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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LORENA LEITE ARAGÃO

O QUE SE DÁ, O QUE SE HERDA, O QUE SE GERA: FAMÍLIA, POLÍTICA E


TERRA ENTRE OS HABITANTES DO VILAREJO DO VENÂNCIO, BARROQUINHA
- CEARÁ.

CAMPINAS
2018
LORENA LEITE ARAGÃO

O QUE SE DÁ, O QUE SE HERDA, O QUE SE GERA: FAMÍLIA, POLÍTICA E


TERRA ENTRE OS HABITANTES DO VILAREJO DO VENÂNCIO, BARROQUINHA
- CEARÁ.

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia


e Ciências Humanas da Universidade Estadual
de Campinas como parte dos requisitos exigidos
para obtenção do título de Mestra em
Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Nashieli Rangel Loera

CAMPINAS
2018

Este exemplar corresponde à versão final da


dissertação defendida pela aluna Lorena Leite
Aragão e orientada pela Profª Drª Nashielli
Rangel Loera

___________________________
Assinatura da Orientadora
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 26 de março de 2018,
considerou a candidata Lorena Leite Aragão aprovada.

Profa. Dra. Nashieli Rangel Loera - Unicamp (orientadora)

Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello – Unesp (membro)

Prof. Dr. Antônio Roberto Guerreiro Júnior – Unicamp (membro)

Profa. Dra. Artionka Manoela Capiberibe – Unicamp (suplente)

Profa. Dra. Verena Sevá Nogueira – UFCG (suplente)

A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de


vida acadêmica da aluna.
Agradecimentos

A escrita da dissertação não foi um processo fácil. Daquilo que se recebe, muitas
outras são tomadas em troca. Com o processo de construção de conhecimento, esta lógica não
seria diferente. Das coisas que tive de ceder para continuar, ao longo dos dois anos de mestrado,
esta jornada não teria sido suportável sem o apoio das pessoas que aqui irei agradecer. Esta
dissertação foi escrita por muitos e muitas e é a eles e elas que este trabalho será dedicado.

Agradeço, em primeiro lugar, às divindades espirituais que me circundam, que me


provêm força, que abrem os meus caminhos e que permitem a realização dos meus sonhos. Se
eu não tivesse fé, dificilmente eu estaria aqui escrevendo esta dissertação. Falar de fé e
proteção é falar, ao mesmo tempo, de minha família: minha mãe, Francimar, meu pai, José (em
memória), minha irmã Roberta e seu esposo, Armando. A fé que eles depositam em mim ao
longo do meu percurso dentro, e fora, da academia me faz pensar que, até nos momentos mais
difíceis, haverá sempre uma outra alternativa, uma rota com novos caminhos. Para a minha
sorte, um novo caminho foi aberto há um ano com a chegada da nossa florzinha Laura, minha
sobrinha, que veio para abrilhantar e renovar o amor e a esperança em nossa família. Agradeço
ainda à parte de minha família cearense residente em São Paulo, à Andrea, Haroldo, Carol e
Zenaide, por fazerem com que eu me sentisse acolhida e bem cuidada, mesmo estando em
terras distantes.

A minha existência na Unicamp não teria sido possível sem o apoio que minha
orientadora Nashieli me deu durante todo esse percurso. Nashieli depositou em mim, como em
minha pesquisa, uma confiança inquestionável, mostrou-me que sou capaz de realizar
descobertas e trilhar caminhos que até pouco tempo seriam, por mim, inimagináveis. Devo a
você, Nash, carinho, respeito e admiração.

Às minhas professoras do primeiro ano de curso, Suely Kofes, Artionka Capiberibe


e Bibia devo o engrandecimento teórico-metodológico adquirido no decorrer das aulas.
Certamente, seus ensinamentos não serão esquecidos.

Agradeço, ainda, à banca avaliadora desta dissertação, Antônio Guerreiro e Renata


Paoliello, por conferirem um outro, e aprofundado, olhar à minha pesquisa. Às suplentes
Verena Sevá e Artionka Capiberibe, agradeço por se disponibilizarem tão prontamente à esta
função. Aos professores Christiano Tambascia, Mariana Françoso, Márcio Silva e Jorge Vilella
agradeço pelas conversas e pelos ensinamentos.

Agradeço, ainda, às minhas colegas de Ceres, Elis, Lídia, Marina e Maiane por
compartilharem neste grupo suas descobertas etnográficas e permitirem a nossa mútua
construção intelectual. Aos funcionários do prédio do IFCH e à Márcia Goulart, agradeço por
facilitarem os processos fora da sala de aula.

Agradeço, ainda, ao CNPq por garantir para a minha permanência em Campinas, na


Unicamp, bem como a realização de minha pesquisa.

Das fortunas que esta vida me permite ter, as amizades que possuo são uma das mais
valiosas. Em Campinas, tive a sorte de entrelaçar meu caminho aos de pessoas incríveis,
amorosas e divertidas o que garantiu, com toda certeza, que minha estada em uma nova cidade
se tornasse mais leve. À amiga Ana Rabêlo agradeço todo carinho e cuidado que você tem
comigo, desde os nossos primeiros dias de Barão Geraldo. À Maiara Dourado, Lígia Medeiros,
Brunela Succi, Laura Luedy e Ralyana Freire agradeço o suporte emocional e as palavras
sempre reconfortantes. Ao amigo Cristiano Sobroza, agradeço por ter te encontrado, que nossa
amizade e afinidades e sejam infinitas. À José Cândido agradeço por acalentar, com tanta
paciência, as minhas inseguranças intelectuais.

Às amigas e amigos de Fortaleza, amizades de décadas, agradeço o imensurável


carinho que vocês me dão diariamente. Em especial, agradeço à minha amiga Joana Borges, por
todos os momentos alegres e tristes que passamos e vamos passar juntas: You are my person.
Agradeço, ainda, às amigas de UFC, Janainna Pereira e Lara Saraiva, amigas antropólogas que
a vida me permite ter. Ao meu amigo e colega de profissão, Jorge Luan, agradeço por toda
solicitude conferida à minha pesquisa. Pensar o campesinato feito no e do Ceará, com você,
tem uma sido uma das experiências mais prazerosas.

Agradeço, por fim, mas não menos importante àqueles que, de fato, dão forma e
sentido à minha pesquisa e, ouso a dizer, conferem substância ao meu projeto intelectual. À D.
Adelaide, por nossas conversas ao pé da pia, D. Otacília, Cícero Vieira, Zé Vieira, à D. Marli e
Seu Otacílio por sempre terem me recebido com cuidado e atenção. Aos herdeiros velhos e
herdeiros novos e às pessoas de fora residentes no Venâncio e no sítio Capiaçú, devo gratidão
por me acolherem ao longo destes oito anos de pesquisa em seus lares, entre festas, enterros,
horas de trabalho e diversão. Às pessoas de Barroquinha, professor Ademar e Jaime Veras, bem
como a Diamantina Veras, agradeço pelas portas abertas.
Não! Você não me impediu de ser feliz!
Nunca jamais bateu a porta em meu nariz!
Ninguém é gente!
Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!

Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!


Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar!

"Conheço o meu lugar - Belchior"


Resumo: O vilarejo do Venâncio, localizado a 420 km da capital cearense, é um daqueles
lugares do interior no qual facilmente encontram-se acirradas disputas entre membros da
mesma família, que reverberam nas relações cotidianas, nos entrelaçamentos entre família e
política, bem como nos entendimentos destes elementos com a terra que habitam. Política,
família e terra são noções mobilizadas nesta dissertação com o objetivo de compreender de
que maneira os casamentos consanguíneos entre as pessoas do vilarejo atuam como um
idioma para circulação e manutenção da terra. Ancorada nas teorias de parentesco, estas não
somente da consanguinidade e da aliança, mas também naquela da relacionalidade, as
relações familiares são ampliadas e percebidas em seus pormenores, em que se percebe que
os laços familiares, a depender da circunstância, tornam-se laços políticos e vice-versa. Neste
lugar, dificilmente encontra-se família sem política e terra sem família. Da junção dessa
tríplice condição camponesa, debate este aprofundado por estudiosos brasileiros desde os
anos da década de 1970, terra, família e política são aqui detalhadas e analisadas
etnograficamente dentro de uma perspectiva processual, em que se privilegiam os eventos e
as narrativas de vida dos sujeitos, suas reconstruções genealógicas e documentos físicos
como a fonte principal de dados.

Palavras chave: Parentesco, Herança, Política local, Semiárido cearense; Nordeste brasileiro
Abstract: The village of Venâncio, located 420 km from the capital city of Ceará, is one of
those places in the interior in which there are easily fierce disputes between members of the
same family, reverberating in daily relationships, in the interweaves between family and
politics, as well as in the understandings of these elements with the land they inhabit.
Politics, family and land are notions mobilized in this dissertation in order to understand
how consanguine marriages among the people of the village act as a language for circulation
and maintenance of the land. Anchored in kinship theories, not only of consaguinity and
alliance, but also in that of relationality, family relations are amplified and perceived in their
details, in which it is perceived that family ties, depending on the circusntance, become
bonds and vice versa. In this place, it is difficult to find family without politics and land
without family. From the junction of this threefold peasantry condition, this debate has been
deepened by Brazilian scholars since the 1970s, land, family and politics are detailed and
analyzed ethnographically within a procedural perspective, in which the events and life
narratives of the subjects, their genealogical reconstructions, and physical documents as the
primary source of data.

Keywords: Kinship; Inheritance; Local Politics; Semiarid; Brazilian Northeast


Lista de imagens

Imagem 1: Bodega O Louro. Na foto, Seu Otacílio e Dona Marli (fevereiro/2017) .................. 15

Imagem 2: Casas do vilarejo (fevereiro/2017) ........................................................................... 15

Imagem 3: Do alto das dunas ao caminho das casas (março/2013).......................................... 16

Imagem 4: Zé Vieira e o menino na bodega de Otacílio (maio/2012) ....................................... 46

Imagem 5: Seu José Vieira, irmão de Cícero Vieira (fevereiro/2013) ...................................... 123

Imagem 6: Da esquerda para a direita, Larisse (neta de D. Adelaide e seu Quelé), Marli, D.
Adelaide, Seu Quelé (abril/2011) ............................................................................................. 124

Imagem 7: Entrada do Sítio Capiaçú(abril/2011) .................................................................... 125

Imagem 8: Igreja da família do Venâncio(fevereiro/2013) ...................................................... 126

Imagem 9: Carnaubais no quintal do Capiaçú(fevereiro/2013) .............................................. 127

Imagem 10: Cemitério sem muros(abril/2011)......................................................................... 128

Imagem 11: Igreja da comunidade do Venâncio(fevereiro/2013)............................................. 129

Imagem 12: Casa comida pelas dunas(fevereiro/2013) ........................................................... 130

Lista de Mapas

Mapa 1: Limites municipais de Barroquinha. Localização do Venâncio destacado em círculo


vermelho. .................................................................................................................................... 25

Mapa 2: Imagem google earth – trecho Barroquinha – Venâncio - Bitupitá .............................. 26


Lista de Genealogias

Genealogia 1: 17 cabeças velhas .............................................................................................. 107

Genealogia 2: Fissão e fusão da herança.................................................................................100

Lista de Gráficos

Gráfico 1: Ciclo de distribuição dos lucros do carnaubal ......................................................... 104

Quadro de notações

" Entre aspas" Termos externos ao contexto pesquisado:


termos da autora e termos de outros autores
(estes virão com referências)

Itálico Termos nativos

Imagens, Mapas e genealogias* Numerados, podendo ser consultados nos


elementos pré-textuais.

*todas as imagens e genealogias são de


autoria da pesquisadora.
Sumário

Sumário ................................................................................................................................................ 12
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 13
Caracterização da Localidade .................................................................................................................... 22
Aqui Todo Mundo É Parente...................................................................................................................... 26
CAPÍTULO 1 – ESTÁ NO SANGUE, É DE FAMÍLIA ................................................................................... 35
1.1 Causo com Dona Otacília..................................................................................................................... 35
1.2 Fazendo família: as famílias do Venâncio ....................................................................................... 38
1.3 Famílias de sangue bom: sobre os pertencimentos de uns aos outros ............................................... 44
CAPÍTULO 2 – FAMÍLIA É IGUAL POLÍTICA ............................................................................................ 58
2.1 O Evento com a médica cubana .......................................................................................................... 58
2.2 Disputa e tradição – família 14 e família 12 ........................................................................................ 65
2.3 Fazendo política como se faz família ................................................................................................... 77
2.3.1. A desfamiliarização de D. Otacília............................................................................................... 80
2.3.2. A familiarização de Rita .............................................................................................................. 82
CAPÍTULO 3 – AGORA A TERRA TÁ PEQUENA PARA TANTO HERDEIRO ............................................... 86
3.1 A distribuição dos lucros do carnaubal ................................................................................................ 86
3.2 Seguindo os documentos e seus rastros ............................................................................................. 90
3.3 Os 17 cabeças velhas e a inalienabilidade da terra ........................................................................... 102
CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 116
GLOSSÁRIO DE TRAJETÓRIAS.............................................................................................................. 121
ANEXO – Imagens Extras .................................................................................................................... 123
13

INTRODUÇÃO

O trajeto entre Fortaleza e Venâncio1 é marcado gradualmente por mudanças de


paisagens: a saída de um cenário urbano desgasta-se e transforma-se nas variadas imagens que
compõem as praias do litoral oeste cearense. Para chegar até Venâncio segue-se pela CE-085
(denominada estruturante litoral oeste) que tem por destinos as praias de Fleixeiras, Paracuru,
Jijoca de Jericoacoara, Camocim e por último, Barroquinha, sede do município onde se localiza
o vilarejo do Venâncio. Partindo de Fortaleza até Barroquinha, são percorridos 420 km; de lá
até Venâncio são mais 22 km município adentro, pela CE-187, seguindo por uma via asfaltada
cujos limites são diariamente disputados com a constante movimentação das dunas que
cerceiam o vilarejo.

Na medida em que se percorre o caminho de asfalto, percebe-se a mudança para o


chão de terra, anunciando a chegada aos pequenos núcleos populacionais, com seus arranjos
simples, em sua maioria compostos por uma praça e sua igreja, casas de porta e janelinha de
madeira, a vara de porcos passeando pela rua e se esquivando dos carros, para, logo mais,
retornarmos à estrada de asfalto.

O vilarejo do Venâncio não difere muito das demais localidades que o antecedem
durante o caminho percorrido. Ali, ao longo da estrada que finda quando se chega na praia de
Bitupitá, concentram-se duas igrejas – uma da família e outra da comunidade – um cemitério
sem muros, com suas lápides divididas entre seu espaço e o quintal de algumas residências;
mais à frente, em uma acentuada curva, surge a bodega - O Louro - e logo mais atrás avista-se,
em um horizonte não muito distante, a imensidão das dunas brancas que se movimentam lado a
lado às palhas dos carnaubais e coqueirais que, igualmente, compõem a paisagem da região.

As casas do vilarejo aglomeram-se como em pequenos blocos compostos por quatro


ou cinco casas. Falar em blocos é uma forma de explicar que essas casas compartilham entre si
os limites dos quintais e das plantações. Mas para além do espaço físico, estas famílias

1
Por vilarejo do Venâncio, ou simplesmente Venâncio, refiro-me ao território no qual constam o núcleo
populacional alocado na estrada que liga Barroquinha à praia de Bitupitá, mais o terreno do sítio Capiaçú, este
alocado a dois km do vilarejo, local de morada dos antigos líderes do vilarejo e parte do distrito de Leitão, também
vizinho do vilarejo e local onde habitam algumas famílias. Estes territórios podem ser entendidos como territórios
de parentesco, da forma desenvolvida por Comerford (2003) - tais noções serão aprofundadas nas próximas
páginas.
14

compartilham um vínculo familiar, descendem da mesma família ou “tronco”, o dos Viturino,


como se autodenominam. A exploração deste contexto se deu da forma como trago em meu
diário de campo: em um dos dias de trabalho, já apontava quatro da tarde, e depois de um longo
dia aplicando questionários no vilarejo, sento-me na bodega de seu Otacílio, ou seu Louro da
bodega, a fim de esperar algum carro para me levar de volta para Bitupitá, lugar onde eu estava
hospedada. Foi quando, em meio às curiosidades sobre o que eu estava fazendo por “aquelas
bandas”, seu Otacílio me afirma acerca de sua proximidade com os moradores do vilarejo. Ele
me relata que o vizinho da frente é seu primo, bem como aquele que passou na rua com uma
enxada no ombro. De igual maneira, identificou tantos outros que passavam à rua como primo
legítimo, ou filho de um compadre seu, ou primo de “segundo grau”. Todos, de alguma forma,
pareciam estar aparentados naquele vilarejo. Esta foi a questão inicial que mobilizou meu
interesse de pesquisa neste lugar.
15

Imagem 1: Bodega O Louro. Na foto, Seu Otacílio e Dona Marli (fevereiro/2017)

Imagem 2: Casas do vilarejo (fevereiro/2017)


16

Imagem 3: Do alto das dunas ao caminho das casas (março/2013)

A minha virada para o interior - diferentemente dos meus colegas do grupo de


pesquisa desde a graduação, cujas pesquisas direcionaram-se para as dinâmicas daquele litoral -
teve por influência direta e ponto de partida meu contato com Seu Otacílio e sua esposa, Dona
Marli. Ao sentar em sua bodega e trocar algumas conversas passei a conhecer um tanto das
pessoas, das famílias, e que, ali, todo mundo era parente.

No dia seguinte a esse contato, Seu Otacílio e Dona Marli me receberam em sua
casa, me convidaram para almoçar e por lá fiquei. A minha circulação junto a essa família me
caracterizou como a “menina que estava na Marli”, o que, como percebi, implicaria diretamente
nos modos como outras pessoas do vilarejo se relacionariam comigo. Algumas portas foram
abertas em razão dessa proximidade com D. Marli e com os seus. De fato, muito da minha
pesquisa de campo, nos anos iniciais, foi facilitada pela grande rede de pessoas próximas a eles.
De uma receptividade comumente encontrada em contextos não urbanos, ou do interior, fui
extremamente bem acolhida e bem cuidada. Dona Marli frequentemente me convidava para
visitar este ou aquele parente, intimava Seu Otacílio a me mostrar os limites do vilarejo e as
salinas que avizinham o vilarejo, tudo na garupa de sua moto. Participei ativamente de festejos
locais, almoços de família, missas, novenas, aniversários, velórios dentre muitos outros eventos.
17

De igual importância, devido à proximidade com essas pessoas de alargados laços sociais, pude
conversar com políticos locais, representantes de associações, bem como tive acesso a
importantes documentos da localidade e do município.

Por conta dessa mesma proximidade, entretanto, outras portas foram fechadas e meu
posicionamento enquanto pesquisadora posto em questão. Nesses anos de pesquisa fui
associada como pertencente a um grupo político, a uma facção e a uma família. Vi, então, as
possibilidades de conversas que iam se fechando, que aqueles parentes de quem eu me
acompanhava eram pessoas articuladas, de casa movimentada, cheia de atribuições, e que, por
isso, poderiam ser percebidos como pessoas políticas. Não é por menos que seu Otacílio e D.
Marli são um dos atuais porta-vozes do vilarejo, detentores dos documentos de propriedade
daquelas terras e descendentes do patriarca e fundador, Alexandre Ferreira, que em 1879
tornou-se o proprietário legal daquelas terras.

A todo instante se escutava alguém perguntando à porta: comadre Marli taí?,


seguido pelo barulho do chinelo arrastando no chão como forma de limpar o calçado (ou
gerando um som que sinalizasse a sua chegada). A circulação das pessoas suscitava outros
modos de movimentação; ao passo que as pessoas iam e vinham, entravam e saiam na casa de
D. Marli, entravam também os assuntos que se viviam naquele momento. A questão da vez
incidia nas dunas que estavam comendo as casas e que, à época de minha primeira ida a campo,
estavam soterrando a única escola do vilarejo, o que alavancava grandes debates nas calçadas,
entre as caronas ou enquanto as pessoas realizavam suas tarefas de casa.

Inegavelmente a relação que estabeleci com a família de seu Otacílio e D. Marli,


com seus irmãos e irmãs, pais, cunhados (as), filhos (as) e sobrinhos (as), proporcionou um
ponto de vista que me permitiu entender que família, política e terra são faces de uma mesma
realidade cotidianamente vivida, produzida e, por isso, mobilizadoras da localidade. A casa de
D. Marli mais parece uma extensão da prefeitura. Com a entrada e saída das pessoas, as
demandas surgem, os assuntos vão e vêm, a solução ou não das questões/causos são levadas e
trazidas para serem resolvidos por intermédio desse casal e de suas redes de relações. Nesse
núcleo familiar as questões da vida cotidiana se apresentam e as demandas são resolvidas em
meio a informalidade destas relações.

Das questões que estão constantemente em pauta, a movimentação das dunas que
cercam o Venâncio vem ganhando proporções cada vez maiores. Nos tempos de antigamente,
18

período em que os vivos falam dos seus antepassados, a localização do vilarejo distanciava-se
quilômetros de onde o núcleo populacional atualmente vive. Antes das dunas comerem as casas,
Venâncio localizava-se mais próximo ao litoral, o que hoje se vê no horizonte como o banco de
dunas, foi antes um espaço composto por casas, comércios, lagoas e estradas. Ao longo dos
anos, as famílias e os espaços reconfiguraram-se, modificando, reconstruindo e impondo novas
sociabilidades em novos ambientes.

O cemitério do vilarejo, que outrora localizava-se distante do centro populoso,


atualmente apresenta lápides fazendo limites com os quintais e roçados. Tal movimentação
trouxe outras maneiras de interação e outras tarefas cotidianas desempenhadas pelas famílias no
novo ambiente que as circunda. As novas tarefas incluem marcar e preparar o terreno, fazer a
base e depois levantar a nova casa, plantar no alto das dunas espécies arbóreas nativas
buscando minimizar os efeitos das movimentações dos ventos. Não somente isso, construir uma
nova casa pressupõe reconstruir uma nova “territorialidade”,2 espaço negociado, que, ao ser
feito, traz à memória acordos, negociações e pertencimentos feitos no passado, mas ainda
sentidos e vividos no presente. Todas essas são tarefas que demandam esforço coletivo, mas de
desfrute conquistado individualmente.

De fato, a concepção daquilo que podemos denominar de configuração social do


vilarejo não foi algo construído a um primeiro olhar, mas demandou um longo caminho de
imersão no campo para então se chegar à definição das questões mobilizadoras naquele
contexto. Logo de início, o modo como D. Marli e seu Otacílio relacionavam-se com os
vizinhos, seus parentes surgiu como imperativo para a percepção das relações entre os sujeitos
no vilarejo. Percebi que ali havia uma cooperação mútua, um fluxo ativo de atividades que
extrapolavam as ações individuais dos sujeitos. Prevalecem questões da ordem do cotidiano,
como assuntos administrativo-burocráticos municipais (busca por vaga de emprego na
prefeitura), marcação de consultas, exames médicos, negociação de caronas, troca e compra de
suprimentos nas bodegas locais, dentre outras que podem ser percebidas no cotidiano de um
pequeno vilarejo. Mas justamente essas trocas a nível microscópicas revelam um
entrelaçamento bem mais profundo, de ordem temporal que antecede aqueles que
“performatizam” tal ação. Estas atividades cotidianas são reflexos de atividades tradicionais.

2
Por territorialidade, Godoi (2014) define um processo de construção de territórios: apropriação, uso, controle e
atribuição de significados.
19

O fato de haver diversas questões de ordem financeira, administrativa, burocrática


e política intimamente ligadas às relações estabelecidas entre parentes foi a pista seguida
durante o mestrado para explorar as conexões entre família, política e terra. Nesta dissertação,
portanto, como forma de apresentar o conteúdo desta pesquisa e ilustrar o porquê de família-
terra-política serem importantes neste contexto etnográfico, apresentarei três eventos ou
situações sociais que, aos modos daquilo realizado por Gluckman (1987) na Zululândia, me
permitam desenhar as relações que estruturam o vilarejo do Venâncio.

Em “Análise de uma situação social na Zululândia moderna” Gluckman constrói


seu argumento em posse de situações sociais3 observadas durante sua pesquisa de campo. O
autor revela que o intuito de observar eventos em diferentes momentos permite ao pesquisador
extrair a estrutura social que aquele grupo em análise possui. Enraizado na proposta de
acadêmicos de sua época, a explicação às suas perguntas podem ser alcançadas ao se encontrar
as estruturas e os modos de funcionamento que permitiriam a uma determinada localidade ser
estável. Gluckman buscava respostas àquilo que ele chamou de “unidades funcionais em
equilíbrio temporário.”

Mas será no acerto metodológico de Gluckman que me apoiarei. Das observações e


análises das “situações sociais” ou eventos capta-se as relações desses eventos dentro de um
sistema social específico. A análise de eventos nos permite aqui perceber as relações
subjacentes não perceptíveis em dias ordinários: essas inter-relações permitem delinear
separações, conflitos, cooperações e modos de comportamento socialmente definidos
(GLUCKMAN, 1987, p. 262)

Como um recurso metodológico profícuo, a observação de um conjunto de


“situações sociais” me permite apreender os eventos aqui apresentados num esforço
intermitente, porém continuado, em mostrar aos leitores as maneiras pelas quais são acionadas
categorias analíticas. Aqui levanto a hipótese de que o tripé no qual se sustenta o campesinato,
família, trabalho e terra - extensivamente trabalhado por antropólogos que teorizam sobre o
campesinato brasileiro - se reconfigura em família, política e terra. Estrategicamente, cada
capítulo buscará ilustrar a correlação do causo com um tema teórico: capítulo 1, família;
capítulo 2, política; e capítulo 3 terra.

3
Segundo a definição do autor, situação social é “o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como
membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões”
(GLUCKMAN, 1987, p. 238)
20

São as “situações sociais”: “O causo com dona Otacília”, descrito no capítulo 1; “A


visita da médica cubana” no capítulo 2; e “A distribuição dos rendimentos dos carnaubais entre
os parentes” no capítulo 3. O primeiro desses eventos narra a insatisfação de uma moradora do
vilarejo, D. Otacília, com uma situação na qual a gestão da prefeitura à época foi protagonista.
Tal evento apresenta-se como um problema para as mães do vilarejo que, dentre outras
preocupações, terão que permitir o traslado diário de seus filhos entre o vilarejo e a escola de
Bitupitá (distância de 5 km) em transportes públicos, como consequência da movimentação das
dunas que estavam “comendo” a escola local. Esta querela, longe de ser resolvida dentro dos
trâmites formais entre cidadão-prefeitura, aprofunda-se em virtude de circunstâncias políticas
envolvendo a filha de D. Otacília, D. Marli, e a prefeitura.

O segundo evento traz momentos de meu diário de campo no qual narro um dia de
consulta da médica do município, a médica cubana, no vilarejo do Venâncio. Neste dia, a casa
de Dona Marli, anfitriã do evento, contou com preparações especiais, ficou mais limpa do que
de costume e teve, inclusive, o sinal de wi-fi liberado para aqueles que quisessem acessar a
internet. A frenética movimentação da casa dizia sobre a importância desse momento para os
habitantes da localidade. Não somente isso, dizia sobre interações e intencionalidades dos
atores sociais presentes – da médica, da anfitriã, dos pacientes –, informando como essas
interações são performatizadas dentro de um contexto sociopolítico específico.

O terceiro relato, intitulado “A distribuição dos lucros dos carnaubais entre os


parentes”, destaca o debate sobre o status e aquilo que se entende por herança no vilarejo, a
partir de uma conversa com Dona Adelaide, uma das interlocutoras mais ativas nesta pesquisa.
A distribuição dos rendimentos dos carnaubais fala dos modos de apropriação da terra, embora
ela não seja o objeto direto de herança. Como será demonstrado, na distribuição dos carnaubais
estão inscritos símbolos de propriedade e uso que recaem de modos diferentes nos habitantes
desse vilarejo.

Aqui entra em questão a transferência do patrimônio da família – os carnaubais e a


terra em si – por meio das gerações, mostrando que “partilha” e “divisão” (WOORTMANN,
1995, p. 223) são duas faces distintas de um mesmo fenômeno. A distribuição dos rendimentos
dos carnaubais, da forma relatada por D. Adelaide, faz recuperar a questão destacada por
Moura (1978), que recai no que a autora denomina de “contradição fundamental na área
camponesa” (MOURA, 1978, p. 36), ou seja, como conciliar o grande número de herdeiros sem
21

parcelar exaustivamente o patrimônio? Proponho demonstrar, então, que as possíveis respostas


a essa “contradição” recaem nos modelos de casamentos performados localmente e,
principalmente, nas formas em que se constroem as noções de família e parente na localidade e
no entendimento do parentesco como uma forma de falar de terra.

As contribuições de Moura (1978, p. 34), em São João da Cristina, a respeito dos


diferentes usos do termo “parente” serve para elucidar o uso de parente e família no Venâncio.
Como destacou a autora, o termo “parente” é acionado em dois contextos: o primeiro quando
relacionado a um exterior versus “todos nós”, situação em que todos performam
horizontalmente o papel de parente; já o segundo uso surge em situações “entre os nossos”,
usado convenientemente de acordo com o reconhecimento de graus de parentes. A definição de
parente que proponho aproxima-se da primeira evocada pela autora, em que prevalece a ideia
de que “aqui todos são parentes”. Esta noção, no limite, diz respeito ao fundador em comum
que todos possuem, mas condiz também a uma relação que o vilarejo, como uma ideia de grupo
“unificado”, tem frente a pessoas externas ao lugar.

A segunda concepção de “parente” definida pela autora aproxima-se do uso que


aqui faço de família, ou seja, ser da família pressupõe uma construção em que se leva em conta
aspectos qualitativos: com quem se casa, de quem é filho e, principalmente, que papel a pessoa
exerce dentro do vilarejo. Como poderá ser percebido durante toda a dissertação, esse
entrelaçamento verticalizado composto pelas tramas que envolvem casamentos e alianças
políticas é o que provê vida às dinâmicas de fazer e desfazer família e política.

Os trechos destacados no início de cada capítulo propõem, dessa forma, a criação


de imagens sobre o local: a movimentação das dunas, minha aproximação com o campo de
pesquisa, a descrição de um causo entre prefeitura e uma moradora do vilarejo, o evento da
visita da médica cubana e como a casa de D. Marli se torna o lugar dos encontros quando se
trata da relação com serviços da prefeitura, além da análise dos rendimentos dos carnaubais da
família. São excertos escolhidos com o propósito de conferir movimento às narrativas e, ao
mesmo tempo, enfatizar que destes recortes se têm processos da vida social das pessoas que
habitam este vilarejo.

