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CAMPINAS
2018
LORENA LEITE ARAGÃO
CAMPINAS
2018
___________________________
Assinatura da Orientadora
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
A escrita da dissertação não foi um processo fácil. Daquilo que se recebe, muitas
outras são tomadas em troca. Com o processo de construção de conhecimento, esta lógica não
seria diferente. Das coisas que tive de ceder para continuar, ao longo dos dois anos de mestrado,
esta jornada não teria sido suportável sem o apoio das pessoas que aqui irei agradecer. Esta
dissertação foi escrita por muitos e muitas e é a eles e elas que este trabalho será dedicado.
A minha existência na Unicamp não teria sido possível sem o apoio que minha
orientadora Nashieli me deu durante todo esse percurso. Nashieli depositou em mim, como em
minha pesquisa, uma confiança inquestionável, mostrou-me que sou capaz de realizar
descobertas e trilhar caminhos que até pouco tempo seriam, por mim, inimagináveis. Devo a
você, Nash, carinho, respeito e admiração.
Agradeço, ainda, às minhas colegas de Ceres, Elis, Lídia, Marina e Maiane por
compartilharem neste grupo suas descobertas etnográficas e permitirem a nossa mútua
construção intelectual. Aos funcionários do prédio do IFCH e à Márcia Goulart, agradeço por
facilitarem os processos fora da sala de aula.
Das fortunas que esta vida me permite ter, as amizades que possuo são uma das mais
valiosas. Em Campinas, tive a sorte de entrelaçar meu caminho aos de pessoas incríveis,
amorosas e divertidas o que garantiu, com toda certeza, que minha estada em uma nova cidade
se tornasse mais leve. À amiga Ana Rabêlo agradeço todo carinho e cuidado que você tem
comigo, desde os nossos primeiros dias de Barão Geraldo. À Maiara Dourado, Lígia Medeiros,
Brunela Succi, Laura Luedy e Ralyana Freire agradeço o suporte emocional e as palavras
sempre reconfortantes. Ao amigo Cristiano Sobroza, agradeço por ter te encontrado, que nossa
amizade e afinidades e sejam infinitas. À José Cândido agradeço por acalentar, com tanta
paciência, as minhas inseguranças intelectuais.
Agradeço, por fim, mas não menos importante àqueles que, de fato, dão forma e
sentido à minha pesquisa e, ouso a dizer, conferem substância ao meu projeto intelectual. À D.
Adelaide, por nossas conversas ao pé da pia, D. Otacília, Cícero Vieira, Zé Vieira, à D. Marli e
Seu Otacílio por sempre terem me recebido com cuidado e atenção. Aos herdeiros velhos e
herdeiros novos e às pessoas de fora residentes no Venâncio e no sítio Capiaçú, devo gratidão
por me acolherem ao longo destes oito anos de pesquisa em seus lares, entre festas, enterros,
horas de trabalho e diversão. Às pessoas de Barroquinha, professor Ademar e Jaime Veras, bem
como a Diamantina Veras, agradeço pelas portas abertas.
Não! Você não me impediu de ser feliz!
Nunca jamais bateu a porta em meu nariz!
Ninguém é gente!
Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!
Palavras chave: Parentesco, Herança, Política local, Semiárido cearense; Nordeste brasileiro
Abstract: The village of Venâncio, located 420 km from the capital city of Ceará, is one of
those places in the interior in which there are easily fierce disputes between members of the
same family, reverberating in daily relationships, in the interweaves between family and
politics, as well as in the understandings of these elements with the land they inhabit.
Politics, family and land are notions mobilized in this dissertation in order to understand
how consanguine marriages among the people of the village act as a language for circulation
and maintenance of the land. Anchored in kinship theories, not only of consaguinity and
alliance, but also in that of relationality, family relations are amplified and perceived in their
details, in which it is perceived that family ties, depending on the circusntance, become
bonds and vice versa. In this place, it is difficult to find family without politics and land
without family. From the junction of this threefold peasantry condition, this debate has been
deepened by Brazilian scholars since the 1970s, land, family and politics are detailed and
analyzed ethnographically within a procedural perspective, in which the events and life
narratives of the subjects, their genealogical reconstructions, and physical documents as the
primary source of data.
Imagem 1: Bodega O Louro. Na foto, Seu Otacílio e Dona Marli (fevereiro/2017) .................. 15
Imagem 5: Seu José Vieira, irmão de Cícero Vieira (fevereiro/2013) ...................................... 123
Imagem 6: Da esquerda para a direita, Larisse (neta de D. Adelaide e seu Quelé), Marli, D.
Adelaide, Seu Quelé (abril/2011) ............................................................................................. 124
Lista de Mapas
Lista de Gráficos
Quadro de notações
Sumário ................................................................................................................................................ 12
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 13
Caracterização da Localidade .................................................................................................................... 22
Aqui Todo Mundo É Parente...................................................................................................................... 26
CAPÍTULO 1 – ESTÁ NO SANGUE, É DE FAMÍLIA ................................................................................... 35
1.1 Causo com Dona Otacília..................................................................................................................... 35
1.2 Fazendo família: as famílias do Venâncio ....................................................................................... 38
1.3 Famílias de sangue bom: sobre os pertencimentos de uns aos outros ............................................... 44
CAPÍTULO 2 – FAMÍLIA É IGUAL POLÍTICA ............................................................................................ 58
2.1 O Evento com a médica cubana .......................................................................................................... 58
2.2 Disputa e tradição – família 14 e família 12 ........................................................................................ 65
2.3 Fazendo política como se faz família ................................................................................................... 77
2.3.1. A desfamiliarização de D. Otacília............................................................................................... 80
2.3.2. A familiarização de Rita .............................................................................................................. 82
CAPÍTULO 3 – AGORA A TERRA TÁ PEQUENA PARA TANTO HERDEIRO ............................................... 86
3.1 A distribuição dos lucros do carnaubal ................................................................................................ 86
3.2 Seguindo os documentos e seus rastros ............................................................................................. 90
3.3 Os 17 cabeças velhas e a inalienabilidade da terra ........................................................................... 102
CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 116
GLOSSÁRIO DE TRAJETÓRIAS.............................................................................................................. 121
ANEXO – Imagens Extras .................................................................................................................... 123
13
INTRODUÇÃO
O vilarejo do Venâncio não difere muito das demais localidades que o antecedem
durante o caminho percorrido. Ali, ao longo da estrada que finda quando se chega na praia de
Bitupitá, concentram-se duas igrejas – uma da família e outra da comunidade – um cemitério
sem muros, com suas lápides divididas entre seu espaço e o quintal de algumas residências;
mais à frente, em uma acentuada curva, surge a bodega - O Louro - e logo mais atrás avista-se,
em um horizonte não muito distante, a imensidão das dunas brancas que se movimentam lado a
lado às palhas dos carnaubais e coqueirais que, igualmente, compõem a paisagem da região.
1
Por vilarejo do Venâncio, ou simplesmente Venâncio, refiro-me ao território no qual constam o núcleo
populacional alocado na estrada que liga Barroquinha à praia de Bitupitá, mais o terreno do sítio Capiaçú, este
alocado a dois km do vilarejo, local de morada dos antigos líderes do vilarejo e parte do distrito de Leitão, também
vizinho do vilarejo e local onde habitam algumas famílias. Estes territórios podem ser entendidos como territórios
de parentesco, da forma desenvolvida por Comerford (2003) - tais noções serão aprofundadas nas próximas
páginas.
14
No dia seguinte a esse contato, Seu Otacílio e Dona Marli me receberam em sua
casa, me convidaram para almoçar e por lá fiquei. A minha circulação junto a essa família me
caracterizou como a “menina que estava na Marli”, o que, como percebi, implicaria diretamente
nos modos como outras pessoas do vilarejo se relacionariam comigo. Algumas portas foram
abertas em razão dessa proximidade com D. Marli e com os seus. De fato, muito da minha
pesquisa de campo, nos anos iniciais, foi facilitada pela grande rede de pessoas próximas a eles.
De uma receptividade comumente encontrada em contextos não urbanos, ou do interior, fui
extremamente bem acolhida e bem cuidada. Dona Marli frequentemente me convidava para
visitar este ou aquele parente, intimava Seu Otacílio a me mostrar os limites do vilarejo e as
salinas que avizinham o vilarejo, tudo na garupa de sua moto. Participei ativamente de festejos
locais, almoços de família, missas, novenas, aniversários, velórios dentre muitos outros eventos.
17
De igual importância, devido à proximidade com essas pessoas de alargados laços sociais, pude
conversar com políticos locais, representantes de associações, bem como tive acesso a
importantes documentos da localidade e do município.
Por conta dessa mesma proximidade, entretanto, outras portas foram fechadas e meu
posicionamento enquanto pesquisadora posto em questão. Nesses anos de pesquisa fui
associada como pertencente a um grupo político, a uma facção e a uma família. Vi, então, as
possibilidades de conversas que iam se fechando, que aqueles parentes de quem eu me
acompanhava eram pessoas articuladas, de casa movimentada, cheia de atribuições, e que, por
isso, poderiam ser percebidos como pessoas políticas. Não é por menos que seu Otacílio e D.
Marli são um dos atuais porta-vozes do vilarejo, detentores dos documentos de propriedade
daquelas terras e descendentes do patriarca e fundador, Alexandre Ferreira, que em 1879
tornou-se o proprietário legal daquelas terras.
Das questões que estão constantemente em pauta, a movimentação das dunas que
cercam o Venâncio vem ganhando proporções cada vez maiores. Nos tempos de antigamente,
18
período em que os vivos falam dos seus antepassados, a localização do vilarejo distanciava-se
quilômetros de onde o núcleo populacional atualmente vive. Antes das dunas comerem as casas,
Venâncio localizava-se mais próximo ao litoral, o que hoje se vê no horizonte como o banco de
dunas, foi antes um espaço composto por casas, comércios, lagoas e estradas. Ao longo dos
anos, as famílias e os espaços reconfiguraram-se, modificando, reconstruindo e impondo novas
sociabilidades em novos ambientes.
2
Por territorialidade, Godoi (2014) define um processo de construção de territórios: apropriação, uso, controle e
atribuição de significados.
19
3
Segundo a definição do autor, situação social é “o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como
membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões”
(GLUCKMAN, 1987, p. 238)
20
O segundo evento traz momentos de meu diário de campo no qual narro um dia de
consulta da médica do município, a médica cubana, no vilarejo do Venâncio. Neste dia, a casa
de Dona Marli, anfitriã do evento, contou com preparações especiais, ficou mais limpa do que
de costume e teve, inclusive, o sinal de wi-fi liberado para aqueles que quisessem acessar a
internet. A frenética movimentação da casa dizia sobre a importância desse momento para os
habitantes da localidade. Não somente isso, dizia sobre interações e intencionalidades dos
atores sociais presentes – da médica, da anfitriã, dos pacientes –, informando como essas
interações são performatizadas dentro de um contexto sociopolítico específico.
formulações nativas daqueles que lá vivem não é algo recente, mas aqui vale destacar a guinada
da etnografia voltada em defesa de uma antropologia das teorias nativas. Uma antropologia das
teorias nativas que nos leva a entender o que é política no sentido prático. Como exemplo
específico do cenário desta pesquisa, podemos mencionar uma produção de conhecimento feita
por Rita, uma moradora do vilarejo cujas afirmações trazem a compreensão de que os
casamentos têm por fim a não fragmentação do território. Esta é uma visão que parte da própria
interlocutora, que de acordo com Borges (2003) e Peirano (2002, p. 38) “seria a forma
apropriada para resumir, expandir, suportar e encorajar o conhecimento que continua a se
pretender universalista, mas multicentrado nas suas manifestações.” Trata-se de um trabalho
etnográfico realizado como numa relação triangular em que se interpenetram o sentido
conferido pela comunidade estudada, o contraste com o corpus teórico do pesquisador e a
teorias antropológica (BORGES, 2003, p. 16). É este modelo que terei como referência nessa
dissertação.
Caracterização da Localidade
4
Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/online/10-municipios-cearenses-
sao-incluidos-na-regiao-do-semiarido-brasileiro-1.1855670 Acesso em 16/03/2018.
