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25/05/2016 Fontes de mitos ­ Revista de História

Fontes de mitos
Sem conhecer o interior da Colônia, exploradores recorriam à imaginação. O
que os olhos não veem, os cartógrafos desenham
Marcelo Motta Delvaux
1/4/2014  

Se os espanhóis haviam se deparado


com tesouros durante a conquista
do império inca, entre 1531 e 1533,
por que não haveria preciosidades
semelhantes no interior do Brasil?
Apesar de as terras brasileiras
parecerem imensas e difíceis de
explorar, os cronistas e viajantes do
século XVI estavam convictos de que
as áreas pertencentes a Portugal e
Espanha no Novo Mundo tinham as
mesmas características. O sertão
brasileiro prometia ser tão próspero
em metais preciosos quanto o Peru,
já que ambos, supostamente,
constituíam uma mesma realidade
geográfica.

Nos dois primeiros séculos de Obra de Vicenzo Coronelli, 1689. No interior do Brasil,
ocupação da América, os além das famosas lagoas, a localização da "Serra do
portugueses se espraiaram pelo Sabarabussu". Acreditava‐se na existência de uma serra
litoral. O interior do território era resplandecente no interior do território. (Fundação
praticamente desconhecido e esse Biblioteca Nacional)
imenso “vazio geográfico” inspirava
a crença em tesouros magníficos,
escondidos nas vastidões do Brasil. Por isso, diversos lugares lendários aguçaram a imaginação
dos aventureiros, que se arriscavam no interior em busca de riquezas minerais. E os cartógrafos,
movidos pela fé em lugares míticos, preenchiam as lacunas dos mapas com lagoas, serras e
cidades fantásticas.

Os mitos difundidos na América têm basicamente duas origens: o Eldorado, que está ligado à
penetração e à ocupação dos Andes peruanos pelos castelhanos e às investidas pioneiras na
Amazônia; e o imaginário elaborado durante o povoamento do rio da Prata e do Chacoparaguaio
no século XVI.

A lenda do Eldorado surgiu a partir da conquista de Quito pelo espanhol Sebastián de Benalcázar,
em 1533. Nessa época, contava‐se a história de um chefe indígena que se banhava em uma lagoa
com o corpo coberto por ouro em pó. Anos depois, o Eldorado se converteu, no imaginário dos
exploradores, de lagoa para a cidade mítica de Manoa, migrando dos Andes para a Amazônia. O
local passou a ser representado em muitos mapas, como na carta da Guiana elaborada pelo
holandês Jodocus Hondius em 1599, às margens de um lago denominado Parima, na região entre
a Venezuela e a Guiana.

Outra lagoa lendária figurava em fontes cartográficas da América portuguesa: o “Alagoado

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Eupana”. Gigantesca, era considerada a nascente de rios importantes como o São Francisco, o
Rio da Prata e alguns afluentes do Amazonas, tendo sido conhecida por vários outros nomes,
como Alagoa Grande, Lagoa Dourada e Paraupava.

Um dos conquistadores espanhóis a percorrer a região do rio da Prata e o Paraguai foi o capitão
Hernando de Ribera, nos anos de 1543 e 1544. Em suas narrativas, encontram‐se muitas
referências fantásticas, como a menção às “amazonas”, as mulheres guerreiras da mitologia
grega, e à existência de um lago denominado Casa do Sol: “Informaram [os índios] ainda que por
aquela parte em que moravam as ditas mulheres havia ainda muitas outras populações, (...)
perto de um lago muito grande, que os índios chamavam de Casa do Sol, porque era ali que o sol
desaparecia”.

Outros textos produzidos por cronistas portugueses davam descrições parecidas, como os de Pero
de Magalhães Gandavo (1540?‐1579?), do padre Manoel da Nóbrega (1517‐1570) e de Gabriel
Soares de Sousa (1540?‐1590). Gandavo menciona uma lagoa existente na nascente do rio São
Francisco: “Principalmente é pública fama entre eles [os índios] que há uma lagoa mui grande no
interior da terra donde procede o Rio de São Francisco”. Gabriel Soares de Sousa, além da alusão
às amazonas, chama esse lago de Alagoa Grande: “Ao longo deste rio [São Francisco] vivem
agora alguns caetés, de uma banda, e da outra tupinambás; mais acima vivem os tapuias de
diferentes castas, tupinaés, amoipiras, ubirajaras e amazonas (...). Este gentio se afirma viver à
vista da Alagoa Grande”.