A criação de tais imagens nos remete à construção de um presente etnográfico, e os


caminhos para se entender este presente são abertos pelo entendimento daquilo que aqueles que
ali vivem têm para nos informar. De certo, essa perspectiva de se analisar partindo das
22

formulações nativas daqueles que lá vivem não é algo recente, mas aqui vale destacar a guinada
da etnografia voltada em defesa de uma antropologia das teorias nativas. Uma antropologia das
teorias nativas que nos leva a entender o que é política no sentido prático. Como exemplo
específico do cenário desta pesquisa, podemos mencionar uma produção de conhecimento feita
por Rita, uma moradora do vilarejo cujas afirmações trazem a compreensão de que os
casamentos têm por fim a não fragmentação do território. Esta é uma visão que parte da própria
interlocutora, que de acordo com Borges (2003) e Peirano (2002, p. 38) “seria a forma
apropriada para resumir, expandir, suportar e encorajar o conhecimento que continua a se
pretender universalista, mas multicentrado nas suas manifestações.” Trata-se de um trabalho
etnográfico realizado como numa relação triangular em que se interpenetram o sentido
conferido pela comunidade estudada, o contraste com o corpus teórico do pesquisador e a
teorias antropológica (BORGES, 2003, p. 16). É este modelo que terei como referência nessa
dissertação.

Caracterização da Localidade

A localidade em que desenvolvo o presente estudo pode ser compreendida na


interseção entre o sertão e o litoral. Por sua localização ao extremo oeste do litoral cearense,
Barroquinha faz divisa com Piauí, e compartilha com este, a bacia do Delta do Parnaíba. Na
medida em que se deixa litoral, Barroquinha vai ganhando outras formas e cores, do branco das
dunas para o vermelho das terras, onde são plantados milho, feijão e mandioca.
Recentemente Barroquinha, e outros 9 municípios, foram inseridos à categoria do
semiárido cearense4 o que lhe garante intervenções financeiras por parte do governo federal.
Por distanciar-se a 420 km de Fortaleza, Barroquinha vem buscando imprimir às suas principais
praias, a de Bitupitá, distanciada 25 km da sede do município, e a praia das Curimãns,
distanciada 20 km da sede, uma identidade de “praias paradisíacas”. A praia de Bitupitá, em
especial, vem buscando firmar a identidade de “paraíso dourado”, ou então a alcunha de “a

4
Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/online/10-municipios-cearenses-
sao-incluidos-na-regiao-do-semiarido-brasileiro-1.1855670 Acesso em 16/03/2018.
23

última praia do litoral cearense” como uma das formas de chamar atenção de turistas, e de,
algum dia, possuir uma boa movimentação turística, ao lado das famosas praias de Camocim e
Jericoacoara.
Segundo o Perfil Básico Municipal, a população de Barroquinha em 20105 é de
14.476 habitantes, sendo destes 9.770 o número da população residente em áreas urbanas e
4.706 a população residente em área rural. O número total de moradores conglomera a
população das 57 localidades, distribuindo-se em dois distritos político-administrativos, Araras,
em 1961 e Bitupitá, criado em 1892, e nas microrregiões: Chapada, Leitão, Venâncio, Capiaçú,
Curimã, Taquari, Pereira, Canadá, Vertente, Baixa grande, Rochedo, Praia Nova, dentre outras,
como ilustra o mapa 1.
O vilarejo de Venâncio, embora sua diminuta população, estimada em 518 pessoas,
pode ser caracterizado como uma localidade com muitas particularidades. Sua demarcação
territorial compreende a junção com o sítio Capiaçú, este frequentemente lembrado como casa
dos cabeças antigas. A peculiaridade de Venâncio ainda pode ser percebida em razão de sua
situação fundiária. Diferentemente dos distritos vizinhos, os moradores do vilarejo possuem
documentos de propriedade de terras, e isso, como será demonstrado ao longo desta dissertação,
possui significativas implicações.

As práticas econômicas no município concentram-se no funcionalismo público,


comércios, agricultura familiar e pesca. A pesca nos dias de hoje, segundo contam os
pescadores locais, não provêm tantos lucros como antigamente, isso se dá em razão do
crescente aumento da pesquisa com barco a motor, em detrimento da tradicional pesca de curral.

Araújo (2013) trouxe em sua dissertação, dentre outros argumentos, a


desvalorização do peixe e da pesca em razão de sua vinculação ao pouco ganho vindo deste.

Especificamente no Venâncio, trabalhar com pesca é uma atividade para aquelas


famílias de menores posses e relações. São poucos os homens que trabalham com pesca, e
aqueles que trabalham com a pesca é para consumo próprio, nunca para a venda. Ir trabalhar
com pesca é a última opção de um homem para fazer renda, última opção para aqueles que
possuem possibilidade de escolha. Então trabalhar como funcionário público, montar seu
próprio negócio, sua bodega, trabalhar com transporte coletivo e trabalhar no roçado são
opções escolhidas por aqueles que podem ter esse tipo de trabalho, como é o caso de alguns.

5
Dados do último censo demográfico realizado pelo IBGE.
24

Das visitas que fiz ao Venâncio, poucas foram às vezes que comi peixe nas casas.
Vale ressaltar que lá a condição financeira diz muito sobre o tipo de alimentos que entram nas
casas. Peixe, naquele contexto, me parece que está próximo as pessoas de baixas condições
financeiras, é um alimento de "fácil" captura e que está à disposição de quem for buscá-lo no
mar. Na praia de Bitupitá, não raro, as famílias de pescadores têm como base da alimentação
diária peixe, sururu e farinha. Se classificarmos os alimentos protéicos podemos dizer que
naquele lugar o peixe alcança o status mais baixo dessa hierarquia. Um fato intrigante é que o
peixe é "menosprezado" por razões outras que não tem relação com a abundância ou fácil
captura. Pelo contrário, é consenso no discurso das pessoas de toda a região sobre a difícil
relação dos homens com o mar. Digo dos homens porque o mar é um ambiente
predominantemente masculino6. Trabalhar com pesca é sempre penoso, e muito sacrificante,
pois se trabalha muito para ganhar pouco em um ambiente de difícil controle, com o mar, sol.

Vale ressaltar que a opinião sobre as dificuldades dos homens do mar é difundida
em toda a localidade e que trabalhar como pescador, como aquele que entra no mar em
pequenas embarcações sob o mando do dono desta embarcação é visto como pessoas
subordinadas e de pouco ganho. Lá, dificilmente “se faz dinheiro” sendo empregado da
embarcação de outros, somente quando se adquire um barco ou se constrói um curral próprio é
que se passa a ganhar dinheiro.

Percebi que existem diferenças de valor agregado aos alimentos fonte de proteína,
tais como carne, frango e peixe. Tal diferença se mostra latente quando a minha presença na
casa faz com que este seja um momento extraordinário. Quando estou na casa de Dona Marli,
esta faz questão de me servir galinha ou carne de gado, carnes mais valorizadas possivelmente
pelo valor conferido à criação de animais, em detrimento do peixe e mariscos, que podem ser
encontrados com certa facilidade nos rios (rio Timonha), mangues e mar (distanciado 5 km do
vilarejo).

6
A pesca mais praticada na praia de Bitupitá é a pesca de curral, um tipo de pesca artesanal no qual se constrói
com estacas de madeira de eucalipto, armadilhas, ou currais, disposta em formato de semi-coração, muito
realizado naquela região onde o mar manso favorece a captura de peixes. Araújo (2013) explica sobre os saberes e
fazeres tradicionais que a pesca de curral é frequente em vários pontos do nordeste brasileiro e aqueles que nele
trabalham são conhecidos como os vaqueiros do mar.
25

Nas reuniões e almoços de família as carnes de gado e frango também são as mais
consumidas. O interessante é perceber que as carnes de gado não são produtos de animais
cuidados nos arredores do Venâncio ou do Sítio Capiaçu, são carnes que vem de outros lugares
e com isso, consequentemente, tem consigo um elevado preço frente à galinha e ao peixe. A
galinha é um alimento que cotidianamente está na mesa das famílias, ela seja por compra, troca
ou criação no quintal do consumidor.

Mapa 1: Limites municipais de Barroquinha. Localização do Venâncio destacado em círculo


vermelho.
26

Mapa 2: Imagem google earth – trecho Barroquinha – Venâncio - Bitupitá

Aqui Todo Mundo É Parente

Como já tratei em outros trabalhos7 o vilarejo do Venâncio é um daqueles lugares


do interior do Ceará no qual facilmente se encontra uma conformação social envolvendo
estreitos relacionamentos entre pessoas da mesma família, cujos entrelaçamentos ressoam nas
maneiras de habitar e pertencer à terra, entre as formas de fazer e desfazer família e política.

Desde o início de minha pesquisa de campo, em 2011, Venâncio captou minha


atenção em razão de seu complexo tecido social, cujas relações familiares entrelaçavam-se
fortemente a um cotidiano que supunha troca, reciprocidade, descendência e consideração.8

7
ARAGÃO, 2014a; 2014b.
8
Consideração aqui ganha um sentido de performance social mútua: quando se tem consideração por alguém
significa que este alguém corresponde àquela intencionalidade inicial. A consideração não existe sozinha e, neste
contexto, surge como meio de estabelecer vínculos e firmar alianças, como, por exemplo, na hora de apadrinhar os
filhos, em que um compadre é designado para ser o mentor social e espiritual da criança (ver Woortmann, 1995) e
o designado aceita por ter consideração pelo designador. De igual maneira, tal situação ocorre em transações
comerciais: vende-se fiado só para aqueles que se tem em consideração, que neste caso é alguém que irá honrar
seus compromissos financeiros. Pode-se perceber algumas aproximações ao uso contextual desse termo nas obras
de Pina-Cabral e Vanda Aparecida (2013) e na obra de Ellen Woortmann (1995). Esse termo será melhor detalhado
nas páginas que seguem.
27

Muitas etnografias que tratam das sociabilidades no nordeste brasileiro 9 constroem seus
objetos sob a rubrica de que aqui todo mundo é parente. De maneira similar, o povoado do
Venâncio erige-se sobre essa premissa, que traz também, como marca, a afeição desse povoado
à participação no fazer política na localidade. Podendo igualmente ser estendido a todo
município de Barroquinha, do qual o vilarejo faz parte, lá dizem: “Eu gosto da disputa
[política], corre na veia a participação, igual à família, corre no sangue.”

Fazer família e fazer política muitas vezes se confundem em meio à similaridade de


seus processos. Neste vilarejo não há tempo que não seja propício para se construir uma família,
da mesma forma que para vivenciar a disputa política. Tal configuração entre família e política
não é uma característica unicamente encontrada no interior do Ceará. Lewin (1993) ilustra, em
sua riquíssima pesquisa, as congruências entre agrupamentos familiares e facções políticas na
política oligárquica da família Pessoa, na Paraíba; Marques (2002, 2005, 2007a, 2007b), Villela
(2004, 2009), Villela e Marques,10 trabalham com as famílias do Vale do Pajeú, interior
pernambucano e, em estudos mais recentes, Teixeira (2014), com as famílias do sertão dos
Inhamuns, no Ceará.

Em viagem de campo realizada em fevereiro de 2017,11 senti os ânimos ainda


agitados em decorrência das eleições municipais de 2016, a ferida ainda estava aberta em
razão dos embates ocorridos durante os 45 dias de processo eleitoral e, como consequência
disso, o volume de conversas, entrevistas e percepções direcionaram-me para o entendimento
mais amplo sobre o que significava fazer política entre meus interlocutores.

A temática da política surgia de modo transversal ao meu intuito inicial, que


consistia na proposta de entender a dinâmica dos casamentos entre pessoas da mesma família e
como isso me ajudaria a entender aquilo que eles consideram família. Mesmo diante das
frequentes idas a campo, embora intermitentes, eu ainda não havia presenciado um momento
(pré ou pós) eleitoral, ou pelo menos as agitações deste momento não haviam se destacado
suficientemente para mim. Com o evento das eleições municipais de 2016, passei a apreender
9
A referência à ideia de “aqui somos todos parentes” não é uma conformação exclusiva do Nordeste brasileiro,
contudo. Temos exemplos etnográficos citados nesta dissertação (COMERFORD, 2003; PAOLIELLO, 1998) que
ilustram os variados contextos nos quais essa afirmação opera. No entanto, faço aqui referência aos estudos mais
recentes no contexto nordestino.
10
O sangue e a política: sobre a produção de família nas disputas eleitorais no sertão de Pernambuco (2017).
Dossiê: Antropologia, política e Estado. v. 14, n. 27 (2017) – Revista da Pós-Graduação em Ciências Sociais –
UFMA.
11
Foram realizadas duas viagens para campo, a primeira de 8 a 21 de fevereiro de 2017; a segunda, de 24 a 31 de
março de 2017.
28

que política era percebida e exercida por meus interlocutores como uma força mobilizadora
dentro desse vilarejo e que se apresentava como algo que é vivido nas mais simples das
relações diárias.

Às minhas pretensões iniciais de pensar família, agreguei as construções nativas de


política como fonte de informação genuína a respeito daquele local. Naquela circunstância,
para eles, velhas intrigas foram reavivadas e outras novas foram criadas envolvendo a única
família que disputa o poder político de Barroquinha, a família Veras, com seus representantes
Jaime Veras e Ademar Veras, primos legítimos, que naquele pleito de 2016 disputaram o cargo
de prefeito de Barroquinha.

Em todo o município de Barroquinha, intrigas de longa data envolvem a família


Veras e seus expoentes. Aos já citados primos Ademar e Jaime, acrescento que foi da cisão
chefiada pelos irmãos Pedro e Veraldina Veras, aquele pai de Ademar e esta, mãe de Jaime, que
iniciaram as versões locais das facções regionais Cara Preta e Fundo Mole. Identificadas como
família 14 (PTB), e família 12 (PDT) as facções constroem suas identidades resgatando a
característica do tipo de política realizada no lugar, família é a marca representativa da facção
adicionada do número do partido político.

A família Veras, natural de Barroquinha, apartou em 1988 devido a ocasião das


primeiras eleições do município, emancipado de Camocim neste mesmo ano, levando os irmãos
Veraldina Veras e Pedro Veras ao palanque e à disputa. A todo instante, se fazia presente o
discurso de que política é tradição, é coisa de família, ou que política é assunto de família.

Não muito diferente de Barroquinha, o vilarejo do Venâncio, possui sua própria


oligarquia representada nas famílias Veras, Belchior, Carvalho e Rodrigues. Foi-me relatado
sobre as intrigas entre grupos políticos distintos, que o último pleito foi uma acirrada
competição entre família 14 e família 12. Dessa forma, percebi que, para falar de família, era
imprescindível falar de política, o que recaía, ao mesmo tempo, em assuntos que
compreendessem algo além da seleção de cargos representativos. Falar de política é falar de
família, de respeito, de sangue, de intriga e de competição.

A política será introduzida neste trabalho por meio da fala das pessoas,
processualmente, formulando conceitos erigidos das partes dos discursos nativos. Para os
interlocutores pernambucanos de Palmeira (2001), falar de política remete imediatamente às
29

eleições (de onde o autor desvenda que o tempo da política é parte integrante do cotidiano). Já
para os de Borges (2004), a política encontra-se diluída discursiva e territorialmente nos
“lugares-eventos”. Aqui, seguindo o mesmo rastro das interpretações nativas realizadas por
Borges e Palmeira, a política ganha forma de representação e de ação, vota-se na política, mas
igualmente vive-se a política.

Advirto, ainda, que meu propósito de analisar a política local afasta-se das
preocupações concernentes ao campo da Ciência Política. Não busco chegar a conclusões sobre
sistemas políticos e nem discutir se estamos ou não passando por uma crise de
representatividade (MANIN, 1995)12. O contexto etnográfico no qual me inseri me permite
destacar instâncias microscópicas da vida política, o que torna possível a análise processual que
aqui proponho. Vale lembrar que o olhar microscópico de que aqui faço uso está mais para uma
escolha consciente, de um lugar de análise, do que para a percepção desta política como parte
de uma microssociedade. Já alertou Villela que,

À microscopia não corresponde um objeto pequeno, mas antes uma posição,


um certo ângulo de visão. Posicionar-se entre as moléculas e não nas
macroestruturas sociais, verificar a interação entre as duas, retirar estas
primeiras para ver as relações de forças existentes sob elas que as compõem
(2004, p. 26).

O ângulo microscópico me situa no micro, permitindo dialogar com o macro e


mostrar que ambas as faces são lados de um mesmo processo, diferindo, unicamente, por seu
ponto de análise.

Na situação percebida em Venâncio, falar de política é também falar de terras, seja


sobre sua posse, transferência ou modos de habitação. Lá, ter território demarcado, registrado e
possuir os documentos físicos dessas propriedades, como o caso das famílias em estudo, dá aos
seus possuidores uma atitude que é percebida pelos de fora13 como pessoas difíceis, briguentas
e autoritárias.

12
Manin, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. Revista da Anpocs. n.29, 1995.
13
Por de fora me refiro àquelas pessoas que ou moram no vilarejo, mas não possuem laços de consanguinidade
nem aliança com as famílias, ou então às pessoas que não habitam o vilarejo e geralmente moram nos distritos
vizinhos e na sede do município.
30

Se os documentos sobre a posse da terra e o uso que dela fazem lhes garantem certa
autonomia e conferem uma relação de poder para com sujeitos internos e externos ao vilarejo,
estas mesmas terras (e as pessoas que as habitam) estão sujeitas ao avanço das dunas móveis e
dos ventos, aqui considerados elementos que trazem insegurança e instabilidade à localidade.

Do que fora apresentado, surgem questionamentos tais como: se os casamentos


entre pessoas da mesma família garantem a circulação da herança (terra e lotes de carnaubais)14
entre os mesmos parentes, o que fazer quando os movimentos das dunas “comem” terras
próprias para a construção de moradas e de lugares de convivência social? Os casamentos entre
pares de irmãos multiplicaram, ao longo das gerações, o número de herdeiros, mas, como me
fora relatado, agora a terra tá pequena para tanto herdeiro. Surge, então, que a terra, mais que
um lugar da morada da vida (HEREDIA, 1979), é um bem que precisa ter seu espaço gerido,
administrado e constantemente disputado.

Percebi que no contexto da organização e disputa por este espaço algumas


categorias são acionadas entre meus interlocutores: herdeiros, herdeiros velhos e herdeiros
novos. Sendo assim, no vilarejo do Venâncio há uma segmentação entre aquilo que envolve
sobrenome (parentesco) e uma determinada temporalidade.15

Via de regra, os herdeiros são sujeitos legitimados pela ascendência a um parente


em comum, sendo esta descendência substancializada na casa e terra habitadas e no sobrenome
ao qual se identificam e no sangue que compartilham. Ser herdeiro é possuir uma denominação
que o distingue, que marca suas posições no grupo social, e, de uma forma mais ampla, como
aquele que não pode ser excluído do patrimônio familiar (rendimentos dos carnaubais e terras
que hoje ocupam). Os herdeiros distinguem-se ainda quanto à participação e interferência nos
assuntos burocráticos do vilarejo, tais como arrecadação e pagamento do imposto da terra junto
ao INCRA.

14
De propriedade dos habitantes do Venâncio, os loteamentos de carnaubais são terrenos que contêm plantação de
carnaúbas (Copernicia prunifera) voltadas para a extração do pó carnaúba com finalidade produtiva da cera de
carnaúba.
15
Como bem destaca Loera (2015), trabalhar com temporalidade mais do que uma disposição cronológica,
implica um princípio que organiza e delimita as relações. Tal ideia será desenvolvida com mais detalhes no
capítulo 1.
31

A maior parte dos habitantes do vilarejo são herdeiros, exceto alguns poucos que
moram de favor,16 e têm direito à herança que se materializa na terra que habitam e nos
terrenos de carnaubais, garantidos pela descendência advinda dos fundadores do vilarejo, os
irmãos Vitorina Rosalina Veras e Henrique Veras. Dos casamentos destes com Manoel Belchior
de Carvalho e Ana Rodrigues Sousa, respectivamente, surgiram 17 filhos, dez de Vitorina e sete
de Henrique. Esses 17 filhos, ou como lá se referem, as 17 cabeças velhas, continuaram a
povoação do vilarejo por meio de casamentos entre “pares de irmãos” (WOORTMANN,1994),
casando entre si os filhos de Vitorina com os filhos de Henrique.

Nos tempos dos antigos, dos cabeças velhas, estes, conforme meus interlocutores,
eram os homens que mandavam em tudo, que trabalhavam com gado e caprinos - fazendo
transporte de jegue para a região serrana -, e que trabalhavam nas casas de farinha, fazendo a
farinhada nas pequenas lavouras e nos carnaubais, cortando a palha, moendo e produzindo a
matéria prima da cera de carnaúba. Nos tempos recentes, tais atividades foram substituídas
pelos pequenos comércios, as bodegas, pelo funcionalismo público, atividades de frete e
transporte escolar. As lavouras ainda persistem, com uma diminuta produção que se volta, em
grande parte, para consumo próprio.

Sobre os herdeiros novos, as suas formas de atuação se conectam com os moldes


dos antigos, o que me fez perceber que o direito de se tornar uma pessoa à frente das questões
do vilarejo, se é que esta é uma questão cobiçada, pode estar relacionada aos modos de
construção desse direito. Parece-me que ser um herdeiro novo, que trabalha nas questões do
vilarejo, não é algo garantido pela descendência, mas é algo construído na prática cotidiana, na
ação. Se ser herdeiro novo ou ser alguém envolvido com questões do vilarejo é algo desejado,
pode-se dizer que são poucos os que se dispõem a desempenhar essa tarefa. Assim, essa
modalidade de herdar algo a partir do que é construído com confiança e dedicação no cotidiano,
me parece algo similar a um tipo de cálculo no qual se analisam intenções, atos, sentimentos,
ganhos e perdas ao se envolver em tal causa.

A herança, no vilarejo do Venâncio, é nitidamente a terra (seja na forma de


território onde alojam-se as casas, ou nos territórios nos quais estão os carnaubais), mas, como
desenvolvido acima, herdam-se também outras coisas: responsabilidades, sobrenome e opção

16
Morar de favor é uma condição que diz respeito a sujeitos exógenos às famílias do vilarejo em um território
cedido pelas famílias locais. São poucos os casos de pessoas que moram de favor. Correspondem, segundo minha
contagem, às 15 famílias estabelecidas em um espaço que circunda perifericamente as casas dos parentes.
32

política. Ser herdeiro é uma condição de quem nasce naquela terra. Isso implica que todos ali
são herdeiros. No entanto são os desdobramentos das trajetórias de vida que realocam a posição
desses sujeitos no direito à terra.

Pode-se atribuir aos caminhos seguidos na política local e as trajetórias construídas


na ação dos casamentos como alguns destes desdobramentos, pois em ambas situações
compreendem modos em que uma pessoa se envolve e se doa à tradição. O habitus17 conduz,
mas os esquemas são rearranjados conforme o sujeito se entrelaça às tramas da estrutura. Não
há predestinação para a vinculação a um partido político, nem as pessoas são obrigadas a firmar
matrimônio com primos. Mas, das alianças feitas e desfeitas, polarizam-se as escolhas e
reconfiguram-se os esquemas de identificação a um grupo familiar, a uma conformação política.
Dessa forma, atenta-se pensar como constantemente e mutuamente esses esquemas são
reorganizados e mediante quais elementos isso se realiza.

Atualmente, o grupo que se destaca de forma mais nítida no vilarejo tem uma
herdeira velha como “cabeça” do grupo, a Dona Adelaide, e seu núcleo familiar,18 vinculados
à facção política Cara Preta (família 14), conhecidos como pessoas de nariz empinado,
briguentos. Estes podem ser entendidos como os principais agentes dentro do vilarejo: 19 são os
que possuem os documentos de propriedade da terra, os que pagam os impostos junto ao
INCRA, representam o vilarejo frente às reuniões da prefeitura, que detêm as chaves das igrejas
da localidade (são duas, uma da família e outra “comum”), e que gerenciam e geram o espaço
de construção de novas moradas na localidade.

Por meio dos herdeiros velhos e novos, a gestão do espaço compartilhado passa a
ter fundamental importância, pois será o bom funcionamento dessa administração que garantirá
novo espaço de moradia para aqueles que procuram um novo lugar para levantar casa em
decorrência da movimentação das dunas, da abertura de estradas, bem como para as novas
famílias que são geradas. A passagem das atribuições de um herdeiro velho para um herdeiro
novo me parece ser de grande importância, já que são transmitidos também os códigos, as
regras e as tradições que permitem o “funcionamento” cotidiano do vilarejo.

17
Bourdieu define habitus como: “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as
experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e
torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas”
(Bourdieu, 1983: 65).
18
Tal núcleo familiar é composto, ainda, por Marli, primogênita de D. Adelaide, Otacílio, primo de 1º grau e
esposo de Marli, Caizé e Paulinho, ambos irmãos de Marli.
19
São também os meus principais interlocutores, portanto muitas linhas ainda serão escritas sobre esse grupo.
33

No capítulo que apresento a seguir será realizado um detalhamento das famílias e


dos seus membros, e para facilitar o entendimento destes, adicionarei em anexo ao final deste
trabalho um glossário dos sujeitos e de suas trajetórias aos quais irei me referir, facilitando,
assim, o entendimento e a consulta ao longo do texto.

As categorias que aqui tomo – terra, família, sangue, sobrenome – são variáveis que,
como será demonstrado ao longo da dissertação, ao combinarem-se em diferentes proporções,
dão forma às trajetórias individuais. As combinações sangue bom/ruim, herdeiro velho/novo,
consideração/sem consideração, os sobrenomes que habitam o Venâncio (Belchior, Carvalho,
Veras e Rodrigues), são o resultado da trajetória das pessoas do vilarejo, o que faz perceber que
a forma principal de manter esse “sistema”, essas interligações em operação, é a partir dos
casamentos, que sabemos, não são obrigatórios, porém são esperados.

Os casamentos lá são esperados, caso haja uma união fora do prescrito, um


casamento destoante, toda a rede será reconfigurada. Como na alusão do antropólogo Marcio
Silva,20 o parentesco é como um jogo de Tetris, em que o encaixe de cada peça vai fornecer um
novo arranjo àquela totalidade.

As possíveis separações aqui realizadas (família, política, herança) são antes meios
de tornar inteligível um universo de ações e representações, do que limitar a realidade social.
Esta é complexa, fluida e multidimensional, o que traz para mim um desafio, e dos grandes, ao
buscar traçar um contexto tão rico através do plano da escrita, e, nessa escrita, recuperar a
riqueza dos movimentos do lugar através de formas e categorias textuais que, embora limitadas,
buscam ser minimamente apropriadas para descrever o que observei.

Como “produto final” ao leitor, apresento uma narrativa, uma espécie de simbiose
que procura definir o lugar que estas pessoas ocupam e habitam em seu contexto específico,
base concreta que permite a manifestação dessas formas de existência e suporte, também, da
manifestação da economia moral dessas formas de constituir família, grupo e de existir no
mundo.

Para a minha sorte, a construção de genealogias dessas pessoas, seus


intercruzamentos de casamentos entre primos e a conformação das numerosas famílias não
constituiu a parte mais árdua dessa tarefa. Esta, na verdade, vem se prolongando durante todo o

20
Essa fala foi proferida na ocasião do curso de verão intitulado Kinship Networks, sediado na Unicamp em 2017.
34

meu percurso enquanto pesquisadora, que é a busca por conferir sentido ao discurso e à prática
desses sujeitos, em meio a construções e desconstruções pautadas no cotidiano. A
inconsistência do cotidiano, ou melhor, essa fluidez do cotidiano, é a substância que vem me
permitindo tecer a complexidade social desse vilarejo. Família, terra e política, aqui, são
termos centrais, tangenciados por outros assuntos do cotidiano, subentendendo-se um pelo
outro (em determinadas situações) e aqui os apresento como os núcleos agenciadores da minha
pesquisa.

Dito isso, destaco como questões mobilizadoras da minha pesquisa: i) Como se


constrói a ideia de família no vilarejo de Venâncio? E o que esta noção mobiliza? ii) De que
maneira uma pessoa é considerada, ou desconsiderada como parente no vilarejo do Venâncio,
constituindo processos de familiarização e desfamiliarização (COMERFORD, 2003); e o que
isso implica para a constituição daqueles considerados herdeiros velhos e herdeiros novos? iii)
Quais os caminhos seguidos por essa coletividade que nos permitem saber sobre o fazer
política, em meio às dinâmicas de se tornar parente em Venâncio?

Cada capítulo será conduzido como resposta a cada uma dessas indagações.
Sistematicamente, os capítulos tratam de assuntos distintos e possuem uma certa independência
uns dos outros, mas suas interconexões são percebidas na medida em que a tríplice condição
que aqui destaco – política, família e terra – são partes entrelaçadas umas às outras.
35

CAPÍTULO 1 – ESTÁ NO SANGUE, É DE FAMÍLIA

1.1 Causo com Dona Otacília

Em 2013, Dona Otacília revela estar desgostosa com a situação das crianças da
localidade, ocasionada pela ausência da escola de ensino fundamental no vilarejo. A única
escola da localidade foi encoberta ao longo do processo de movimento das dunas móveis que se
arrastam gradativamente no vilarejo aos longos dos anos.

A situação - àquela época um fato recente - trazia desgosto às mães da localidade


porque, uma vez que a escola de Venâncio não funcionava mais, as crianças precisariam
deslocar-se para a escola de Bitupitá, localizado a 5 km de Venâncio. As dificuldades advindas
dessa mudança, relata Dona Otacília, afetavam as crianças, que agora dependiam do transporte
oferecido pela prefeitura para fazer o traslado Venâncio – Bitupitá, e as mães,
consequentemente, que agora ficavam preocupadas em deixar seus filhos pequenos serem
transportados em carros tipo pau-de-arara ou em micro-ônibus superlotados da prefeitura.

O mais agravante dessa situação, contava Dona Otacília, é que o transporte, cotado
para vir diariamente nos turnos da manhã, tarde e noite, fazendo o trecho Venâncio – Bitupitá,
com frequência não cumpria com sua rotina diária, fazendo com que as crianças de Venâncio
perdessem aula. A situação trouxe insatisfação aos pais, pois além de não poderem cumprir com
seus compromissos (já que teriam que cuidar dos filhos), havia o agravante de serem autuados
pela prefeitura, já que a frequência à escola é um ponto importante para manutenção dos
recebimentos dos benefícios sociais, tais como Bolsa Família. Como traz o relato de Dona
Otacília,

Minha filha, pra mim tanto fez como tanto faz, né? Agora só uma coisa que ficou chato aqui
pra nós, pra mãe de família: a escola aí fechada, tem dia que é não sei quantos carros
correndo. Ninguém tá falando, não! Tá dizendo uma certeza. Tanto fez, como tanto faz ganhar
[referindo-se à política]. Tem dia que os meninos vão, tem dia que os meninos não vão, tem dia
que não vão buscar. Aí tem dia que ficam mais dentro de casa do que pra escola. Eu estava
36

dizendo, não era sendo fofoqueira não, não botando defeito nenhum não, mas eu acho que
nesses quatro anos o Ademar [ex-prefeito] dava pra ver as condições deste grupo [do grupo
que ela faz parte], aí dava pra fazer ao menos duas salas pra não ter que se destacar até as
Almas [nome antigo de Bitupitá]. Entrevista em 7/03/2013.