23
última praia do litoral cearense” como uma das formas de chamar atenção de turistas, e de,
algum dia, possuir uma boa movimentação turística, ao lado das famosas praias de Camocim e
Jericoacoara.
Segundo o Perfil Básico Municipal, a população de Barroquinha em 20105 é de
14.476 habitantes, sendo destes 9.770 o número da população residente em áreas urbanas e
4.706 a população residente em área rural. O número total de moradores conglomera a
população das 57 localidades, distribuindo-se em dois distritos político-administrativos, Araras,
em 1961 e Bitupitá, criado em 1892, e nas microrregiões: Chapada, Leitão, Venâncio, Capiaçú,
Curimã, Taquari, Pereira, Canadá, Vertente, Baixa grande, Rochedo, Praia Nova, dentre outras,
como ilustra o mapa 1.
O vilarejo de Venâncio, embora sua diminuta população, estimada em 518 pessoas,
pode ser caracterizado como uma localidade com muitas particularidades. Sua demarcação
territorial compreende a junção com o sítio Capiaçú, este frequentemente lembrado como casa
dos cabeças antigas. A peculiaridade de Venâncio ainda pode ser percebida em razão de sua
situação fundiária. Diferentemente dos distritos vizinhos, os moradores do vilarejo possuem
documentos de propriedade de terras, e isso, como será demonstrado ao longo desta dissertação,
possui significativas implicações.
5
Dados do último censo demográfico realizado pelo IBGE.
24
Das visitas que fiz ao Venâncio, poucas foram às vezes que comi peixe nas casas.
Vale ressaltar que lá a condição financeira diz muito sobre o tipo de alimentos que entram nas
casas. Peixe, naquele contexto, me parece que está próximo as pessoas de baixas condições
financeiras, é um alimento de "fácil" captura e que está à disposição de quem for buscá-lo no
mar. Na praia de Bitupitá, não raro, as famílias de pescadores têm como base da alimentação
diária peixe, sururu e farinha. Se classificarmos os alimentos protéicos podemos dizer que
naquele lugar o peixe alcança o status mais baixo dessa hierarquia. Um fato intrigante é que o
peixe é "menosprezado" por razões outras que não tem relação com a abundância ou fácil
captura. Pelo contrário, é consenso no discurso das pessoas de toda a região sobre a difícil
relação dos homens com o mar. Digo dos homens porque o mar é um ambiente
predominantemente masculino6. Trabalhar com pesca é sempre penoso, e muito sacrificante,
pois se trabalha muito para ganhar pouco em um ambiente de difícil controle, com o mar, sol.
Vale ressaltar que a opinião sobre as dificuldades dos homens do mar é difundida
em toda a localidade e que trabalhar como pescador, como aquele que entra no mar em
pequenas embarcações sob o mando do dono desta embarcação é visto como pessoas
subordinadas e de pouco ganho. Lá, dificilmente “se faz dinheiro” sendo empregado da
embarcação de outros, somente quando se adquire um barco ou se constrói um curral próprio é
que se passa a ganhar dinheiro.
Percebi que existem diferenças de valor agregado aos alimentos fonte de proteína,
tais como carne, frango e peixe. Tal diferença se mostra latente quando a minha presença na
casa faz com que este seja um momento extraordinário. Quando estou na casa de Dona Marli,
esta faz questão de me servir galinha ou carne de gado, carnes mais valorizadas possivelmente
pelo valor conferido à criação de animais, em detrimento do peixe e mariscos, que podem ser
encontrados com certa facilidade nos rios (rio Timonha), mangues e mar (distanciado 5 km do
vilarejo).
6
A pesca mais praticada na praia de Bitupitá é a pesca de curral, um tipo de pesca artesanal no qual se constrói
com estacas de madeira de eucalipto, armadilhas, ou currais, disposta em formato de semi-coração, muito
realizado naquela região onde o mar manso favorece a captura de peixes. Araújo (2013) explica sobre os saberes e
fazeres tradicionais que a pesca de curral é frequente em vários pontos do nordeste brasileiro e aqueles que nele
trabalham são conhecidos como os vaqueiros do mar.
25
Nas reuniões e almoços de família as carnes de gado e frango também são as mais
consumidas. O interessante é perceber que as carnes de gado não são produtos de animais
cuidados nos arredores do Venâncio ou do Sítio Capiaçu, são carnes que vem de outros lugares
e com isso, consequentemente, tem consigo um elevado preço frente à galinha e ao peixe. A
galinha é um alimento que cotidianamente está na mesa das famílias, ela seja por compra, troca
ou criação no quintal do consumidor.
7
ARAGÃO, 2014a; 2014b.
8
Consideração aqui ganha um sentido de performance social mútua: quando se tem consideração por alguém
significa que este alguém corresponde àquela intencionalidade inicial. A consideração não existe sozinha e, neste
contexto, surge como meio de estabelecer vínculos e firmar alianças, como, por exemplo, na hora de apadrinhar os
filhos, em que um compadre é designado para ser o mentor social e espiritual da criança (ver Woortmann, 1995) e
o designado aceita por ter consideração pelo designador. De igual maneira, tal situação ocorre em transações
comerciais: vende-se fiado só para aqueles que se tem em consideração, que neste caso é alguém que irá honrar
seus compromissos financeiros. Pode-se perceber algumas aproximações ao uso contextual desse termo nas obras
de Pina-Cabral e Vanda Aparecida (2013) e na obra de Ellen Woortmann (1995). Esse termo será melhor detalhado
nas páginas que seguem.
27
Muitas etnografias que tratam das sociabilidades no nordeste brasileiro 9 constroem seus
objetos sob a rubrica de que aqui todo mundo é parente. De maneira similar, o povoado do
Venâncio erige-se sobre essa premissa, que traz também, como marca, a afeição desse povoado
à participação no fazer política na localidade. Podendo igualmente ser estendido a todo
município de Barroquinha, do qual o vilarejo faz parte, lá dizem: “Eu gosto da disputa
[política], corre na veia a participação, igual à família, corre no sangue.”
que política era percebida e exercida por meus interlocutores como uma força mobilizadora
dentro desse vilarejo e que se apresentava como algo que é vivido nas mais simples das
relações diárias.
A política será introduzida neste trabalho por meio da fala das pessoas,
processualmente, formulando conceitos erigidos das partes dos discursos nativos. Para os
interlocutores pernambucanos de Palmeira (2001), falar de política remete imediatamente às
29
eleições (de onde o autor desvenda que o tempo da política é parte integrante do cotidiano). Já
para os de Borges (2004), a política encontra-se diluída discursiva e territorialmente nos
“lugares-eventos”. Aqui, seguindo o mesmo rastro das interpretações nativas realizadas por
Borges e Palmeira, a política ganha forma de representação e de ação, vota-se na política, mas
igualmente vive-se a política.
Advirto, ainda, que meu propósito de analisar a política local afasta-se das
preocupações concernentes ao campo da Ciência Política. Não busco chegar a conclusões sobre
sistemas políticos e nem discutir se estamos ou não passando por uma crise de
representatividade (MANIN, 1995)12. O contexto etnográfico no qual me inseri me permite
destacar instâncias microscópicas da vida política, o que torna possível a análise processual que
aqui proponho. Vale lembrar que o olhar microscópico de que aqui faço uso está mais para uma
escolha consciente, de um lugar de análise, do que para a percepção desta política como parte
de uma microssociedade. Já alertou Villela que,
12
Manin, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. Revista da Anpocs. n.29, 1995.
13
Por de fora me refiro àquelas pessoas que ou moram no vilarejo, mas não possuem laços de consanguinidade
nem aliança com as famílias, ou então às pessoas que não habitam o vilarejo e geralmente moram nos distritos
vizinhos e na sede do município.
30
Se os documentos sobre a posse da terra e o uso que dela fazem lhes garantem certa
autonomia e conferem uma relação de poder para com sujeitos internos e externos ao vilarejo,
estas mesmas terras (e as pessoas que as habitam) estão sujeitas ao avanço das dunas móveis e
dos ventos, aqui considerados elementos que trazem insegurança e instabilidade à localidade.
14
De propriedade dos habitantes do Venâncio, os loteamentos de carnaubais são terrenos que contêm plantação de
carnaúbas (Copernicia prunifera) voltadas para a extração do pó carnaúba com finalidade produtiva da cera de
carnaúba.
15
Como bem destaca Loera (2015), trabalhar com temporalidade mais do que uma disposição cronológica,
implica um princípio que organiza e delimita as relações. Tal ideia será desenvolvida com mais detalhes no
capítulo 1.
31
A maior parte dos habitantes do vilarejo são herdeiros, exceto alguns poucos que
moram de favor,16 e têm direito à herança que se materializa na terra que habitam e nos
terrenos de carnaubais, garantidos pela descendência advinda dos fundadores do vilarejo, os
irmãos Vitorina Rosalina Veras e Henrique Veras. Dos casamentos destes com Manoel Belchior
de Carvalho e Ana Rodrigues Sousa, respectivamente, surgiram 17 filhos, dez de Vitorina e sete
de Henrique. Esses 17 filhos, ou como lá se referem, as 17 cabeças velhas, continuaram a
povoação do vilarejo por meio de casamentos entre “pares de irmãos” (WOORTMANN,1994),
casando entre si os filhos de Vitorina com os filhos de Henrique.
Nos tempos dos antigos, dos cabeças velhas, estes, conforme meus interlocutores,
eram os homens que mandavam em tudo, que trabalhavam com gado e caprinos - fazendo
transporte de jegue para a região serrana -, e que trabalhavam nas casas de farinha, fazendo a
farinhada nas pequenas lavouras e nos carnaubais, cortando a palha, moendo e produzindo a
matéria prima da cera de carnaúba. Nos tempos recentes, tais atividades foram substituídas
pelos pequenos comércios, as bodegas, pelo funcionalismo público, atividades de frete e
transporte escolar. As lavouras ainda persistem, com uma diminuta produção que se volta, em
grande parte, para consumo próprio.
16
Morar de favor é uma condição que diz respeito a sujeitos exógenos às famílias do vilarejo em um território
cedido pelas famílias locais. São poucos os casos de pessoas que moram de favor. Correspondem, segundo minha
contagem, às 15 famílias estabelecidas em um espaço que circunda perifericamente as casas dos parentes.
32
política. Ser herdeiro é uma condição de quem nasce naquela terra. Isso implica que todos ali
são herdeiros. No entanto são os desdobramentos das trajetórias de vida que realocam a posição
desses sujeitos no direito à terra.
Atualmente, o grupo que se destaca de forma mais nítida no vilarejo tem uma
herdeira velha como “cabeça” do grupo, a Dona Adelaide, e seu núcleo familiar,18 vinculados
à facção política Cara Preta (família 14), conhecidos como pessoas de nariz empinado,
briguentos. Estes podem ser entendidos como os principais agentes dentro do vilarejo: 19 são os
que possuem os documentos de propriedade da terra, os que pagam os impostos junto ao
INCRA, representam o vilarejo frente às reuniões da prefeitura, que detêm as chaves das igrejas
da localidade (são duas, uma da família e outra “comum”), e que gerenciam e geram o espaço
de construção de novas moradas na localidade.
Por meio dos herdeiros velhos e novos, a gestão do espaço compartilhado passa a
ter fundamental importância, pois será o bom funcionamento dessa administração que garantirá
novo espaço de moradia para aqueles que procuram um novo lugar para levantar casa em
decorrência da movimentação das dunas, da abertura de estradas, bem como para as novas
famílias que são geradas. A passagem das atribuições de um herdeiro velho para um herdeiro
novo me parece ser de grande importância, já que são transmitidos também os códigos, as
regras e as tradições que permitem o “funcionamento” cotidiano do vilarejo.
17
Bourdieu define habitus como: “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as
experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e
torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas”
(Bourdieu, 1983: 65).
18
Tal núcleo familiar é composto, ainda, por Marli, primogênita de D. Adelaide, Otacílio, primo de 1º grau e
esposo de Marli, Caizé e Paulinho, ambos irmãos de Marli.
19
São também os meus principais interlocutores, portanto muitas linhas ainda serão escritas sobre esse grupo.