Como as regiões andina e amazônica eram distantes da costa atlântica, onde os portugueses
estavam nessa época, o Eldorado não exerceu tanta influência sobre esses colonizadores. Outra
razão para este pouco interesse foi a prioridade dada à prata e às esmeraldas, em vez do ouro,
pelos aventureiros que adentravam o sertão. Já na primeira metade do século XVI, as notícias
transmitidas pelos índios guaranis do sul do Brasil levaram ao surgimento da lenda sobre uma
Serra da Prata no interior do continente. Falava‐se também, na capitania de Porto Seguro, sobre
uma Serra Resplandecente, acontecimento revelado por Gandavo: “A esta Capitania de Porto
Seguro chegaram certos índios do Sertão a dar novas dumas pedras verdes que havia numa serra
muitas léguas pela terra dentro, (...) e que esta serra era mui formosa e resplandecente”.

Esta serra pode ter originado outras montanhas lendárias brasileiras. Conforme revela Gandavo,
a Serra Resplandecente era vista como um monte riquíssimo em esmeraldas. A partir do século
XVII, surgiram duas novas referências míticas: o Sabarabuçu e a Serra das Esmeraldas. O
vocábulo Sabarabuçu corresponde à denominação na língua tupi para a Serra Resplandecente dos
cronistas portugueses. Mas, no lugar de esmeraldas, o Sabarabuçu era uma montanha de prata,
possivelmente uma influência da Serra da Prata quinhentista, cuja existência era largamente
comentada, no século anterior, ao longo do litoral brasileiro e do rio da Prata até o Paraguai.

O Sabarabuçu e a Serra das Esmeraldas foram, durante o século XVII, os principais alvos das
expedições ao interior do Brasil. Vários mapas e relatos da época incluíam essas montanhas
fabulosas como elementos geográficos “reais”. A descrição da capitania do Espírito Santo,
elaborada pelo cartógrafo português João Teixeira Albernaz em torno de 1626, apresenta a
primeira representação gráfica da Serra das Esmeraldas. O Sabarabuçu, por sua vez, é retratado
no mapa da América Meridional do cartógrafo italiano Vincenzo Maria Coronelli, de 1691. O
curioso é que esses dois desenhos exibem uma lagoa sem nome junto dessas serranias míticas,
sugerindo sua vinculação com a lenda da Alagoa Grande. Esta associação é feita, explicitamente,
em um mapa da capitania de Sergipe, ao mostrar um lago denominado “Upabuçû Lagoa Grande”
próximo a um monte chamado “Itaberaba”. Aqui, vale a pena chamar a atenção para a
nomenclatura: Itaberaba e Sabarabuçu, etimologicamente, possuem o mesmo significado na
língua tupi.

As montanhas e lagoas lendárias não foram rapidamente esquecidas com a descoberta do ouro
nas Minas Gerais, no final do século XVII. Em um mapa produzido por volta de 1700 pelo padre
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jesuíta francês Jacobo Cocleo, é possível observar citações míticas como o Sabarabuçu, a Serra
das Esmeraldas e a “Itaberaba monte que resplandece”. Além destas referências herdadas dos
séculos anteriores, a abundância das jazidas auríferas enriqueceu a imaginação dos exploradores
com novas crenças e lugares fabulosos, como o Morro da Esperança – supostamente localizado no
sertão do Rio Grande, ao sul da capitania –, a Casa da Casca, a Ibituruna e a Serra das
Ametistas, avidamente buscadas nos “sertões do leste”, nas regiões orientais do rio
Jequitinhonha e do rio Doce.

À medida que a mineração avançava por áreas até então desabitadas, alguns mitos perdiam seu
fascínio, enquanto outros se deslocavam para zonas ainda desconhecidas do sertão, como o leste
da capitania de Minas Gerais. Pelo menos até meados do século XIX, terras inexploradas
provocavam o desejo de riquezas e, claro, muita fantasia. 

Marcelo Motta Delvaux é autor da dissertação “As minas imaginárias: o maravilhoso geográfico
nas representações sobre o sertão da América portuguesa – séculos XVI a XIX” (UFMG, 2009).

Saiba mais ‐ Bibliografia

         COSTA, Antônio Gilberto. Roteiro prático de cartografia: da América portuguesa ao Brasil
império. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil; História da Província Santa Cruz.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

MICELI, Paulo. O tesouro dos mapas: a cartografia na formação do Brasil. São Paulo:
Instituto Cultural Banco Santos, 2002.

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