Mediante toda essa situação, Dona Otacília e sua filha, Sinara, que no momento
aderiu à nossa conversa, relataram sobre um grupo de mães que foram ao gabinete da Prefeita,
localmente conhecida como Tetê,1 reivindicar a construção de uma nova escola em Venâncio.
Desta conversa ficou acertado que as mães fariam um abaixo-assinado e o entregariam à
Prefeitura como forma de legitimar sua reivindicação.

Marli não foi não... Marli é contra isso porque ela [...], certo que nós somos do partido
diferente, mas isso não inclui partido, porque a gente tá atrás do melhor pros filhos da gente,
tá entendendo? Aí na reunião que houve com a Angeliete e com a Dadiva [ambas secretárias
da Prefeita] não foi resolvido nada na reunião. Aí teve duas atas pra gente assinar, que elas
falaram que era umas atas que elas chamam, é o livro que fica, né? Um pra ir e outro pra
comprovar que a gente ia levar à Secretaria, pra ficar lá. E no caso da reunião, quando nós
fomos pra lá, o Ademar [ex-prefeito], já falou outra coisa pra gente, que a ata que eles
levaram pra lá era [abaixo] assinando, assinatura das mães como nós tá comprovando
[permitindo], tá levando os meninos para Bitupitá. Então foi no caso que eu disse pra ele
[Ademar]: pois elas andaram mentindo pra gente, porque elas falaram uma coisa no colégio e
aqui já foi outra. Porque a gente assinou para vir comprovando que nós íamos pra reunião e
não permitindo os meninos irem pra Bitupitá. Porque foi que elas não falaram a verdade? Pois
é muito feio andar mentido, eu acho muito horrível. Porque eu acho que no caso da gente
soubesse, a gente e nenhuma mãe tinha assinado, porque todas as mães estavam contra dos
meninos irem pra Bitupitá. Aí é assim, aí ganha quem tem poder, né? Entrevista em 7/03/2013

Desse causo entre as mães que são contra a transferência das crianças para Bitupitá
e a Prefeitura, a filha de Dona Otacília esclarece, continuando,

Lorena: Quando a escola fechou?

1
Teresinha Maria Cerqueira Lima Gomes, ou Tetê, do PTB, foi prefeita de Barroquinha na gestão de 2012-2016,
continuando o mandato de Ademar Veras. Este, representante maior da facção política local, a família 14, foi eleito
prefeito na gestão anterior à de Tetê e não obteve sucesso, em 2012, em razão de ter sua candidatura impugnada
por cair no projeto Ficha Limpa, selecionando, então Tetê como candidata hábil para sua substituição.
37

Sinara: Agora nesse começo de ano mesmo. Você não fez a pesquisa ali na Marli, não? Ela
não lhe falou nada disso não? Pois é, o caso aí foi sério desse negócio da escola aí. Aí é assim,
eles prometeram se a gente organizasse esse baixo assinado, a lista dos alunos, ele [Ademar]
ficou de vir fazer uma reunião com as mães de Bitupitá, e agora que ele disse que quando
viesse ia mandar avisar, e até agora não chegou nenhum aviso. [...] Aí a gente espera que
melhore mesmo, porque tem vez que a gente fica esperando, arruma os meninos, aí o projeto
que ela [a filha] tá aqui é o projeto que não pode faltar, do auxílio, aí o que elas [professoras]
pedem mais para as crianças não faltarem, aí no caso sem o transporte aí fica difícil da gente
organizar o dever dos meninos. Entrevista em 7/03/2013.

À exemplo do ocorrido no relato acima, muitas outras situações podem ser narradas
envolvendo desentendimentos entre conformações sociais que, em dados momentos, podem ser
entendidas como contendas entre familiares, em outros, como rivalidades entre os grupos
políticos. O caso aqui apresentado por Dona Otacília e sua filha iluminam, no entanto, que tais
distinções – família e política – usualmente construídas no intuito de proferir inteligibilidade à
realidade social, não operam e não podem ser entendidas como parte de domínios separados.

Neste capítulo, portanto, pretendo apresentar algumas linhas sobre as formas de


sociabilidade presentes neste vilarejo, buscando explorar as maneiras nas quais e pelas quais as
pessoas arranjam e rearranjam suas formas de existir no mundo. Parto da ideia de que tais
arranjos ganham forma e sentido de acordo com formações circunstanciais de agrupamentos
que são conformados em meio às trajetórias de vida. Aqui, meu esforço é entender os processos
subjacentes e próprios de se fazer família e de constituir os complexos e entrelaçados fios de
sociabilidade entre pessoas no vilarejo.

Vale ainda ressaltar que nas próximas páginas serão construídas as concepções de: o
que é ser da família, quem se considera ou desconsidera como parente, os entendimentos do
sangue como símbolo comunicativo e território enquanto algo construído em meio às narrativas.
Estes são conceitos fundamentais, termos chave desenvolvidos por meus interlocutores. O que
me interessa destacar e entender, outrossim, são as formas nas quais as pessoas classificam a si
mesmas e aos outros quando estas categorizações são acionadas. Busco saber quais os
entendimentos nativos subjacentes aos tempos dos herdeiros novos/velhos e como isso interfere,
classifica e ordena as relações entre as pessoas.
38

1.2 Fazendo família: as famílias do Venâncio

Defino como família grupos de pessoas consanguíneas, afins e afins não


consanguíneos que compartilham descendência comum ao fundador do vilarejo, Alexandre
Veras2. Família, para os sujeitos da localidade, traduz-se com a identificação aos sobrenomes
pertencentes ao lugar: os Veras, os Belchior, os Carvalhos e os Rodrigues. Infiro aqui que há
uma relação direta entre sobrenome e território, no qual delimitam o que se entende como terras
do Venâncio, vinculadas diretamente a algumas famílias e o sítio Capiaçú como da posse de
outras. A diferenciação entre as terras do sítio Capiaçú e terras do Venâncio operam na divisão
da herança e na identificação a partir de cada família, como será detalhado. No entanto, para
fins de cadastro juto às secretarias municipais, Venâncio e Capiaçú compõem uma única
totalidade.

Alguns interlocutores destacam que no vilarejo há segmentação do território de


acordo com os sobrenomes. Dona Adelaide, herdeira velha, diz que há a predominância dos
Rodrigues no sítio Capiaçú e no Venâncio ficam os Belchior e os Veras; outro herdeiro velho,
Manoel Messias, diz que na localidade (Venâncio e Capiaçú) só existem duas famílias, Belchior
e Veras, já Cícero Vieira, também herdeiro velho, diz que no território só dá Belchior e
Carvalho, que é tudo uma família só.

Mas o que essa variação de concepções me diz sobre o entendimento de família no


vilarejo? Se há a vinculação de sobrenomes específicos ao território ocupado, então pode-se
dizer que há o entendimento diferenciado sobre a distribuição e ocupação deste território.
Portanto, para definição de família, a ideia de território torna-se fundamental, uma vez que não
há a desvinculação entre estas partes.

A ideia de núcleo familiar na qual se aferem aos pais e seus filhos, em um espaço
demarcado como a casa, não me diz muito no contexto do Venâncio. Lá também existem os
afilhados, ou “filhos de alma” (WOORTMANN, 1995) que são o mesmo que ser filho, além
daqueles de criação, quando os pais consanguíneos conferem aos cuidados de seus filhos,

2
Ver genealogia 1.
39

novos pais, usualmente parentes habitantes das mesmas terras e que compartilham dos mesmos
códigos morais e políticos.

Como ilustrou Teixeira (2014, p.162), em seu trabalho no Sertão dos Inhamuns, a
palavra criação, ou seja, filhos de criação, filhos que não são sangue do mesmo sangue, traz
uma ideia de extensão da concepção de núcleo familiar tradicionalmente operacionalizada pela
antropologia. A família estende-se aos laços consanguíneos que ganham maior destaque quando
comparado com os laços de afinidade, levando em consideração a valorização dos casamentos,
mas, mais ainda, valorizam-se os casamentos entre pessoas da mesma família. Aqui, então, a
menor unidade mobilizadora passa a ser entendida na conjugação dos consanguíneos com os de
criação.

O espaço que lá se configura como casa (conjunto de quartos, sala, banheiro,


cozinha, varanda e quintal) tem por responsável o pai de família, chefe do “grupo doméstico”, a
mãe-esposa e os filhos, em sua maioria crianças e adolescentes. Há uma divisão social do
trabalho, em que os homens tratam dos roçados, da bodega e em alguns casos trabalham
fazendo o transporte em topics para Barroquinha e Camocim. Todas estas são atividades
alocadas fora do circuito de atividades domésticas desempenhada pelas mulheres. As mulheres
e mães cuidam da limpeza da casa, do manuseio e provimento das comidas que entram na casa,
estejam elas cruas ou cozinhas, tratam das miúnças, porcos, patos e galinhas criados em seus
quintais e que servem para alimentação do grupo doméstico e atuam como elemento de troca
com sujeitos externos ao contexto doméstico. As mulheres ainda vão à feira vender a produção
de seus quintais. Os filhos, quando pequenos, frequentam a escola em Bitupitá e quando
retornam da escola ajudam os pais nas atividades domésticas. Quando são adolescentes, os
filhos além da escola passam a trabalhar como auxiliar no comércio ou nas topics, sempre em
atividades secundárias, como carregadores de sacas de arroz, feijão e farinha ou cobrador das
passagens no transporte.

A distribuição territorial do vilarejo aproxima-se daquilo definido por Comerford


(2003, p. 41) como “territórios de parentesco”, no qual são territórios delimitados na prática e
na retórica de familiarização. No Venâncio, o “território de parentesco” estende-se ao sítio
Capiaçú, local de morada dos antigos cabeças velhas, fazendo parte, ainda, o distrito de Leitão.
A definição formulada por Comerford adquire sentido quando se percebe que a distribuição das
40

trinta casas que compõem o núcleo populacional do vilarejo, distribuídas em 4 ou 5 “ruas”, mas,
que na verdade, são territórios demarcados pelas pessoas e por suas casas.

De maneira similar, Godoi (2014) contribui com a percepção de que, para além do
espaço demarcado fisicamente, o território é construído e organizado em meio às narrativas
sociais. Cabe aqui pensarmos a construção desse espaço físico em conjunção ao social como
uma “territorialidade”, ou seja, o processo de construção desse território dá-se em, pelo menos,

dois conteúdos diferentes: a ligação a lugares precisos, resultado de um longo


investimento material e simbólico e que se exprime por um sistema de
representações, de um lado e, de outro lado, os princípios de organização — a
distribuição e os arranjos dos lugares de morada, de trabalho, de celebrações,
as hierarquias sociais, as relações com os grupos vizinhos (GODOI, 2014,p.
443).

Os espaços do vilarejo são percebidos em meio a essas narrativas de localização,


dentro de uma forte marcação territorial a partir da memória, resgatam-se todos aqueles que lá
habitaram e falam-se dos que lá moram efetivamente ou os que já moraram. Os conjuntos de
casas distribuídas ao longo da estrada asfaltada conformam-se dentro destas retóricas narrativas.
Dificilmente fala-se “aquela rua”, o que serve de identificação é o lugar e as pessoas que
ocupam ou ocuparam tal casa. Lá dizem que para chegar ao córrego, deve-se seguir pelo
caminho da casa do seu Cícero Vieira, ou que para chegar na casa de Rita, devemos entra à
direita da bodega de Seu Otacílio.

Tal entendimento pode ser igualmente aplicado ao sítio Capiaçú e ao distrito de


Leitão. O sítio Capiaçú, em específico, foi no passado um lugar de grande movimentação, para
além das casas de farinha que produziam grandes quantidades de farinha torrada, era
entrecortado por uma estrada que ligava a vários pontos do município, servia de ponto como
parada de apoio aos comerciantes, mas teve sua movimentação diminuída ao longo do tempo,
na medida em que a movimentação das dunas tornou impraticável este trajeto.

Morada de Vitorina Rosalina, a mais antiga dos antigos, lembrada como a “dona
disso tudo”, no sítio Capiaçú encontram-se ainda algumas das casas da vila que lá existiu. De
certo, as dunas invadiram parte das casas da vila, mas o tempo também tratou de destruir as
41

casas possuindo como conservada somente a casa principal, lugar onde funcionavam casas de
farinha, estábulos e plantações. Neste sítio, a infância dos mais velhos foi marcada por
momentos de privações e de muito trabalho3, sendo sempre recorrente, que as dificuldades dos
tempos passados não se encontram nos dias de hoje. Dona Adelaide, atual moradora do sítio,
lembra da roça, das frondosas plantações de feijão, mandioca, melancia, dos pés de coqueiro e
dos carnaubais, dos tempos de grande circulação de pessoas no sítio, principalmente nos
tempos de farinhadas, época em que se mói e se prepara a farinha ao longo de um mês de
trabalho.

O surgimento do vilarejo do Venâncio (bem como do Capiaçú e dos distritos


vizinhos) é contado quando vinculado às atividades econômicas advindas de cidades como
Camocim e Granja, 4 em meados do século XIX. As referidas cidades atuavam como
entrepostos comerciais, interligando o litoral Oeste ao Sertão central e à capital Fortaleza.
Camocim exercia, sobretudo, atividade portuária e comercial, sendo destino comum de
comerciantes, brasileiros e estrangeiros, que lá aportavam, a fim de estabelecer negócios.

Sobre a história de Victorino Ferreira Veras ou de seus filhos pouco me foi contado,
relataram alguns herdeiros que dessas histórias antigas só quem sabia eram os herdeiros velhos,
muitos destes já falecidos ou, os que ainda estavam vivos, não conseguiam alcançar tal
memória. Daquilo que foi alcançado, me relataram que um dos primeiros grupos familiares a
estabelecer morada na localidade foi a família Veras, que, em meados do século XIX, partiu de
Portugal e alojou-se em Camocim. Desta cidade, sabe-se que parentes da família Veras se
dispersaram pelo litoral Oeste cearense, alguns firmando residência em Camocim e outros
migrando para o município de Barroquinha (à época ainda pertencente à comarca de Camocim)
e aos distritos atualmente entendidos como Venâncio, Bitupitá, Bambu e Araras. Relatam os
moradores que o início do Venâncio se deve a Victorino Ferreira Veras e sua esposa,
acompanhados de seu filho Alexandre Ferreira da Costa Veras, sua nora e seus quatro netos:
Henrique, Joviniano, Lívio e Vitorina5.

3
Recorrentemente o trabalho é visto como meio de dignidade e edificação da pessoa, no tempo dos antigo os pais
colocavam os filhos para trabalhar, uma pessoa que não trabalha ou que não é trabalhador não é boa pessoa.
4
As cidades de Camocim (distante 48 km de Barroquinha) e Granja (distante 66 km de Barroquinha) são
importantes pontos de fluxo no litoral Oeste cearense, tendo exercido a função de entrepostos comerciais do estado
por suas privilegiadas localizações, Camocim, por ser uma cidade litorânea e ponto de fluxo portuário e Granja por
se localizar mais afastada da faixa litorânea, provendo atividade de escoadouro e ponto comercial.
5
Cf. genealogia 1.
42

Mas de que maneira podemos entender a assertiva aqui todo mundo é parente? Me
parece que quando trazem essa assertiva, delimita-se uma “territorialidade” (GODOI, 2014), e
que, dentro disso, marca-se “nós somos esses”, uma unidade. No entanto, quando se analisa de
perto, como fora demonstrado acima, surgem segmentações e disputas hierárquicas
significativas. Nessa assertiva, certamente, poderia ter a continuação, “mas, alguns são mais
parentes que outros.”

É dessa percepção hierárquica e classificatória que podemos chegar a uma


segunda 6 consideração de como se constitui família no Venâncio: nesta tem que haver
cooperação e interesse nos assuntos do vilarejo. Mas não podem todos os habitantes
desenvolverem interesse, porque isso é tarefa de um pequeno grupo, ainda mais seleto.

Parece-me que essas famílias ou sujeitos que se consideram como “mais famílias
que outras” assim se apresentam pela tradição dos hábitos que um dia originaram e que mantêm
o vilarejo até hoje. Os que são considerados menos parentes do que outros também se casam
entre si, alguns podem até ter destaque no envolvimento sobre interesses comuns ao vilarejo,
mas não possuem todos os fatores e características juntas. Essa questão da tradição incide no
entendimento que circunscreve a definição de família, de quem são os herdeiros novos e velhos.
Novamente, a tradição, algo que pressupõe tempo, traz um novo tipo de entendimento, ou um
novo lado do caleidoscópio que é a tensão entre herdeiros velhos e herdeiros novos.

No tempo dos antigos, a convivência de moças e rapazes, primos, tios, irmãos era
maior porque o trabalho concentrava-se eminentemente dentro do povoado, ou seja, trabalhava-
se nas atividades de casa (varrer, cuidar da cozinha, cuidar dos irmãos mais novos), na lavoura,
no carnaubal e na casa de farinha. Percebe-se em uma das falas de Dona Adelaide, o limite do
tempo dos antigos com os tempos de hoje, ao contar do início de seu namoro e a tarefa dos
filhos nas atividades cotidianas. Ela, que teve dez filhos, criou e cuidou de todos, os mais
velhos cuidando dos mais novos, como ela disse “tive um atrás do outro, como uma escadinha”
em meio aos fluxos do sítio Capiaçú com a farinhada, com a roça, com os comerciantes e
viajantes,

6
Como consta na página 12, trago o trecho: “Defino como família grupos de pessoas consanguíneas e afins que
compartilham descendência comum ao fundador do vilarejo, Alexandre Veras, e que têm em comum hábitos,
tradições, memórias e territórios. Família, para os grupos estudados, se traduz com a identificação aos sobrenomes
que habitam o lugar: os Veras, os Belchior, os Carvalhos e os Rodrigues. Se conjuga, ainda, que há uma relação
direta entre sobrenome e território, no qual se delimitam o Venâncio como pertencente a alguns familiares e o
Capiaçú como da posse de outros.”
43

O casamento entre primos, da forma realizada pelos herdeiros velhos Manoel


Belchior e Úrsula e Paulo Henrique e Maria Vitorina (ver genealogia 1), não surgem como uma
prerrogativa determinante. As gerações recentes contam com a mobilidade intermunicipal como
ponto de expansão dos seus laços de relacionamentos. Convivem no vilarejo, mas também vão
a festas em Camocim, Chaval e até Sobral (distanciado a 180 km de Barroquinha). As
facilidades financeiras adquiridas por trabalho fora do vilarejo faz com que eles tenham mais
opção na hora de escolher com quem se relacionar. A falta de emprego e de cursos
profissionalizantes na região é um convidativo para rapazes e moças, em maior número rapazes,
irem buscar outros meios de vida.

As atividades desempenhadas por homens e mulheres passam por uma


diferenciação quando se observa através de um filtro geracional. Há uma relativa discrepância
quanto aos números de homens e mulheres jovens adultos (as) no vilarejo. Os homens, na faixa
etária de 21-35 anos, largam a casa de seus pais buscando trabalhar na construção civil e em
restaurantes nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. As mulheres da mesma faixa etária, por
sua vez, igualmente realizam este movimento migratório, mas percebi que a quantidade de
migração feminina é bem menor que a masculina. Independente do gênero, o objetivo de
deslocamento para metrópoles é trabalhar, juntar dinheiro e retornar para o vilarejo, anos depois,
com um montante de dinheiro suficiente para construir uma casa e comprar bens de consumo.

Estes que saem, muitas das vezes, são identificados como pessoas “sem jeito para o
roçado”, são jovens que tentaram a vida na praia de Bitupitá ou na sede do município como
prestadores de serviços, trabalhando em portarias, como motoristas e serventes, mas como o
pagamento é pouco, preferem trabalhar fora do município, na construção civil, como garçons e
como embarcados em plataformas da Petrobrás, na Bacia de Campos (RJ).

Fica para os homens e mulheres de idade madura/idosos (as) (36- 60 e diante)


cuidar da manutenção da casa (problemas estruturais) e do roçado. Isto relatado não se aplica a
todos os sujeitos de sexo masculino adulto, alguns nunca saíram do vilarejo, mas o que se torna
importante destacar é que no fluxo Venâncio-metrópoles (Rio de Janeiro e São Paulo) o
caminho inverso metrópole- Venâncio torna-se quase uma certeza. A movimentação das
pessoas que saem do vilarejo é garantida com o retorno depois de uma temporada na cidade
grande.
44

É interessante perceber como, mesmo fora do lugar onde possuem laços sociais
mais densos, esses jovens permanecem ainda sobre o olhar das pessoas do vilarejo, uma espécie
de controle e coerção que incidem em suas ações em terras longínquas. Comerford (2003)
trabalhou estas formas de coerção e controle como o estabelecimento de redes de pessoas da
mesma microrregião fora de seus lugares de origem. Isto mostra-se verdadeiro ao perguntar
para as namoradas e esposas que ficam no vilarejo, se elas não têm receio de que a distância
possa, de alguma maneira, romper com os seus relacionamentos. Elas, muito seguras,
afirmaram que não, pois têm a segurança de serem informadas de tudo o que acontecesse por lá.
Aos que não saíram de suas terras restou-lhes trabalharem nos pequenos roçados e
sobreviverem dos recebimentos de aposentadorias e bolsa família.

Atualmente, tanto o número de filhos gerados na localidade diminuiu, como


também decresceu o número de atividades econômicas dentro da localidade. O carnaubal é
arrendado para terceiros7 e não existem mais as atividades de farinhada em conjunto, levando
em consideração que das inúmeras casas de farinha existentes no passado, atualmente resta uma
dentro do território da família.

1.3 Famílias de sangue bom: sobre os pertencimentos de uns aos outros

Todos aqui são de uma família só. Todos aqui são primos. Quando o finado Henrique e a
finada Vitorina arranjaram par, vieram fazer família aqui no Venâncio. Naquela época as
terras não tinham dono, então eles levantaram as casas e plantaram os pés de coqueiro pra
dizer que o lugar tinha dono. Entrevista com Cícero Vieira, em maio de 2017.

De forma cronológica, as famílias do Venâncio podem ser entendidas a partir da


descrição da chegada do fundador do vilarejo, Victorino Ferreira da Costa Veras, do
estabelecimento de seus filhos e da compra dessas terras em meados de 1870 (ver Genealogia

7
Nos dias de hoje, os herdeiros obtêm lucro do carnaubal por meio de arrendamento dos lotes, uma empresa paga
um valor anual de 2 mil reais e se responsabiliza por extrair, triturar e distribuir a matéria prima para produção da
cera de carnaúba.
45

1). Fato que é rememorado com bastante orgulho e distinção pelos atuais descendentes, o
estabelecimento do grande fundador Victorino, se faz presente quando são exibidos os
documentos manuscritos de compra daquela terra, datados de 1879, 1881 e 1897.

A construção das “territorialidades” tem por processo a atividade de demarcação de


um território, como destacado por Cícero Vieira, no trecho acima, em que se fincou um pé de
coqueiro como sinal do estabelecimento nas terras. A prática de cercear casas com espécies
arbóreas, em espaços recém ocupados, com não é uma atividade em isolado. Micaelo (2014) já
traz em seu trabalho na Zona da Mata pernambucana que as plantações de coco e banana,
espécies frutíferas, trazem relações de propriedade e pertença ao lugar onde se planta, marca a
presença de quem se planta por estas espécies apresentarem o ciclo de vida prolongado.
Diferente de plantações de “ciclo curto”, ou anual, como a macaxeira, os cultivos de coco e
banana, na etnografia construída pela autora, ganham sentido por estarem vinculados à luta pela
permanência naquela terra.

As árvores frutíferas, e aqui me refiro ao caso trazido por Micaelo e por mim,
adquirem uma conotação concreta, é alimento, sombra, território de recursos naturais, elas
marcam o local de origem, o lugar para onde se deve voltar é uma referência. Mas seu
pragmatismo expande-se ao simbólico, as árvores frutíferas são o local de origem das famílias,
para as gerações vindouras atuará como uma árvore da memória. Não somente referência
geográfica, a árvore atua como referencial espaço-temporal, o começo daquele mundo e
daquelas terras, que, como traz Micaelo, “árvore de fruto vai tornando a terra em terra com
dono” (2014:174).

A ação de rememorar um tempo distante, tempo dos grandes fundadores, ou ainda, o


tempo dos antigos, é uma tarefa e uma narrativa reproduzida e desempenhada por homens,
geralmente, em uma conversa em que muitos participam, os mais velhos iniciando as narrativas
para em seguida os mais novos darem continuidade sob a aprovação daqueles.

A diferença cronológica entre mais velhos e mais novos, ou a diferença de uma


geração e outra, como foi posto acima, é em torno de 30 a 40 anos, os mais velhos terão de 70 a
80 anos. Foi dessa maneira que seu Otacílio (aproximadamente 50 anos) e Zé Vieira (70 anos)
relataram-me dos arranjos de casamentos entre primos na localidade, o primeiro seguindo as
falas do segundo. As narrativas dos herdeiros velhos podem ser observadas como uma atividade
que demanda grande atenção dos mais novos. Não somente no contar das histórias, os
46

conhecimentos dos mais velhos lhes conferem admiração e respeito. Para os mais velhos,
bênçãos são pedidas, informações de como plantar ou cortar carnaubal são solicitadas e, como
informa a imagem a seguir, o saber “tradicional” é um letramento imprescindível para habitar o
vilarejo.

Imagem 4: Zé Vieira e o menino na bodega de Otacílio (maio/2012)

Sobre a custódia de Zé Vieira e Seu Zé, Otacílio contou-me da fundação e dos


arranjos entre as famílias que deram origem ao vilarejo. Essas foram rememoradas como
pessoas de condição (boa condição financeira), à exemplo da finada Vitorina e do finado
Henrique, que, por sua vez, passaram aos seus descendentes a condição de serem também
pessoas de posses. Ao que consta, ambos mantiveram por algumas décadas as atividades como
o transporte de jegues para outras localidades do interior do Ceará, a farinhada e a extração e
arrendamento dos carnaubais de seus territórios.
47

O tempo da finada Vitorina e do finado Henrique é um tempo no qual se aciona uma


série de memórias que lembram a “origem epopeica”, conforme abordado por Godoi (1999),
sobre o mundo dos Vitorino no contexto do sertão Piauiense. O começo do mundo de Zabelê (e
outros territórios adjacentes) se assemelha ao começo do mundo “do Vitorino” do Venâncio.
Uma época marcada na memória coletiva como algo que aconteceu há muito tempo atrás, no
tempo dos antigos, ou dos herdeiros antigos, um período de grandes dificuldades em um lugar
que não tinha dono.

O início desse mundo se dá com o estabelecimento de Vitorino Ferreira e de


Alexandre, seu filho, que no momento da fundação do vilarejo organizaram o espaço (então
eles levantaram as casas) e criaram ordem (plantaram os pés de coqueiro pra dizer que o lugar
tinha dono), formando o mundus do Venâncio, uma sociedade que se formou do vazio que eram
aquelas terras, sendo as regras de parentesco o elemento provedor dessa organização social
(WOORTMANN, 1995, p. 246).

Cabe aqui destacar que os habitantes pontuam algumas distinções entre os dois
tempos, dos antigos e dos novos, não só no que diz respeito às atividades econômicas e de
trabalho desempenhadas em cada época, mas principalmente na percepção de como o tempo é
vivido. O tempo dos antigos era um tempo de dificuldades, muito trabalho com os carnaubais e
na terra para produzir o que comer. Uma época de pouco dinheiro e muitos filhos. No tempo
dos antigos, vemos o tripé do campesinato família-terra-trabalho como elementos
mobilizadores fundamentais desse espaço-tempo.

O tempo dos novos, ou dos herdeiros novos - mesmo tempo de Otacílio, de Marli e
de outros da mesma geração - são tempos marcados pelo decréscimo da quantidade de filhos, o
trabalho na terra ainda permanece imperativo, mas a este se adiciona o trabalho na bodega e o
também o trabalho junto a pessoas “políticas”. Aqui, prevalece a conjugação de família-terra-
política.

Isso não significa, no entanto, que no tempo dos herdeiros antigos as pessoas não
atuavam “politicamente”, assim como não se pode dizer que no tempo dos herdeiros novos
ninguém trabalhe arduamente junto à terra.
48

Para além da proximidade entre as casas, os “territórios de parentesco” produzidos


por essas famílias se fazem e se atualizam nas práticas diárias de comer, avizinhar, trocar, nutrir,
enterrar, apadrinhar e celebrar. Tais atualizações se fazem presente se levarmos em conta seu
contexto cultural ou nexo interpretativo (PINA-CABRAL, 2013, p. 145). Pina-Cabral já
sinalizava que a percepção do contexto no qual se constroem e se analisam categorias nativas é
o substrato para uma interpretação mais fidedigna, propondo algo próximo ao jogo de
linguagem de Wittgenstein (Ibid., p. 143). No seu caso de estudo entre pessoas no Baixo Sul da
Bahia, para a manutenção de uma linha interpretativa dentro do contexto dos grupos em estudo,
buscar-se-ia, como recomenda Wittgenstein, “confrontá-las com os contextos dentro dos quais
eles faziam sentido” (Ibid., p.146).

Aqui se poderia estender essa discussão sobre jogos de linguagem, contexto cultural
ou nexos interpretativos através do tempo e dentre as mais diversas teorias linguísticas e
antropológicas, mas meu intuito aqui é, tão somente, criar um nexo interpretativo (e
justificativo) para a recorrente utilização que venho fazendo sobre o sangue em minha pesquisa.

Para além dos imponderáveis que frequentemente encontram-se em campo, a tarefa


de construir um argumento interpretativo sólido, cuja base seja o contexto etnográfico em
questão, surge como uma das dificuldades encontradas em minha pesquisa. Percebi que, em
muitas conversas, os moradores do Venâncio evocavam termos que possuíam um significado
polissêmico. Sangue recorrentemente aparecia dentre estas conversas, ou sangue bom, quando
diziam das qualidades das pessoas que nasciam naquele vilarejo. Essa polissemia pode ser
observada em muitos contextos e com termos diversos. Dentro de um contexto cristão, o
sangue simboliza a renovação, o sangue de Cristo tem a capacidade de cura. Se percebido em
contextos metropolitanos, dentro de um hospital, o sangue exposto significa perigo de
contaminação, mas quando dentro da sala de cirurgia é um líquido vital, de onde emanam
propriedades de reavivar as pessoas. O sangue também é visto como interdição quando
vinculado à menstruação e assim posso elencar muitos outros exemplos.