33
As categorias que aqui tomo – terra, família, sangue, sobrenome – são variáveis que,
como será demonstrado ao longo da dissertação, ao combinarem-se em diferentes proporções,
dão forma às trajetórias individuais. As combinações sangue bom/ruim, herdeiro velho/novo,
consideração/sem consideração, os sobrenomes que habitam o Venâncio (Belchior, Carvalho,
Veras e Rodrigues), são o resultado da trajetória das pessoas do vilarejo, o que faz perceber que
a forma principal de manter esse “sistema”, essas interligações em operação, é a partir dos
casamentos, que sabemos, não são obrigatórios, porém são esperados.
As possíveis separações aqui realizadas (família, política, herança) são antes meios
de tornar inteligível um universo de ações e representações, do que limitar a realidade social.
Esta é complexa, fluida e multidimensional, o que traz para mim um desafio, e dos grandes, ao
buscar traçar um contexto tão rico através do plano da escrita, e, nessa escrita, recuperar a
riqueza dos movimentos do lugar através de formas e categorias textuais que, embora limitadas,
buscam ser minimamente apropriadas para descrever o que observei.
Como “produto final” ao leitor, apresento uma narrativa, uma espécie de simbiose
que procura definir o lugar que estas pessoas ocupam e habitam em seu contexto específico,
base concreta que permite a manifestação dessas formas de existência e suporte, também, da
manifestação da economia moral dessas formas de constituir família, grupo e de existir no
mundo.
20
Essa fala foi proferida na ocasião do curso de verão intitulado Kinship Networks, sediado na Unicamp em 2017.
34
meu percurso enquanto pesquisadora, que é a busca por conferir sentido ao discurso e à prática
desses sujeitos, em meio a construções e desconstruções pautadas no cotidiano. A
inconsistência do cotidiano, ou melhor, essa fluidez do cotidiano, é a substância que vem me
permitindo tecer a complexidade social desse vilarejo. Família, terra e política, aqui, são
termos centrais, tangenciados por outros assuntos do cotidiano, subentendendo-se um pelo
outro (em determinadas situações) e aqui os apresento como os núcleos agenciadores da minha
pesquisa.
Cada capítulo será conduzido como resposta a cada uma dessas indagações.
Sistematicamente, os capítulos tratam de assuntos distintos e possuem uma certa independência
uns dos outros, mas suas interconexões são percebidas na medida em que a tríplice condição
que aqui destaco – política, família e terra – são partes entrelaçadas umas às outras.
35
Em 2013, Dona Otacília revela estar desgostosa com a situação das crianças da
localidade, ocasionada pela ausência da escola de ensino fundamental no vilarejo. A única
escola da localidade foi encoberta ao longo do processo de movimento das dunas móveis que se
arrastam gradativamente no vilarejo aos longos dos anos.
O mais agravante dessa situação, contava Dona Otacília, é que o transporte, cotado
para vir diariamente nos turnos da manhã, tarde e noite, fazendo o trecho Venâncio – Bitupitá,
com frequência não cumpria com sua rotina diária, fazendo com que as crianças de Venâncio
perdessem aula. A situação trouxe insatisfação aos pais, pois além de não poderem cumprir com
seus compromissos (já que teriam que cuidar dos filhos), havia o agravante de serem autuados
pela prefeitura, já que a frequência à escola é um ponto importante para manutenção dos
recebimentos dos benefícios sociais, tais como Bolsa Família. Como traz o relato de Dona
Otacília,
Minha filha, pra mim tanto fez como tanto faz, né? Agora só uma coisa que ficou chato aqui
pra nós, pra mãe de família: a escola aí fechada, tem dia que é não sei quantos carros
correndo. Ninguém tá falando, não! Tá dizendo uma certeza. Tanto fez, como tanto faz ganhar
[referindo-se à política]. Tem dia que os meninos vão, tem dia que os meninos não vão, tem dia
que não vão buscar. Aí tem dia que ficam mais dentro de casa do que pra escola. Eu estava
36
dizendo, não era sendo fofoqueira não, não botando defeito nenhum não, mas eu acho que
nesses quatro anos o Ademar [ex-prefeito] dava pra ver as condições deste grupo [do grupo
que ela faz parte], aí dava pra fazer ao menos duas salas pra não ter que se destacar até as
Almas [nome antigo de Bitupitá]. Entrevista em 7/03/2013.
Mediante toda essa situação, Dona Otacília e sua filha, Sinara, que no momento
aderiu à nossa conversa, relataram sobre um grupo de mães que foram ao gabinete da Prefeita,
localmente conhecida como Tetê,1 reivindicar a construção de uma nova escola em Venâncio.
Desta conversa ficou acertado que as mães fariam um abaixo-assinado e o entregariam à
Prefeitura como forma de legitimar sua reivindicação.
Marli não foi não... Marli é contra isso porque ela [...], certo que nós somos do partido
diferente, mas isso não inclui partido, porque a gente tá atrás do melhor pros filhos da gente,
tá entendendo? Aí na reunião que houve com a Angeliete e com a Dadiva [ambas secretárias
da Prefeita] não foi resolvido nada na reunião. Aí teve duas atas pra gente assinar, que elas
falaram que era umas atas que elas chamam, é o livro que fica, né? Um pra ir e outro pra
comprovar que a gente ia levar à Secretaria, pra ficar lá. E no caso da reunião, quando nós
fomos pra lá, o Ademar [ex-prefeito], já falou outra coisa pra gente, que a ata que eles
levaram pra lá era [abaixo] assinando, assinatura das mães como nós tá comprovando
[permitindo], tá levando os meninos para Bitupitá. Então foi no caso que eu disse pra ele
[Ademar]: pois elas andaram mentindo pra gente, porque elas falaram uma coisa no colégio e
aqui já foi outra. Porque a gente assinou para vir comprovando que nós íamos pra reunião e
não permitindo os meninos irem pra Bitupitá. Porque foi que elas não falaram a verdade? Pois
é muito feio andar mentido, eu acho muito horrível. Porque eu acho que no caso da gente
soubesse, a gente e nenhuma mãe tinha assinado, porque todas as mães estavam contra dos
meninos irem pra Bitupitá. Aí é assim, aí ganha quem tem poder, né? Entrevista em 7/03/2013
Desse causo entre as mães que são contra a transferência das crianças para Bitupitá
e a Prefeitura, a filha de Dona Otacília esclarece, continuando,
1
Teresinha Maria Cerqueira Lima Gomes, ou Tetê, do PTB, foi prefeita de Barroquinha na gestão de 2012-2016,
continuando o mandato de Ademar Veras. Este, representante maior da facção política local, a família 14, foi eleito
prefeito na gestão anterior à de Tetê e não obteve sucesso, em 2012, em razão de ter sua candidatura impugnada
por cair no projeto Ficha Limpa, selecionando, então Tetê como candidata hábil para sua substituição.
37
Sinara: Agora nesse começo de ano mesmo. Você não fez a pesquisa ali na Marli, não? Ela
não lhe falou nada disso não? Pois é, o caso aí foi sério desse negócio da escola aí. Aí é assim,
eles prometeram se a gente organizasse esse baixo assinado, a lista dos alunos, ele [Ademar]
ficou de vir fazer uma reunião com as mães de Bitupitá, e agora que ele disse que quando
viesse ia mandar avisar, e até agora não chegou nenhum aviso. [...] Aí a gente espera que
melhore mesmo, porque tem vez que a gente fica esperando, arruma os meninos, aí o projeto
que ela [a filha] tá aqui é o projeto que não pode faltar, do auxílio, aí o que elas [professoras]
pedem mais para as crianças não faltarem, aí no caso sem o transporte aí fica difícil da gente
organizar o dever dos meninos. Entrevista em 7/03/2013.
À exemplo do ocorrido no relato acima, muitas outras situações podem ser narradas
envolvendo desentendimentos entre conformações sociais que, em dados momentos, podem ser
entendidas como contendas entre familiares, em outros, como rivalidades entre os grupos
políticos. O caso aqui apresentado por Dona Otacília e sua filha iluminam, no entanto, que tais
distinções – família e política – usualmente construídas no intuito de proferir inteligibilidade à
realidade social, não operam e não podem ser entendidas como parte de domínios separados.
Vale ainda ressaltar que nas próximas páginas serão construídas as concepções de: o
que é ser da família, quem se considera ou desconsidera como parente, os entendimentos do
sangue como símbolo comunicativo e território enquanto algo construído em meio às narrativas.
Estes são conceitos fundamentais, termos chave desenvolvidos por meus interlocutores. O que
me interessa destacar e entender, outrossim, são as formas nas quais as pessoas classificam a si
mesmas e aos outros quando estas categorizações são acionadas. Busco saber quais os
entendimentos nativos subjacentes aos tempos dos herdeiros novos/velhos e como isso interfere,
classifica e ordena as relações entre as pessoas.
38
A ideia de núcleo familiar na qual se aferem aos pais e seus filhos, em um espaço
demarcado como a casa, não me diz muito no contexto do Venâncio. Lá também existem os
afilhados, ou “filhos de alma” (WOORTMANN, 1995) que são o mesmo que ser filho, além
daqueles de criação, quando os pais consanguíneos conferem aos cuidados de seus filhos,
2
Ver genealogia 1.
39
novos pais, usualmente parentes habitantes das mesmas terras e que compartilham dos mesmos
códigos morais e políticos.
Como ilustrou Teixeira (2014, p.162), em seu trabalho no Sertão dos Inhamuns, a
palavra criação, ou seja, filhos de criação, filhos que não são sangue do mesmo sangue, traz
uma ideia de extensão da concepção de núcleo familiar tradicionalmente operacionalizada pela
antropologia. A família estende-se aos laços consanguíneos que ganham maior destaque quando
comparado com os laços de afinidade, levando em consideração a valorização dos casamentos,
mas, mais ainda, valorizam-se os casamentos entre pessoas da mesma família. Aqui, então, a
menor unidade mobilizadora passa a ser entendida na conjugação dos consanguíneos com os de
criação.
trinta casas que compõem o núcleo populacional do vilarejo, distribuídas em 4 ou 5 “ruas”, mas,
que na verdade, são territórios demarcados pelas pessoas e por suas casas.
De maneira similar, Godoi (2014) contribui com a percepção de que, para além do
espaço demarcado fisicamente, o território é construído e organizado em meio às narrativas
sociais. Cabe aqui pensarmos a construção desse espaço físico em conjunção ao social como
uma “territorialidade”, ou seja, o processo de construção desse território dá-se em, pelo menos,
Morada de Vitorina Rosalina, a mais antiga dos antigos, lembrada como a “dona
disso tudo”, no sítio Capiaçú encontram-se ainda algumas das casas da vila que lá existiu. De
certo, as dunas invadiram parte das casas da vila, mas o tempo também tratou de destruir as
41
casas possuindo como conservada somente a casa principal, lugar onde funcionavam casas de
farinha, estábulos e plantações. Neste sítio, a infância dos mais velhos foi marcada por
momentos de privações e de muito trabalho3, sendo sempre recorrente, que as dificuldades dos
tempos passados não se encontram nos dias de hoje. Dona Adelaide, atual moradora do sítio,
lembra da roça, das frondosas plantações de feijão, mandioca, melancia, dos pés de coqueiro e
dos carnaubais, dos tempos de grande circulação de pessoas no sítio, principalmente nos
tempos de farinhadas, época em que se mói e se prepara a farinha ao longo de um mês de
trabalho.
Sobre a história de Victorino Ferreira Veras ou de seus filhos pouco me foi contado,
relataram alguns herdeiros que dessas histórias antigas só quem sabia eram os herdeiros velhos,
muitos destes já falecidos ou, os que ainda estavam vivos, não conseguiam alcançar tal
memória. Daquilo que foi alcançado, me relataram que um dos primeiros grupos familiares a
estabelecer morada na localidade foi a família Veras, que, em meados do século XIX, partiu de
Portugal e alojou-se em Camocim. Desta cidade, sabe-se que parentes da família Veras se
dispersaram pelo litoral Oeste cearense, alguns firmando residência em Camocim e outros
migrando para o município de Barroquinha (à época ainda pertencente à comarca de Camocim)
e aos distritos atualmente entendidos como Venâncio, Bitupitá, Bambu e Araras. Relatam os
moradores que o início do Venâncio se deve a Victorino Ferreira Veras e sua esposa,
acompanhados de seu filho Alexandre Ferreira da Costa Veras, sua nora e seus quatro netos:
Henrique, Joviniano, Lívio e Vitorina5.
