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A ciência sem nome de Aby Warburg


NORVAL BAITELLO JUNIOR

09/05/2017 17h52

Um menino que não quis um banco de herança

Tudo na vida de Aby Warburg foi surpreendente: seu pensamento e a proposta de uma
nova ciência, sua biblioteca, sua longa enfermidade e sua cura, seu discreto silêncio,
sua paixão pelas imagens, suas ousadas ideias, sua febril atividade arquivística e
colecionista.

Mas nada pode ser mais impactante aos olhos da civilização ocidental, que aprecia o
poder e o dinheiro, que a atitude do menino Aby, como primogênito de família judaico-
alemã, herdeiro do poderoso Banco Warburg, de seu pai. Chama seu irmão Max, de 12,
e pergunta se quer o banco. Max, surpreso, logo indaga sobre as condições. Aby
responde de pronto: em troca, Max deveria comprar todos os livros que o primogênito
escolhesse, a vida toda.

Max aceitou no ato, e ficou selado o trato entre dois meninos, de 13 e 12 anos. Ali
nascia a notável Biblioteca Warburg para a Ciência da Cultura, sediada primeiramente
em Hamburgo, sua cidade natal, e posteriormente em Londres, a partir da ascensão de
Hitler (que Warburg não mais viu, pois ocorreu após a sua morte, em 1929). O menino,
nascido em 1866, que estudou arqueologia e história da arte, preferiu os livros e seu
mistério, abrindo mão do banco e seu poder.

Uma biblioteca em que os livros conversam entre si

Aby fazia viagens à Itália, sua paixão, buscando preciosidades, testemunhos de mundos
perdidos ou recalcados, tratados esquecidos pela poeira de muitos séculos, manuais de
ciências ocultas e ora desprezadas, livros especiais em todas as áreas da cultura
humana. Colecionados a partir de raridades e amplitude de temas, durante muitas
viagens e correspondências com antiquários, os livros não se organizavam na biblioteca
por princípios alfanuméricos, mas pela "lei do melhor vizinho".

Assim, um livro de matemática poderia estar ao lado de um volume de astrologia e de


outro de numerologia –que, por sua vez, estaria ao lado de um quarto tomo, este de
cura talismânica. Em outro pareamento, um livro de arte poderia estar ao lado de um de
alquimia, a mitologia em diálogo com a astronomia; magia e ciência não eram âmbitos
excludentes.

Os saberes esquecidos ou arcaicos tinham sempre a atenção especial de Aby Warburg


e de seu bibliotecário Fritz Saxl, ambos arqueólogos de temas e imagens que migravam
entre diferentes culturas. De tempos em tempos, os livros também se mudavam para
outras estantes, em busca de outros vizinhos e de novos diálogos. Assim, a biblioteca
não era fixa em sua organização e não se oferecia como um mapa, talvez mais como
um labirinto de surpresas, um lugar para o leitor se perder.

O depoimento mais notável e fiel a respeito da Biblioteca Warburg para a Ciência da


Cultura foi registrado por Ernst Cassirer, seu amigo, após sua primeira visita, guiado

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pelo próprio Warburg. Depois de horas de visita, Cassirer retornou a sua casa em
estado de choque e jurou à esposa que nunca mais poria os pés naquela biblioteca. Se
o fizesse, ele temia não mais conseguiria sair. Mas a tentação era irresistível. O filósofo
não conseguiu cumprir o juramento, regressando ao local muitas vezes.

Certamente não se tratava de biblioteca simples nem cartográfica. Entretanto, uma


organização foi pensada por Warburg e se fazia sentir como âmbito de problemas.
Havia quatro grandes seções assim denominadas: 1) imagem; 2) palavra; 3) orientação;
e 4) ação.

Além disso, atendendo à "lei da boa vizinhança", mas sem prender os livros a uma
posição fixa e eterna, cada volume recebia na lombada três tiras coloridas, a saber: a)
área científica (cada uma com a sua cor –por exemplo, verde escuro para filosofia, vinho
para história da arte, e assim por diante); b) valor metodológico (diferenciando tratados,
manuais, fontes ou valor histórico); e c) subclasses às quais pertenciam as obras (por
exemplo, religião helenística dos mistérios, Idade Média oriental, Renascimento).