Mas sua formulação aqui sugere um contexto próprio alocado no semiárido


cearense, trata-se de algo particular do Venâncio, quando o que está em jogo é reconstituir ou
procurar apreender como essa polissemia se apresenta no contexto do vilarejo e das pessoas que
ali habitam e compartilham de um jogo de linguagem.
49

Dessa forma, sangue não surge sozinho, frequentemente acompanha-se de algo que
anexe virtudes às pessoas, como por exemplo, ter consideração por alguém. Mas para ter
consideração por alguém é necessário vínculo, troca, contato, pois consideração é uma relação
mútua e, por analogia, sangue passa a atuar no mesmo contexto semântico de consideração.
Assim, quem tem sangue bom, se tem por consideração, e quem se tem em consideração,
certamente tem sangue bom. É dessa maneira que entendo o seguinte trecho – diga-se que
recorrentemente utilizado em meus trabalhos – de uma conversa que tive com Marli, na qual
ela afirma:

Aqui todo mundo casa com quem quiser. Na minha família, não mando meu filho se casar com
uma menina daqui, não. Ele casa com quem quer. Mas quando a gente se casa com quem já é
conhecido não tem perigo de nascer ladrão, nem assassino, né? O sangue é bom, Deus sabe
que é sangue bom, por isso não nasce nenhum aleijado, nem gente ruim. O bom de ser tudo
familiar é que a gente sabe de onde vem, aí já confia mais. Entrevista em fevereiro de 2011.

O papel simbólico da presença do sangue enquanto um elemento significativo e uma


“substância”, é acompanhado pela circulação e pelas incessantes trocas de alimentos, de afetos,
de atenções e de considerações com as cunhadas-vizinhas de Marli durante todo o dia. A casa
aberta para as pessoas entrarem e pegarem água e café mostrou-me que, para além dos vínculos
reciprocamente fincados, tal experiência desencadeava, ou era desencadeada, por vivências e
transferências no e pelos corpos.

Pelo ângulo dos habitantes do Venâncio, segundo minha interpretação, a narrativa de


casar com primo movimenta-se entre alguns caminhos. Se seguirmos o trecho da fala de D.
Marli, o casamento entre familiares é visto como algo positivo, em que se garante o nascimento
de pessoas boas, de confiança - assim não nascem pessoas de má índole. Dito de outro modo, o
casamento entre primos mantém o perfil moral aceito naquele grupo. Outra nuance da narrativa
segue para a ideia de que as pessoas são livres para casarem com quem desejarem. Na fala “Na
minha família, não mando meu filho casar com menina daqui, não. Ele casa com quem quer”
D. Marli mostra que não obriga filho a fazer o que ela delega, ou seja, nesta fala, o sangue não
prende a pessoa à terra e às pessoas.
50

No entanto, este trecho suscita que a narrativa de D. Marli, e corroborada por muitos
de seus familiares, possui duas formulações alocadas em tempos distintos. Vejamos que do
momento em que há liberdade de escolha de casamento, que é o momento dos namoricos,
paqueras, quando os jovens e as jovens convivem frequentemente a mesma rotina de calçadas,
vizinhanças, almoços familiares, reuniões, etc., até o ato do casamento em si, ou seja, o
momento de levantar casa, há um hiato entre o momento dos namoricos e o levantar casa.
Entre estes dois momentos há um espaço de tempo que coopera para a real efetivação daquilo
falado por D. Marli.

A variação discursiva entre essas duas narrativas não carrega contradição, tais
discursos coexistem dentro do mesmo mundo de ideias, no entanto, elas aparecem em
momentos distintos. O momento em que se tem liberdade de casamento é aquele em que o
jovem (de maioria do sexo masculino) está decidindo se vai ou não trabalhar na cidade grande:
é um jovem adulto procurando meios de “ganhar a vida”, nesse momento ele pode até estar
comprometido com alguém, mas ganhar dinheiro é imperativo neste momento. Então, é
necessário que ele tenha liberdade para casar e para viver onde quiser.

O momento em que se casa e que se levanta casa já é diferente. Trata-se deste


mesmo sujeito, que antes era jovem, que agora é maduro, voltando para o vilarejo depois de
alguns anos trabalhando na cidade grande e querendo firmar moradia. Nesse momento ele casa
e, aí sim, retorna com planos de levantar casa, construir família e retomar a vida de onde ele
havia parado. O sangue bom o faz voltar e o faz garantir que tenha uma família boa, de pessoas
boas, sem assassinos e ladrões.

O que dificilmente encontrei nestes relatos sobre “o porquê dos casamentos entre
primos” foi uma explicação que não recaísse na ideia de uma geração moral de pessoas. Os
casamentos, em suas narrativas, davam continuidade ao modo particular do vilarejo de perceber
o mundo. No entanto, foi no entendimento realizado por uma pessoa não aparentada por via
sanguínea, que encontrei uma resposta que justificasse os casamentos entre primos. do vilarejo
daquele narrado pelos familiares sobre a justificativa desses tipos de casamentos.

Rita, é uma jovem mãe solteira, moradora do vilarejo do Venâncio, uma das poucas
habitantes daquelas terras que não possui parentesco com ninguém dali. Sua trajetória de vida
até a chegada no Venâncio envolve a compra, por seu pai, de um terreno, que hoje é o local de
sua casa, por seu pai, no tempo dos antigos.
51

O envolvimento de Rita com as famílias acontece cotidianamente. Por mais que


seja uma pessoa de fora, ela está inteiramente integrada ao cotidiano do vilarejo, participa das
festas, das reuniões na calçada, da política – diga-se que ativamente. Nas eleições de 2016, Rita
teve grande participação na divulgação de seu candidato, Jaime. Conjuntamente com Edmilson,
filho de D. Adelaide e irmão de Marli, fizeram o grupo de oposição dentro do vilarejo,
organizando passeatas, comícios e, principalmente, fazendo intriga. Por sua natureza externa ao
vilarejo, ser de fora, Rita possui outra opinião, ou sua própria teoria, sobre a razão dos
casamentos serem tão frequentes no vilarejo, como ilustro no trecho de nossa conversa, em que
pergunto sobre a origem das famílias do vilarejo:

Rita: Porque tem os Carvalho, tem os Vitorino e tem os Belchior. São três famílias, parece que
naquela época primo casava com primo, só podia ser, você corre pra um lado é família, corre
pra outro é família, vai pra frente é família, eu acho que só poderia ser isso, tá entendendo?

Lorena: Mas hoje ainda continua, né?

Rita: Pois é, né? Aquele povo que não sai do lugar, casa com a mesma família, ou então
alguém que não casa, porque aí vê alguém de fora e consegue morar fora. Mas realmente aqui
tá assim, primo com primo. A história de casamento primo com primo aqui se gerou assim, se
tua família era assim de mais condição e aquela outra também tinha, aí juntava para
multiplicar os bens. O motivo daqui foi isso, pra não dar pra ninguém de fora, pra ninguém
pra meter a mão. Aí ficava todo mundo em família, aí é por isso. É tanto que você chega aqui,
muitas das vezes, você vê irmão sendo padrinho de sobrinho porque exatamente não era para
tirar da família, era para ficar todo mundo em família. Entrevista em 16/02/2017.

Se tomarmos a teorização de Rita, em que os casamentos entre primos garantem a


repetição e continuidade de um certo padrão de sociabilidade, sendo esta continuidade
transferida pelo sangue, pois ele é o elemento concreto que se transfere através das gerações,
passei, então a pensar nas substâncias como potencialidades transformadoras e conectoras de e
entre pessoas e patrimônio. Neste contexto etnográfico específico, a potencialidade do
elemento simbólico sangue pode atuar como uma ferramenta profícua para análise e que ganha
52

terreno fértil quando expandimos para contextos de populações rurais de baixa densidade
demográfica, predominante católico, no interior do Ceará.

No caso de Venâncio, assim como pensado por Mayblin (2013) 8 e Carsten (2004), a
carga de significados daquilo delimitado como “substâncias” (sangue, suor, sêmen, lágrimas,
leite materno)9 tem muito a nos dizer. Como bem ilustra Carsten (2004), David Schneider foi
um dos antropólogos a destacar a importância dos estudos das substâncias como uma
ferramenta de análise processual das relações sociais. “Substância”, traz a autora,

was a kind of catch-all term that can be used to trace the bodily transformation
of food into blood, sexual fluids, sweat and saliva, and to analyse how these
passed from person to person through eating together, living in houses, having
sexual relations, and performing ritual exchanges. (CARSTEN, 2004, p. 109)

Similarmente ao destacado por Carsten e Mayblin, percebi que em momentos


ritualizados, como a preparação do vilarejo para receber a morte de Quelé, pai de Marli - diga-
se, uma pessoa muito considerada - suscitou preparações, abstenções e transformações que
transpassaram os corpos individuais e coletivos. Antes mesmo de seu falecimento confirmado,
uma série de preparações envolveu a localidade.

Os homens capinavam o cemitério, limpavam ao redor dos túmulos e ornavam a


lápide de cerâmica que parecia estar pronta há pouco tempo; as mulheres da família
preparavam os “santinhos” e faziam companhia à Dona Adelaide, esposa do doente. A
movimentação nas casas de Marli e de seus irmãos era intensa, o telefone não parava de tocar,
pessoas que vinham na estrada paravam e perguntavam como estava o doente, a resposta era
sempre a mesma: “está muito mal, muito mal, pode ir a qualquer instante.”

Ao fato de sua morte, percebi que tais preparações se tornaram privações. Os jovens
estavam proibidos de saírem para festas e todos ligados à família deveriam fazer luto, vestindo

8
Mayblin (2013) mostra em seu artigo, no qual discute a importância do soro intravenoso no Sertão de
Pernambuco e sua conexão com sangue de Cristo, que o sangue possui a propriedade de transmutação,
modificando-se de propriedade biológica para atributo de extrema significância social.
9
E comida, em alguns contextos.
53

cores ternas: a esposa e os filhos, por seis meses, os netos e sobrinhos, por três meses. A notícia
do falecimento desse antigo líder movimentou toda a região.10

Seu cortejo foi acompanhado do sítio Capiaçú, onde ele residia com esposa e uma
filha e uma neta, até o cemitério do Venâncio. Seguindo a tradição dos enterros do vilarejo -
digo, a tradição daqueles considerados no vilarejo - o corpo foi levado em carro particular,
sendo acompanhado por parentes e amigos que chegavam de toda parte: Bitupitá, Leitão,
Chaval, Parnaíba, Barroquinha, Serra de Ubajara e Fortaleza.

Para a missa de um mês de falecido, a igreja da família fora aberta e limpa. Havia a
preocupação se iriam caber todos os convidados nela, e caso não coubessem, deveriam realizar
a cerimônia na igreja do vilarejo recém construída. Escolheram a igreja nova, e às cinco da
tarde um amontoado de pessoas aproximavam-se da igreja, que tem capacidade para 60 pessoas
sentadas. Todos os bancos ficaram lotados, muitas outras pessoas que chegaram assistiram à
cerimônia do lado de fora da capela. Ao fim da cerimônia, os mais próximos seguiram para a
casa da viúva, onde estavam servindo um jantar.11

Percebendo na fala de meus interlocutores a recorrente presença do sangue que se


transformava em família, este igualmente em consideração e assim por diante, passei a me
questionar como esses elementos podem esclarecer as relações de criação de familiares, ou,
fazendo uso do termo de Comerford (2013), relações de familiarização nessa localidade. Como
relatam, no Venâncio não se obriga casar com primo, mas, ao mesmo tempo é difundido que
casar com primo é bom. Como consequência disso adquire-se sangue bom, porque assim não
nascem e nem se criam pessoas de qualidades morais distintas daquelas desejadas pela família.

Aqui, retornando à ideia de construção de um nexo interpretativo, faz-se entender


que o mundo das relações dos habitantes do vilarejo se estabelece em meio a códigos erigidos
dentro do seu próprio contexto, levando a compreender que os casamentos entre familiares
garantem qualidades valorizadas pelo grupo: não nascem criminosos, nem pessoas de má
índole, nem deficientes – nascem pessoas de sangue bom.

10
Vale ressaltar o papel preponderante, principalmente na etnologia indígena, na fabricação de corpos e da pessoa
(SEEGER, DA MATTA & VIVEIROS DE CASTRO, 1978) a partir da transferência de substâncias e, em
contextos nordestinos, com a produção da pessoa (PINA-CABRAL, SILVA, 2013).
11
O entendimento do papel dos mortos partindo desta breve explanação abre caminhos para novas explorações,
que, no momento desta dissertação não ganhará maiores aprofundamentos pois foge dos propósitos desta.
54

Da mesma forma, ter a casa aberta para a convivência dos vizinhos, as diárias trocas
de alimentos, favores, cuidados e sofrimentos faz parte do processo de fazer família. Os
momentos de lazer, tais como os passeios às lagoas da redondeza, ou as cerimônias de enterro
de parentes no cemitério da família (que se situa mais como uma casa, uma casa que agrega
todos os parentes mortos, em razão de estar localizada dentro do vilarejo), cujas fronteiras são
os quintais das casas, todos esses momentos, todas essas relações são de constante atualização
do parentesco. E assim como a consideração (PINA-CABRAL, 2013), são relações que têm
por estrutura a atualização constante desses laços.

No artigo “What kinship is all about”, Schneider usa o termo parentesco entre aspas
com intuito de afirmar que o que vinha sendo definido por Morgan e seus sucessores, incluindo
Levi-Strauss e Leach, era uma concepção erigida em bases imprecisas. O que os apontamentos
de Morgan, em “Systems of consanguinity and affinity of the human family”, informam,
segundo Schneider, é que o modo de classificação do parentesco deriva a partir do
conhecimento de como as pessoas são geneticamente ou biologicamente relacionada umas às
outras e que o casamento, por sua vez, consiste na relação sexual entre home e mulher, um
processo de reprodução biológica que faz o casal parentes de sua prole biológica. O modo de
classificação e a interpretação do social, continua o autor em sua análise, é erigida tendo por
base as concepções de procriação biológica.

O “parentesco”, prossegue, é uma concepção teórica existente, unicamente, na


cabeça dos antropólogos, no qual não há referência cultural discernível. Com esta proposição,
Schneider desestabilizou o campo epistêmico dos estudos de parentesco, deslocando a base de
conhecimento e mostrando que as teorias até então defendidas não estão erigidas sob a mesma
base. A solução apontada por Schneider reflete em, mais que tentar avaliar características
inerentes, torna-se importante estudar as implicações de diferentes definições e diferentes
formas de conceitualizar o problema, perceber como isso se articula com outros dados.

Destaco esse argumento de Schneider para ilustrar que se este autor não tivesse
feito tal desestabilização, dificilmente a proposta que aqui sinalizo, de tratar o alargamento das
relações de sangue, seria executada.

O que me faz entender é que a biologia, o que tem de biológico numa relação deve
ser interpretado a partir dos símbolos levantados por uma certa cultura e não o oposto, ser uma
cultura definida a partir de um prisma biológico.
55

A simples definição entre parentesco biológico e social é assim insuficiente.


Parentesco biológico é sempre e, em todo lugar, um conjunto de concepções
culturais. Na cultura europeia, tais concepções culturais são denominadas
ciência, a cultura é a ciência folk ou concepção etnocientífica de todas as
culturas (SCHNEIDER, 2004: 111) [tradução minha]).

Se pergunta o autor: Porque existem tantas variações de nome para um único signo?
Existe alguma regra para isso? Para entender tais questionamentos, resgata o autor, devemos
voltar para o primeiro princípio do sistema de parentesco americano, em que o “sangue” é uma
substância e que isto é suficientemente distinto do tipo de relacionamento estabelecido por
códigos de conduta. É na distinção das relações “de sangue” e aquelas “in-law” que atua como
quadro diferenciador dos entendimentos do parentesco americano.

Consideração, sangue bom e filhos de criação são categorias que podem ser
entendidas tomando por base as considerações explicativas de parentes “in-law”. O sangue em
si não muda, fatos biogenéticos são imutáveis, no entanto esses laços podem ser adensados ou
dissolvidos. Percebe-se que neste caso, não estou tomando o sangue fato biológico imutável
como base do entendimento do parentesco, estou na verdade o colocando em suspenso,
entendido por um prisma cultural.

Se o sangue pode ou não ser mais denso que água ele poderá ser entendi dentro de
categorias culturais. Essa se mostra como uma das revelações mais contundentes de Schneider,
em “What kinship is all about”. Por mais que se refira a sangue como dado biológico, e o
biológico mesmo dentro de uma acepção de cultura é visto como algo imutável, ele pode ser
percebido em diferentes nuances, sangue é uma categoria negociável. É o caso de D. Marli ao
referir-se a D. Otacília.

No causo que abre este capitulo, quando pergunto de que maneira se dava a relação
entre as duas, D. Marli responde: somos da mesma família, só que não muito próximas. A
relação de Marli com Rita, outra moradora do vilarejo, mas que não possui nenhum laço
consanguíneo com nenhuma das famílias que lá habitam, por outro lado, mostra que as
afinidades entre estas duas são compartilhadas e aprofundadas mediante uma gama de
interesses em comum. Rita e Marli não compartilham o mesmo sangue, no entanto, Rita é
muito mais considerada do que Otacília.
56

Os laços sanguíneos persistem e perduram entre Marli e Otacilia, mas ele é


dissolvido por elementos tais como a política. Este é um caso nítido de processo de
familiarizição e desfamiliariazação ao qual Comerford se refere. Esta análise, por sua vez,
somente foi possível pela desestabilização no campo dos estudos de parentesco por Schneider.

But this is true for the spouse of an aunt or uncle regardless of whether they
are divorced or not, and regardless of whether the aunt or uncle. Dead or not;
they are relatives, if they are relatives, only because theirs a relationship of
kinship, that is, only because they invoke that code or conduct which is one of
kinship. It is not because there is substantive basis which entails a relationship
of kinship. Precisely because there is no substantive basis for it, theirs is a
voluntary and optional relationship of kinship, one which depends on mutual
consent.voluntarily undertaken, it can be voluntarily broken. These are
relatives because they choose to follow that code for conduct rather than some
their code, not because they are bound to follow it. (SCHNEIDER, 1980, p. 95)

Casamento entre primos, práticas de “aparentamento” (casais de primos-irmãos são


padrinhos uns dos outros), ter consideração com seus familiares, são práticas esclarecedoras
dos processos de tornar-se parente e fazer família, e todas elas podem ser percebidas como
formas que contribuem para a transformação contínua das relações.

O sangue surge, assim, como uma chave explicativa que permite a interpretação da
mobilidade de valores morais sobre a concretude das relações de parentesco. Com a
transferência de sangue, passam-se direitos, deveres, atribuições, autoridade, lealdade. Dessa
forma, sangue bom, em minha percepção, atua na classificação e qualificação das pessoas. “Ser
da família” é um código inclusivo: embora as pessoas do vilarejo sejam todas da família, nem
todas são consideradas da mesma maneira, variando essa consideração de acordo com a
geração a qual ela pertence - geração dos mais velhos ou geração dos mais novos - bem como
das formas de se relacionar e constituir laços com outros sujeitos que compõem o tecido social
desta localidade.

A família transforma-se em sangue, e, dialeticamente, o sangue transforma-se em


família. Dos variados significados entendidos partindo da relação família/sangue, nesta
localidade, em específico, tais termos adquirem qualidades dos elementos constituintes da vida
social e que se entrecortam mutuamente: sangue, família e política. Entre os moradores do
57

vilarejo do Venâncio, família e política surgem em muitos momentos como noções semelhantes
e que, ao mesmo tempo, atuam, ou podem atuar, como meio explicativo de outros fenômenos
vinculados. Ao tempo que família, nesta região, passa a ser entendida como algo hereditário,
tradicional, que está no sangue, sendo algo vinculado à terra e que corresponde a certas
exigências morais, o termo política surge com qualitativos próximos, senão iguais a estes.

O sangue, certamente, atua nesta localidade como um elemento carregado de


simbolismos, ele é a confirmação da descendência, mas ao mesmo tempo é signo e significado,
metáfora e elemento pelo qual a metáfora se explica. As eleições (e o envolvimento com a
política) em Barroquinha - situação não muito distante de ser percebida como uma guerra - é
também lembrada como algo que demanda um envolvimento tão forte que as pessoas se
referem à disputa como aquilo que não pode ser evitado, a batalha que não podem evitar.
Assim, como dizem os habitantes da localidade, política é algo que corre no sangue, é igual
família. Ou, se quisermos, fazer política é como fazer família.
58

CAPÍTULO 2 – FAMÍLIA É IGUAL POLÍTICA

2.1 O Evento com a médica cubana

Era um dia de fevereiro, um dia chuvoso, já que estávamos no período de inverno


no Ceará. Eu me encontrava no vilarejo do Venâncio, na casa de Dona Marli, minha
interlocutora de mais longa data. Tomamos nosso café da manhã em torno das sete horas. Muito
embora o dia das pessoas da casa inicie entre as cinco e seis da manhã, Dona Marli tomou mais
uma xícara para me fazer companhia. O trabalho cotidiano de Dona Marli com a casa é
bastante similar ao trabalho de outras mulheres do vilarejo, de acordo com minhas observações:
acordar cedo, às cinco da manhã, fazer o café, passar uma rápida vassoura em casa, isso tudo
ainda nas primeiras horas do dia. Na medida em que o sol aparece, tiram as roupas do varal,
alimentam animais de criação que possuem: algumas galinhas, patos e porcos. Quando está na
época, colhe-se feijão, acerola, pimentão e tomate dos pomares alocados em seus quintais.
Prevendo a hora do almoço, D. Marli prepara a mistura, põe o feijão para cozinhar, corta
hortaliças do tipo pimentão e tomate e as adiciona à farinha de mandioca. Essa é a base
alimentar das famílias daquela região.

Nesse dia que narro, a casa recebe um trato especial; é varrida a todo instante,
coloca-se uma mesa e algumas cadeiras na varanda, arrumam-se os jarros para ficarem mais
aparentes e para ajustarem-se numa imagem mais bonita. Lá, ligam a internet, que no caso é
ligar o aparelho roteador na tomada, emitindo sinal para aqueles que possuem a senha wi-fi da
casa, uma situação que nos dias comuns não acontece, uma vez que o roteador passa o dia
desligado.

Seguindo as preparações desse dia, o quarto da frente (quarto que me alojo e que,
na realidade, é o quarto de Mauro, filho mais novo do casal) recebe uma mesa de plástico e
outras algumas arrumações especiais, tornando-se o consultório da médica que está por vir. A
chegada da médica é ansiosamente aguardada pelas pessoas que já se concentram na varanda,
em torno de dez.Muitas delas entram na casa e perguntam se haverá, de fato, consulta naquele
dia. Dona Marli responde, então, de forma segura: “hoje quem vem é a médica mesmo, não é
enfermeira, não.”
59

Antes de a médica chegar, a auxiliar de enfermagem e o motorista despejam na


varanda uma caixa com medicamentos (remédios para pressão, soro, analgésicos), materiais de
uso médico (luvas, máscaras, medidores de pressão e temperatura) e receitas de medicamentos
a serem preenchidas. O fluxo de pessoas continua aumentando, elas chegam e se estabelecem
na varanda, aguardando a chegada da médica. As pessoas que param na casa são todas
conhecidas de Marli, possuem certa intimidade com a dona da casa. Abrem o portão sem
sinalizar que chegaram, puxam cadeira, adentram à sala, ligam a televisão e se abancam nos
sofás. A fila de espera não aumenta naquele intervalo de tempo. Algumas das pessoas, ao
perceberem a morosidade daquela consulta, optam por desistir e retornar às suas casas para
aprontar o almoço. Das que permaneceram, contei oito mulheres, algumas acompanhadas de
seus filhos, e dos dois homens que lá surgiram, impacientes, marcando sua presença ao
circularem entre a sala, varanda e calçada.

Em meio a esse fluxo, Seu Otacílio, esposo de Marli, comunica que irá em
Barroquinha falar com o Prefeito Ademar. Horas depois, Marli me afirma que tal visita era para
ver se ele consegue alguma coisa para ela, que seria um emprego para ela e para algumas
amigas.

Das pessoas que observei, reconheci todas, pois, se não sabia de nome, pelo menos
as feições não me eram estranhas. Posso afirmar que ali estavam presentes somente pessoas
moradoras do vilarejo. Apesar dessa observação, não posso afirmar que estavam naquele dia na
casa de Marli unicamente pessoas do grupo político da anfitriã. No entanto, daquelas que lá
compareceram, todas tinham uma relação de proximidade com o núcleo familiar anfitrião.

Finalmente a médica Ana chega. É uma mulher loira, de média estatura, branca,
fala um “portunhol” bom, as pessoas conseguem entendê-la e ela também as compreende. É
uma mulher que fala alto, ou pelo menos sua voz se destaca, e parece bem relacionada com as
pessoas que estavam na casa da Marli. Entra fazendo piadas, “fazendo graça”. Desde a hora de
sua chegada até o atendimento, passou quase uma hora. A médica abanca-se na sala, e muitos
reclamam aos sussurros: “deixa a conversa pra depois, fofoquem depois da consulta.”

Contava-se mais dez pessoas na varanda, todas insatisfeitas e reclamando da


demora para o início da consulta - o horário aproximava -se das onze quando a médica iniciou
o atendimento das pessoas. Cada sessão durava em torno de 15-20 minutos, porém, sem muitos
recursos para examinar com maior precisão, a consulta era basicamente medir pressão, pesar e
60

distribuir medicamentos para o coração, diabetes e dor de cabeça. Ao fim desse dia de consultas,
D. Marli guarda algumas guias de exames que foram passados para os pacientes. Ela mesma irá
providenciar o agendamento de tais consultas e conseguir transporte para aqueles que precisem
de exames além do município. O telefone neste dia não para de tocar e a movimentação
permanece intensa até horas depois do término das consultas.

A presença da médica no vilarejo nos conduz a perceber a respeito daqueles


presentes e ausentes àquele evento. Os que compareceram à consulta são pessoas conhecidas de
Marli, possuem intimidade com aquela casa e com os anfitriões - tanto que a transformação do
ambiente doméstico em um consultório médico não evitou críticas, por aqueles que lá estavam,
em razão da demora. As pessoas que ali compareceram eram, de alguma maneira,
familiarizadas com a transformação do ambiente doméstico em um equipamento do serviço
público.

Se estabelecermos que nesse evento há dois tipos de performance social, aqueles


que compareceram à consulta e aqueles que não compareceram, o contraste entre ambos ilustra
a quantidade de capital político e simbólico sendo transferido do município para um ambiente
de completo domínio de D. Marli e sua família. Desse retratamento, percebemos a existência de
uma distância politicamente estruturada entre os simpatizantes à anfitriã e os não simpatizantes.

A presença da médica como representante de maior autoridade dita as regras do


lugar. Ela chega tarde ao compromisso, sem pressa, segue para a cozinha tomar um café. Sua
demora não é questionada diretamente, embora se perceba o incômodo das pessoas que
esperam. Sendo a médica a única pessoa de fora, a cena continua com a formação daqueles “de
dentro”, e a consequente: os doadores de serviços e os tomadores de serviços.

A proximidade de Ana com Marli, especificamente, permite, naquele momento,


uma equiparação de status entre a representante municipal e a representante local.
Simbolicamente, as duas são as detentoras de maior capital simbólico naquele lugar.

Marli disponibiliza sua casa, liga a internet, permite que os vizinhos vejam sua casa
sempre impecável. A médica, embora receba reclamações em razão de sua demora, é aguardada.
Ali, Ana é uma autoridade, não só porque foi uma enviada da prefeitura, mas porque detém um
tipo de conhecimento apresentado por poucos, o poder simbólico de um médico, naquele local,
é comparado à autoridade de um prefeito. Os “de dentro doadores serviços”, agentes de saúde,
61

técnicos de enfermagem e motorista, são uma segunda segmentação do poder municipal dentro
da casa de Marli. Eles foram incumbidos, da mesma maneira que Ana fora, de atribuições
específicas: distribuir medicamentos, passar guias de exames, transportar a médica. São, como
Marli, representantes locais da prefeitura.

D. Marli e família, como anfitriões, fazem a ligação entre as partes. O evento


relatado mostra, tão somente, a superposição de estruturas e de forças de poder. A
microestrutura local, com a tessitura de suas próprias linhas – família, parentes, vizinhos,
considerados, intrigados1 - encontra-se com a macroestrutura municipal – funcionários do
município, correligionários, representantes que, em teoria, deveriam neutralizar a polaridade
política.

O relato do dia da visita médica ao Venâncio destaca, como diria Max Gluckman
(1987), as estruturas de poder sobressalentes naquela circunstância e sobre aquela localidade. A
transformação do ambiente doméstico - da sala e do quarto do filho de Mali, em um consultório
médico - a intimidade entre Marli e a médica e a movimentação de pessoas que, cotidianamente,
já frequentam aquele ambiente, informam o quão personalistas são as relações do poder público
com alguns dos sujeitos do vilarejo.

O que a proposição de Gluckman, em sua análise situacional, nos permite inferir da


narração deste evento é que a ausência de certos habitantes do vilarejo a este momento não se
dá por mera falta de interesse em serem atendidos pela médica, mas sim por não poderem lidar
diretamente com tamanha transmutação do poder político.

Do posicionamento da anfitriã como indicada do município para gerenciar toda esta


situação, estabelece-se um distanciamento politicamente estrutural e estruturante com os
sujeitos que lá não puderam comparecer. D. Otacília e sua filha, por exemplo, foram algumas
moradoras da localidade que não compareceram à consulta. Eliedna, moradora da praia de
Bitupitá, mostra bem como se dá essa personalização do poder público e os consequentes
distanciamentos causados por interferências de ordem política.