3
Recorrentemente o trabalho é visto como meio de dignidade e edificação da pessoa, no tempo dos antigo os pais
colocavam os filhos para trabalhar, uma pessoa que não trabalha ou que não é trabalhador não é boa pessoa.
4
As cidades de Camocim (distante 48 km de Barroquinha) e Granja (distante 66 km de Barroquinha) são
importantes pontos de fluxo no litoral Oeste cearense, tendo exercido a função de entrepostos comerciais do estado
por suas privilegiadas localizações, Camocim, por ser uma cidade litorânea e ponto de fluxo portuário e Granja por
se localizar mais afastada da faixa litorânea, provendo atividade de escoadouro e ponto comercial.
5
Cf. genealogia 1.
42
Mas de que maneira podemos entender a assertiva aqui todo mundo é parente? Me
parece que quando trazem essa assertiva, delimita-se uma “territorialidade” (GODOI, 2014), e
que, dentro disso, marca-se “nós somos esses”, uma unidade. No entanto, quando se analisa de
perto, como fora demonstrado acima, surgem segmentações e disputas hierárquicas
significativas. Nessa assertiva, certamente, poderia ter a continuação, “mas, alguns são mais
parentes que outros.”
Parece-me que essas famílias ou sujeitos que se consideram como “mais famílias
que outras” assim se apresentam pela tradição dos hábitos que um dia originaram e que mantêm
o vilarejo até hoje. Os que são considerados menos parentes do que outros também se casam
entre si, alguns podem até ter destaque no envolvimento sobre interesses comuns ao vilarejo,
mas não possuem todos os fatores e características juntas. Essa questão da tradição incide no
entendimento que circunscreve a definição de família, de quem são os herdeiros novos e velhos.
Novamente, a tradição, algo que pressupõe tempo, traz um novo tipo de entendimento, ou um
novo lado do caleidoscópio que é a tensão entre herdeiros velhos e herdeiros novos.
No tempo dos antigos, a convivência de moças e rapazes, primos, tios, irmãos era
maior porque o trabalho concentrava-se eminentemente dentro do povoado, ou seja, trabalhava-
se nas atividades de casa (varrer, cuidar da cozinha, cuidar dos irmãos mais novos), na lavoura,
no carnaubal e na casa de farinha. Percebe-se em uma das falas de Dona Adelaide, o limite do
tempo dos antigos com os tempos de hoje, ao contar do início de seu namoro e a tarefa dos
filhos nas atividades cotidianas. Ela, que teve dez filhos, criou e cuidou de todos, os mais
velhos cuidando dos mais novos, como ela disse “tive um atrás do outro, como uma escadinha”
em meio aos fluxos do sítio Capiaçú com a farinhada, com a roça, com os comerciantes e
viajantes,
6
Como consta na página 12, trago o trecho: “Defino como família grupos de pessoas consanguíneas e afins que
compartilham descendência comum ao fundador do vilarejo, Alexandre Veras, e que têm em comum hábitos,
tradições, memórias e territórios. Família, para os grupos estudados, se traduz com a identificação aos sobrenomes
que habitam o lugar: os Veras, os Belchior, os Carvalhos e os Rodrigues. Se conjuga, ainda, que há uma relação
direta entre sobrenome e território, no qual se delimitam o Venâncio como pertencente a alguns familiares e o
Capiaçú como da posse de outros.”
43
Estes que saem, muitas das vezes, são identificados como pessoas “sem jeito para o
roçado”, são jovens que tentaram a vida na praia de Bitupitá ou na sede do município como
prestadores de serviços, trabalhando em portarias, como motoristas e serventes, mas como o
pagamento é pouco, preferem trabalhar fora do município, na construção civil, como garçons e
como embarcados em plataformas da Petrobrás, na Bacia de Campos (RJ).
É interessante perceber como, mesmo fora do lugar onde possuem laços sociais
mais densos, esses jovens permanecem ainda sobre o olhar das pessoas do vilarejo, uma espécie
de controle e coerção que incidem em suas ações em terras longínquas. Comerford (2003)
trabalhou estas formas de coerção e controle como o estabelecimento de redes de pessoas da
mesma microrregião fora de seus lugares de origem. Isto mostra-se verdadeiro ao perguntar
para as namoradas e esposas que ficam no vilarejo, se elas não têm receio de que a distância
possa, de alguma maneira, romper com os seus relacionamentos. Elas, muito seguras,
afirmaram que não, pois têm a segurança de serem informadas de tudo o que acontecesse por lá.
Aos que não saíram de suas terras restou-lhes trabalharem nos pequenos roçados e
sobreviverem dos recebimentos de aposentadorias e bolsa família.
Todos aqui são de uma família só. Todos aqui são primos. Quando o finado Henrique e a
finada Vitorina arranjaram par, vieram fazer família aqui no Venâncio. Naquela época as
terras não tinham dono, então eles levantaram as casas e plantaram os pés de coqueiro pra
dizer que o lugar tinha dono. Entrevista com Cícero Vieira, em maio de 2017.
7
Nos dias de hoje, os herdeiros obtêm lucro do carnaubal por meio de arrendamento dos lotes, uma empresa paga
um valor anual de 2 mil reais e se responsabiliza por extrair, triturar e distribuir a matéria prima para produção da
cera de carnaúba.
45
1). Fato que é rememorado com bastante orgulho e distinção pelos atuais descendentes, o
estabelecimento do grande fundador Victorino, se faz presente quando são exibidos os
documentos manuscritos de compra daquela terra, datados de 1879, 1881 e 1897.
As árvores frutíferas, e aqui me refiro ao caso trazido por Micaelo e por mim,
adquirem uma conotação concreta, é alimento, sombra, território de recursos naturais, elas
marcam o local de origem, o lugar para onde se deve voltar é uma referência. Mas seu
pragmatismo expande-se ao simbólico, as árvores frutíferas são o local de origem das famílias,
para as gerações vindouras atuará como uma árvore da memória. Não somente referência
geográfica, a árvore atua como referencial espaço-temporal, o começo daquele mundo e
daquelas terras, que, como traz Micaelo, “árvore de fruto vai tornando a terra em terra com
dono” (2014:174).
conhecimentos dos mais velhos lhes conferem admiração e respeito. Para os mais velhos,
bênçãos são pedidas, informações de como plantar ou cortar carnaubal são solicitadas e, como
informa a imagem a seguir, o saber “tradicional” é um letramento imprescindível para habitar o
vilarejo.
Cabe aqui destacar que os habitantes pontuam algumas distinções entre os dois
tempos, dos antigos e dos novos, não só no que diz respeito às atividades econômicas e de
trabalho desempenhadas em cada época, mas principalmente na percepção de como o tempo é
vivido. O tempo dos antigos era um tempo de dificuldades, muito trabalho com os carnaubais e
na terra para produzir o que comer. Uma época de pouco dinheiro e muitos filhos. No tempo
dos antigos, vemos o tripé do campesinato família-terra-trabalho como elementos
mobilizadores fundamentais desse espaço-tempo.
O tempo dos novos, ou dos herdeiros novos - mesmo tempo de Otacílio, de Marli e
de outros da mesma geração - são tempos marcados pelo decréscimo da quantidade de filhos, o
trabalho na terra ainda permanece imperativo, mas a este se adiciona o trabalho na bodega e o
também o trabalho junto a pessoas “políticas”. Aqui, prevalece a conjugação de família-terra-
política.
Isso não significa, no entanto, que no tempo dos herdeiros antigos as pessoas não
atuavam “politicamente”, assim como não se pode dizer que no tempo dos herdeiros novos
ninguém trabalhe arduamente junto à terra.
48
Aqui se poderia estender essa discussão sobre jogos de linguagem, contexto cultural
ou nexos interpretativos através do tempo e dentre as mais diversas teorias linguísticas e
antropológicas, mas meu intuito aqui é, tão somente, criar um nexo interpretativo (e
justificativo) para a recorrente utilização que venho fazendo sobre o sangue em minha pesquisa.
Dessa forma, sangue não surge sozinho, frequentemente acompanha-se de algo que
anexe virtudes às pessoas, como por exemplo, ter consideração por alguém. Mas para ter
consideração por alguém é necessário vínculo, troca, contato, pois consideração é uma relação
mútua e, por analogia, sangue passa a atuar no mesmo contexto semântico de consideração.
Assim, quem tem sangue bom, se tem por consideração, e quem se tem em consideração,
certamente tem sangue bom. É dessa maneira que entendo o seguinte trecho – diga-se que
recorrentemente utilizado em meus trabalhos – de uma conversa que tive com Marli, na qual
ela afirma:
Aqui todo mundo casa com quem quiser. Na minha família, não mando meu filho se casar com
uma menina daqui, não. Ele casa com quem quer. Mas quando a gente se casa com quem já é
conhecido não tem perigo de nascer ladrão, nem assassino, né? O sangue é bom, Deus sabe
que é sangue bom, por isso não nasce nenhum aleijado, nem gente ruim. O bom de ser tudo
familiar é que a gente sabe de onde vem, aí já confia mais. Entrevista em fevereiro de 2011.
No entanto, este trecho suscita que a narrativa de D. Marli, e corroborada por muitos
de seus familiares, possui duas formulações alocadas em tempos distintos. Vejamos que do
momento em que há liberdade de escolha de casamento, que é o momento dos namoricos,
paqueras, quando os jovens e as jovens convivem frequentemente a mesma rotina de calçadas,
vizinhanças, almoços familiares, reuniões, etc., até o ato do casamento em si, ou seja, o
momento de levantar casa, há um hiato entre o momento dos namoricos e o levantar casa.
Entre estes dois momentos há um espaço de tempo que coopera para a real efetivação daquilo
falado por D. Marli.
A variação discursiva entre essas duas narrativas não carrega contradição, tais
discursos coexistem dentro do mesmo mundo de ideias, no entanto, elas aparecem em
momentos distintos. O momento em que se tem liberdade de casamento é aquele em que o
jovem (de maioria do sexo masculino) está decidindo se vai ou não trabalhar na cidade grande:
é um jovem adulto procurando meios de “ganhar a vida”, nesse momento ele pode até estar
comprometido com alguém, mas ganhar dinheiro é imperativo neste momento. Então, é
necessário que ele tenha liberdade para casar e para viver onde quiser.
O que dificilmente encontrei nestes relatos sobre “o porquê dos casamentos entre
primos” foi uma explicação que não recaísse na ideia de uma geração moral de pessoas. Os
casamentos, em suas narrativas, davam continuidade ao modo particular do vilarejo de perceber
o mundo. No entanto, foi no entendimento realizado por uma pessoa não aparentada por via
sanguínea, que encontrei uma resposta que justificasse os casamentos entre primos. do vilarejo
daquele narrado pelos familiares sobre a justificativa desses tipos de casamentos.
Rita, é uma jovem mãe solteira, moradora do vilarejo do Venâncio, uma das poucas
habitantes daquelas terras que não possui parentesco com ninguém dali. Sua trajetória de vida
até a chegada no Venâncio envolve a compra, por seu pai, de um terreno, que hoje é o local de
sua casa, por seu pai, no tempo dos antigos.
51
Rita: Porque tem os Carvalho, tem os Vitorino e tem os Belchior. São três famílias, parece que
naquela época primo casava com primo, só podia ser, você corre pra um lado é família, corre
pra outro é família, vai pra frente é família, eu acho que só poderia ser isso, tá entendendo?
Rita: Pois é, né? Aquele povo que não sai do lugar, casa com a mesma família, ou então
alguém que não casa, porque aí vê alguém de fora e consegue morar fora. Mas realmente aqui
tá assim, primo com primo. A história de casamento primo com primo aqui se gerou assim, se
tua família era assim de mais condição e aquela outra também tinha, aí juntava para
multiplicar os bens. O motivo daqui foi isso, pra não dar pra ninguém de fora, pra ninguém
pra meter a mão. Aí ficava todo mundo em família, aí é por isso. É tanto que você chega aqui,
muitas das vezes, você vê irmão sendo padrinho de sobrinho porque exatamente não era para
tirar da família, era para ficar todo mundo em família. Entrevista em 16/02/2017.
terreno fértil quando expandimos para contextos de populações rurais de baixa densidade
demográfica, predominante católico, no interior do Ceará.