Tais princípios organizativos exigiam dos funcionários, de tempos em tempos,


trabalhosas operações de realocação dos livros. Sua mobilidade e sua flexibilidade, por
outro lado, ofereciam aos usuários sempre novos desafios e novas questões, sugeriam
novas combinações e conexões entre os saberes. A migração dos livros representava
também o pensamento de Warburg a respeito das imagens e suas migrações através de
épocas e culturas distintas.

Uma doença e sua "cura infindável"

Apaixonado pela força das imagens e por sua capacidade de permanência ao longo da
história humana, Warburg as colecionava, levando em conta a miríade de origens delas:
desde os ambientes do mito, do culto e das religiões até os artísticos, passando por
aqueles nascentes à época dele, como os da mídia, do cinema, da fotografia e da
propaganda. Ele colecionou fotos da 1ª Guerra Mundial com o mesmo zelo com que
lidou com a imagem escolhida para sua tese doutoral, a Vênus de Botticelli.

Ao fim da guerra, o estudioso das imagens começou a se mostrar acossado por


imagens internas. Via perseguidores atacando seus filhos, esposa, irmãos e familiares.
E reagia, ameaçando-as de volta, em temperamento colérico, como ele próprio definia.

Os irmãos se apressaram em buscar ajuda psiquiátrica, primeiro em Hamburgo, depois


em Jena e finalmente em Kreuzling, na Suíça, com o já consagrado Dr. Ludwig
Binswanger, titular da clínica Bellevue. Os prontuários dessa longa internação (que
terminaria apenas em 1924) dão um testemunho dos tormentos, da inquietação e da
fúria do paciente, sobretudo após a partida dos entes que vinham visitá-lo. Warburg
temia que os parentes fossem assassinados na viagem de volta, que fossem vítimas de
um complô.

Os registros médicos foram publicados recentemente sob o nome de "Die unendliche


Heilung" (A cura infindável). Ali estão tanto as observações diárias de enfermeiros e
médicos como a correspondência posterior entre Warburg e o médico. O prognóstico de
Binswanger era pessimista, como ele próprio responde em correspondência a seu
colega Sigmund Freud, quando inquirido sobre o "famoso professor".

A família providencia um segundo diagnóstico e convida Emil Kraepelin a consultar o


paciente. Kraepelin diverge de Binswanger e aponta o quadro como reversível.

Em 1923, o paciente toma a iniciativa de demonstrar aos médicos sua sanidade:


propõe-se a fazer uma conferência ilustrada com diapositivos, para médicos e pacientes

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da clínica, sobre sua viagem às aldeias dos índios Hopi, do Novo México, em 1895, e
sobre seus rituais com serpentes vivas.

Para tanto, manda vir de sua biblioteca a coleção de diapositivos que ele mesmo fizera
durante a viagem e apresenta a conferência "Imagens da Região dos Índios Pueblos da
América do Norte" em 21 de abril.

A palestra tratava da presença física da serpente nos rituais e de sua presença


imagética sob as mais variadas formas, nos degraus nos altares, nos desenhos e nos
cultos Hopi, nos desenhos de crianças e sob a forma de relâmpagos e raios nos céus.
Warburg associa a mitologia Hopi a outras em que as serpentes possuem a mesma
função de unir o inframundo com os céus, sendo agente de chuvas e fertilidade, assim
como de cura.

Na epígrafe da conferência, ele escreve "Folheio em velhos livros, de Atenas a Oraibi,


[somos] todos primos", anunciando a recorrente presença das mesmas imagens em
culturas tão distantes e distintas.

Finda a comunicação, a junta de médicos decide considerar o paciente recuperado e lhe


dá alta um ano depois.

Warburg envia suas anotações da palestra a seu bibliotecário Fritz Saxl com a instrução
expressa de não publicar e de não mostrá-las a ninguém, com exceção de seu amigo
Ernst Cassirer.

Saxl obedeceu à ordem até 20 anos após a morte de Warburg, publicando as notas em
inglês no Warburg Institute em Londres. A edição alemã só seria publicada quase 40
anos depois. Hoje, tal escrito breve é considerado chave para o pensamento inovador
de Warburg sobre as imagens que povoam nosso mundo e hoje ocupam todos os
nossos espaços, dos mais públicos aos mais íntimos.