1
Como definido no capítulo 1, a ideia de consideração aplica-se ao alargamento das limitações impostas pelas
relações de consanguinidade e afinidade. Pessoas consideradas são sujeitos que não necessariamente
compartilham o mesmo código do que lá consideram como biológico, mas que, compartilham códigos morais e de
conduta fortes o suficiente para estabelecer uma relação de “familiarização”. Da mesma maneira, as intrigas, são
contendas entre familiares, desenvolvidas dentro do contexto de “familiarização” e “desfamiliarização”.
62

Eliedna: depois que passa a política, assim, acalma tudo, convive, mas fica. Não pise no meu
pé não, tá entendendo? Até hoje, os nervos estão a flor da pele. Se eu sair daqui pra ir no posto,
quando eu chego lá e não encontro remédio, aí tudo o que eu queria dizer, eu vou jogar lá:
“deveria cair uma bomba nesta peste de lugar, acaba logo que isso aqui não presta, prefeito
miserável”. O que eu tenho vontade de dizer, na hora que me magoa, se eu tiver a chance, eu
vou rebolar.2 Isso tem muito aqui, e vai passar os quatro anos assim, do mesmo jeito, vai
passar. Aqui não acaba política não, não acaba confusão de política, não acaba disputa de
política. É como a Edneia tava dizendo. A geração que não votou agora, que já vai se arrumar
na próxima, essa geração já brigou agora. Culumim3 com culumim, quer dizer, então tem
muito isso, o nosso lugar é política. Se eu tenho um terreno na beira da praia, eu não posso
levantar uma casa porque eu sou Fundo Mole. Se eu tenho um terreno aqui pra levantar, uma
pesqueira, mas não levanto. Eu mesma tenho um terreno, mas não levanto uma casa porque eu
sou Fundo Mole, porque na hora que eu botar pra levantar, lá é uma pesqueira, mas na hora
que eu derrubar a pesqueira, fazer uma casa, eu não posso, porque o Ademar tá no poder e o
povo de Ademar vem derrubar a minha obra. Isso existe dentro do lugar, então essa revolta
não vai acabar nunca. Entrevista em fevereiro de 2017.

O evento na casa de Marli e a narrativa de Eliedna corrobora o distanciamento


estabelecido pela transferência das atribuições do Estado para sujeitos políticos individuais. No
caso de Eliedna a personalização do poder exercido pelo chefe do grupo Cara Preta (família 14)
impede a realização do que ela considera como um direito. Eliedna, enquanto cidadã de
Barroquinha, tem por direito a liberdade para construir uma casa em seu próprio terreno. As
pessoas que não foram à consulta da médica na casa de Marli também possuem o direito de
receberem atendimento médico no local onde moram, mas em razão de “o nosso lugar ser
política”, os acessos aos direitos são remanejados segundo as intenções dos detentores do poder.

Como foi apresentado no capítulo anterior, os laços de sangue e consideração são


formas de garantir e ampliar o “aparentamento”. A depender da circunstância, essas
conformações sociais mostram-se como família, como política ou a interseção dos dois. A
narrativa da vinda da médica cubana ao vilarejo ilustra uma das faces de como a política é
produção de troca, como a troca produz “aparentamento” e como “aparentamento” produz
política.

2
Vale destacar que o verbo rebolar, no contexto cearense, para além de uma movimentação corporal ou dança,
significa projetar algo para longe. Fala-se muito, por exemplo, “vou rebolar o lixo fora”. Aqui, Eliedna quis dizer
que vai proferir, vai rebolar críticas aos adeptos ao grupo oponente ao seu.
3
Culumim é sinônimo de curumim, ou seja, criança.
63

Diversos estudos sobre política e processos eleitorais no interior de regiões do


Nordeste (CHANDLER (1981); LEWIN (1993); MARQUES (2002) NUNES LEAL ([1948]
2012; VILLELA (2008, 2009), VILLELA & MARQUES (2017), PALMEIRA & HEREDIA
(1996), têm tratado das relações de interdependência recíprocas e de poder entre representantes
do poder público e famílias locais como noções sinônimas aos conceitos de “coronelismo” e
“nepotismo”.

Victor Nunes Leal define “coronelismo” como

resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a


uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência
do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história
colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou
seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e
exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político
de extensa base representativa (1948 [2012], p. 23).

Ou ainda, nas palavras de Villela, “coronelismo” é “uma variante local da noção de


“patronagem”, da ideia de centralidade do poder, de um centro sólido emissor ou retransmissor
de meios de poder” (2009, p. 208).

Falar de “coronelismo”, tomando por base o pensamento de Villela e Nunes Leal,


condiz com a coexistência das manifestações do poder privado com base política de cunho
representativo e se vincula, diretamente, às maneiras pelas quais se desenvolveram as relações
de poder na Primeira República (1889 – 1930). A figura do coronel, como trata Carvalho (1997)
a partir das ponderações de Nunes leal, surge da “confluência de um fato político com uma
conjuntura econômica”. A centralização do poder, que antes existia nas mãos do presidente da
província, agora é pulverizada em razão da centralização dos poderes locais, concentrados nas
mãos das oligarquias locais, campanha identificada como política dos governadores.

Em decorrência da superposição de formas representativas locais à uma estrutura


política e econômica determinada, permitiu-se o entrelaçamento institucional entre família e
política. Mais, a fusão entre família e política, notadamente definida como “coronelismo”,
fomentou o debate de que família e política não podem coexistir quando suas atuações
reverberarem nas instituições públicas. A importação dos quadros familiares para a esfera
pública passa a ser moral e eticamente condenada e denominada de “nepotismo”.
64

O pensamento político brasileiro recorrentemente repousa suas construções na ideia


de que a circulação das relações de poder concentra-se na representação de um centro (núcleo
sólido), representado na forma de líder, chefe, patrão, senhor, coronel ou modelo estatal de
aparelho (VILLELA, 2008, p. 207). Quando a isso não correspondiam, tais análises
direcionavam-se para concepções sem Estado e, por isso, atrasadas. A família foi posta como
parte desse núcleo centralizador, certamente por concentrar - através de uma espécie de
legislação específica - as relações de parentesco e marcar limites entre grupos. Quando juntas,
família e política despertam a incompatibilidade de coexistência, a impossibilidade de uma ser
entendida pela outra.

O deslocamento proposto por Villela e Marques (2007), proveniente das discussões


sobre “clientelismo”, “coronelismo” e “nepotismo”, constitui-se em explicações dos modos
como os sertanejos fazem política e família, o que tem por potencial liberá-los da falta e
ausência do Estado, esta intrínseca ao “coronelismo”. Os autores destacam, ainda, que as
teorias que procuram explicar a fidelidade partidária na produção de família e na administração
pública, o fazem por meio da reciprocidade e monopólio do acesso e distribuição dos recursos.
Tais visões corroboram uma perspectiva utilitarista subjacente a cenários políticos que se
mostra insuficiente para dar conta da complexidade dessas relações (2007, p. 35).

Mas aqui proponho que os entrelaçamentos entre política e família sejam percebidos
em um mundo sem solidez, tomando de empréstimo a formulação de Villela (2009). Como o
mesmo traz: “a família é objeto de fabricação, de solidificações impermanentes, do mesmo
modo como o é a política. Mais do que isso, que a política é um dos elementos através do qual
se faz, desfaz-se e se mantém família” (2009, p. 209).

O que será tratado neste capítulo, a revés do ditado resgatado por Schneider é que,
neste caso em pesquisa, a “política, tanto adensa quanto afina o sangue” (2017, p. 38).

Serão aqui destacadas as formas de fazer política em seu contexto relacional no


vilarejo de Venâncio, no município de Barroquinha e na macrorregião na qual estes estão
inseridos. As duas facções políticas locais, família 12 e família 14, ambas sob o comando da
família Veras, governam a região e possuem forte representação na localidade, estabelecendo
uma movimentada dinâmica provedora de conflitos. Isso se revela em múltiplas redes de
relações, uma vez que a cada nova gestão municipal há a ascensão de um grupo e, com isso, o
revezamento de beneficiamentos entre as partes do vilarejo e do município em geral.
65

O entrosamento percebido entre tais esferas, como será mostrado, intenta elucidar
que tais estratégias políticas, longe de representar falta de conhecimento, são na verdade,
maneiras articuladas daquilo que eles têm melhor domínio.

2.2 Disputa e tradição – família 14 e família 12

Advindas de Camocim, 4 as facções políticas Cara Preta e Fundo Mole são


originárias dos conflitos existentes entre duas importantes famílias da região: a família Aguiar e
a família Coelho. Relatam os habitantes da região camocinense que os grupos foram apelidados
em razão das características físicas de seus líderes, devendo à pinta preta no rosto de Murilo
Aguiar o apelido Cara Preta, e às calças de linho de fundo mole de Alfredo Coelho o nome
Fundo Mole. Como explica o blog de notícias locais, “Camocim pote de histórias”:

Durante a campanha para prefeito de Camocim, em 1950, foi realizado um comício


na Amplificadora Pinto Martins, onde estavam presentes os líderes e opositores da política
local, Murilo Rocha Aguiar e Alfredo Coelho. No desenrolar dos acontecimentos, os líderes
políticos acabaram desentendendo-se e provocando certo tumulto na Praça Pinto Martins,
acirrando a disputa pela Prefeitura Municipal. O Sr. Orion Menezes narra o fato:

A disputa política foi o seguinte, isso eu sei contar bem direitim: o Alfredo Coelho era
compadre do Murilo Aguiar, (...) eles eram muito amigos, todos dois comerciantes do alto
comércio aqui de Camocim, Alfredo Othon Coelho e Murilo Rocha Aguiar, já veio do Vicente
Aguiar que começou o comércio. (...) aí veio a política, o Alfredo Coelho era da UDN e o
Murilo do PSD, aí eu sei que o Murilo ficou arrepiado com o compadre que era o Alfredo
Coelho, aí o Alfredo lançou a candidatura de João Colares Filho pra prefeito de Camocim. (...)
Pois bom, aí o resultado foi que eu estava lá no comício quando o Sr. Murilo foi falar, aí eles
não deixaram o Murilo Aguiar falar, eles tomaram o microfone; aí quando botaram pro João
Colares Filho, o Pascoal puxou pelo canivete e cortou o fio do microfone, foi uma confusão
danada e o povo estava era aí, com a língua horrível, né? Aí o resultado, o Murilo Aguiar
disse: “quem for do meu lado me acompanhe até a praça”, hoje a Praça da Estação; aí
menino, ficou pouca gente lá no palanque do Alfredo Coelho, pouca gente; a multidãozona
acompanhou o Murilo Aguiar. Começou a partida política dele desde esse tempo. Aí o Murilo
Aguiar disse: “vou lançar um candidato, o Vaqueiro da Esperança, Setembrino Veras”. Ele
estava lá nas Amarelas, no terreno dele lá, ele vivia mais no interior. (...) O Murilo Aguiar
lançou a candidatura dele, quando foi no outro dia o Setembrino entrou aqui no carro, foi
foguete, às sete horas da noite. Vaqueiro da Esperança, botaram o apelido dele, aí o

4
Camocim é uma cidade do estado do Ceará. Localiza-se na microrregião do Litoral de Camocim e Acaraú,
mesorregião do Noroeste Camocinense. O município tem quase 60 mil habitantes e 1158 km² e distancia-se a 357
km de Fortaleza.
66

Setembrino ganhou a prefeitura, aí meteu o pau no outro candidato, ajeitou a cidade, aí


começou a intriga do Alfredo Coelho com o Murilo Aguiar. Foi o rompimento.”

A briga política dos líderes partidários provocou uma divisão no cenário político de Camocim.
A atitude e a frase emblemática do Sr. Murilo Aguiar, “quem for do meu lado me acompanhe
até a praça” sinalizava muito mais que um rompimento político, era o nascimento de duas
facções que durante logos disputariam o poder local e, em alguns momentos, se alternariam na
gestão da cidade. De um lado estava o grupo político alcunhado de “Cara Preta”, sob a
liderança de Murilo Aguiar, do outro, “Fundo Mole”, liderado por Alfredo Coelho.5

O referido trecho traz o momento do surgimento de tais grupos políticos. O


período subsequente a esse evento seria de atuação do grupo Cara Preta no município durante
24 anos seguidos. Em 1976, os Cara Preta seriam derrotados nas urnas pela facção Fundo
Mole, da família Coelho, esta estabelecendo um período de governo até 1982, quando o poder
político local retornou para o grupo Cara Preta.

Em 1988, quando Barroquinha torna-se um município independente de Camocim,


os irmãos Veraldina e Pedro Veras, que antes da emancipação faziam parte do grupo Cara Preta
em Camocim, separam-se. Com a nova configuração do município, passaram a disputar, um
contra o outro, as primeiras eleições de Barroquinha. Desse momento em diante, conformam-se
as intrigas dentro da família Veras, como me relatou o filho da ex-prefeita de Barroquinha, o
também ex-prefeito Jaime Veras: “com a emancipação apartou tudo, relações familiares,
casamentos, amizades...tudo.”

O envolvimento político na família Veras inicia-se com Veraldina e Pedro Veras.


Ambos naturais de Barroquinha, os irmãos tiveram a vida dividida entre o município e a capital
Fortaleza. Como é de hábito de algumas famílias do interior, logo que os filhos alcançam certa
idade de independência, geralmente na transição da adolescência para jovem adulto, eles são
enviados para a capital a fim de realizarem os estudos em escolas e universidades da capital.
Envolvidos na política de Camocim, Pedro e Veraldina passam a ser representantes do grupo
Cara Preta e participantes da coalizão de Murilo Aguiar.6

Com a emancipação, a família Veras, de Barroquinha, segmentou-se em razão de


divergências partidárias. O evento de 1988 foi uma jogada política do deputado Chico Aguiar e

6
Murilo Aguiar foi o fundador da fação política Cara Preta em Camocim, tendo sido deputado estadual e prefeito
desta cidade.
67

seus aliados Caras Pretas, que, para conseguir ser eleito em Camocim, promoveu, em ação
conjunta com Pedro Veras, a emancipação de Barroquinha. Com Barroquinha emancipada, os
votos do distrito, de maioria eleitoral Fundo Mole, seriam desfalcados de Camocim, fazendo
com que o grupo Fundo Mole perdesse nessa cidade. Esta jogada engendrada pelos Caras
Pretas favoreceu sua situação em Camocim, mas não em Barroquinha. Nas mesmas eleições,
no agora município, lançaram a candidatura de Pedro contra Veraldina. Como a grande maioria
dos habitantes de Barroquinha à época eram partidários Fundos Moles, Veraldina ganhou o
primeiro pleito do município.

Barroquinha, assim, recebeu por tradição a briga familiar de Camocim e inaugurou


a sua própria contenda. Como explica o prefeito Ademar Veras,

A possibilidade da família Veras ser unificada em Barroquinha cresceu, embora eu percebesse


que o grupo que ficou dividido em Camocim precisasse dos votos de Barroquinha para se
manter no poder lá. Então a emancipação era um risco, e os Caras Pretas, representados pelo
deputado Chico Aguiar, levantaram a bandeira que precisava desligar Barroquinha de
Camocim para garantir sua eleição lá. E assim foi feito e assim aconteceu. Nem com a retirada
da votação do nosso município, que era na sua grande maioria Fundo Mole eles ganham lá, os
Caras Pretas, que era o objetivo, e nós Cara Preta perdemos aqui em Barroquinha porque
ficou confirmado que a maioria realmente era Fundo Mole. Meu pai perdeu por 46 votos.
Trabalhamos em função de que ele foi o mentor da emancipação etc. e tal, de que a irmã tinha
propagado que não seria candidata e após ele lançar a candidatura ela lança a sua
candidatura, né? Ai isso fortaleceu essa, digamos assim, esse desentendimento. E tudo
contribuiu com os outros fatos para que nós chegássemos no cenário que nós chegamos hoje,
isso foi exatamente assim. Entrevista em fevereiro/2017.

Do primeiro pleito até os dias de hoje, Barroquinha teve oito disputas políticas:
quatro eleições vencidas por Veraldina e Jaime Veras (mãe e filho) 7 e quatro outras
conquistadas por Pedro e Ademar Veras (pai e filho) e seus partidários. A disputa nos últimos
anos vem sendo travada entre os primos Ademar e Jaime, que não se intitulam mais como Cara
Preta e Fundo Mole, dizem que estas denominações são coisas dos antigos. Nas últimas
eleições ambos os candidatos utilizaram como marca os números e as cores de suas legendas,

7
Pleito de 1988: Veraldina x Pedro Veras, Veraldina vence; 1992: Fco Franciné (Cara Preta, grupo de Ademar) x
José Maria Veras” (Fundo Mole, grupo Jaime), Fco Franciné vence; 1996: Jaime Veras x Pedro Veras, Jaime vence;
2000: Jaime Veras x João Sotero, Jaime vence; 2004: Aline Veras (sobrinha de Jaime) x Ademar Veras, Aline
vence; 2008: Ademar Veras x Jaime Veras, Ademar vence; 2012 : Tetê (grupo Ademar) x Veraldina, Tetê vence;
2016: Ademar Veras x Jaime Veras, Ademar vence.
68

família 14, da onda vermelha, para Ademar (Cara Preta) e família 12 e onda azul para Jaime
(Fundo Mole). Como bem explicaram Jaime e Ademar, as denominações Cara Preta e Fundo
Mole são tradições que foram transferidas junto com a política de Camocim.

Segundo minha observação, a tradição desempenha um papel fundamental ao


falarmos de família e política. Em ambos os casos, é a tradição um dos elementos que garante a
perduração das práticas de casamento endogâmicos, ao mesmo tempo em que a ela é anexada à
memória e repetição de hábitos e condutas. Tanto no contexto familiar do Venâncio como no de
Barroquinha as ações e atitudes tradicionais imprimem em si parte do corpo simbólico daquele
lugar. O resgate da memória dos antepassados e a contínua presença deles nas narrativas de
territorialização a partir do parentesco é operacionalizada pelo reforço da memória através da
eficácia da tradição. A política realizada nesse local, da mesma forma, é substantivada e
conferida de sentido ao longo dos anos por meio da tradição.

As referências simbólicas as quais descrevo nessa etnografia, tais como sangue,


família, herança, filiação partidária e terra, são todas alinhavados na tessitura da tradição.
Nesse sentido, a referência de Marcel Mauss em sua comunicação “As técnicas do corpo”
([1934] 2003), nos permite pensar que a tradição, mais que garantir a repetição de hábitos e
atos, é uma “imitação prestigiosa”, uma forma de educação e convenção social. Explica Mauss:

A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados
por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de
fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. O
indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado
diante dele ou com ele pelos outros. [...] É precisamente nessa noção de
prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao
indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social(2003, p. 405. Grifos
meus)

A tradição é incorporada da “imposição de fora, do alto”. Podemos pensar em como


a configuração de família 12 e família 14 ganha robustez se percebida como produto de
transferências simbólicas das facções de Cara Preta e Fundo Mole de Camocim, das intrigas
pelo domínio político entre Veraldina e Pedro Veras. Essa característica de “imitação
69

prestigiosa” permite que a tradição atravesse as camadas do tempo cronológico e se configure


como algo maior em si mesmo. Como ilustra o depoimento de Ednéia:

Aqui ainda é muito sangue de política mesmo, né? Acho que vai passar muitos anos. Por que
vai passando de geração a geração. Até esse meu [apontando para o filho] desse tamanho,
está fazendo uma confusão enorme, passava com outro e brigava. Até na sala de aula ele
brigava: - ei fulano, agora tu vai ser é 12. [o coleguinha respondia]: - eu não vou ser 12,
porque minha mãe e meu pai são 14. É de família, leva muito, eu transpareço para ele que eu
sou Fundo Mole, eu sou deste partido, sou 12, então ele vai acabar crescendo e gostando como
a minha mãe fez comigo. Minha mãe até hoje é apaixonada, [...], meus irmãos são Fundo Mole
e um Cara Preta, são coisas que vão vendo, vão crescendo, ai vai levando, vai crescendo, e a
política aqui é muito quente. Entrevista com Ednéia em fevereiro de 2017.

Nas disputas eleitorais desde a emancipação em 1988 os grupos políticos vêm


buscando conferir novas tradições identitárias às nominações Cara Preta e Fundo Mole.
Família 12 (grupo de Jaime) e família 14 (grupo de Ademar) ganham destaque e se mostram
como o maior símbolo de identificação à participação política. Há ainda a identificação recente
das famílias e que ganhou notoriedade na última eleição: os cascas, para família 12 e os
bacurais8 para família 14.

Essas denominações, igualmente, vêm ganhando maior representatividade em


função do uso feito pelos próprios eleitores e sugestionam outras maneiras de fazer, perceber e
se envolver na disputa política. Isso pode ser percebido tanto para os representantes familiares
quanto para o corpo eleitoral. Em razão do pouco suporte dado pelos partidos políticos9 e pelos
diretórios regionais e estaduais - algo justificado como uma das razões para a não assimilação
dos símbolos dos partidos (PDT, uma flor e PTB o mapa brasileiro nas cores preta, branca e
vermelha) - os grupos locais buscaram fortificar a identidade pelos números, com cores
(vermelho e azul) e imagens da natureza que os circundam, (a onda azul e a onda vermelha).

Muito embora os números utilizados sejam aqueles conferidos pelos partidos,


remetendo de imediato aos números digitados na urna, o caráter personalista dos representantes

8
Cascas e Bacurais são denominações forjadas pelos próprios eleitores de Barroquinha, segundo Jaime.
9
Os partidos políticos atuantes em Barroquinha são PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), família 14 e PDT
(Partido Democrático Trabalhista), família 12. O PDT aqui ganha destaque por ser o partido político que lançará a
candidatura de Ciro Gomes à presidência da república nas eleições de 2018. Como se sabe, a oligarquia dos
Ferreira Gomes tem por base de atuação a região norte do estado do Ceará, possuindo por base a cidade de Sobral,
distanciada 180 km de Barroquinha.
70

é acrescentado à essa nova marca. Falam que as pessoas do partido de Ademar, família 14, são
pessoas de nariz empinado, arrogantes, enquanto que os adeptos à família 12, de Jaime, são
identificados como pessoas mansas e humildes. Certamente estas características possuem
nuances e podem ser relativizadas a depender de quem as profira. Mas o que essas noções
permitem é identificar o tratamento desses signos como indexicais, utilizando a linha de
pensamento de Borges (2000), em que se apresentam qualidades consoantes ao contexto nele
aplicado.

No lugar de “totens políticos” conceito extraído de Durkheim, e aqui definido por


Borges (2000):

[...] trata-se de lei conhecida que os sentimentos despertados em


nós por uma coisa comunicam-se espontaneamente ao símbolo que a
representa. O preto é para nós sinal de luto; assim sendo, nos sugere
impressões e ideias tristes. Essa transferência de sentimentos deriva do fato de
que a ideia da coisa e a ideia do seu símbolo estão estreitamente unidas nos
nossos espíritos; segue-se, então, que as emoções provocadas
por uma estendem-se contagiosamente à outra [...] se a
própria coisa não preenche essa condição, não pode servir de
ligação com as impressões sentidas, ainda que seja ela que as tenha provocado.
É o signo que assume então o seu lugar; é sobre ele que transportamos as
emoções que ela suscita [...]. O soldado que morre pela sua bandeira, morre
pela sua pátria; mas de fato, na sua consciência, é a idéia de bandeira que está
em primeiro plano (DURKHEIM, (DURKHEIM [1989] apud BORGES, 2000,
P. 275).

A ideia sugestionada por Borges permite que haja a elaboração constante dos significados de
ícones. A estes são atribuídas referências que representam a agregação de valores diversos, os
valores esses que acompanham a mobilidade inerente do contexto em que os ícones se inserem.
As fronteiras fluidas estabelecidas entre os dois pontos polarizados da política permitem
entender incongruências desse próprio sistema, como a movimentação de algumas pessoas
entre partidos.

Foram realizadas duas entrevistas com os representantes da família 12 e família 14,


ambas de teor e contexto bastante distintos.

Ademar me recebeu em seu gabinete, localizado no centro de Barroquinha. A


movimentação na prefeitura era intensa, os funcionários ainda estavam se familiarizando com o
71

novo escritório e as novas atribuições na prefeitura. Era fevereiro de 2017, o mandato de


Ademar havia começado há menos de um mês. Antecedendo o gabinete do prefeito, encontra-
se uma sala na qual se apresentava em uma mesa a primeira-dama. Lá ela não desempenhava
papel de esposa do prefeito; lá ela trabalhava como sua chefe de gabinete, anotando os nomes
das pessoas que iam, naquele dia, conversar com ele. Tratando todos com muita simpatia, ela
chamou minha atenção, referindo-se a todos por nomes e adjetivos carinhosos.

Os tipos de pessoas inscritas para a conversa com o prefeito eram dos mais variados.
Trabalhadores rurais, professores, profissionais liberais, e eu, pesquisadora, esperávamos na
antessala para sermos atendidos pessoalmente e individualmente pelo prefeito Ademar. Chega a
minha vez e, com alguma cerimônia, Ademar aperta minha a minha mão apresentando-se, e,
logo no cumprimento, pergunta-me qual o propósito de minha visita. Explico sobre o meu
interesse em estudar as famílias do Venâncio, que já faço pesquisa há oito anos em Barroquinha,
e que, como as eleições ainda estavam latentes, vi que seria interessante conversar sobre a
última disputa eleitoral.

Em dado momento, peço autorização para gravar a nossa entrevista. Ele confirma,
adicionando: “Bom dia Lorena, gravação autorizada para que você possa utilizar para
fundamentar o seu trabalho.” O ambiente no qual estávamos, o gabinete do prefeito, se
mostrava, para mim, um tanto intimidador. As pessoas entravam e saiam da sala pedindo para
que ele assinasse papéis ou informando sobre os que lhe estava na antessala. Ademar, que faz
questão de destacar que sua alcunha é Professor Ademar, performatizava uma postura oficial.
De mãos fechadas, uma entrelaçada à outra, parecia que pensava e escolhia bem as palavras
antes de proferi-las.

Ademar explica que sua trajetória na política surgiu por influência do pai, Pedro
Veras, que depois de ter perdido dois pleitos para sua irmã, Veraldina, desistira da disputa por
cargos eletivos. Ademar, como o mesmo fala, não querendo demonstrar um ato de covardia
para com seu pai e com seu eleitorado, e por própria indicação por parte de sua facção política
e do povo de Barroquinha, decidiu entrar oficialmente para a vida política, candidatando-se em
2004 e disputando contra sua prima, Aline Veras. Em 2008, disputa novamente contra seu
primo legítimo, Jaime Veras, e perde novamente. Foi nas eleições de 2009 que obteve sucesso
nas urnas, passando a ser chefe do executivo municipal.
72

Vale ressaltar que a noção de primos legítimos surge com bastante frequência no
contexto de Barroquinha e implica a relação de primos de primeiro grau ou ainda “primos
diretos”. Primos dessa categoria são considerados de grande potencial para firmação de laços
matrimoniais. Identificados ainda como primos carnais ou primos filhos de irmãos, se deduz
dessa união a perpetuação do núcleo familiar (LEWIN, 1993, p. 136).

Nos anos em que não foi prefeito em Barroquinha, Professor Ademar trabalhou na
máquina pública do município de Camocim, atuando como secretário de educação. Ao buscar a
reeleição em 2012 foi impugnado pela campanha da ficha limpa. Impossibilitado de concorrer
ao cargo executivo, Ademar lança em seu lugar Terezinha Maria, a Tetê, 10 passando a ser seu
assessor político.

Em Barroquinha não se esconde o caráter oligárquico da família Veras, entendido


como a articulação de uma elite familiar com domínio da estrutura econômica, política e social,
e muito menos se esconde que esse tipo de política lá realizado é fruto de uma prática de cunho
coronelista.

Ademar define práticas coronelistas como atitudes de perseguição política,


limitação dos espaços públicos, uso de estratégias manipulatórias junto às massas e o
cerceamento, de um modo geral, das liberdades individuais. Como indica Ademar,

Lorena: Professor Ademar, como que foi todo esse período pré-eleições, as preparações, os
comícios, os eventos? Eu acompanhei um pouco pela internet, vi que tinham símbolos, a onda
azul, a onda vermelha, a população, realmente, ela estava muito envolvida…

Ademar: é um período de, digamos assim, de grande, como eu posso usar o termo? É
adrenalina pura, tanto para os candidatos, como para os aliados dos candidatos, muitos se
empolgam ao ponto de ter comportamentos bastante arriscados, não é? Nessa campanha
agora eu fui perseguido por pessoas armadas, impedido de entrar nas casas para visitar e
pedir votos, então tem essa empolgação que ela é fruto da política coronelista, em quem passa
e ganha uma política. Nós tínhamos que entender que a manipulação não podia ser esquecida,
né? Os candidatos, e quem estava aliado a eles, tinham que ter essa capacidade de manipular
a massa no sentido de convencê-lo a gostar. E essas manipulações ela se tornam perigosas em
todo sentido que a palavra permite, porque ela não deixa a ... digamos assim, a consciência
política do eleitor se manifestar, então ele é induzido pelas grandes multidões, pelos comícios,
pelos megacomícios, pelas caminhadas, então eles ficam medindo quantidade de pessoas que

10
A prefeita Tetê já fora citada no capítulo 1, na ocasião do causo com D. Otacília.
73

participam, o comportamento do candidato no palco, quem agride, quem não agride, mas é
uma campanha complexa, é uma campanha com medição de força do primeiro momento que a
campanha é lançada até o desfecho final. Entrevista em fevereiro de 2017.

A forma política apresentada por Ademar se mostra no controle das instâncias


econômicas nas mãos de uma família, e que tem por natureza a superposição de estruturas
similares que fazem uso de estruturas de força, moralidade, honra e reciprocidade. É consenso
que as facções atuam em Barroquinha como inimigas e que esta é uma questão pessoal, mais
propriamente, uma questão familiar que é transferida para as contendas políticas e que recaem
na polarização entre facções, transferidas, por sua vez, para os eleitores. Em entrevista
realizada com Jaime Veras percebi com mais clareza o quanto dos desentendimentos familiares
resvalam em questões políticas.

Jaime me recebe em sua casa, em um domingo, logo pela manhã. Durante a


semana fui em sua casa, localizada no centro de Barroquinha, em busca de marcar uma data
para fazermos a entrevista. Quando o encontrei, Jaime me pediu para que fosse no domingo,
pela manhã. Sigo então para a casa de sua mãe, também no centro, em frente à igreja matriz. Ao
entrar na casa sou convidada para sentar-me à mesa do café da manhã. Estavam em casa Jaime,
sua esposa, seu filho de quatro anos, Pedro e sua prima, Aline Veras.

Jaime inicia a nossa conversa afirmando a proximidade entre os primos antes de


1988. Um irmão seu era casado com uma filha de Pedro Veras, o próprio Jaime namorava com
outra filha de Pedro Veras. O relacionamento íntimo entre membros da família ocorria quando
os primos ainda moravam em Fortaleza. Quando mudaram para Barroquinha, a situação mudou
de tom, afirma o entrevistado.