No caso de Venâncio, assim como pensado por Mayblin (2013) 8 e Carsten (2004), a
carga de significados daquilo delimitado como “substâncias” (sangue, suor, sêmen, lágrimas,
leite materno)9 tem muito a nos dizer. Como bem ilustra Carsten (2004), David Schneider foi
um dos antropólogos a destacar a importância dos estudos das substâncias como uma
ferramenta de análise processual das relações sociais. “Substância”, traz a autora,
was a kind of catch-all term that can be used to trace the bodily transformation
of food into blood, sexual fluids, sweat and saliva, and to analyse how these
passed from person to person through eating together, living in houses, having
sexual relations, and performing ritual exchanges. (CARSTEN, 2004, p. 109)
Ao fato de sua morte, percebi que tais preparações se tornaram privações. Os jovens
estavam proibidos de saírem para festas e todos ligados à família deveriam fazer luto, vestindo
8
Mayblin (2013) mostra em seu artigo, no qual discute a importância do soro intravenoso no Sertão de
Pernambuco e sua conexão com sangue de Cristo, que o sangue possui a propriedade de transmutação,
modificando-se de propriedade biológica para atributo de extrema significância social.
9
E comida, em alguns contextos.
53
cores ternas: a esposa e os filhos, por seis meses, os netos e sobrinhos, por três meses. A notícia
do falecimento desse antigo líder movimentou toda a região.10
Seu cortejo foi acompanhado do sítio Capiaçú, onde ele residia com esposa e uma
filha e uma neta, até o cemitério do Venâncio. Seguindo a tradição dos enterros do vilarejo -
digo, a tradição daqueles considerados no vilarejo - o corpo foi levado em carro particular,
sendo acompanhado por parentes e amigos que chegavam de toda parte: Bitupitá, Leitão,
Chaval, Parnaíba, Barroquinha, Serra de Ubajara e Fortaleza.
Para a missa de um mês de falecido, a igreja da família fora aberta e limpa. Havia a
preocupação se iriam caber todos os convidados nela, e caso não coubessem, deveriam realizar
a cerimônia na igreja do vilarejo recém construída. Escolheram a igreja nova, e às cinco da
tarde um amontoado de pessoas aproximavam-se da igreja, que tem capacidade para 60 pessoas
sentadas. Todos os bancos ficaram lotados, muitas outras pessoas que chegaram assistiram à
cerimônia do lado de fora da capela. Ao fim da cerimônia, os mais próximos seguiram para a
casa da viúva, onde estavam servindo um jantar.11
10
Vale ressaltar o papel preponderante, principalmente na etnologia indígena, na fabricação de corpos e da pessoa
(SEEGER, DA MATTA & VIVEIROS DE CASTRO, 1978) a partir da transferência de substâncias e, em
contextos nordestinos, com a produção da pessoa (PINA-CABRAL, SILVA, 2013).
11
O entendimento do papel dos mortos partindo desta breve explanação abre caminhos para novas explorações,
que, no momento desta dissertação não ganhará maiores aprofundamentos pois foge dos propósitos desta.
54
Da mesma forma, ter a casa aberta para a convivência dos vizinhos, as diárias trocas
de alimentos, favores, cuidados e sofrimentos faz parte do processo de fazer família. Os
momentos de lazer, tais como os passeios às lagoas da redondeza, ou as cerimônias de enterro
de parentes no cemitério da família (que se situa mais como uma casa, uma casa que agrega
todos os parentes mortos, em razão de estar localizada dentro do vilarejo), cujas fronteiras são
os quintais das casas, todos esses momentos, todas essas relações são de constante atualização
do parentesco. E assim como a consideração (PINA-CABRAL, 2013), são relações que têm
por estrutura a atualização constante desses laços.
No artigo “What kinship is all about”, Schneider usa o termo parentesco entre aspas
com intuito de afirmar que o que vinha sendo definido por Morgan e seus sucessores, incluindo
Levi-Strauss e Leach, era uma concepção erigida em bases imprecisas. O que os apontamentos
de Morgan, em “Systems of consanguinity and affinity of the human family”, informam,
segundo Schneider, é que o modo de classificação do parentesco deriva a partir do
conhecimento de como as pessoas são geneticamente ou biologicamente relacionada umas às
outras e que o casamento, por sua vez, consiste na relação sexual entre home e mulher, um
processo de reprodução biológica que faz o casal parentes de sua prole biológica. O modo de
classificação e a interpretação do social, continua o autor em sua análise, é erigida tendo por
base as concepções de procriação biológica.
Destaco esse argumento de Schneider para ilustrar que se este autor não tivesse
feito tal desestabilização, dificilmente a proposta que aqui sinalizo, de tratar o alargamento das
relações de sangue, seria executada.
O que me faz entender é que a biologia, o que tem de biológico numa relação deve
ser interpretado a partir dos símbolos levantados por uma certa cultura e não o oposto, ser uma
cultura definida a partir de um prisma biológico.
55
Se pergunta o autor: Porque existem tantas variações de nome para um único signo?
Existe alguma regra para isso? Para entender tais questionamentos, resgata o autor, devemos
voltar para o primeiro princípio do sistema de parentesco americano, em que o “sangue” é uma
substância e que isto é suficientemente distinto do tipo de relacionamento estabelecido por
códigos de conduta. É na distinção das relações “de sangue” e aquelas “in-law” que atua como
quadro diferenciador dos entendimentos do parentesco americano.
Consideração, sangue bom e filhos de criação são categorias que podem ser
entendidas tomando por base as considerações explicativas de parentes “in-law”. O sangue em
si não muda, fatos biogenéticos são imutáveis, no entanto esses laços podem ser adensados ou
dissolvidos. Percebe-se que neste caso, não estou tomando o sangue fato biológico imutável
como base do entendimento do parentesco, estou na verdade o colocando em suspenso,
entendido por um prisma cultural.
Se o sangue pode ou não ser mais denso que água ele poderá ser entendi dentro de
categorias culturais. Essa se mostra como uma das revelações mais contundentes de Schneider,
em “What kinship is all about”. Por mais que se refira a sangue como dado biológico, e o
biológico mesmo dentro de uma acepção de cultura é visto como algo imutável, ele pode ser
percebido em diferentes nuances, sangue é uma categoria negociável. É o caso de D. Marli ao
referir-se a D. Otacília.
No causo que abre este capitulo, quando pergunto de que maneira se dava a relação
entre as duas, D. Marli responde: somos da mesma família, só que não muito próximas. A
relação de Marli com Rita, outra moradora do vilarejo, mas que não possui nenhum laço
consanguíneo com nenhuma das famílias que lá habitam, por outro lado, mostra que as
afinidades entre estas duas são compartilhadas e aprofundadas mediante uma gama de
interesses em comum. Rita e Marli não compartilham o mesmo sangue, no entanto, Rita é
muito mais considerada do que Otacília.
56
But this is true for the spouse of an aunt or uncle regardless of whether they
are divorced or not, and regardless of whether the aunt or uncle. Dead or not;
they are relatives, if they are relatives, only because theirs a relationship of
kinship, that is, only because they invoke that code or conduct which is one of
kinship. It is not because there is substantive basis which entails a relationship
of kinship. Precisely because there is no substantive basis for it, theirs is a
voluntary and optional relationship of kinship, one which depends on mutual
consent.voluntarily undertaken, it can be voluntarily broken. These are
relatives because they choose to follow that code for conduct rather than some
their code, not because they are bound to follow it. (SCHNEIDER, 1980, p. 95)
O sangue surge, assim, como uma chave explicativa que permite a interpretação da
mobilidade de valores morais sobre a concretude das relações de parentesco. Com a
transferência de sangue, passam-se direitos, deveres, atribuições, autoridade, lealdade. Dessa
forma, sangue bom, em minha percepção, atua na classificação e qualificação das pessoas. “Ser
da família” é um código inclusivo: embora as pessoas do vilarejo sejam todas da família, nem
todas são consideradas da mesma maneira, variando essa consideração de acordo com a
geração a qual ela pertence - geração dos mais velhos ou geração dos mais novos - bem como
das formas de se relacionar e constituir laços com outros sujeitos que compõem o tecido social
desta localidade.
vilarejo do Venâncio, família e política surgem em muitos momentos como noções semelhantes
e que, ao mesmo tempo, atuam, ou podem atuar, como meio explicativo de outros fenômenos
vinculados. Ao tempo que família, nesta região, passa a ser entendida como algo hereditário,
tradicional, que está no sangue, sendo algo vinculado à terra e que corresponde a certas
exigências morais, o termo política surge com qualitativos próximos, senão iguais a estes.
Nesse dia que narro, a casa recebe um trato especial; é varrida a todo instante,
coloca-se uma mesa e algumas cadeiras na varanda, arrumam-se os jarros para ficarem mais
aparentes e para ajustarem-se numa imagem mais bonita. Lá, ligam a internet, que no caso é
ligar o aparelho roteador na tomada, emitindo sinal para aqueles que possuem a senha wi-fi da
casa, uma situação que nos dias comuns não acontece, uma vez que o roteador passa o dia
desligado.
Seguindo as preparações desse dia, o quarto da frente (quarto que me alojo e que,
na realidade, é o quarto de Mauro, filho mais novo do casal) recebe uma mesa de plástico e
outras algumas arrumações especiais, tornando-se o consultório da médica que está por vir. A
chegada da médica é ansiosamente aguardada pelas pessoas que já se concentram na varanda,
em torno de dez.Muitas delas entram na casa e perguntam se haverá, de fato, consulta naquele
dia. Dona Marli responde, então, de forma segura: “hoje quem vem é a médica mesmo, não é
enfermeira, não.”
59
Em meio a esse fluxo, Seu Otacílio, esposo de Marli, comunica que irá em
Barroquinha falar com o Prefeito Ademar. Horas depois, Marli me afirma que tal visita era para
ver se ele consegue alguma coisa para ela, que seria um emprego para ela e para algumas
amigas.
Das pessoas que observei, reconheci todas, pois, se não sabia de nome, pelo menos
as feições não me eram estranhas. Posso afirmar que ali estavam presentes somente pessoas
moradoras do vilarejo. Apesar dessa observação, não posso afirmar que estavam naquele dia na
casa de Marli unicamente pessoas do grupo político da anfitriã. No entanto, daquelas que lá
compareceram, todas tinham uma relação de proximidade com o núcleo familiar anfitrião.
Finalmente a médica Ana chega. É uma mulher loira, de média estatura, branca,
fala um “portunhol” bom, as pessoas conseguem entendê-la e ela também as compreende. É
uma mulher que fala alto, ou pelo menos sua voz se destaca, e parece bem relacionada com as
pessoas que estavam na casa da Marli. Entra fazendo piadas, “fazendo graça”. Desde a hora de
sua chegada até o atendimento, passou quase uma hora. A médica abanca-se na sala, e muitos
reclamam aos sussurros: “deixa a conversa pra depois, fofoquem depois da consulta.”
distribuir medicamentos para o coração, diabetes e dor de cabeça. Ao fim desse dia de consultas,
D. Marli guarda algumas guias de exames que foram passados para os pacientes. Ela mesma irá
providenciar o agendamento de tais consultas e conseguir transporte para aqueles que precisem
de exames além do município. O telefone neste dia não para de tocar e a movimentação
permanece intensa até horas depois do término das consultas.
Marli disponibiliza sua casa, liga a internet, permite que os vizinhos vejam sua casa
sempre impecável. A médica, embora receba reclamações em razão de sua demora, é aguardada.
Ali, Ana é uma autoridade, não só porque foi uma enviada da prefeitura, mas porque detém um
tipo de conhecimento apresentado por poucos, o poder simbólico de um médico, naquele local,
é comparado à autoridade de um prefeito. Os “de dentro doadores serviços”, agentes de saúde,
61
técnicos de enfermagem e motorista, são uma segunda segmentação do poder municipal dentro
da casa de Marli. Eles foram incumbidos, da mesma maneira que Ana fora, de atribuições
específicas: distribuir medicamentos, passar guias de exames, transportar a médica. São, como
Marli, representantes locais da prefeitura.