É a demonstração da ousada tese de Aby Warburg sobre algo que ele chama de
Nachleben, palavra alemã criada por ele (como costumava fazer com frequência) e que
significa "pós-vida", uma vida após a vida. Não se trata de vida póstuma, como alguns a
traduziram, pois não é vida após a morte. Tampouco é "sobrevivência" ou "sobrevida"
como tantos outros a traduziram, pois não é continuação da vida após uma crise ou uma
ameaça. A imagem é sempre uma pós-vida.

Um "guarda-venenos"

O mundo da arte e a imagem artística sempre tiveram grande importância para


Warburg. Mas sempre procurando enxergar "o sentido da vida, o lugar da arte na vida, a
ocorrência do lugar do conhecimento na vida", como formulado por Marie-Anne
Lescourret na excelente biografia "Aby Warburg ou la tentation du regard" (Aby Warburg
ou a tentação do olhar), de 2014.

Em suas conferências, acompanhadas inevitavelmente de painéis com imagens


apresentadas lado a lado, Warburg enfatizava a imagem e seus sentidos, nunca
priorizando apenas seu valor estético.

O que isso significa em nossos dias? Um depoimento de um jovem discípulo informal


pode esclarecer muito da visão pioneira, transgressora e rebelde de Warburg sobre sua
época (e mais ainda sobre a nossa). A pedido de uma amiga de sua mulher, ele recebeu
o adolescente Carl Georg Heise, que pretendia estudar história da arte. A intenção do
rapaz era obter orientações. A conversa inicial se transformou em uma série de
explanações a respeito de imagens da arte que ambos contemplaram juntos a título de

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preparação do jovem Carl Georg. Na vida adulta, ele se tornaria diretor da renomada
Kunsthalle Hamburg e publicaria, depois da morte do mestre, suas "Recordações
Pessoais de Aby Warburg" (1947).

Relata Heise que Warburg fazia duras críticas à maneira como ele via as obras de arte,
em uma leitura "excessivamente estetizante". Certo dia, o estudioso mostrou ao
discípulo um armário trancado dentro de sua biblioteca, explicando: "Aqui se encontram
as obras que nunca devem ser seguidas, aquelas de visão exclusivamente estetizante.
Este é o guarda-venenos (Giftschrank, em alemão)".

Heise logo perguntou por que guardar na biblioteca coleção tão nociva. O metre
retrucou que era preciso manter o diabo sempre por perto para acompanhar suas
diabruras.

Um atlas das imagens e uma "ciência sem nome"

O genial inventador de palavras para definir novas maneiras de compreender as


imagens nunca se anunciou como fundador de uma nova ciência, nem se preocupou em
dar um nome ao saber novo que ele praticava. Sua ciência permaneceu "sem nome",
uma vez que não se restringe a uma iconologia, nem é história da imagem, nem
iconografia. É muito mais, traduzindo-se como o estudo das imagens como "fórmula de
pathos", (Pathosformel, fórmula de emoção, positiva ou negativa), expressão que
designa o poder que as imagens possuem sobre nossos olhares e emoções.

Mesmo assim, o que melhor nomeia tal ciência não é uma palavra, mas um projeto, uma
obra inacabada, utópica: a construção de um atlas das imagens, o Bilderatlas
Mnemosyne, uma coleção de painéis com "famílias de imagens", uma reunião exaustiva
de todas as famílias de imagens de todos os tempos.

Aby Warburg morreu antes de terminar sua gigantesca obra (deixou apenas algumas
dezenas de painéis), mas também não presenciou as imagens que seus surtos
psicóticos anteciparam em quase 20 anos.

NORVAL BAITELLO JUNIOR é professor de teoria da imagem e teoria da cultura na


pós-graduação da PUC-SP. Pesquisador do CNPq, escreveu os livros "A Era da
Iconofagia" e "O Pensamento Sentado", entre outros.

Endereço da página:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/05/1882484-a-ciencia-sem-nome-de-aby-warburg.shtml

Links no texto:
Aby Warburg
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/05/1881548-a-atualidade-do-pensamento-do-historiador-de-
arte-aby-warburg.shtml

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