[...] quando viram a realidade, não era o que a gente pensava. Em Fortaleza eram unidos.
Diziam que iam permanecer unidos. Mas quando chegou em Barroquinha a realidade era
outra. [...] então daí apartou tudo. A inimizade foi grande, famílias se separaram meu irmão se
separou da esposa lá, eu tive um filho com a filha dele, também separamos, então essa questão
familiar no interior ela é muito acesa, assim, hoje a gente diz assim, as amizades, família pra
gente são os amigos, porque as famílias se dividem muito. Entrevista com Jaime, em fevereiro
de 2017.
74

Jaime identifica que o motivo para a escolha de Pedro Veras pela emancipação
surgiu das influências que este sofreu por parte de pessoas influentes da política de Camocim.
Haviam acordado entre os membros da própria família que a política de Barroquinha não iria
abalar os laços familiares. Mas seu tio vinculou-se à parte que pedia a emancipação. Então, sua
mãe, seguindo indicação deu um primo, tomou a decisão e candidatou-se. Jaime caracteriza a
primeira eleição de Barroquinha como uma luta grande. Veraldina venceu o pleito por apenas
46 votos de diferença, como o mesmo conta. Caracterizou-se como uma campanha puxadas
pelos amigos e pelo povo, pois nem um carro naquela época tinha eles tinham para andar, relata
Jaime. Essa primeira eleição é designada como o estopim para a disputa dentro da família e que
trouxe muita coisa de Camocim: as facções, as indicações políticas e as intrigas.

Seguindo o mandato de Veraldina, Jaime cumpriu mais dois mandatos e um terceiro,


vencido por sua sobrinha, Aline Veras, denominada à época, em 2004, a prefeita mais nova do
Brasil. Como indica a reportagem:

São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

EXTREMOS

Aline Veras (PSDB), 21, de tradicional família política, foi eleita em Barroquinha,
que tem o pior IDH do Ceará

Prefeita mais jovem é símbolo de continuidade

SÉRGIO RANGEL
ENVIADO ESPECIAL A BARROQUINHA (CE)

Juventude nem sempre é sinônimo de renovação. Aline Veras que o diga. Com 21
anos, completados no último dia 16, ela tomará posse em janeiro como a prefeita mais
jovem do país.
Além de fazer história pela pouca idade, Aline ganhou nas urnas com a promessa de
manter a política da sua tradicional família em Barroquinha (411 km de Fortaleza). A
cidade ostenta o título de ter o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do
Ceará.
"Estou aqui para dar continuidade ao trabalho da minha família. Com certeza, as
nossas administrações estão sendo bem planejadas", disse a prefeitinha, como é
chamada pelos eleitores.
Apesar do orgulho de Aline pelos familiares, que só deixaram o poder por quatro anos
desde a fundação da cidade em 1988, o saldo político dos Veras é pífio.
75

Na fronteira com o Piauí e com a população espalhada em praias paradisíacas e na


caatinga, Barroquinha tem uma das piores taxas de analfabetismo e mortalidade
infantil do país.
"É uma vergonha. Todos somos muito pobres e não vejo como essa situação mudar
com uma menina mandando na nossa terra", disse Antônio Rocha, 60, um dos poucos
moradores que admitiu ter votado na oposição.
Criada em Fortaleza e moradora do município há três anos, Aline tem um estilo
diferente das jovens de Barroquinha, quase todas amantes de forró. "Gosto muito de
ouvir pop-rock e de assistir videoclipes. Na posso negar. Ainda me considero uma
adolescente", disse ela, que gosta de The Calling e da rebelde sem causa Avril
Lavigne, ícones teen mundiais. Adora vitrines de shoppings e fast-food -programas
impossíveis em Barroquinha. Para ter idéia da tranqüilidade da cidade,
a Folha aguardou 12 minutos para ver um carro passar pela principal rua da cidade na
tarde de quinta-feira.
Aline (PSDB) foi eleita com 5.040 votos (53,98%). Veraldina Veras, sua avó, foi a
primeira prefeita. Jaime Veras, seu tio, está no segundo mandato consecutivo, mesmo
sem as contas aprovadas pelo Tribunal de Contas dos Municípios. Até o adversário na
eleição, Ademar Veras, é seu primo.
"Aceitei a missão. Agora, chegou a minha vez. Já fizemos muito pela cidade, mas sei
que temos muita coisa para tocar", disse ela tucana, que está iniciando a sua 3ª
faculdade (agora, ciências contábeis) por não ter achado "um caminho". Nem a vitória
na eleição (salário de R$ 1.600) a fará mudar de casa. "Gosto de ficar sempre perto da
minha avó", diz Aline, que avisou ao namorado que não se casará até o fim do
mandato.
Morena, magra e ainda com algumas espinhas, ela entrou na política ao aceitar o
convite do tio para comandar a Secretaria Municipal de Turismo há três anos. Em
2003, também foi a responsável pelo cadastramento do Fome Zero, que atende 1.918
pessoas. Nega ter tirado proveito político.
Eleita com a promessa de transformar praias em polos turísticos, Aline mostra mau
humor quando o tema é idade. "Quero derrubar esse tabu. Vou mostrar que os jovens
podem fazer muita coisa, independentemente da idade."
Ela decidiu criar secretaria especial para os jovens. "Eles terão a vez e vão participar
diretamente." O secretariado terá alguém mais novo do que ela? "De forma alguma.
Tem de saber administrar uma secretaria", disse. 11

A gestão de Aline Veras foi um grande marco na política de Barroquinha. Embora a


opinião de eleitores, tais como Eliedna e Edneia, contradiga a opinião do repórter da Folha de
São Paulo, a política de Aline Veras foi duramente criticada por não dar continuidade à política
‘nepotista’, tradicionalmente engendrada e reproduzida por seus familiares.

Criada na capital, Aline teve influências que a diferenciaram dos modos de fazer
política, desviando-a dos caminhos trilhados por seus antecessores parentes. Aline tirou os
cargos comissionados e abriu editais para concursos, tirou “todos”12 os Veras da prefeitura e se
negava a entrar no esquema político de dar as coisas. Tal postura é claramente oposta a de sua
avó, Veraldina, lembrada por executar uma política assistencialista e por não negar ajuda a
11
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2810200451.htm>, acesso em 20 fev. 2018.
12
Este “todos” está entre aspas porque acredito que essa referência tenha sido uma força de expressão de Jaime.
Se Aline tivesse mesmo tirado todos os Veras de seu governo, nem seu primo Jaime estaria trabalhando com ela.
76

quem pedisse. Como afirmou uma eleitora do grupo de Jaime:“Veraldina nunca foi de negar
um botijão de gás para um pai trabalhador.”

Jaime identifica a gestão de Aline como uma gestão perfeita, com todas as contas
quitadas. Entretanto, ela não conseguiu fugir daquilo demandado pela política dos pequenos
municípios, o que Jaime indica com um tipo de política necessária a ser feita.

Seguindo a política iniciada por Aline, Jaime propôs continuar com o mesmo foco
em 1997, questionando-se publicamente sobre a questão do nepotismo no município. Ambos
foram criticados por essa abertura, através da qual montaram equipes técnicas e incentivaram a
abertura de editais para concursos públicos. As contundentes afirmações de Jaime fazem crer
que as facções de Barroquinha e seus representantes partilham de distintas “ideologias” e
rumos de execução daquilo considerado uma boa administração política.

Ademar e Jaime possuem características intrinsecamente personalistas. Ambos


carregam consigo o ofício de levar à frente as legendas das partes que representam.
Dificilmente obtém êxito nas eleições o candidato que não estiver coligado a um dos dois.
Além disso, não há um terceiro candidato. A pesquisa mostra que da única vez em que
lançaram campanhas de pessoas fora da família, estas ainda eram indicadas por líderes das
facções. Barroquinha se mostra como um lugar sem espaço para uma terceira opção de voto.

A fidelidade faccionária, mostra-se assim à pessoa, e arrisco a dizer, ao caráter


daquele que o carrega. Essa identidade de caráter personalístico torna claras as inversões das
esferas política e familiar. Coloca-se o doméstico na disputa política, e as discussões que
ocorrem dentro do sangue da família transferem-se para o outro campo, disputas que, como
veremos, extrapolam os limites das reuniões familiares.

Uma ideia bastante similar é a que traz Comerford (2003) ao tratar dos sindicatos na
Zona da Mata mineira. Ao discorrer sobre os modos de como a participação nos sindicatos
rurais, em muitos momentos, assemelha-se às características do domínio familiar, o autor
mostra que assumir os valores empregados no sindicato, como alguém assume sua família, é
responder através da família o compromisso com a entidade (COMERFORD, 2003,p. 14-15).

A assimilação de uma esfera pela outra é levar até as últimas consequências a


metáfora de que política é como família. Nesse processo, abrem-se precedentes para a
77

confiança entre afiliados, por um lado, mas ao mesmo tempo permite-se que sua família esteja
sob o escrutínio e avaliação constante. Esta assimilação é, nas palavras de Comerford:

arriscar-se a ver a si e aos seus familiares questionados, provocados e


desrespeitados, por vizinhos e mesmo por familiares e parentes, em função da
identificação com o sindicato, tendo como cenário aquele lugar onde o próprio
território assumia os contornos de uma expressão da família e de seu valor
(COMERFORD, 2003, p. 15).

Com Ademar na prefeitura, resta a Jaime aguardar as eleições de 2020, afirmando


que será a mais acirrada de todas, já que cada família conta no momento com quatro vitórias
como já dito – em 2017 inicia-se o quarto mandato da família 14.

Percebe-se que os envolvimentos entre família e política não constituem uma


característica singular nem do Venâncio, nem de Barroquinha e muito menos de Camocim. O
que se vê, na verdade, é o fluxo de modelos organizatórios distintos. Aplica-se na política o
modus operandi da família e vice-versa. Não se sabe onde começa um e termina o outro, mas
se sabe que suas práticas estão imbricadas umas às outras.

Pode-se entender aqui as tensões entre os dois polos da família Veras de maneira
similar àquela esclarecida por Ana Cláudia Marques (2006) ao falar das “intrigas” entre
famílias no sertão de Pernambuco. Aqui, a noção de “intriga” aponta para “um modo de relação
alimentado pelo conflito que, afinal, não é uma interrupção na relação, mas um certo modo de
estabelecê-la ou restabelecê-la” (2006, p. 357). As “intrigas” que permeiam as relações das
famílias de Barroquinha, longe de configurarem interações excludentes, são percebidas em
meio a superposição de laços – de sangue, políticos e institucionais – que fazem e refazem a
convivência cotidiana no município.

2.3 Fazendo política como se faz família


78

Se é bom ou se é ruim? Eu acho bom, eu gosto da disputa também, eu digo que não vou
participar mais (risos), não vou mais, mas corre na veia. É como o Jaime diz, corre na veia,
você hoje não tá querendo fazer parte, você diz que vai dar seu voto e acabou, mas daqui uns
dias vai tá correndo na veia, igual família, e realmente acontece, né? Acontece na veia da
gente, que a gente não quer, diz que não vai participar de caminhada, não vai tá se envolvendo,
não vai tá discutindo, mas acaba mexendo, a gente briga. E é assim, principalmente aqui é
muito quente, é família mesmo, Fundo Mole e Cara Preta, é assim como dado de família, de
sangue, já vem de família há muito tempo, não tem como. Às vezes a minha amiga do trabalho
diz assim, a gente, que em tempo da política, a gente bate muito boca, mas assim, na amizade,
né? E ela disse que eu, um dia, eu vou ainda participar ainda desse grupo [Cara Preta], eu
digo: - vou não, não vou, se eu não votar em fundo mole, em cara preta eu não voto, jamais.
Entrevista com Edneia, fevereiro de 2017.

Seja casual ou intencional, a emancipação de Barroquinha certamente permitiu o


surgimento de novas lideranças e novas formas de fazer política distintas daquelas executadas
em Camocim, o que, por sua vez, nos permite expandir os questionamentos pautados nas
construções nativas sobre o que é política e como ela é vivida. Vale se perguntar, seguindo o
raciocínio daquilo proposto por Vilella e Marques (2017, p. 37), “o quanto e como família é
parte da política”.

No que diz respeito ao vilarejo do Venâncio, apesar de sua diminuta população


quando comparado com o município de Barroquinha ou com o distrito de Bitupitá,13 a vivência
política entrelaça-se aos grupos de familiares descendentes dos fundadores do vilarejo. Em
momentos tais como as eleições, esses grupos desenvolvem novos arranjos em que se geram
segmentações alimentadas pelo contexto de desavenças ocorridas ao longo dos anos passados.

A conformação de novos agrupamentos, ou o que Comerford (2003) define como


processos de “familiarização e desfamiliarização”, leva em consideração um histórico tanto de
brigas relacionadas ao ambiente doméstico-familiar quanto ao ambiente público-político. Tais
intrigas não surgem repentinamente, mas são gestadas no cotidiano e ao longo dos anos,
levando em conta, principalmente, fatores como o esforço e atenção despendidos nas contendas
políticas.

A eleição municipal de 2016 foi caracterizada por muitos como uma disputa
acirrada, quente. As formulações de Edneia e Eliedna, moradoras da praia de Bitupitá e donas
79

dos relatos que abrem a seção, dão um bom quadro de como as campanhas eleitorais ocorreram.
Foi uma campanha em que se gastou bastante dinheiro, quantia suficiente para virar as eleições
de um dia para o outro. Segundo indicativos da pesquisa eleitoral feita à época, Jaime (família
12) tinha a maioria dos votos. Mas, segundo consta nos relatos coletados, nas vésperas do
domingo de votação, representantes da família 14 executaram estratégias14 que envolveram a
compra de votos do grupo oponente.

Como traz Palmeira (2001), o “tempo da política”, é aquele período de conflito


autorizado, não um período de interdições. Essa é a época em que o acirramento entre as partes
torna-se mais evidente pelo confronto contínuo durante os 45 dias de corrida eleitoral. É ainda
um momento de exibição das divisões, das “vendetas”, implicâncias, momento de “tomar
partido” e militar em defesa dos princípios daqueles eleitos como seus representantes. Ao
“tempo da política” devem-se, pois, as intrigas, mas o passar desse “tempo” não é sinônimo de
afrouxamento dessas contendas. Resgatando a entrevista de Eliedna, esta diz que:

Depois que passa a política, assim, acalma tudo, convive, mas fica. Mas não pise no meu pé
não, tá entendendo? Até hoje, os nervos estão à flor da pele. Se eu sair daqui pra ir no posto,
quando eu chego lá e não encontro remédio, aí tudo o que eu queria dizer, eu vou jogar lá:
“deveria cair uma bomba nesta peste de lugar, acaba logo que isso aqui não presta, prefeito
miserável”. O que eu tenho vontade de dizer, na hora que me magoa, se eu tiver a chance, eu
vou rebolar. Isso tem muito aqui, e vai passar os quatro anos assim, do mesmo jeito, vai passar.
Aqui não acaba política não, não acaba confusão de política, não acaba disputa de política.
Entrevista em fevereiro de 2017.

Eliedna deixa claro que o “tempo da política” é, na verdade, uma constante. Em


outro momento, a mesma trouxe que participar da política é como algo que foge do controle,
em que a participação independe da sua vontade individual. Essa participação incontrolável
durante a corrida eleitoral me faz entender que esta é um fator fundamental na vida dessas
pessoas, pois são dos resultados das eleições que são rearranjadas as posições dos sujeitos nos
quadros do município.

14
Foi-me relatado que os cabos eleitorais da família 14 saíram de casa em casa confiscando documentos com
fotos daqueles que haviam garantido voto para a família 12, oferecendo em troca 5 mil reais. Sem os documentos
com fotos, essas pessoas não poderiam comparecer à sua sessão eleitoral. Ao término da votação, aqueles que
haviam “cedido” os documentos os receberam de volta.
80

Com grande frequência aparecem casos de desertores da facção na qual,


tradicionalmente, o sujeito desertor fazia parte. Muitos atribuem a mudança de opinião e de
lado político como característica inerente ao fazer político local. A troca de partido torna-se
favorável quando as promessas de favorecimento individual por parte da máquina pública são
promissoras. A disputa política envolve não somente os candidatos; o resultado resvala
diretamente no destino das pessoas, porque o que se garante são as realizações individuais. As
pessoas lutam por seus empregos quando estão na política, trata-se da manutenção da
estabilidade financeira das pessoas: se a política está garantida, o emprego também está.

Cabe ilustrar como essa fluidez das fronteiras entre política e família acontece
concretamente. Para isso, trago dois exemplos, um de desfamiliarização e outro de
familiarização, ou melhor, um caso em que política desfez família e outro que família fez
política. O primeiro será intitulado de “A desfamiliarização de D. Otacília”, enquanto que o
segundo será nominado de “A familiarização de Rita”.

2.3.1. A desfamiliarização de D. Otacília

No capítulo 1, ilustrei com o relato de D. Otacília e de sua filha Sinara como se


desenrolou o descontentamento destas com a gestão da prefeitura à época e com sua parente
Marli (e o grupo que esta representa). No caso relatado, mostrei que essa intriga serviu como
uma estratégia analítica na qual se mostraria como poderiam ser alargadas ou dissolvidas as
relações entre pessoas do mesmo sangue.

A possibilidade de possuir o mesmo sangue de D. Marli, de serem consanguíneas,


não garantiu que houvesse consideração entre ambas, pelo contrário: D. Otacília foi
classificada por Marli como uma parente, ou seja, uma pessoa da família só que não muito
próxima. O caso de D. Otacília ilustra que a desclassificação desta perante sua prima Marli é
sinônimo de que, aqui, a política desfamiliarizou. Marli e Otacília são parentes, mas pertencem
a grupos políticos opostos. Não se atribui essa oposição somente ao fato de fazerem parte de
lados distintos, mas também à delimitação do que é fazer parte da família 14 (na situação de
Marli) ou da família 12 (na circunstância de D. Otacília), cujas contendas são alimentadas
cotidianamente. As intrigas são fatos de tradição, mas que se atualizam a todo instante, o que
81

me faz entender que são as reatualizações dos status intrigados que garantem que a tradição
perdure.

Na contenda entre Marli e Otacília, foram cortadas relações, reputações e


considerações que, em tese, deveriam ser conferidas às pessoas da família. Porém o caso em
questão mostrou que o envolvimento em questões de ordem política resultou na quebra dos
laços familiares e de consideração. Aqui, a existência da política dissolveu os laços de
consanguinidade. Nesse caso, a política dissolveu o sangue. Mais, foi a política que fez o
sangue.

Dona Otacília reconhece que ser da família, como no fragmento de entrevista


transcrito no capítulo 1, deveria lhes garantir seguranças, pois ela sendo prima legítima, de
sangue bom, deveria ter suas reivindicações atendidas (que se construísse a nova escola,
ocupando o lugar daquela soterrada pelas dunas) e ela ainda destaca que, não é porque somos
do outro grupo que devemos ser tratados assim. A política, no entendimento de D. Otacília, não
deveria ser impeditiva das realizações dos habitantes do vilarejo. No entanto, a política aqui se
mostra como um instrumento de barreira para a fluidez do sangue. Marli já me revelou, ao falar
de sua relação com Dona Otacília, que: ela é parente, mas não é muito próxima, mesmo a
distância entre as duas casas sendo de poucos metros.

Ainda, afirmar que família faz e desfaz política é uma constatação frequente de ser
observada. A família de D. Adelaide e Quelé mostra isso nitidamente. Há anos o vilarejo é
representado e tem seus assuntos burocráticos legados aos cuidados desse núcleo familiar, por
ser esta dada como uma família de confiança, tradicional. Para tal constatação, além de
fortificar os laços entre herdeiros incentivando os casamentos entre família, criando uma
ligação entre herdeiros velhos e herdeiros novos, foi necessário também lidar com assuntos da
política eleitoral e local, ser correligionário, cabo eleitoral. Afirmar a qual lado pertence. Foi
necessário fazer política.

Ao mesmo tempo, para ser um representante político local, é necessário que o


candidato esteja no estoque filiativo, ou genealógico virtual,ou seja, descender de alguma
família ou ser casado com alguém, ter aliança com algum ramo político da família. Foi isso que
aconteceu com Otacílio, esposo de Marli, que “fez seu nome” por estar casado com esta.
82

A família de Otacílio desde cedo foi muito pobre. Seu pai casou-se com duas
mulheres, sendo uma delas, inclusive, uma mulher de fora. A mãe de Otacílio pertencia ao
vilarejo, mas a mãe de seus irmãos, não. Hoje, os irmãos de Otacílio, mesmo sendo filhos de
um segundo casamento com uma pessoa de fora, estão completamente integrados ao corpo
daqueles parentes aos quais se tem consideração. Atualmente, Otacílio é o líder comunitário,
aquele que defende as questões do vilarejo, detentor dos papéis de titularidade e uma pessoa de
grande capital político no vilarejo. Se Otacílio dependesse da linhagem de seus pais para
adquirir capital político, simbólico e econômico, possivelmente teria fracassado. Mas com o
advento de seu casamento com Marli, filha de Quelé e descendente direta de Maria Vitorina,
aquela conhecida como a dona disso tudo, Otacílio foi incluído, familiarizado por meio de suas
atribuições políticas para e com o vilarejo. Mesmo não vindo de uma descendência esperada,
como seria aquela vindo diretamente de Quelé, Otacílio atingiu status legítimo de líder local
por meio de sua aliança com Marli.

Ao passo que a relação de Marli com Otacília foi deslegitimada por contendas
advindas da política, a união de Otacílio com Marli foi garantida pela pré-disposição deste aos
assuntos políticos do vilarejo. Nesses relatos, a política foi capaz de familiarizar e
desfamiliarizar pessoas.

2.3.2. A familiarização de Rita

Enquanto a condição política de D. Otacília lhe conferiu a desfamiliarização, esse


segundo relato que trago percorre outro caminho. Rita é uma das poucas moradoras do vilarejo
do Venâncio que não possui vínculos de sangue com as famílias Belchior, Carvalho, Rodrigues
e Veras. Foi seu pai que, ao fazer negócios com os herdeiros velhos, lhe garantiu um espaço no
vilarejo no qual pudesse construir sua casa.

Das vezes que encontrei Rita na casa de D. Marli pude perceber certo nível de
intimidade entre as duas, quando Rita não estava ajudando Marli em seu quintal, esta delegava
àquela ir ao centro de Bitupitá vender o que fora colhido em seu pomar. Rita é bastante
entrosada com todas as pessoas do vilarejo. Por ser uma jovem mulher, Rita acompanha-se das
demais jovens do vilarejo, a exemplo de Gleti, cunhada de Marli. Foi em uma de nossas
83

conversas sobre os acontecimentos durante o período eleitoral, que Rita narrou o quão próxima
é do núcleo familiar de Marli.

Rita: Pode até ser todo mundo amigo, mas se neguinho ficou de um lado e outro for doutro, aí
começa. E esse ano foi um dos piores de todos, teve polícia, teve xingamento nas redes sociais,
teve intrigamento de família…

Lorena: Quem foi que se intrigou?

Rita: Ali a Marli com a cunhada [Gleti], que é a mulher do falecido Edmilson, teve pêa [surra,
agressão física], teve muita pêa. Mulher, eu não sei te contar [risos]. Porque assim, como eu
trabalhava diretamente com o Jaime, que era [candidato] a prefeito, e ao mesmo tempo, eu era
muito amiga dos 14 [grupo de Marli] aí eu me reservei muito, né? Eu fazia minha parte em
cima dos dias da política, quando era questão de bagunça poderia sobrar pra mim, eu não ia.
Ao mesmo tempo porque a pessoa que mora sozinha, como eu, às vezes a gente precisa de
alguém do outro lado. Mas assim questão de precisar, tipo, eu não sei nem qual é a parte que
vou precisar. A parte que vou precisar, eu acho assim, que em cima da terra você é todo mundo,
mas em questão de saúde, a gente precisa. Pelo menos o pai do meu filho tem mais ou menos
condição, aí já não preciso tanto de pedir para eles, né? Porque o que a gente precisa muito,
assim, é do carro. Porque o posto de saúde de Bitupitá só funciona até sexta de manhã. Aí
sexta à tarde, sábado e domingo o povo não adoece. E segunda de manhã também o povo não
adoece, porque para começar a segunda à tarde e parar sexta de manhã só pode o povo não
adoecer. Aí a gente valoriza o carro para deslocar até Barroquinha, porque daqui até
Barroquinha não pode ser socorrido só pode lá. [...] Aí eu fiquei assim, muito na balança de
não querer entrar no meio de chafurdo. Entrevista com Rita em fevereiro de 2017.

Embora Rita tenha participado ativamente nas eleições de 2016 como cabo eleitoral
de Jaime, família 12, ela admite que seu envolvimento com política tem limites. Ao falar do
processo eleitoral, Rita revela sua devoção por Jaime, afirma que este é uma pessoa de
princípios e que confia no seu papel enquanto político. No entanto, sua amizade com Marli fez
com que ela reservasse a disputa política somente para o momento em que atuava como
profissional. Nos momentos em que não estava fazendo campanha oficialmente para Jaime,
Rita evitava maiores desentendimentos por ter conhecimento de que sua condição de mãe
solteira e não familiar já seria o suficiente para desestabilizar sua relação com as famílias do
vilarejo. Enquanto Rita evitar conflitos de qualquer natureza, ela estará sob a custódia de
84

pessoas como Otacílio e Marli. Essa amizade lhe garante auxílio em momentos difíceis, como
em uma situação de urgência de saúde. Por Rita possuir consideração a eles, ela é, da mesma
forma, considerada por este grupo.

Rita, se comparada ao status de D. Otacília, está muito mais presente, próxima,


familiarizada e “aparentada” com as pessoas do grupo de Marli do que Otacília. Rita conseguiu,
por meio de seu cuidado com atitudes políticas, tornar-se familiar àquelas pessoas.

Estre trecho de Rita que aqui destaco sugere, ainda, outro caso analítico, mas agora
como um exemplo de que a família é produtora de política.

Em nossa conversa, Rita revelou-me o quanto trabalhou na campanha de Jaime. Que


sua ativa participação na campanha foi de grande valia para o fortalecimento da família 12.
Chego a perguntar-lhe se eu conseguiria uma entrevista com Jaime, se ele era uma pessoa
acessível, e Rita não só me garantiu como me concedeu o telefone de Jaime e de sua irmã para
que eu pudesse agendar uma entrevista com o representante da família 12.

Seguindo os caminhos indicados por Rita, consigo agendar a entrevista. Em dado


momento, em minha conversa com Jaime, pergunto como foi a participação dos moradores do
Venâncio na divulgação de sua campanha. Jaime revela sua grande admiração pela matriarca
da família, Dona Adelaide, esposa de Quelé, e mãe de Marli, e indica como um grande
correligionário do vilarejo o filho de D. Adelaide, Edmilson.

Jaime fala das campanhas chefiadas por Edmilson e no quanto este havia se doado
para a causa política da família 12. Mas revela que seu falecimento em 2015 trouxe comoção,
não só por este ser uma pessoa muito boa, mas igualmente porque era o seu elo com o vilarejo
do Venâncio, ressaltando que a ausência de Edmilson na disputa eleitoral foi muito sentida. Ao
perguntar de outros nomes do vilarejo que participaram ativamente da sua campanha, Jaime
lembra do nome de Gleti, esposa de Edmilson, e também cita Adelaide Neta e sua mãe Chaga,
esta filha e aquela neta de D. Adelaide. O nome de Rita, porém, não surge nessa lista.

Percebi que o “esquecimento” do nome de Rita como uma representante no


vilarejo da família 12 se deu por, justamente, ela não ser das famílias do Venâncio. Embora Rita
tenha trabalhado ativamente, como a própria e outros relataram, a sua representatividade como
cabo eleitoral foi pouco lembrada pelo chefe da família 12.
85

O que se apresentou para mim como um fato curioso foi que mesmo Edmilson não
tendo participado das eleições de 2016, já que falecera em 2015, ele foi lembrado como uma
das pessoas de maior representatividade política do lugar, e não Rita. Deste relato, infiro que,
neste caso, o sangue de Edmilson o fez ser mais percebido do que Rita. Aqui, família fez
política.

A dinâmica das variáveis de prestígio, familiarização e desfamiliarização, são


produtos da capacidade dos agrupamentos políticos transformarem-se em grupos familiares e
vice-versa. A política é um processo dinâmico, nos quais estão impressas qualidades, ações
tradicionais e atribuições. Em muitas das entrevistas a política foi lembrada a partir das
sensações. Política é algo quente, que machuca as pessoas, pois a ferida está inflamada, como
retrata Eliedna.

Em outros momentos, a política foi caracterizada como algo vivo, onipresente,


lembrada como algo de onde evocam-se sentimentos: as pessoas ficam egoístas, com raiva, têm
rancor e medo. A família igualmente evoca todos estes sentimentos e em ambas conformações
temos relações de confiança, pois os grupos são unidos pelo compartilhamento de uma mesma
ideologia, por mesmas visões de mundo. Do mesmo modo, família e política podem ser
entendidas por semelhanças comportamentais, desgaste em manter as relações, por uma luta em
comum, por paixão ou por amor. Ambas possuem qualidades que correm na veia, tal como o
sangue.

A referência neste capitulo às formas locais de como o sangue é adensado ou diluído


em meio às relações políticas do cotidiano servirá de base para o que irei discutir no capítulo 3.
Será ilustrado que os entrelaçamentos, as classificações, inclusões ou exclusões de sujeitos
individuais, parentes, familiares, herdeiros velhos e novos dentro de quadros (como a herança),
ou fluidos (como os agrupamentos políticos e os grupos familiares) são maneiras de se falar
sobre a propriedade, usos e transferência das terras que habitam.
86

CAPÍTULO 3 – AGORA A TERRA TÁ PEQUENA PARA TANTO HERDEIRO

3.1 A distribuição dos lucros do carnaubal

Os pais dele [Quelé] era tudo de condição, quem tinha uma lavoura dessa tirava carnaúba do
Venâncio, lá da ilha, tirava todo carnaubal e vendiam pó, faziam cera, faziam muito dinheiro.
Esse carnaubal ainda é nosso, esse daqui [do Capiaçú] é dele e das irmãs dele [Quelé], o do
Venâncio um ano é do meu avô [Henrique Ferreira] e que é nosso, outro ano é da avó do
Quelé [Vitorina Rosalina], que é dele e das irmãs. Outro ano, a metade é de um e ¼ é de um
[Henrique Ferreira] e outro ¼ é de outro [Vitorina Rosalina] e são todas as famílias. O daqui
são só dos irmãos do Quelé, agora do Venâncio que é esbagaçado, no ano de Henrique
Ferreira Veras é da mamãe, é dos irmão da mamãe, e no ano que vem é da velha Vitorina que é
irmã do velho Henrique, aí é do pai do Quelé e dos outros irmãos dele, aí tem no outro ano que
metade é deste Mané [Manoel] Vitorino que me criou e ¼ é da velha Vitorina que faz parte do
Quelé também, e ¼ do velho Henrique, que uns tem parte também. Entrevista em maio de
2012.