O relato do dia da visita médica ao Venâncio destaca, como diria Max Gluckman
(1987), as estruturas de poder sobressalentes naquela circunstância e sobre aquela localidade. A
transformação do ambiente doméstico - da sala e do quarto do filho de Mali, em um consultório
médico - a intimidade entre Marli e a médica e a movimentação de pessoas que, cotidianamente,
já frequentam aquele ambiente, informam o quão personalistas são as relações do poder público
com alguns dos sujeitos do vilarejo.
1
Como definido no capítulo 1, a ideia de consideração aplica-se ao alargamento das limitações impostas pelas
relações de consanguinidade e afinidade. Pessoas consideradas são sujeitos que não necessariamente
compartilham o mesmo código do que lá consideram como biológico, mas que, compartilham códigos morais e de
conduta fortes o suficiente para estabelecer uma relação de “familiarização”. Da mesma maneira, as intrigas, são
contendas entre familiares, desenvolvidas dentro do contexto de “familiarização” e “desfamiliarização”.
62
Eliedna: depois que passa a política, assim, acalma tudo, convive, mas fica. Não pise no meu
pé não, tá entendendo? Até hoje, os nervos estão a flor da pele. Se eu sair daqui pra ir no posto,
quando eu chego lá e não encontro remédio, aí tudo o que eu queria dizer, eu vou jogar lá:
“deveria cair uma bomba nesta peste de lugar, acaba logo que isso aqui não presta, prefeito
miserável”. O que eu tenho vontade de dizer, na hora que me magoa, se eu tiver a chance, eu
vou rebolar.2 Isso tem muito aqui, e vai passar os quatro anos assim, do mesmo jeito, vai
passar. Aqui não acaba política não, não acaba confusão de política, não acaba disputa de
política. É como a Edneia tava dizendo. A geração que não votou agora, que já vai se arrumar
na próxima, essa geração já brigou agora. Culumim3 com culumim, quer dizer, então tem
muito isso, o nosso lugar é política. Se eu tenho um terreno na beira da praia, eu não posso
levantar uma casa porque eu sou Fundo Mole. Se eu tenho um terreno aqui pra levantar, uma
pesqueira, mas não levanto. Eu mesma tenho um terreno, mas não levanto uma casa porque eu
sou Fundo Mole, porque na hora que eu botar pra levantar, lá é uma pesqueira, mas na hora
que eu derrubar a pesqueira, fazer uma casa, eu não posso, porque o Ademar tá no poder e o
povo de Ademar vem derrubar a minha obra. Isso existe dentro do lugar, então essa revolta
não vai acabar nunca. Entrevista em fevereiro de 2017.
2
Vale destacar que o verbo rebolar, no contexto cearense, para além de uma movimentação corporal ou dança,
significa projetar algo para longe. Fala-se muito, por exemplo, “vou rebolar o lixo fora”. Aqui, Eliedna quis dizer
que vai proferir, vai rebolar críticas aos adeptos ao grupo oponente ao seu.
3
Culumim é sinônimo de curumim, ou seja, criança.
63
Mas aqui proponho que os entrelaçamentos entre política e família sejam percebidos
em um mundo sem solidez, tomando de empréstimo a formulação de Villela (2009). Como o
mesmo traz: “a família é objeto de fabricação, de solidificações impermanentes, do mesmo
modo como o é a política. Mais do que isso, que a política é um dos elementos através do qual
se faz, desfaz-se e se mantém família” (2009, p. 209).
O que será tratado neste capítulo, a revés do ditado resgatado por Schneider é que,
neste caso em pesquisa, a “política, tanto adensa quanto afina o sangue” (2017, p. 38).
O entrosamento percebido entre tais esferas, como será mostrado, intenta elucidar
que tais estratégias políticas, longe de representar falta de conhecimento, são na verdade,
maneiras articuladas daquilo que eles têm melhor domínio.
A disputa política foi o seguinte, isso eu sei contar bem direitim: o Alfredo Coelho era
compadre do Murilo Aguiar, (...) eles eram muito amigos, todos dois comerciantes do alto
comércio aqui de Camocim, Alfredo Othon Coelho e Murilo Rocha Aguiar, já veio do Vicente
Aguiar que começou o comércio. (...) aí veio a política, o Alfredo Coelho era da UDN e o
Murilo do PSD, aí eu sei que o Murilo ficou arrepiado com o compadre que era o Alfredo
Coelho, aí o Alfredo lançou a candidatura de João Colares Filho pra prefeito de Camocim. (...)
Pois bom, aí o resultado foi que eu estava lá no comício quando o Sr. Murilo foi falar, aí eles
não deixaram o Murilo Aguiar falar, eles tomaram o microfone; aí quando botaram pro João
Colares Filho, o Pascoal puxou pelo canivete e cortou o fio do microfone, foi uma confusão
danada e o povo estava era aí, com a língua horrível, né? Aí o resultado, o Murilo Aguiar
disse: “quem for do meu lado me acompanhe até a praça”, hoje a Praça da Estação; aí
menino, ficou pouca gente lá no palanque do Alfredo Coelho, pouca gente; a multidãozona
acompanhou o Murilo Aguiar. Começou a partida política dele desde esse tempo. Aí o Murilo
Aguiar disse: “vou lançar um candidato, o Vaqueiro da Esperança, Setembrino Veras”. Ele
estava lá nas Amarelas, no terreno dele lá, ele vivia mais no interior. (...) O Murilo Aguiar
lançou a candidatura dele, quando foi no outro dia o Setembrino entrou aqui no carro, foi
foguete, às sete horas da noite. Vaqueiro da Esperança, botaram o apelido dele, aí o
4
Camocim é uma cidade do estado do Ceará. Localiza-se na microrregião do Litoral de Camocim e Acaraú,
mesorregião do Noroeste Camocinense. O município tem quase 60 mil habitantes e 1158 km² e distancia-se a 357
km de Fortaleza.
66
A briga política dos líderes partidários provocou uma divisão no cenário político de Camocim.
A atitude e a frase emblemática do Sr. Murilo Aguiar, “quem for do meu lado me acompanhe
até a praça” sinalizava muito mais que um rompimento político, era o nascimento de duas
facções que durante logos disputariam o poder local e, em alguns momentos, se alternariam na
gestão da cidade. De um lado estava o grupo político alcunhado de “Cara Preta”, sob a
liderança de Murilo Aguiar, do outro, “Fundo Mole”, liderado por Alfredo Coelho.5
6
Murilo Aguiar foi o fundador da fação política Cara Preta em Camocim, tendo sido deputado estadual e prefeito
desta cidade.
67
seus aliados Caras Pretas, que, para conseguir ser eleito em Camocim, promoveu, em ação
conjunta com Pedro Veras, a emancipação de Barroquinha. Com Barroquinha emancipada, os
votos do distrito, de maioria eleitoral Fundo Mole, seriam desfalcados de Camocim, fazendo
com que o grupo Fundo Mole perdesse nessa cidade. Esta jogada engendrada pelos Caras
Pretas favoreceu sua situação em Camocim, mas não em Barroquinha. Nas mesmas eleições,
no agora município, lançaram a candidatura de Pedro contra Veraldina. Como a grande maioria
dos habitantes de Barroquinha à época eram partidários Fundos Moles, Veraldina ganhou o
primeiro pleito do município.
Do primeiro pleito até os dias de hoje, Barroquinha teve oito disputas políticas:
quatro eleições vencidas por Veraldina e Jaime Veras (mãe e filho) 7 e quatro outras
conquistadas por Pedro e Ademar Veras (pai e filho) e seus partidários. A disputa nos últimos
anos vem sendo travada entre os primos Ademar e Jaime, que não se intitulam mais como Cara
Preta e Fundo Mole, dizem que estas denominações são coisas dos antigos. Nas últimas
eleições ambos os candidatos utilizaram como marca os números e as cores de suas legendas,
7
Pleito de 1988: Veraldina x Pedro Veras, Veraldina vence; 1992: Fco Franciné (Cara Preta, grupo de Ademar) x
José Maria Veras” (Fundo Mole, grupo Jaime), Fco Franciné vence; 1996: Jaime Veras x Pedro Veras, Jaime vence;
2000: Jaime Veras x João Sotero, Jaime vence; 2004: Aline Veras (sobrinha de Jaime) x Ademar Veras, Aline
vence; 2008: Ademar Veras x Jaime Veras, Ademar vence; 2012 : Tetê (grupo Ademar) x Veraldina, Tetê vence;
2016: Ademar Veras x Jaime Veras, Ademar vence.
68
família 14, da onda vermelha, para Ademar (Cara Preta) e família 12 e onda azul para Jaime
(Fundo Mole). Como bem explicaram Jaime e Ademar, as denominações Cara Preta e Fundo
Mole são tradições que foram transferidas junto com a política de Camocim.
A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados
por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de
fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. O
indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado
diante dele ou com ele pelos outros. [...] É precisamente nessa noção de
prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao
indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social(2003, p. 405. Grifos
meus)
Aqui ainda é muito sangue de política mesmo, né? Acho que vai passar muitos anos. Por que
vai passando de geração a geração. Até esse meu [apontando para o filho] desse tamanho,
está fazendo uma confusão enorme, passava com outro e brigava. Até na sala de aula ele
brigava: - ei fulano, agora tu vai ser é 12. [o coleguinha respondia]: - eu não vou ser 12,
porque minha mãe e meu pai são 14. É de família, leva muito, eu transpareço para ele que eu
sou Fundo Mole, eu sou deste partido, sou 12, então ele vai acabar crescendo e gostando como
a minha mãe fez comigo. Minha mãe até hoje é apaixonada, [...], meus irmãos são Fundo Mole
e um Cara Preta, são coisas que vão vendo, vão crescendo, ai vai levando, vai crescendo, e a
política aqui é muito quente. Entrevista com Ednéia em fevereiro de 2017.
8
Cascas e Bacurais são denominações forjadas pelos próprios eleitores de Barroquinha, segundo Jaime.
9
Os partidos políticos atuantes em Barroquinha são PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), família 14 e PDT
(Partido Democrático Trabalhista), família 12. O PDT aqui ganha destaque por ser o partido político que lançará a
candidatura de Ciro Gomes à presidência da república nas eleições de 2018. Como se sabe, a oligarquia dos
Ferreira Gomes tem por base de atuação a região norte do estado do Ceará, possuindo por base a cidade de Sobral,
distanciada 180 km de Barroquinha.
70
é acrescentado à essa nova marca. Falam que as pessoas do partido de Ademar, família 14, são
pessoas de nariz empinado, arrogantes, enquanto que os adeptos à família 12, de Jaime, são
identificados como pessoas mansas e humildes. Certamente estas características possuem
nuances e podem ser relativizadas a depender de quem as profira. Mas o que essas noções
permitem é identificar o tratamento desses signos como indexicais, utilizando a linha de
pensamento de Borges (2000), em que se apresentam qualidades consoantes ao contexto nele
aplicado.
A ideia sugestionada por Borges permite que haja a elaboração constante dos significados de
ícones. A estes são atribuídas referências que representam a agregação de valores diversos, os
valores esses que acompanham a mobilidade inerente do contexto em que os ícones se inserem.
As fronteiras fluidas estabelecidas entre os dois pontos polarizados da política permitem
entender incongruências desse próprio sistema, como a movimentação de algumas pessoas
entre partidos.
Os tipos de pessoas inscritas para a conversa com o prefeito eram dos mais variados.
Trabalhadores rurais, professores, profissionais liberais, e eu, pesquisadora, esperávamos na
antessala para sermos atendidos pessoalmente e individualmente pelo prefeito Ademar. Chega a
minha vez e, com alguma cerimônia, Ademar aperta minha a minha mão apresentando-se, e,
logo no cumprimento, pergunta-me qual o propósito de minha visita. Explico sobre o meu
interesse em estudar as famílias do Venâncio, que já faço pesquisa há oito anos em Barroquinha,
e que, como as eleições ainda estavam latentes, vi que seria interessante conversar sobre a
última disputa eleitoral.
Em dado momento, peço autorização para gravar a nossa entrevista. Ele confirma,
adicionando: “Bom dia Lorena, gravação autorizada para que você possa utilizar para
fundamentar o seu trabalho.” O ambiente no qual estávamos, o gabinete do prefeito, se
mostrava, para mim, um tanto intimidador. As pessoas entravam e saiam da sala pedindo para
que ele assinasse papéis ou informando sobre os que lhe estava na antessala. Ademar, que faz
questão de destacar que sua alcunha é Professor Ademar, performatizava uma postura oficial.
