a que dedicada a empresa
de responsabilidade da denunciada.
Ainda quando se cuide, como no caso, de
crime de mera conduta “por isso chamado de
consumação antecipada”, não é dado ao intérprete
antecipar-se ainda mais à consumação do crime, já
antecipada por lei para o momento da conduta nela
descrito, a fim de colher momentos anteriores, mesmo
que constituam antecedentes necessários da
realização do fato incriminado.
II. Habeas corpus por falta de justa causa:
à sua concessão, quando a ausência de criminalidade
do fato imputado ao paciente independer de instrução
criminal, não importa que implique “absolvição sem
processo”: ao contrário, o que os principias e a
Constituição não toleram é a condenação sem processo
(CF, art. 5º, LIV e LVII).”
(STF, HC 76.959-SP, 1º Turma, Relatar
Ministro Sepúlveda Pertence, DJU de 23/10/98).

Voto, pois, pelo indeferimento do writ.”

Teve o acórdão recorrido por tipificada, no caso concreto, a


figura penal definida no art. 7º, IX da Lei nº 8.137/90, que, por ser
norma penal em branco, foi adequadamente preenchida pelo art. 18, § 6º,
I, do Código de Defesa do Consumidor, que assim definiu o que seja
impróprio para o consumo:

“§ 6º - São impróprios ao uso e consumo:

I - os produtos cujos prazos de validade


estejam vencidos.

Não há o que questionar em relação à caracterização definida


no mencionado dispositivo, ante o que ficou positivado na denúncia, que
registra que o recorrente expôs à venda oito quilos de farinha de trigo
com a data de validade vencida, colocando em perigo de dano o
consumidor.

Diz o recorrente que para a constatação da impropriedade


material do produto, sob a ângulo do Código de Defesa do Consumidor,
seria necessária a realização de exame pericial para verificação da
potencialidade nociva do produto, providência que não se efetivou, uma
vez que a mercadoria foi aprendida pela vigilância sanitária e
incinerada.

Tal argumento improcede.

A exposição à venda de produto impróprio ao uso e consumo,


porque com o respectivo prazo de validade vencido (inciso I do § 6º do
art. 18 do CDC), por si só, já configura o delito do art. 7º, inciso IX,
da Lei nº 8.137/90, que é formal e de mera conduta, consumando-se com a
simples ação do agente, sendo dispensável para sua configuração a
ocorrência de prejuízo efetivo.

Nos crimes de ordem formal, a consumação ocorre no momento da


exposição dolosa do produto imprópria ao consumo, independentemente da
comprovação da sua impropriedade material para o consumo.

Assim, não há como conceder a ordem por falta de justa causa,


sob o fundamento da atipicidade da conduta.

É certo que esta Turma, em hipótese similar, citada inclusive


pelo acórdão recorrido, concedeu habeas corpus para trancar ação penal
por atipicidade de conduta do agente, em processo em que farmacêutica
responsável por laboratório, e também dele proprietária, tinha em
depósito matéria-prima que seria empregada no fabrico de medicamentos. O
Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, examinando o caso à luz do art. 7º
da Lei nº 8.137/90 – “vender, ter em depósito para vender ou expor à
venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em
condições impróprias ao consumo” - concluiu pela atipicidade da ação da
paciente, ao entender que a norma não quis incriminar o simples depósito
do produto impróprio, mas, sim, a sua venda para consumidor final ou
fornecedor.

Disse S. Exa.:

“Cuidar-se de uma infração de mera conduta não


dispensa, contudo, para a sua configuração, o juízo positivo
de tipicidade, vale dizer, de estrita correspondência entre o
tipo legal e o fato concreto.
E dizer: embora - ao contrário do que sucede aos
delitos materiais - a verificação de um resultado externo à
ação ou omissão incriminadas, à consumação dos crimes formais
é necessário que a ação ou omissão bastantes à sua realização
se amoldem precisamente à descrição legal típica.
Por isso, não é dado ao intérprete antecipar-se
ainda mais à consumação do crime, já antecipada por lei para o
momento da conduta nele descrito, a fim de colher momentos
anteriores, mesmo que constituam antecedentes necessários da
realização do fato incriminado.
No caso, à consumação do crime - se o tipo legal
reclama a venda, a exposição à venda ou o depósito para vender
produto acabado e destinado ao consumo - ao aplicador da lei
não é dado contentar-se com a posse dos insumos - de
matéria-prima, como reconhece a denúncia - ainda que ela
constitua antecedente necessário da fabricação e, esta, da
destinação à venda”.

Trata-se de precedente que, como se pode constatar, corrobora


o entendimento do acórdão recorrido.
Por fim, quanto à alegação de que a decisão recorrida acabou
por acolher a responsabilidade objetiva, incompatível com os princípios
informadores do Direito Penal Brasileiro, também não tem razão o
recorrente.
Como entendeu o parecer da Procuradoria-Geral da República, em
face da natureza do crime, “o dolo eventual está presente, manifestado
pela conduta livre e consciente de expor à venda produto não mais
comercializável, ou melhor, legalmente previsto como impróprio para o
consumo, causando lesão ao interesse jurídico da coletividade”.

Ante o exposto, meu voto nega provimento ao recurso.

AM/emo
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
301
PRIMEIRA TURMA

EXTRATO DA ATA

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N. 80.090-4


PROCED. : SÃO PAULO
RELATOR : MIN. ILMAR GALVÃO
RECTE. : ALESSANDRO SCHIRRMEISTER SEGALLA
PACTE. : JOSÉ CARLOS MARTINS OU JOSÉ CARLOS MARTINS PEREIRA
RECDO. : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Decisão: A Turma negou provimento ao recurso ordinário em


habeas corpus. Unânime. 1ª. Turma, 09.05.2000.

Presidência do Senhor Ministro Moreira Alves. Presentes à


Sessão os Senhores Ministros Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Sepúlveda
Pertence e Ilmar Galvão.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Natal Batista.

Ricardo Dias Duarte


Coordenador

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