Seguindo a proposta de construir uma análise processual das relações entre família,
política e terra no vilarejo do Venâncio, abro este capítulo com o trecho de uma conversa que
tive com D. Adelaide, em 2012, ilustrando uma situação na qual são narradas algumas histórias
de seu passado. Como de costume, minhas conversas com D. Adelaide foram, em sua maioria,
conversas longas em que falávamos de tudo. Embora eu explicasse que esta seria uma
entrevista e que iria usar o gravador - o que de imediato leva as pessoas a um estranhamento,
seguido por nervosismo ou respostas concisas - D. Adelaide dificilmente se via incomodada
com as formalidades que eu impunha. No dia desta gravação, estávamos no Capiaçú, local de
sua residência, ela me mostrando como se depenava uma galinha, que seria posta no fogo para
almoçarmos logo mais. Antes da entrevista, D. Adelaide apresentou-me o quintal do sítio onde
ainda existia a antiga casa de farinha, local de trabalho e reuniões dos herdeiros velhos, e os
carnaubais que cerceavam todo o sítio.

O jeito um tanto fora do comum de D. Adelaide, frente às formalidades que algumas


pessoas do Venâncio tinham comigo, fez com que nos aproximássemos ao longo dos anos. Das
vezes que eu a visitava no Capiaçú, a anfitriã perguntava-me quando minha mãe apareceria
pelo sítio ou se eu já havia arranjado um marido. Do tempo que venho fazendo pesquisa, a
87

consideração desenvolvida entre nós - entre os moradores do vilarejo, D. Adelaide, em


específico, e eu – foi ganhando profundidade e me fez perceber o vínculo que havíamos
construído. Mais, me como sendo da família por suas escolhas em me relatar fatos de assuntos
tão espinhosos como herança, situação fundiária das terras e filiação político-partidária.

Neste terceiro e último capítulo, retomo algumas discussões acerca dos


diversificados usos do território em questão. A proposição que venho fazendo ao longo deste
trabalho sugere que os casamentos entre pessoas da mesma família, conduzidos por
“agrupamentos morais” e gestados no próprio círculo social, sugestionam relacionamentos que
extrapolam as relações de afinidade e consanguinidade. Essas “conformações morais” alargam-
se para além daquilo considerado localmente como sangue e encontram terreno fértil na
consideração, esta espraiada e imiscuída na concepção do fazer política local, que opera
também com esta chave.

Como abordado no capítulo 2, família e política possuem naturezas semelhantes e


são evocativas de sentimentos que transpassam livremente entre dois campos. A transposição
de qualidades entre esses campos mostram mais do que uma forma de relacionamento estático e
interno, como já traz Leach em Pul Eliya, ao falar do sistema de parentesco desse vilarejo. O
autor destaca que o parentesco, longe de ser percebido como uma instituição em si, dentro de
uma estrutura social ideal, é algo que depende da análise dos outros domínios que compõem
aquela sociedade. Logo, o papel das relações de parentesco percebido por Leach no vilarejo do
Ceilão é algo próximo àquele desempenhado pelas mesmas relações no Venâncio. A função da
consanguinidade e afinidade alcançam domínios maiores e mobilizam, através de um idioma
específico, o fluxo das relações.

A tríplice condição camponesa na qual venho me referindo ao longo deste texto –


família, política e terra – abarca os elementos que conferem forma àquilo que podemos chamar
de estrutura social do vilarejo. Torna-se importante perceber que essas três categorias não
correspondem à ideia de uma totalidade do que pode ser entendida sobre aquele local. Além de
não ser o objetivo dessa pesquisa buscar uma verdade inquestionável sobre aquelas pessoas,
todo o meu percurso para desenvolver esse trabalho foi pautado por escolhas e renúncias.
Destas renúncias, muito ficou de fora. Não por acaso a disposição dos capítulos seguiu uma
ordem em que se pudesse ter maior inteligibilidade da complexidade daquela realidade, cujo
entendimento foi construído ao longo dos anos de pesquisa. As entrevistas e os relatos são
88

excertos que me permitiram ver como as categorias de família, política e terra se movimentam
dentro dessa localidade. O que venho construindo e propondo como guia metodológico, parte
da observação dos fatos em etapas, das ações e de como elas foram performatizadas em dado
contexto.

O território do Venâncio, como vem sendo discutido, são terras de herança, terras
que foram cuidadas, conservadas e transmitidas através das gerações. A disposição espacial
desse território é entendida pela segmentação da totalidade dessas terras a partir dos
sobrenomes das famílias que deram origem ao vilarejo. Aos Belchior e Carvalho correspondem
o que se denomina como sítio Capiaçú. Já aos Veras e Rodrigues correspondem as terras do
Venâncio. Podemos encontrar desencontros, a depender de quem narre, a respeito dos
sobrenomes titulares das terras aqui citadas. O jogo das trocas de sobrenomes no decorrer das 4
gerações de descendentes pode ser entendido como estratégias matrimoniais endogâmicas que
versam sobre: i) a identificação a um sobrenome como qualidade, acúmulo de virtude e ii) meio
pelo qual a gestão da terra1 é operacionalizada. O depoimento de Rita nos faz entender as
regras que movimentam essa gestão.

Rita: a história de casamento primo com primo aqui se gerou assim: se tua família era, assim,
de mais condição, aquela outra tinha aí juntava para multiplicar os bens. O motivo daqui foi
isso, pra não dar pra ninguém de fora, pra ninguém meter a mão. Aí ficava todo mundo em
família, aí é por isso. É tanto que você chega aqui muitas das vezes você vê irmão sendo
padrinho de sobrinho porque exatamente não era para tirar da família, para ficar todo mundo
em família. Entrevista em fevereiro de 2017.

Rita foi contundente e perspicaz ao perceber que os casamentos endogâmicos - e


aqui afirmo que práticas endogâmicas puderam ser acionadas a partir da segunda geração dos
descendentes de Alexandre Ferreira Veras, fundador do vilarejo - tratavam-se de maneiras
específicas de reorganização do patrimônio das famílias. Tanto as práticas de endogamia como
as de apadrinhamento, segundo relato de Rita, têm por finalidade a multiplicação e não
fragmentação das terras, fragmentação esta que ocorreria ao sinal do primeiro casamento
realizado com alguém não familiar.

1
Vale ressaltar que, quando aqui falo em terra, em minúsculo, sem aspas e sem grifos, faço alusão à totalidade do
território que os Belchior, Veras, Carvalho e Rodrigues ocupam, ou seja, somatório das casas e carnaubais do sítio
Capiaçú e Venâncio. O lugar dessas quatro famílias é denominado como as terras do Venâncio.
89

As terras de herança do Venâncio foram criadas e mantidas porque pessoas da


mesma família continuaram, ao longo dos anos, casando entre si. Casais de primos unindo-se a
outros casais de primos, garantindo a circulação do território entre aqueles que, de alguma
maneira, já eram donos.

A afirmativa de Rita, ou sua “teoria nativa”, é tomada como hipótese neste capítulo
para levantar outro conjunto de questões. Pois o que esta nos informa são questões que já
possuem lugar fixo nas teorias voltadas aos estudos de populações em contextos rurais. Afinal,
se tais terras estão circulando pela mesma família, terras estas classificadas como terras de
herança, porque ou como estas não estão parceladas igualitariamente entre as famílias? Como
entender o processo da partilha de um patrimônio, se ele não é dividido de fato?

Para pensar estas questões, me amparo nos questionamentos já feitos na década de


70, quando Moura (1987), buscou entender os meios de conciliar a criação infinita de novas
famílias a partir dos casamentos sem parcelar exaustivamente a terra. Ou seja, como aumentar o
número de herdeiros sem parcelar o patrimônio?

Antes de adentrarmos essa questão, ressalto na primeira sessão do capítulo a


validade da discussão sobre a legislação que diz respeito a posse, propriedade e herança,
tomando como ponto de partida a lei de terras de 1850. Destaco que os variados tipos de usos
desta terra (plantação, moradia, templo dos mortos, fonte de renda) e a herança se conformarão
como o “nó da pesquisa”, local onde todas as linhas desse capítulo irão convergir: o debate
sobre a inalienabilidade e indivisibilidade da terra.

Na segunda sessão deste capítulo, trago que a herança, como fora retratado nos
capítulos anteriores, é perpassada por um conjunto de “prescrições” envolvendo os 17 cabeças
velhas e seus herdeiros e que, aos modos do que foi estabelecido no passado, as terras do
Venâncio constituem-se no substrato concreto da vida dessas pessoas.

A distribuição dos lucros dos carnaubais das famílias atua como narrativa
elucidativa dos caminhos seguidos pela herança em meio às gerações de famílias do Venâncio.
Mais, as regras de distribuição dos rendimentos nos fazem pensar que a segmentação da
herança não é um fenômeno isolado. A segmentação dos rendimentos e a sua circulação
mostram-se imbricadas às concepções nativas de fazer família e política, em que os estoques
territoriais se apresentam em conjunção aos “capitais simbólicos” dos sujeitos.
90

A circulação da herança, como tratado por Leach em sua pesquisa no Ceilão, é


apenas uma parte de uma totalidade mais complexa. A herança não é o ponto final após a morte,
ela é parte de um ciclo de reprodução social. Aqui pretendo analisar e discutir como a herança
da terra, seja na forma de chão de morada ou de carnaubais, se faz presente como um artificio
agregador, porém seletivo, estrutural, contudo atualizado, entre as gerações.

3.2 Seguindo os documentos e seus rastros

As terras do Venâncio e do Sítio Capiaçú podem ser descritas como terras adquiridas
por Alexandre Ferreira da Costa Veras, nas datas de 1879,1881 e 1897 e que foram repassadas
aos seus descendentes na forma de herança. Como constam nas transcrições das transmissões 2
a que tive acesso, estes são os documentos que indicam a propriedade das terras do Venâncio e
do Capiaçú, nos dias de hoje, aos seus moradores.

2
Transmissões manuscritas e transcritas, apresentadas nas imagens.
91

Documento 1: Transmissão Manuscrita 1

Documento 2: Certidão 1 - data de compra, 1879


92

Documento 3: Certidão 2 - data de compra, 1881

Documento 4: Certidão 3 - data de compra. 1897

Das características presentes nas certidões, podemos perceber que além das datas de
compra em 1879, 1881 e 1897, tem-se como adquirente comum Alexandre Ferreira da Costa
Veras e quatro transmitentes distintos: na primeira trata-se de Joaquim Caetanos Teles, referente
a fazenda almas (antigo nome da praia de Bitupitá); na segunda tem-se por transmitente Pe.
Antônio Carneiro da Cunha, que surge como intercessor da transmissão das terras de Victurino
93

Ferreira da Costa Veras Filho e José Ferreira Veras, aquele indicado como pai de Alexandre
Ferreira, sobre a transmissão das terras do Leitão e do Venâncio; no terceiro, o transmitente é
Severiano Alves Pereira.

Apesar de alguns destes nomes soarem como estranhos, exceto o de Victurino


Ferreira e o de Alexandre, essa informação ganha destaque porque nos faz pensar sobre os
possíveis momentos distintos das relações dessas terras com os diferentes sujeitos que as
habitaram e que ainda hoje a habitam. Da leitura que faço destes documentos, infiro que a ideia
de propriedade foi algo construído ao longo do tempo, na medida em que houve a consolidação
de um Estado “burocrático” brasileiro. A partir do surgimento de um Estado interventor que se
fez presente nas menores instâncias da sociedade.

Para o melhor entendimento do que proponho tratar, podemos resgatar uma


observação feita no início da dissertação. Alguns entrevistados da praia de Bitupitá referem-se
aos moradores do Venâncio como sendo pessoas de nariz empinado. A fala surgiu no contexto
em que se mencionava o “poder” emanado pelos possuidores dos documentos de propriedade
da terra, circunstância que os diferenciava dos moradores daquela praia, por estes habitarem
área da União e, consequentemente, serem titulados como posseiros, e não proprietários.

Os documentos referidos pelos nativos de Bitupitá são estes apresentados em forma


manuscrita, ou etapas da “vida legal” destas terras. Já destacava Peirano (2000) da
possibilidade de tratar a história dos documentos como uma “arqueologia do Estado” (2000,p.
45). A inserção dos documentos traz efeitos deste com a terra e com os sujeitos envolvidos.

Os documentos são miscelâneas de signos, afirma Peirano, que a depender do


contexto no qual são performados ou acionados, se vê, em diferentes proporções, o somatório
das representações do documento como signo. A autora destaca a tríplice natureza do signo: i)
como ícone, quando sua existência surge como dada, algo que existe independentemente; ii)
índice, quando é signo, ou seja, relativo ou reativo à ideia sugestionada; iii) símbolo, quando o
significado na relação é estabelecida entre as partes: terra-pessoa / pessoa-terra.

Documentos são referenciais, principalmente em um contexto em que pessoas


são pouco letradas. Documentos são impositivos, muitas vezes constrangedores, como no caso
do abaixo assinado redigido pela prefeitura e assinado pelas mães do Venâncio e por D. Otacília.
Documentos se mostram como constrangedores para aqueles que não os possuem, pois não
94

possuir documentos de identidade é viver à margem da sociedade, fora dos programas sociais, é
ser invisível para o governo. De uma extensa capacidade generalizadora - pode fazer referência
a um território nacional - sua atribuição recai na individualidade. Mesmo tratando de um
grande lote de terras, esse lote pertence a uma pessoa, a um indivíduo, reconhecido pelo Estado
como proprietário e responsável legal por aquele pedaço de chão.

A natureza simbólica do documento é evocativa de significados; por sua natureza


simbólica este é comunicativo. Concordo com Peirano quando esta afirma que os documentos
possuem um tanto de elementos da magia. A junção de elementos, números, inscrições,
assinaturas, mesurações, detalhamentos daquilo documentado fazem algo além acontecer. Se a
mágica é evocativa e pragmática, pois os cantos para a colheita fazem a chuva cair, com os
documentos o que está escrito também faz acontecer. O que está escrito transforma: dá ou tira
propriedade, confere titularidade e individualidade, confere responsabilidade.

Por sua capacidade simbólica e efetiva, não é por menos, a existência de


documentos hoje é um problema entre os moradores do Venâncio. O signo refrata em diferentes
direções seu potencial comunicador e realizador terá diferentes usos a depender do contexto.
De todo modo, é por meio dos documentos que as prescrições são concretizadas e legalizadas.
95

Documento 5: Cadastro de Imóvel Rural - INCRA (1972)


96

Documento 6: ITR - Imposto sobre a propriedade territorial rural

Conversar sobre a titularidade e propriedade das terras do Venâncio nem sempre se


mostrou como uma tarefa fácil. Nestes oito anos de pesquisa de campo, foram poucas as vezes
em que as pessoas conversaram comigo espontaneamente ou de bom grado sobre esse assunto.
Quando eu não tinha conhecimento dos títulos de propriedade, me via encurralada, pois não
sabia por onde começar a buscar pistas sobre a situação daquele território. Ao ter acesso aos
documentos, às versões manuscritas e transcritas, pensei que isso poderia facilitar o meu
entendimento sobre aquelas pessoas e suas trajetórias naquelas terras. No entanto, vieram mais
questionamentos do que esclarecimentos. Se os documentos, por um lado, surgem como prova
física da existência de certas pessoas do passado, esses, por outro lado, impõem dificuldades de
ordem interpretativa, pois, como ler e decifrar adequadamente tais papéis? Quais tipos de
conflitos e interações a posse desses documentos sugestionam?

Sobre os caminhos percorridos pelos sujeitos do vilarejo até a conformação


territorial dos dias de hoje desde sua ocupação pelo fundador, levantei algumas hipóteses que
podem dar luz à situação fundiária desse território ao longo das gerações dos habitantes do
vilarejo. Como uma forma de tentar compreender a relação não só das pessoas com a terra, mas
97

também da terra com as pessoas, busco interpretar o percurso, ao longo das gerações das
famílias, destes títulos de propriedade. Aqui o defino em quatro momentos.

O primeiro deles pode ser definido como aquele em que, possivelmente, não havia
necessidade de definição exata dos limites dos terrenos do Capiaçú e do Venâncio; mais
exatamente, corresponde a data anterior à compra destes terrenos por Alexandre Ferreira,
momento em que, possivelmente, não havia legislação e demarcação por parte do Estado. O
segundo momento é entendido quando da primeira transmissão de terrenos em 1879 e
igualmente compreende as seguintes datas de compra dos outros terrenos, em 1881 e 1897.
Esse foi o momento em que se iniciou o processo de “territorialização”, como definido por
Godoi, quando a demarcação do chão de morada das famílias conformou-se por meio do
entrosamento destas com o meio ambiente, procurando um lugar com recursos naturais. O
terceiro momento versa sobre a transcrição das transferências em 1940 no cartório de Camocim.
Como mostra a certidão em manuscrito, percebe-se a necessidade de transcrição deste
documento em cartório como forma de reafirmar a sua legitimidade perante o Estado. Caso isso
não fosse realizado, suponho, com o tempo aquele documento iria tornar-se obsoleto. Por fim,
destaco o quarto momento, a realização cadastral no INCRA, em 1970, como parte de uma
ação necessária dos proprietários em identificar quais usos aquela terra possui. Tal cadastro nos
informa, ainda, sobre uma regularização que, como veremos mais adiante, é a força motriz de
uma questão envolvendo os herdeiros velhos e novos.

Segundo o trabalho de Grassen (1994) intitulado “Lei de terras de 1850 e o direto à


propriedade” a história jurídica agrária brasileira passa por quatro momentos: i) das
“sesmarias”; ii) das “posses”; iii) da “Lei de terras” e iv) republicano. Segundo o autor, a Lei de
Terras vem regularizar as leis que regiam o sistema de sesmarias e de posse, regularização esta
buscada pelo governo brasileiro a fim de ter maior controle de suas divisas, além de poder
aumentar o recebimento de impostos vinculados ao uso dessas terras. As reformulações de
antigas leis e a formulação de outras novas foram promulgadas em conjunto à Lei de Terras, e
possuíam o mesmo teor “civilizatório” do Estado brasileiro.

A ideia desenvolvida pelo autor é que tais propostas de “civilização” da população


brasileira são formas estratégicas de prover ordenamento ao país. A Lei de Terras é, assim, uma
das faces deste processo. Traz o autor que este processo civilizatório reverberou de maneira
incisiva perante os modos de relacionamento entre o Estado e os latifundiários, posseiros e
98

agricultores de pequena escala. Com a remodelação das leis que gerem a posse e propriedade
da terra, o território nacional passou a ser titulado. Cada gleba de terra, cada sítio passou a ter
um título de propriedade individual. Mesmo em terras de uso coletivo, como no Venâncio,
depois da legislação entrar em vigor, tornou-se obrigatório a vinculação da terra a um nome. Ou
seja, antes de 1850 as terras no Brasil encontravam-se no sistema de sesmarias e outros regimes
menores que previam a concessão gratuita de terras para quem as pudesse cultivar e/ou ocupar.
Com a Lei de Terras, as terras saíram de um status de posse para o de propriedade individual,
pois agora se tornaram particulares, sendo possível sua aquisição somente pela compra.

Se o que Grassen traz é verossímil, as terras do Venâncio passaram por esta mesma
transmutação. Passaram de terras “sem dono” para terra titulada, surgindo de imediato novos
sujeitos sociais: os posseiros e o proprietário. Mesmo que se tenha consenso sobre a
propriedade coletiva dessas terras, a partir do momento em que o Estado nomeia um sujeito
como dono daquele território, todo o restante passa a ser “não-dono”, e a melhor maneira de
expressar essa não-propriedade certamente é a noção de posseiro.

Segundo me foi relatado, são dois os títulos de propriedade do vilarejo. Um do


Venâncio, que está em nome de João Belchior, nome que consta no ITR (Imposto sobre
Territorialidade Rural). O outro, do Sítio Capiaçú, está no nome de Manoel Belchior de
Carvalho, o Mané Vitorino. Tais títulos estão circulando nas mãos de alguns dos líderes e ex-
líderes do vilarejo. Alexandre Ferreira Veras foi sucedido por Mané Vitorino; este, em
sequência, passou os documentos para Seu Quelé, que os administrou conjuntamente com
outros porta-vozes do vilarejo até sua morte. Desde então, os documentos ficaram na posse de
Seu Otacílio, genro de Quelé.

Percebi que as regras de transmissão das terras do Venâncio não são processos a-
históricos, elas vêm se remodelando e sendo remodeladas ao longo das investidas do Estado e
das normatizações propostas, momentos nos quais foram construídas e reconstruídas
“territorialidades”, que ganham forma e sentido quando inscritas no espaço físico e nas
narrativas dos sujeitos (GODOI, 2014,p. 174). O entendimento mais amplo de como as
territorialidades são construídas no vilarejo perpassam a fala de Cícero Vieira, momento no
qual ele esclarece a mais recente questão envolvendo os herdeiros velhos e herdeiros novos:
99

Cícero Vieira: O João Belchior faleceu, tá com uns dois anos. O papel do terreno [do Venâncio]
estava no nome dele, agora não está mais, tá tudo agora na mão do seu Loro [Otacílio], ele
não lhe disse não? Ele ficou com esse papel, quando o João morreu, aí ele tomou de conta, né,
para pagar os terrenos [os impostos do terreno]. Todos os anos ele tem que pagar os terrenos,
agora ele não pagava só, porque tinha os herdeiros para ajudar, né? Ele tirava dinheiro
quando arrendava o carnaubal, o tio Mané [Vitorino], tirava logo o do imposto, aí dá aquilo
que sobra dá pros herdeiros tudim. Aí ele [Mané Vitorino] morreu, aí ficaram com os papeis,
pegaram aí pagar. Pagamos, pagamos, mas eu acho que lá, o cobrador, ele gostava de tomar
um trago [ou receber propina], roubar um trago, aí trazia só o recibo e dizia que estava pago.
Mas nada feito, minha filha, e nada feito. E quando apareceu a dívida muito grande do
carnaubal, pagou-se 1.500 reais de um ano, por causa de quem? Dele! (João Belchior) porque
não fazia o que prestasse, se danava, enfiava a cara pura na cachaça velha besta, e não se
importava com nada. Aí eu disse pra ele, João, queria muito bem a meu sobrinho, rapaz, se tu
vai pagar, pois toma de conta! [...] O que fizeram está feito. Aí eu arrendei o carnaubal, e
entreguei: - Tai seu Loro, tai 1.500 reais para pagar o imposto. Vocês não tirem um tostão para
pagar esse imposto. O homem ia lá., dizia que pagava e não pagava, sei não o que ele estava
fazendo com dinheiro não. Entrevista em fevereiro de 2017.

O que Cícero Vieira explica é o início da questão envolvendo o não pagamento do


imposto das terras do Venâncio. João Belchior, filho de Mané Vitorino, herdou do pai as
atribuições referentes ao pagamento dos impostos. Segundo conta Cícero Vieira, com o advento
da morte de João Belchior foram reveladas irregularidades e pendências financeiras junto ao
órgão recolhedor de impostos. A morte de João Belchior trouxe à tona a mesma questão com
alguns desdobramentos, como relata Rita:

Quem sabe explicar exatamente é o seu Loro, porque, do nada, isso não é a parte do capiaçú, é
a parte do Venâncio, do nada o herdeiro velho que era responsável, seu João Mané [João
Belchior, filho de Mané Vitorino] morreu, aí ninguém sabe. Que aqui é só história que a gente
escuta, porque pra gente saber da verdade precisa de um herdeiro de verdade pra destrinchar,
tipo a dona Adelaide, do seu Quelé, e o seu Loro, são as pessoas que estão responsáveis por
isso. Disse que ele, não sei como que aconteceu, não presta atenção no que ia fazer, disse que
assinaram o terreno todinho pra ele [João Mané], só que no caso ele ia ser o responsável pela
terra, tá entendendo, mas parece que o advogado assinou para ele ser dono sozinho. Só que
não explicaram como era, e ninguém foi atrás de saber, já que ele era o mais velho da turma.
Como foi agora que ele morreu, aí o Louro ficou pagando um tal de Incra, aí quando seu louro
foi pagar a última vez o Incra, na Receita, já estava pago. Aí quando seu Louro foi e descobriu
que o terreno não era mais deles, era só de três irmãos, que são os filhos do João Mané. Só
que eles eu não conheço, porque moram em Chaval, tá entendendo? Isso aconteceu ano
passado. Ai quem pode te explicar direitinho foi o seu Louro. Aí tá na justiça.
100

Lorena: E o que eles estão fazendo a respeito disso? Os filhos do João Mané estão querendo
tomar?

Rita: Fazer como seu Louro, no papel são eles os únicos herdeiros, tá entendendo? Porque se
passaram a terra diretamente pros nomes deles três, como o pai dele sendo herdeiro único.
Pois é, foi o que todo mundo ficou assim, querendo saber, como foi que eles conseguiram,
porque são muita gente ao redor, já quem não tem os velhos, já tem os novos, os netos, os
bisnetos.

Lorena: Eles estão em contato com os filhos do João Mané?

Rita: Estão, estão. Em discussão forte mesmo, estão na base da justiça. Seu Louro que estava
comentando. Que tem advogado e tudo. Até o ano passado na, época da política, eles estavam
em reunião com o advogado aqui no mercantil do seu Louro, aí foi quando a gente descobriu
que estava na justiça, porque a gente viu o motim e não era política... aqui quando não é
política é terra. Aí foi que a gente descobriu que estava na justiça... por causa do terreno que
eles tomaram.

O que surge desse relato é que não somente os impostos das terras do Venâncio
estavam atrasados, algo que não deveria acontecer pois os lucros dos carnaubais permitiam que
se juntasse dinheiro suficiente para tal pagamento, como agora, as terras mudaram de
titularidade. Quando João Belchior ainda estava vivo era de acordo entre os herdeiros velhos
vivos à época (Quelé, Cícero Vieira e Manoel Messias) que João seria o titular das terras frente
aos órgãos de regularização fundiária, mas que as terras do Venâncio permaneceriam sendo
geridas da maneira como habitualmente se convencionou. Com a morte de João, e a não
transferência da titularidade da terra para outro herdeiro, os filhos do titular reivindicaram
propriedade por meio da lei de herança.3

O que até 2013 era algo que lhes conferia garantia, seguridade, e nariz empinado,
em 2017 essa condição é vivenciada como uma questão. A morte de João Belchior, titular da
terra, fez com que seus filhos reivindicassem seus direitos amparados no Código Civil

3
Segundo informações do Código Civil Brasileiro: Herdeiros necessários são: o cônjuge ou viúvo(a) – desde que
casado em comunhão parcial de bens –, os descendentes e os ascendentes têm direito à herança em primeiro lugar,
em partes iguais, pela ordem de proximidade do parentesco com o falecido e sem qualquer discriminação quanto à
natureza da filiação. Se o cônjuge também for pai, mãe, avô ou avó dos descendentes do falecido, deve receber
pelo menos 25% da herança. Caso os avós morram depois de falecido o pai, os filhos deste (netos) herdam a parte
que caberia ao pai falecido, que deve ser dividida igualmente entre eles. Se, ao falecerem os avós, existirem
somente netos, a herança será dividida entre eles em partes iguais.
101

Brasileiro, que prevê a transferência dos bens do falecido à viúva e aos seus descendentes.
Segundo o Código Civil, os herdeiros têm direito de receber a totalidade da herança em partes
iguais, e a viúva pelo menos 25% da totalidade compartilhada com os herdeiros filhos, caso
ainda esteja viva. João Belchior era reconhecido pelas instâncias do Estado brasileiro como
proprietário legal, único e individual, tendo respondido até a data de sua morte por aquelas
terras.

A situação que se instaura não conseguiu ser contornada pelos laços familiares.
Vejamos, quem reivindica a propriedade àquelas terras são os primos legítimos de Marli e
Otacílio, filhos de João Belchior. São pessoas que compartilham mesmo sangue que estão em
disputa. Mas cabe reforçar que, no contexto do Venâncio, sangue não é suficiente para segurar
as relações. Os filhos de João Belchior nunca moraram no vilarejo, nem casaram com primos.
Os documentos que estes detêm dão seguridade, perante o Estado, de que são proprietários
legítimos. Mas partindo das construções de família aqui abordadas, para as famílias do vilarejo
os herdeiros de João Belchior não possuem esse direito, não são representantes daquela terra,
pois ali não fizeram família.

Como ilustrei nos capítulos anteriores, os casamentos entre primos provêm uma
forte identificação destes com os espaços habitados. Os “territórios de parentesco” assim se
fazem pela experiência vivida e tradicionalmente rememorada. Casas e pessoas estão inscritas
em uma mesma plataforma que ganha corpo e forma na medida em que ocorrem os processos
de familiarização e desfamiliarização. É nítido, portanto, que para se requerer as terras do
Venâncio como de sua propriedade, um documento certificado em cartório não seria suficiente,
uma vez que para isso são necessários investimentos ao longo de uma vida para atingir o direito
de levantar casa, fazer família e fazer parente.

Os lados dessa questão, “herdeiros legais” (filhos de João Belchior) e “herdeiros de


fato” (herdeiros moradores do Venâncio), mostram a existência da sobreposição de duas formas
de perceber a relação da terra com as pessoas e das pessoas com a terra. Em ambas as formas o
Estado perpassa transversalmente tais condutas, uma se mostrando uma mais incisiva do que a
outra. Por via tradicional, as formas nativas de relacionamento com a terra são concretizadas
pelos habitantes efetivos daquelas terras, são proprietários por uso, por memória e por tradição.
A interação destes com a ação regulatória do Estado transpassa na medida em que se vê como
necessário o pagamento de impostos ou uma regularização mínima frente ao Estado, uma forma
102

de afirmar que aquelas terras não são ociosas. Já os “herdeiros legais” assim o são por
imposição do Estado, sem que haja mediações ou nuances: ou é ou não é proprietário. Por meio
da ação regulatória do Estado, através da titularidade dos documentos em nome de João
Belchior, os herdeiros deste reivindicam aquilo que lhes é garantido por lei, fazendo uso de um
documento comprovando a legitimidade de sua intenção.

Usando o termo de Peirano, o documento possui uma “força ilocucionária” (2000, p.


46), possui força modificadora e comunicativa, pois tem a capacidade de transformar um
sujeito aleatório em herdeiro por vias do Estado. O que os herdeiros de João Belchior
reivindicam são terras enquanto propriedade individual, algo com valor financeiro, que pode
ser trocado por dinheiro. O que proponho na próxima sessão é ilustrar o porquê os herdeiros
velhos e novos não reconhecem os “herdeiros legais” como “herdeiros de fato”. Aqui, a
ilustração vai além da possibilidade dos “herdeiros de fato” ficarem sem lugar para morar. As
próximas linhas irão mostrar que ser herdeiro é fruto de muito trabalho, algo que uma folha de
papel com carimbo não comporta.