De mãos fechadas, uma entrelaçada à outra, parecia que pensava e escolhia bem as palavras
antes de proferi-las.
Ademar explica que sua trajetória na política surgiu por influência do pai, Pedro
Veras, que depois de ter perdido dois pleitos para sua irmã, Veraldina, desistira da disputa por
cargos eletivos. Ademar, como o mesmo fala, não querendo demonstrar um ato de covardia
para com seu pai e com seu eleitorado, e por própria indicação por parte de sua facção política
e do povo de Barroquinha, decidiu entrar oficialmente para a vida política, candidatando-se em
2004 e disputando contra sua prima, Aline Veras. Em 2008, disputa novamente contra seu
primo legítimo, Jaime Veras, e perde novamente. Foi nas eleições de 2009 que obteve sucesso
nas urnas, passando a ser chefe do executivo municipal.
72
Vale ressaltar que a noção de primos legítimos surge com bastante frequência no
contexto de Barroquinha e implica a relação de primos de primeiro grau ou ainda “primos
diretos”. Primos dessa categoria são considerados de grande potencial para firmação de laços
matrimoniais. Identificados ainda como primos carnais ou primos filhos de irmãos, se deduz
dessa união a perpetuação do núcleo familiar (LEWIN, 1993, p. 136).
Nos anos em que não foi prefeito em Barroquinha, Professor Ademar trabalhou na
máquina pública do município de Camocim, atuando como secretário de educação. Ao buscar a
reeleição em 2012 foi impugnado pela campanha da ficha limpa. Impossibilitado de concorrer
ao cargo executivo, Ademar lança em seu lugar Terezinha Maria, a Tetê, 10 passando a ser seu
assessor político.
Lorena: Professor Ademar, como que foi todo esse período pré-eleições, as preparações, os
comícios, os eventos? Eu acompanhei um pouco pela internet, vi que tinham símbolos, a onda
azul, a onda vermelha, a população, realmente, ela estava muito envolvida…
Ademar: é um período de, digamos assim, de grande, como eu posso usar o termo? É
adrenalina pura, tanto para os candidatos, como para os aliados dos candidatos, muitos se
empolgam ao ponto de ter comportamentos bastante arriscados, não é? Nessa campanha
agora eu fui perseguido por pessoas armadas, impedido de entrar nas casas para visitar e
pedir votos, então tem essa empolgação que ela é fruto da política coronelista, em quem passa
e ganha uma política. Nós tínhamos que entender que a manipulação não podia ser esquecida,
né? Os candidatos, e quem estava aliado a eles, tinham que ter essa capacidade de manipular
a massa no sentido de convencê-lo a gostar. E essas manipulações ela se tornam perigosas em
todo sentido que a palavra permite, porque ela não deixa a ... digamos assim, a consciência
política do eleitor se manifestar, então ele é induzido pelas grandes multidões, pelos comícios,
pelos megacomícios, pelas caminhadas, então eles ficam medindo quantidade de pessoas que
10
A prefeita Tetê já fora citada no capítulo 1, na ocasião do causo com D. Otacília.
73
participam, o comportamento do candidato no palco, quem agride, quem não agride, mas é
uma campanha complexa, é uma campanha com medição de força do primeiro momento que a
campanha é lançada até o desfecho final. Entrevista em fevereiro de 2017.
[...] quando viram a realidade, não era o que a gente pensava. Em Fortaleza eram unidos.
Diziam que iam permanecer unidos. Mas quando chegou em Barroquinha a realidade era
outra. [...] então daí apartou tudo. A inimizade foi grande, famílias se separaram meu irmão se
separou da esposa lá, eu tive um filho com a filha dele, também separamos, então essa questão
familiar no interior ela é muito acesa, assim, hoje a gente diz assim, as amizades, família pra
gente são os amigos, porque as famílias se dividem muito. Entrevista com Jaime, em fevereiro
de 2017.
74
Jaime identifica que o motivo para a escolha de Pedro Veras pela emancipação
surgiu das influências que este sofreu por parte de pessoas influentes da política de Camocim.
Haviam acordado entre os membros da própria família que a política de Barroquinha não iria
abalar os laços familiares. Mas seu tio vinculou-se à parte que pedia a emancipação. Então, sua
mãe, seguindo indicação deu um primo, tomou a decisão e candidatou-se. Jaime caracteriza a
primeira eleição de Barroquinha como uma luta grande. Veraldina venceu o pleito por apenas
46 votos de diferença, como o mesmo conta. Caracterizou-se como uma campanha puxadas
pelos amigos e pelo povo, pois nem um carro naquela época tinha eles tinham para andar, relata
Jaime. Essa primeira eleição é designada como o estopim para a disputa dentro da família e que
trouxe muita coisa de Camocim: as facções, as indicações políticas e as intrigas.
EXTREMOS
Aline Veras (PSDB), 21, de tradicional família política, foi eleita em Barroquinha,
que tem o pior IDH do Ceará
SÉRGIO RANGEL
ENVIADO ESPECIAL A BARROQUINHA (CE)
Juventude nem sempre é sinônimo de renovação. Aline Veras que o diga. Com 21
anos, completados no último dia 16, ela tomará posse em janeiro como a prefeita mais
jovem do país.
Além de fazer história pela pouca idade, Aline ganhou nas urnas com a promessa de
manter a política da sua tradicional família em Barroquinha (411 km de Fortaleza). A
cidade ostenta o título de ter o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do
Ceará.
"Estou aqui para dar continuidade ao trabalho da minha família. Com certeza, as
nossas administrações estão sendo bem planejadas", disse a prefeitinha, como é
chamada pelos eleitores.
Apesar do orgulho de Aline pelos familiares, que só deixaram o poder por quatro anos
desde a fundação da cidade em 1988, o saldo político dos Veras é pífio.
75
Criada na capital, Aline teve influências que a diferenciaram dos modos de fazer
política, desviando-a dos caminhos trilhados por seus antecessores parentes. Aline tirou os
cargos comissionados e abriu editais para concursos, tirou “todos”12 os Veras da prefeitura e se
negava a entrar no esquema político de dar as coisas. Tal postura é claramente oposta a de sua
avó, Veraldina, lembrada por executar uma política assistencialista e por não negar ajuda a
11
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2810200451.htm>, acesso em 20 fev. 2018.
12
Este “todos” está entre aspas porque acredito que essa referência tenha sido uma força de expressão de Jaime.
Se Aline tivesse mesmo tirado todos os Veras de seu governo, nem seu primo Jaime estaria trabalhando com ela.
76
quem pedisse. Como afirmou uma eleitora do grupo de Jaime:“Veraldina nunca foi de negar
um botijão de gás para um pai trabalhador.”
Jaime identifica a gestão de Aline como uma gestão perfeita, com todas as contas
quitadas. Entretanto, ela não conseguiu fugir daquilo demandado pela política dos pequenos
municípios, o que Jaime indica com um tipo de política necessária a ser feita.
Seguindo a política iniciada por Aline, Jaime propôs continuar com o mesmo foco
em 1997, questionando-se publicamente sobre a questão do nepotismo no município. Ambos
foram criticados por essa abertura, através da qual montaram equipes técnicas e incentivaram a
abertura de editais para concursos públicos. As contundentes afirmações de Jaime fazem crer
que as facções de Barroquinha e seus representantes partilham de distintas “ideologias” e
rumos de execução daquilo considerado uma boa administração política.
Uma ideia bastante similar é a que traz Comerford (2003) ao tratar dos sindicatos na
Zona da Mata mineira. Ao discorrer sobre os modos de como a participação nos sindicatos
rurais, em muitos momentos, assemelha-se às características do domínio familiar, o autor
mostra que assumir os valores empregados no sindicato, como alguém assume sua família, é
responder através da família o compromisso com a entidade (COMERFORD, 2003,p. 14-15).
confiança entre afiliados, por um lado, mas ao mesmo tempo permite-se que sua família esteja
sob o escrutínio e avaliação constante. Esta assimilação é, nas palavras de Comerford:
Pode-se entender aqui as tensões entre os dois polos da família Veras de maneira
similar àquela esclarecida por Ana Cláudia Marques (2006) ao falar das “intrigas” entre
famílias no sertão de Pernambuco. Aqui, a noção de “intriga” aponta para “um modo de relação
alimentado pelo conflito que, afinal, não é uma interrupção na relação, mas um certo modo de
estabelecê-la ou restabelecê-la” (2006, p. 357). As “intrigas” que permeiam as relações das
famílias de Barroquinha, longe de configurarem interações excludentes, são percebidas em
meio a superposição de laços – de sangue, políticos e institucionais – que fazem e refazem a
convivência cotidiana no município.
Se é bom ou se é ruim? Eu acho bom, eu gosto da disputa também, eu digo que não vou
participar mais (risos), não vou mais, mas corre na veia. É como o Jaime diz, corre na veia,
você hoje não tá querendo fazer parte, você diz que vai dar seu voto e acabou, mas daqui uns
dias vai tá correndo na veia, igual família, e realmente acontece, né? Acontece na veia da
gente, que a gente não quer, diz que não vai participar de caminhada, não vai tá se envolvendo,
não vai tá discutindo, mas acaba mexendo, a gente briga. E é assim, principalmente aqui é
muito quente, é família mesmo, Fundo Mole e Cara Preta, é assim como dado de família, de
sangue, já vem de família há muito tempo, não tem como. Às vezes a minha amiga do trabalho
diz assim, a gente, que em tempo da política, a gente bate muito boca, mas assim, na amizade,
né? E ela disse que eu, um dia, eu vou ainda participar ainda desse grupo [Cara Preta], eu
digo: - vou não, não vou, se eu não votar em fundo mole, em cara preta eu não voto, jamais.
Entrevista com Edneia, fevereiro de 2017.
A eleição municipal de 2016 foi caracterizada por muitos como uma disputa
acirrada, quente. As formulações de Edneia e Eliedna, moradoras da praia de Bitupitá e donas
79
dos relatos que abrem a seção, dão um bom quadro de como as campanhas eleitorais ocorreram.
Foi uma campanha em que se gastou bastante dinheiro, quantia suficiente para virar as eleições
de um dia para o outro. Segundo indicativos da pesquisa eleitoral feita à época, Jaime (família
12) tinha a maioria dos votos. Mas, segundo consta nos relatos coletados, nas vésperas do
domingo de votação, representantes da família 14 executaram estratégias14 que envolveram a
compra de votos do grupo oponente.
Depois que passa a política, assim, acalma tudo, convive, mas fica. Mas não pise no meu pé
não, tá entendendo? Até hoje, os nervos estão à flor da pele. Se eu sair daqui pra ir no posto,
quando eu chego lá e não encontro remédio, aí tudo o que eu queria dizer, eu vou jogar lá:
“deveria cair uma bomba nesta peste de lugar, acaba logo que isso aqui não presta, prefeito
miserável”. O que eu tenho vontade de dizer, na hora que me magoa, se eu tiver a chance, eu
vou rebolar. Isso tem muito aqui, e vai passar os quatro anos assim, do mesmo jeito, vai passar.
Aqui não acaba política não, não acaba confusão de política, não acaba disputa de política.
Entrevista em fevereiro de 2017.
14
Foi-me relatado que os cabos eleitorais da família 14 saíram de casa em casa confiscando documentos com
fotos daqueles que haviam garantido voto para a família 12, oferecendo em troca 5 mil reais. Sem os documentos
com fotos, essas pessoas não poderiam comparecer à sua sessão eleitoral. Ao término da votação, aqueles que
haviam “cedido” os documentos os receberam de volta.
80
Cabe ilustrar como essa fluidez das fronteiras entre política e família acontece
concretamente. Para isso, trago dois exemplos, um de desfamiliarização e outro de
familiarização, ou melhor, um caso em que política desfez família e outro que família fez
política. O primeiro será intitulado de “A desfamiliarização de D. Otacília”, enquanto que o
segundo será nominado de “A familiarização de Rita”.
me faz entender que são as reatualizações dos status intrigados que garantem que a tradição
perdure.