3.3 Os 17 cabeças velhas e a inalienabilidade da terra

Cícero Vieira: Tudo é nosso, uma família grande, Belchior e Carvalho. Eu sou filho da finada
Chicota, esta filha da finada velha Vitorina, aqui só da Belchior e Carvalho, sabe? É muito.
Velha Vitorina é a antiga velha, morreu com 95 anos. Aqui é família velha, se tem muito velho,
só de herdeiro dessa casa, desse terreno, são 17 herdeiros velhos, fora os novos. Aí quando eu
me entendi eu já era Belchior.

Lorena: Eu gostaria que o Sr. me explicasse como é a história desses herdeiros.

CV: Rapaz, os herdeiros é a velha Vitorina, a Vitorina que era a mais velha do lugar, era a
dona desse lugar, o finado Henrique, que é irmão dela, o finado Jovi [joviniano], o finado
Livi[lívio], tudo um irmão só, mas eram donos. O finado Jovi morreu com 100 anos, era
velhozinho. Esses herdeiros velhos que morreram tudo do meu tempo quando eu me entendi, eu
já era gente, aí eu estou com 80 anos, né? E eles já eram gente. Aí acabaram tudo, morreu
tudo.
[...]
103

L: Como era a divisão dos rendimentos do carnaubal?


CV: Olhe, é assim: Tio Mané, no tempo do tio Jovi, tio Jovi pega e dá a parte dele pra Tio
Mané Vitorino, dá e aumenta a dele. Aí da minha avó[Vitorina] um ano era só pra dez [filhos
da Vitorina], aí depois, em outro ano, passa pro Tio Henrique, ai noutro ano Tio Mané Vitorino
tem uma banda[metade] e eles dois [Vitorina e Henrique] tem a outra, certo? Se é dez mil reais
o carnaubal, tio Henrique fica com metade, e a velha Vitorina com ¼ e Mané com outro ¼. E
assim vai dividindo, todo mundo. [...]
Quem faz a divisão as vezes é o Louro [Otacílio], da época que eu mandei arrendar o
carnaubal, pra ver se aumentava, porque ganhava uma mixaria, porque no começo dava 1.000
reais. Aí depois eu botei pra frente aí deu 1.500 reais. Aí quer dizer que cada herdeiro desses
10 da velha Vitorina participou[ganhou] 150 [reais] para cada um. Ai os 150 de cada um,
como eu não tinha mãe, nem pai, ficou em nos três (irmãos) e os outros [primos que eram em
dez, oito irmãos] tocava nem 15 [reais], ai eles ignoravam muito, eu explicava que era porque
vocês são dez, são oito, são sete, e nós somos três. (Entrevista com Cícero Vieira, fevereiro
2017)

Se fizermos um contraponto com a entrevista de D. Adelaide que abre o capítulo e o


trecho acima de Cícero Vieira, podemos perceber que ambos tratam do mesmo assunto, a
distribuição dos lucros dos carnaubais4. Podemos entender que a distribuição ocorre de maneira
cíclica com uma periodicidade trienal. Se convencionarmos como primeiro o ano 1, então
teremos que o rendimento irá de forma integral para um herdeiro velho e seus descendentes,
seguindo na mesma convenção, o segundo ano como ano 2 o rendimento irá de maneira
integral para outro herdeiro velho e seus descendentes, e por fim, o terceiro, ano 3 é
fracionando em 3 partes iguais, cada parte correspondendo ao herdeiro 1 e 2 e um terceiro outro
herdeiro, que ganhou direito, por meio de concessão, a ter essa parte.

Conferindo nome às partes, podemos identificar e convencionar que o ano 1 será o


tempo em que os 10 cabeças velhas herdeiros de Vitorina Rosalina são os beneficiários, no ano
2, será a vez dos 7 cabeças velhas de Henrique Ferreira e no terceiro ano os rendimentos são
partilhados em três, sendo a metade do ano de direito de Mané Vitorino, e a outra metade
dividida entre Vitorina e Henrique. Abaixo, pode ser observado graficamente tal distribuição.

4
Anualmente os herdeiros arrendam seus carnaubais para uma empresa que utiliza a palha da carnaúba para fazer
cera.
104

Gráfico 1: Ciclo de distribuição dos lucros do carnaubal

Logo quando iniciaram a distribuição dos rendimentos dos carnaubais, ainda na


primeira geração, aquela dos irmãos Vitorina, Henrique, Lívio e Joviniano, a partilha foi
realizada entre três dos quatro irmãos: Henrique, Joviniano e Vitorina. Segundo relato de
Cícero Vieira, Jovi deu sua parte para seu sobrinho Mané Vitorino, filho de sua irmã Vitorina, o
que garantiu a este mais uma parcela dos lucros, para além daquela que já possuía como sendo
filho de Vitorina.

Como disse Cícero Vieira, são poucos os herdeiros que podem contar com os lucros
advindos do arrendamento. Com exceção dele e de seus dois irmãos, a maioria das pessoas
recebem uma mixaria, ou seja, um valor irrisório, às vezes R$15,00 reais por pessoa, por ano.
À essa fragmentação contínua deve-se à formação constante de núcleos familiares descendentes
dos 17 cabeças velhas.

Por exemplo, Cícero Vieira e os irmãos recebem os lucros porque sua mãe, Chicota,
é filha de Vitorina. Na geração de Chicota5, ela e os 9 irmãos dividiam entre si os lucros quando
estava no ano de Vitorina. Da mesma forma que Cícero Vieira e seus dois irmãos recebem pela
parte de sua mãe, seus tios e primos por parte da mãe de Cícero Vieira também recebem. Mas

5
Ver genealogia 1.
105

como fora dito, Cícero possui somente dois irmãos e recebem uma quantia maior, que chega até
R$100,00 reais, enquanto que os núcleos familiares de seus tios e tias, por parte de mãe, eram
compostos por uma quantidade maior de descendentes. O mesmo acontece com todos os
moradores do vilarejo, a depender da quantidade de irmãos que se tem e a quem
genealogicamente se aproxima, a quantia do lucro por pessoa irá variar. À esse fato da divisão
dos lucros, são poucos os que deixam de receber já que todos os herdeiros do Venâncio
descendem dos 17 cabeças velhas.

Se a quantia que recebem é tão pífia quanto falam, então passei a me perguntar do
porquê de ainda haver a preocupação em executar anualmente esta partilha. Certamente as
pessoas tem interesse em receber os lucros, mesmo que a quantia seja pouca, mas porque a
manutenção de um quadro de partilha tão rígido? Sobre os que isto nos informa?

Podemos perceber que a lógica distributiva dos lucros dos carnaubais não possui o
lucro como finalidade imediata, pois a tendência do valor pago para cada família é ser
diminuído na medida em que as gerações transcorrem. A característica pouco utilitária dessa
transação me faz pensar que a existência de regras tão rígidas estão mais para servirem de
quadros referenciais classificatórios do que para a obtenção de lucros financeiros. Classificação
e organização me parecem ser o ponto de partida para compreender o sentido subjacente
conferido à distribuição dos carnaubais. Essa lógica faz sentido se pensarmos que tal
classificação é realizada tomando como referência a geração dos 17 cabeças velhas.

As ideias de Wiggers, ancoradas em Mauss e Durkheim em “Algumas formas


primitivas de classificação”, sugestionam que a classificação entre grupos pressupõe uma
conformação hierárquica de grupos que os mantém, não como isolados, mas sim como grupos
que mantém entre si relações definidas como um todo (WIGGERS:83). O modo como os
herdeiros estabelecem o entendimento de si, se são herdeiros velhos ou novos, se fazem parte
da herança de Vitorina, Mané Vitorino ou Henrique, se mostram como quadros organizativos
que assim se apresentam para classificar e unir as ideias, unificar o conhecimento. Mais do que
garantir uma renda de sobrevivência, algo de valor “mercantilizado” os valores recebidos pelos
carnaubais mais servem para marcar fronteiras, criar conhecimento sobre pessoas, famílias,
lugares. As transações garantem conexões, pois o que interessa é estar conectado.

A distribuição do carnaubal se mostra como um sistema lógico organizatório que


permite os herdeiros novos conectarem-se com os velhos, garantindo a continuidade dos hábitos
106

de tradição. Como já foi citado, a herança “física” do Venâncio são os lucros dos carnaubais e o
território individual das casas mais áreas comuns. O ponto de encontro entre estas duas
heranças está ancorado no fato de ambas terem na família, no seu sentido aqui conferido, o seu
vínculo comum.

Como as regras locais possuem lógica própria, cujo fim último é poupar ao máximo
a integridade dos patrimônios territoriais, a herança passa a ser fruto de manifestações de
preferência e consideração. Relacionada ao fato de que se há indivíduos, filhos que atingiram a
maturidade e que contrairão matrimonio, uma série de condições devem ser satisfeitas para que
se assegure a existência camponesa e não necessariamente a algo deixado pela morte de seu
genitor.

Moura (1978) traz que a herança está mais para manutenção da possibilidade de
existência camponesa do grupo que do que para a posse de um bem, enquanto propriedade
individual. entra questão da inalienabilidade da terra e das formas jurídicas dessa apropriação.
Lógica especifica da herança da terra em discrepância às regras do código civil.

A lei de herança no Brasil, como já fora abordada, prevê, em via de regra, 50% para
o cônjuge e 50% para os descendentes. Na maneira pensada pela legislação, o vínculo aqui é
estabelecido entre a pessoa, o indivíduo e o objeto, terra possui, por sua vez, status de bem
transferível. O que surge no vilarejo do Venâncio, por sua vez, é uma lógica distributiva que
não se enquadra nos termos legais de um Estado legalista- jurídico. A Lei de herança, vinculada
ao entendimento da mercantilização da terra não encontra referência no regime distributivo
percebido no Venâncio. Neste lugar, a lógica distributiva dos carnaubais é operacionalizada
pelo regime de relação entre pessoas e coisas. A distribuição dos carnaubais está para o
relacionamento das pessoas por meio da terra, e esta permite mobilizar relações por meio do
dinheiro trocado.

Mas como, de fato, os casamentos endogâmicos permitem contornar a extensiva


fragmentação da terra? Se, os quadros distributivos dos lucros do carnaubal servem mesmo de
referência do próprio entendimento destas pessoas enquanto grupo, o que garante e como se
garante que estas terras não serão parceladas exaustivamente?

Concordo quando Woortmann (1994,p.258) afirma que as práticas matrimonias


reforçam os laços de solidariedade dentro do grupo, ao mesmo tempo em que cimentam os
107

vínculos entre a parentela. O que estou denominando aqui de estratégias matrimoniais


endogâmicas fazem referência ao tratado que certos núcleos familiares possuem no momento
em que o casamento surge como inevitável. Essas práticas não são livres de significados. Os
casamentos prescritivos, de preferência quando há troca de “primos irmãos”, denuncia o
entendimento para além da reprodução daquele núcleo familiar. Tais casamentos longe de
possuírem uma finalidade imediata, que é formar uma família, fazem parte de um ciclo
reprodutivo maior, não somente da família, mas do substrato no qual esta família se reproduz, a
terra.

Leach (1961) já afirmou em seus estudos, com maior ênfase naquele realizado em
Pul Eliya, que o parentesco não é uma coisa e si mesma, e aqui parto da mesma ideia, de que no
Venâncio, tais práticas matrimoniais são um reflexo do processo de sucessão da propriedade,
concretizado pelos padrões de herança estabelecidos no contexto do Venâncio. A gestão das
terras do Venâncio, dessa maneira, possui por regra os casamentos preferenciais entre “primos
irmãos” gestada em meio à tradição e resgatada anualmente com a divisão dos lucros dos
carnaubais. O que faz sentido quando afirmo que esta divisão está para modelo a ser seguido do
que para atividade econômica.

Genealogia 1: Fissão e fusão da herança.


108

A genealogia acima serve de modelo ilustrativo de como ocorre a circulação da


herança nas terras do Venâncio. A primeira geração (G1) é composta por quatro irmãos, dois
deles Vitorina e Henrique, contraíram matrimônio exogâmico, seus parceiros vieram “de fora”
da família. Ao casamento de Vitorina com Manoel, este passa a ser herdeiro do mesmo modo
que acontece com Ana, ao casar-se com Henrique. Possuindo em mente (G1), a herança ou
permaneceu ou foi aumentada, pois houve, neste momento, a agregação de patrimônio
advindos dos casamentos exogâmicos.

Na geração subsequente, dos filhos de (G1), os denominados 17 cabeças velhas (ver


genealogia em anexo), deram início às práticas matrimonias endogâmicas. O modelo de
casamento se dá na replicação da aliança entre primos legítimos, que aqui incide no modelo de
casamento entre “primos irmãos” (WOORTMANN, 1994: 258). É o que percebemos no caso
das alianças entre Manoel Vitorino com Úrsula e Paulo Henrique com Maria Vitorina, sendo
Maria Vitorina e Manoel filhos de Vitorina Rosalina e Úrsula e Paulo Henrique filhos de
Henrique Ferreira.

A genealogia ainda nos mostra que, se levarmos em conta a legislação sobre herança,
esta deveria ser fragmentada e dividida entre os 17 cabeças velhas, pois foram formados novos
núcleos familiares. No entanto, o casamento dos “primos irmãos” que aqui tomo de modelo, no
lugar de fragmentar a herança, garantiu que a herança retornasse para a família. Se na (G1)
houve um processo de fissão, na (G2) percebemos a fusão entre famílias.

Levando em conta os casamentos ilustrados nesta genealogia, temos ainda que o


casamento de “primos irmãos” ocorrido na (G2) foi replicado na (G3), por Quelé e Adelaide e
na (G4), por Marli e Otacílio. A (G3), deveria continuar a fragmentar a partir da fragmentação
virtual da geração anterior. No entanto, esta condição foi contornada com as práticas de
casamento que garante a circulação de pessoas sem dividir a terra. Como traz Paoliello (1999),
a terra, neste contexto, atua como substrato concreto e símbolo organizador das relações, antes
de ser objeto material, ela é pratica e universal.

Tais modelos de casamento não são estratégias aleatórias. Como contribui Leach (1961),
as práticas de parentesco aqui observadas, tanto as de aliança quanto as de descendência, são
109

expressões de relações de propriedade nas quais perduram ao longo do tempo. Traz o autor, que
a herança separa, o casamento une e a propriedade perdura.

A aliança faz você ter um direito “restrito”, limitado no sentido de que quem casa
herda, mas não transmite, o herdeiro dessa nova aliança não terá herança partilhada como sua,
ou como uma propriedade individual, não terá participação de 50%, terá uma participação
restrita junto com seus irmãos e seus descendentes. Aqui, quando se trata de herança, pode- se
olhar para cima, ou seja, para os cabeças velhas, de modo distinto, dentro de uma concepção de
herança de acordo com a prescrições jurídicas acionadas em contextos “metropolitanos”, olha-
se para o lado e para baixo, em que tal herança seria cada vez mais fragmentada, pois sempre
será regida pela condição de 50% para o cônjuge e 50% para descendentes.

A herança dos lucros dos carnaubais nos permite ver que da segunda geração em
diante, aquela dos 17 cabeças velhas, a herança foi “congelada”, ou seja, não surgiram
fragmentações posteriores. Assim, como traz Paoliello (1999), a herança permite que haja a
reposição inter-geracional dos patrimônios territoriais e pode ser definida como fator de
permanência e da reconstrução da “condição camponesa”.

O que interessa são as trocas em si e não a quantificação do objeto, a lei olha a


relação entre pessoas individuais, em que coisas trocadas possuem valor agregado. No vilarejo
privilegiam a relação entre pessoas por meio de terceiro objeto (sistema de jurisdição local).
Convertimento da posse em direito de propriedade. Herança pressupõe divisão de valor
igualitário, meio a meio, individualizada. No Venâncio, ela tem um tom moral, afinal ela é
coletiva, não se parte aquilo que não se tem posse efetiva.
110

CONCLUSÃO

Certo dia fui a uma consulta médica em Campinas. Na conversa com a médica, esta
me pergunta qual o tema de minha pesquisa. Eu respondo: “estudo família e política no interior
do Ceará, as disputas entre famílias para se manterem no poder”. Ela, me pergunta em réplica:
“nossa, isso ainda existe?”. Respondi dizendo: “sim, ainda existe”. Repetir esse “ainda” me
corroeu por um bom tempo. Fiquei pensando, como eu, pesquisadora, mestranda, cearense,
permitiria que as pessoas continuassem a reproduzir essa ideia cristalizada de “ainda”, de um
Nordeste com o presente no passado?

Encontrei alento nas palavras de Belchior, epígrafe desta dissertação. “Ninguém é


gente! Nordeste é uma ficção!” É sobre essa ficção a que se refere Belchior, o objeto dessa
dissertação. O “ainda” da médica me fez lembrar dos tantos “Nordestes” e “Sertões” que
existem por aí. Mais, me fez perceber da distância que perdura no imaginário dos centros
urbanos, ou em contextos similares, que práticas tais como as aqui descritas, são sinônimas de
atraso, de uma localidade congelada no tempo e no espaço. Famílias brigando entre si pelo
domínio da máquina pública, quadros da política servindo de moldes para os quadros da família
e vice-versa.

O meu intento aqui, tratando de um tema tão clássico dentro dos estudos de
populações em contextos rurais e da própria Antropologia Social, é, tão somente, dar luz a
práticas que, se descoladas do contexto no qual está inserida nesta pesquisa, podem ser tomadas
por universais: aliança, descendência, troca e relações de poder. Nada de novo para a
Antropologia. O que desta pesquisa cabe destaque é pensar em como as práticas de fazer
política, fazer família e multiplicar a herança, práticas estas notoriamente presentes em
contextos tradicionais, são atualizadas, repensadas e adequadas ao contexto daquelas pessoas
que hoje as concretizam, podendo estes contextos saírem do local para o nacional.

Aqui, busquei trabalhar como as ideias de posse e uso da terra são pensadas e
repensadas dentro dos constantes fluxos envoltos nas práticas de familiarização e
desfamiliarização. Tais ideias são evocadas por uma miríade de contextos, usos e práticas, e
buscando constantemente dar força às expressões dos interlocutores, alguns autores e autoras se
111

debruçaram ao entendimento relacional da terra com aqueles que a habitam. Uma dessas
autoras é Borges (2014) ao discorrer sobre o verbete “Terra”, em que traz: “Daí a importância
de observarmos quais atributos acompanham o termo terra para entendermos seus significados
ao longo da história e suas diferentes formulações no presente” (2014, p.431).

Terra é o lugar de trabalho, de criar os filhos e as plantações, é o chão de morada e o


lugar onde se passam anos investindo para levantar casa, equipá-la com eletrodomésticos e
móveis. No caso de pesquisa que aqui apresento, deslocar tais construções sobre o que é – ou
não – terra e território é trazer uma abordagem que agregue novos valores e imagens àquilo que
já possui um entendimento cristalizado. Uma destas imagens cristalizadas é a de “Sertão”, em
que facilmente o contexto do Venâncio poderia ser representado.

No entanto, eu, enquanto nativa do mesmo estado que meus interlocutores, percebo
que assimilar aquela região à uma configuração próxima àquela do Sertão não se apresentaria
como correta. Para contornar tal imprecisão, a ideia de interior1 tem mais a agregar. Interior
seria uma “territorialidade”, nos termos de Godoi (2014), erigido dentro das práticas e dos
discursos cotidianamente firmados.

Interior se constrói num misto de conformações. Dadas as devidas diferenças


climáticas e geológicas, interior, em alguns momentos, aproxima-se do “Sertão”, este, o lugar
de temporalidade e dinâmica próprias, identificado assim por sua oposição ao litoral. Este, por
sua vez, faz oposição ao “Sertão” por ser reconhecidamente o lugar da capital, do progresso e
da modernidade. emas em outros distancia-se por não contar com tantas adversidades
relacionadas ao clima, dentre outros fatores que a ele possa ser agregado. Do litoral, traz
consigo a composição de ambientes em meio às dunas, os ventos e ao mar, mas tal imagem não
é inteiramente fiel à dinâmica socioespacial de Barroquinha.

***

Os processos de fazer família no vilarejo do Venâncio são transpassados por limites


de inclusão e exclusão de pessoas. Ser da família compreende possuir a mesma ascendência,
compartilhar origem a Alexandre Ferreira da Costa Veras. É ainda ter laços consanguinidade,
afinidade e afinidade não consanguínea, como no caso de pessoas “de fora” que entraram na

1
O termo interior recorrentemente designa qualquer lugar do território cearense que não seja a capital, Fortaleza.
112

família por meio do casamento. Ser da família compreende pertencer aos sobrenomes Veras,
Carvalho, Belchior e Rodrigues e desta identificação ter o espaço que habita referenciado.

O causo de Dona Otacília mostrou que, para mais que sangue bom, mais do que ser
consanguínea e afim e reproduzir os casamentos entre “primos irmãos”, é preciso ter
consideração. Por meio da consideração pessoas são inseridas em determinados grupos, mas a
contrapartida dessa aceitação é representar e atuar com condutas e códigos comuns, pois a
consideração não se faz sozinha. Considerar subentende ser considerado. O causo de D.
Otacília e Rita ilustram bem como a consideração atua.

Possuir ascendência comum não foi suficiente para gerar aproximação entre D.
Marli e D. Otacília, seus envolvimentos na política e os desdobramentos das formas de fazer
política mostrou que neste vilarejo alguns são mais parentes do que outros. A política,
claramente, é um elemento que dissolve ou engrossa o sangue, a depender da posição que se
tome frente às facções família 12 e família 14, por exemplo.

Os casos demonstrados e explorados tomando por base a família Veras de


Barroquinha é um quadro nítido de como política e família, muitas vezes, subentendem-se
como partes de um mesmo processo. O fazer política em Barroquinha envolve sentimentos de
amor, ódio, medo, compaixão, é como dado de família, de sangue, não tem como deixar de
fazer parte, como trouxe Eliedna. O termo sangue aqui surge, novamente, como uma força
capaz de gerar significados e ação, pois ele é fruto de atos de tradição, que acompanham as
práticas políticas da família Veras desde as épocas em que Barroquinha fazia parte
administrativamente de Camocim.

As linhas escritas nesta dissertação me conduziram a pensar que as imbricadas


maneiras de constituir os domínios familiares e políticos no vilarejo do Venâncio são, na
verdade, um idioma pelo qual se falam sobre as formas de posse e usos da terra. O estoque
filiativo, um tipo de depósito virtual de parentes, nada mais é do que um reservatório de
pessoas que compartilham da mesma conduta, que quando acionadas passam a desempenhar
atribuições nas quais seus ascendentes esperam. Lá dizem que não obrigam seus filhos a
casarem com pessoas da mesma família, e de fato, não há necessidade de todos performarem
esse papel, contanto que um deles faça.
113

Sem os casamentos performados dessa maneira, sem o acordo em fazer parentes da


maneira que se faz, as terras do Venâncio já estariam pulverizadas de tal forma que nem
levantar casa seria possível. Os códigos de conduta estabelecidos pelas relações de parentesco
que aqui vimos, construídas pela expansão dos laços dos sangues bons e de descendência e
passando a agregar os laços de consideração, servem de moldes, ou de idioma para a
transmissão das terras que ocupam.

Mas é a inalienabilidade desta terra que também garante a sua não fragmentação. Se
a terra fosse individualizada da maneira como querem os herdeiros de João Belchior, com a
reprodução das famílias ao longo dos anos, aquelas terras passariam por uma fragmentação tão
exaustiva que pouco comportariam a existência e reprodução do núcleo familiar. Essa
fragmentação colocaria em questão o local de trabalho do pai, da mãe e do filho,
comprometendo as sociabilidades entre vizinhos e a permanência dessas pessoas nestes
territórios.

Desde os tempos dos antigos Alexandre Ferreira Veras, Vitorina Rosalina, Henrique
Ferreira, Mané Vitorino, Paulo Henrique, João Belchior e Quelé, a circulação dos papéis de
titularidade da terra, como retratado no capítulo 3, vem sendo efetivada. Mas o ponto curioso a
se notar é que mediante todos estes representantes das terras da localidade, a titularidade
daquelas terras somente foi modificada uma vez, quando houve a necessidade de nomear um
herdeiro, já na década de 1970, como responsável legal daquelas terras. Percebe-se que a João
Belchior não foi conferida a propriedade, pois antes dele muitos outros herdeiros foram
detentores dos documentos e até sua o evento de sua morte, a ideia daquelas terras como
propriedade individual poderia ser um pensamento remoto.

A passagem desses documentos de titularidade das terras do Venâncio ilustra que, o


que de fato está circulando, e se movimentando são os documentos e as pessoas, a circulação da
terra, de mãos em mãos é uma circulação virtual. A terra, como um bem inalienável não pode
ser transferida. É sobre a inalienabilidade desta terra que versam, por exemplo, as estratégias de
casamentos endogâmicos abordados no capítulo 1 e 3. A configuração de casamentos
preferenciais pelos primos legítimos ou carnais mostram que, se em uma geração a herança é
partilhada, pois formam-se dois novos núcleos familiares, a geração subsequente permite a
reintegração deste patrimônio, pois continuaram os laços entre núcleos já consanguíneos. Essa
categoria de casamento permite não somente a indivisibilidade da terra, mas, principalmente a
114

sua inealienabilidade. Com os casamentos performados dessa maneira, entre primos, replicando
cos modelos de casamentos entre aqueles considerados legítimos, a terra nunca precisou ser
pensada como divisa. Se os documentos de propriedade de terras estão circulando nas mesmas
mãos de quatro gerações entre pessoas da mesma família, qual a necessidade de pensar a sua
divisão?

A partilha da terra bem como sua circulação é uma elucubração virtual, é uma
divisão operacionalizada entre aquelas pessoas e por aquelas pessoas e dentro daquele contexto.
O papel desempenhado pelos detentores dos títulos de propriedade é unicamente permitir que
esses documentos continuem a circular, garantindo a transferência destes papéis para seus
descendentes.

A elaborada classificação e distinção entre família e parente é uma das diversas


faces que corresponde à seleção de um “indivíduo moral” para levar a frente o que vem sendo
executado. Por isso a tradição, essa “imitação prestigiosa” assume um papel tão fundamental
na criação de família. De igual maneira, os processos de “familiarização” e “desfamiliarização”,
por meio das identificações políticas, provêm continuidade a esse cálculo seletivo de herdeiros
hábeis para manutenção do patrimônio.

À estas práticas, me parece, que o intuito de casar não é para dar terra. Destes anos
de pesquisa, não lembro em nenhum momento, algum morador do vilarejo dizendo que era
dono daquelas terras. As expressões mais corriqueiras que ouvi dos diferentes moradores do
vilarejo, com relação a este lugar era: aqui é tudo nosso, o terreno é da família. Passei então a
pensar que, de fato, tais terras não são dadas, porque elas, de alguma forma, não são possuídas.
Elas são, em minha percepção, transferidas. A terra não se possui, então, por isso a
incompatibilidade de se falar sobre propriedade individual.

Sem a replicação dos casamentos, sem esse acordo em fazer e desfazer família e
parentes, entrelaçado com os pertencimentos aos modos de fazer política, da forma como
tradicionalmente se faz, as terras do Venâncio já estariam, como foi dito por Dona Adelaide,
inteiramente esbagaçadas.
115
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GLOSSÁRIO DE TRAJETÓRIAS

Alexandre Ferreira – Destacado como o fundador do vilarejo e apontado pelos habitantes do


Venâncio como um comerciante português. Teve quatro filhos, dois destes, Vitorina Rosalina e
Henrique Ferreira, continuaram o vilarejo com seus descendentes.

Vitorina Rosalina – Filha de Alexandre Ferreira, lembrada como a dona disso tudo, casou-se
com Manoel Belchior de Carvalho (lugar de origem não identificado), mãe de 10 dos 17
cabeças velhas.

Henrique Ferreira – Filho de Alexandre Ferreira, irmão de Vitorina, casou-se com Ana
Rodrigues (lugar de origem não identificado), pai de 7 dos 17 cabeças velhas.

Dona Adelaide – Neta de Henrique Ferreira Veras, casada com Clementino Belchior de
Carvalho, o Seu Quelé, mãe de Marli. Dona Adelaide, é filha de criação de um tio materno,
Manoel Belchior de Carvalho, um dos 17 cabeças velhas. Hoje é aposentada, vive no sítio
Capiaçú lugar onde mora desde o casamento com Quelé, candidatou-se a vereadora na década
de 80, mas não obteve sucesso.

Seu Quelé – Filho de um dos antigos líderes do vilarejo (cabeça velha), durante sua vida foi um
atuante líder comunitário, residente do sítio Capiaçú, lugar onde sua esposa, Adelaide, reside
nos dias de hoje. Foi agricultor e comerciante.

Otacílio ou “louro” – casado com uma prima cruzada, Marli, um dos líderes do vilarejo,
detentor dos documentos das terras do Venâncio e do sítio Capiaçú, partidário do grupo Cara
Preta – família 14, cabo eleitoral do atual prefeito Ademar Veras. Disponibiliza frequentemente
sua casa como ponto de apoio da prefeitura de Barroquinha.
122

Marli – filha de seu Quelé e D. Adelaide, esposa de Otacílio, cabo eleitoral da família 14,
destaca-se como atuante nas questões do vilarejo, porém não se auto intitula como líder local.

Otacília – filha de Paulo Henrique –não herdeira, uma senhora idosa, dona de casa, mãe de
dois filhos, uma que reside com ela e o outro, em Fortaleza.

Mané Vitorino: Casado com Úrsula, sua prima legítima, é pais de 5 filhos de sangue e 3 de
criação. Esses três irmãos eram D. Adelaide, e seus dois irmãos que foram adotados por terem
ficado órfãos. Morou no Capiaçú e foi um dos líderes do vilarejo. Tinha roça boa, tinham feijão
goma farinha.
123

ANEXO – Imagens Extras

Imagem 5: Seu José Vieira, irmão de Cícero Vieira (fevereiro/2013)


124

Imagem 6: Da esquerda para a direita, Larisse (neta de D. Adelaide e seu Quelé), Marli, D.
Adelaide, Seu Quelé (abril/2011)
125

Imagem 7: Entrada do Sítio Capiaçú(abril/2013)


126

Imagem 8: Igreja da família do Venâncio(abril?2013)


127

Imagem 9: Carnaubais no quintal do Capiaçú (abril/2013)


128

Imagem 10: Cemitério sem muros (fevereiro/2011)


129

Imagem 11: Igreja da comunidade do Venâncio(fevereiro/2013)


130

Imagem 12: Casa comida pelas dunas (fevereiro/2013)

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