Ainda, afirmar que família faz e desfaz política é uma constatação frequente de ser
observada. A família de D. Adelaide e Quelé mostra isso nitidamente. Há anos o vilarejo é
representado e tem seus assuntos burocráticos legados aos cuidados desse núcleo familiar, por
ser esta dada como uma família de confiança, tradicional. Para tal constatação, além de
fortificar os laços entre herdeiros incentivando os casamentos entre família, criando uma
ligação entre herdeiros velhos e herdeiros novos, foi necessário também lidar com assuntos da
política eleitoral e local, ser correligionário, cabo eleitoral. Afirmar a qual lado pertence. Foi
necessário fazer política.
A família de Otacílio desde cedo foi muito pobre. Seu pai casou-se com duas
mulheres, sendo uma delas, inclusive, uma mulher de fora. A mãe de Otacílio pertencia ao
vilarejo, mas a mãe de seus irmãos, não. Hoje, os irmãos de Otacílio, mesmo sendo filhos de
um segundo casamento com uma pessoa de fora, estão completamente integrados ao corpo
daqueles parentes aos quais se tem consideração. Atualmente, Otacílio é o líder comunitário,
aquele que defende as questões do vilarejo, detentor dos papéis de titularidade e uma pessoa de
grande capital político no vilarejo. Se Otacílio dependesse da linhagem de seus pais para
adquirir capital político, simbólico e econômico, possivelmente teria fracassado. Mas com o
advento de seu casamento com Marli, filha de Quelé e descendente direta de Maria Vitorina,
aquela conhecida como a dona disso tudo, Otacílio foi incluído, familiarizado por meio de suas
atribuições políticas para e com o vilarejo. Mesmo não vindo de uma descendência esperada,
como seria aquela vindo diretamente de Quelé, Otacílio atingiu status legítimo de líder local
por meio de sua aliança com Marli.
Ao passo que a relação de Marli com Otacília foi deslegitimada por contendas
advindas da política, a união de Otacílio com Marli foi garantida pela pré-disposição deste aos
assuntos políticos do vilarejo. Nesses relatos, a política foi capaz de familiarizar e
desfamiliarizar pessoas.
Das vezes que encontrei Rita na casa de D. Marli pude perceber certo nível de
intimidade entre as duas, quando Rita não estava ajudando Marli em seu quintal, esta delegava
àquela ir ao centro de Bitupitá vender o que fora colhido em seu pomar. Rita é bastante
entrosada com todas as pessoas do vilarejo. Por ser uma jovem mulher, Rita acompanha-se das
demais jovens do vilarejo, a exemplo de Gleti, cunhada de Marli. Foi em uma de nossas
83
conversas sobre os acontecimentos durante o período eleitoral, que Rita narrou o quão próxima
é do núcleo familiar de Marli.
Rita: Pode até ser todo mundo amigo, mas se neguinho ficou de um lado e outro for doutro, aí
começa. E esse ano foi um dos piores de todos, teve polícia, teve xingamento nas redes sociais,
teve intrigamento de família…
Rita: Ali a Marli com a cunhada [Gleti], que é a mulher do falecido Edmilson, teve pêa [surra,
agressão física], teve muita pêa. Mulher, eu não sei te contar [risos]. Porque assim, como eu
trabalhava diretamente com o Jaime, que era [candidato] a prefeito, e ao mesmo tempo, eu era
muito amiga dos 14 [grupo de Marli] aí eu me reservei muito, né? Eu fazia minha parte em
cima dos dias da política, quando era questão de bagunça poderia sobrar pra mim, eu não ia.
Ao mesmo tempo porque a pessoa que mora sozinha, como eu, às vezes a gente precisa de
alguém do outro lado. Mas assim questão de precisar, tipo, eu não sei nem qual é a parte que
vou precisar. A parte que vou precisar, eu acho assim, que em cima da terra você é todo mundo,
mas em questão de saúde, a gente precisa. Pelo menos o pai do meu filho tem mais ou menos
condição, aí já não preciso tanto de pedir para eles, né? Porque o que a gente precisa muito,
assim, é do carro. Porque o posto de saúde de Bitupitá só funciona até sexta de manhã. Aí
sexta à tarde, sábado e domingo o povo não adoece. E segunda de manhã também o povo não
adoece, porque para começar a segunda à tarde e parar sexta de manhã só pode o povo não
adoecer. Aí a gente valoriza o carro para deslocar até Barroquinha, porque daqui até
Barroquinha não pode ser socorrido só pode lá. [...] Aí eu fiquei assim, muito na balança de
não querer entrar no meio de chafurdo. Entrevista com Rita em fevereiro de 2017.
Embora Rita tenha participado ativamente nas eleições de 2016 como cabo eleitoral
de Jaime, família 12, ela admite que seu envolvimento com política tem limites. Ao falar do
processo eleitoral, Rita revela sua devoção por Jaime, afirma que este é uma pessoa de
princípios e que confia no seu papel enquanto político. No entanto, sua amizade com Marli fez
com que ela reservasse a disputa política somente para o momento em que atuava como
profissional. Nos momentos em que não estava fazendo campanha oficialmente para Jaime,
Rita evitava maiores desentendimentos por ter conhecimento de que sua condição de mãe
solteira e não familiar já seria o suficiente para desestabilizar sua relação com as famílias do
vilarejo. Enquanto Rita evitar conflitos de qualquer natureza, ela estará sob a custódia de
84
pessoas como Otacílio e Marli. Essa amizade lhe garante auxílio em momentos difíceis, como
em uma situação de urgência de saúde. Por Rita possuir consideração a eles, ela é, da mesma
forma, considerada por este grupo.
Estre trecho de Rita que aqui destaco sugere, ainda, outro caso analítico, mas agora
como um exemplo de que a família é produtora de política.
Jaime fala das campanhas chefiadas por Edmilson e no quanto este havia se doado
para a causa política da família 12. Mas revela que seu falecimento em 2015 trouxe comoção,
não só por este ser uma pessoa muito boa, mas igualmente porque era o seu elo com o vilarejo
do Venâncio, ressaltando que a ausência de Edmilson na disputa eleitoral foi muito sentida. Ao
perguntar de outros nomes do vilarejo que participaram ativamente da sua campanha, Jaime
lembra do nome de Gleti, esposa de Edmilson, e também cita Adelaide Neta e sua mãe Chaga,
esta filha e aquela neta de D. Adelaide. O nome de Rita, porém, não surge nessa lista.
O que se apresentou para mim como um fato curioso foi que mesmo Edmilson não
tendo participado das eleições de 2016, já que falecera em 2015, ele foi lembrado como uma
das pessoas de maior representatividade política do lugar, e não Rita. Deste relato, infiro que,
neste caso, o sangue de Edmilson o fez ser mais percebido do que Rita. Aqui, família fez
política.
Os pais dele [Quelé] era tudo de condição, quem tinha uma lavoura dessa tirava carnaúba do
Venâncio, lá da ilha, tirava todo carnaubal e vendiam pó, faziam cera, faziam muito dinheiro.
Esse carnaubal ainda é nosso, esse daqui [do Capiaçú] é dele e das irmãs dele [Quelé], o do
Venâncio um ano é do meu avô [Henrique Ferreira] e que é nosso, outro ano é da avó do
Quelé [Vitorina Rosalina], que é dele e das irmãs. Outro ano, a metade é de um e ¼ é de um
[Henrique Ferreira] e outro ¼ é de outro [Vitorina Rosalina] e são todas as famílias. O daqui
são só dos irmãos do Quelé, agora do Venâncio que é esbagaçado, no ano de Henrique
Ferreira Veras é da mamãe, é dos irmão da mamãe, e no ano que vem é da velha Vitorina que é
irmã do velho Henrique, aí é do pai do Quelé e dos outros irmãos dele, aí tem no outro ano que
metade é deste Mané [Manoel] Vitorino que me criou e ¼ é da velha Vitorina que faz parte do
Quelé também, e ¼ do velho Henrique, que uns tem parte também. Entrevista em maio de
2012.
Seguindo a proposta de construir uma análise processual das relações entre família,
política e terra no vilarejo do Venâncio, abro este capítulo com o trecho de uma conversa que
tive com D. Adelaide, em 2012, ilustrando uma situação na qual são narradas algumas histórias
de seu passado. Como de costume, minhas conversas com D. Adelaide foram, em sua maioria,
conversas longas em que falávamos de tudo. Embora eu explicasse que esta seria uma
entrevista e que iria usar o gravador - o que de imediato leva as pessoas a um estranhamento,
seguido por nervosismo ou respostas concisas - D. Adelaide dificilmente se via incomodada
com as formalidades que eu impunha. No dia desta gravação, estávamos no Capiaçú, local de
sua residência, ela me mostrando como se depenava uma galinha, que seria posta no fogo para
almoçarmos logo mais. Antes da entrevista, D. Adelaide apresentou-me o quintal do sítio onde
ainda existia a antiga casa de farinha, local de trabalho e reuniões dos herdeiros velhos, e os
carnaubais que cerceavam todo o sítio.
excertos que me permitiram ver como as categorias de família, política e terra se movimentam
dentro dessa localidade. O que venho construindo e propondo como guia metodológico, parte
da observação dos fatos em etapas, das ações e de como elas foram performatizadas em dado
contexto.
O território do Venâncio, como vem sendo discutido, são terras de herança, terras
que foram cuidadas, conservadas e transmitidas através das gerações. A disposição espacial
desse território é entendida pela segmentação da totalidade dessas terras a partir dos
sobrenomes das famílias que deram origem ao vilarejo. Aos Belchior e Carvalho correspondem
o que se denomina como sítio Capiaçú. Já aos Veras e Rodrigues correspondem as terras do
Venâncio. Podemos encontrar desencontros, a depender de quem narre, a respeito dos
sobrenomes titulares das terras aqui citadas. O jogo das trocas de sobrenomes no decorrer das 4
gerações de descendentes pode ser entendido como estratégias matrimoniais endogâmicas que
versam sobre: i) a identificação a um sobrenome como qualidade, acúmulo de virtude e ii) meio
pelo qual a gestão da terra1 é operacionalizada. O depoimento de Rita nos faz entender as
regras que movimentam essa gestão.
Rita: a história de casamento primo com primo aqui se gerou assim: se tua família era, assim,
de mais condição, aquela outra tinha aí juntava para multiplicar os bens. O motivo daqui foi
isso, pra não dar pra ninguém de fora, pra ninguém meter a mão. Aí ficava todo mundo em
família, aí é por isso. É tanto que você chega aqui muitas das vezes você vê irmão sendo
padrinho de sobrinho porque exatamente não era para tirar da família, para ficar todo mundo
em família. Entrevista em fevereiro de 2017.
1
Vale ressaltar que, quando aqui falo em terra, em minúsculo, sem aspas e sem grifos, faço alusão à totalidade do
território que os Belchior, Veras, Carvalho e Rodrigues ocupam, ou seja, somatório das casas e carnaubais do sítio
Capiaçú e Venâncio. O lugar dessas quatro famílias é denominado como as terras do Venâncio.
89
A afirmativa de Rita, ou sua “teoria nativa”, é tomada como hipótese neste capítulo
para levantar outro conjunto de questões. Pois o que esta nos informa são questões que já
possuem lugar fixo nas teorias voltadas aos estudos de populações em contextos rurais. Afinal,
se tais terras estão circulando pela mesma família, terras estas classificadas como terras de
herança, porque ou como estas não estão parceladas igualitariamente entre as famílias? Como
entender o processo da partilha de um patrimônio, se ele não é dividido de fato?
Na segunda sessão deste capítulo, trago que a herança, como fora retratado nos
capítulos anteriores, é perpassada por um conjunto de “prescrições” envolvendo os 17 cabeças
velhas e seus herdeiros e que, aos modos do que foi estabelecido no passado, as terras do
Venâncio constituem-se no substrato concreto da vida dessas pessoas.
A distribuição dos lucros dos carnaubais das famílias atua como narrativa
elucidativa dos caminhos seguidos pela herança em meio às gerações de famílias do Venâncio.
Mais, as regras de distribuição dos rendimentos nos fazem pensar que a segmentação da
herança não é um fenômeno isolado. A segmentação dos rendimentos e a sua circulação
mostram-se imbricadas às concepções nativas de fazer família e política, em que os estoques
territoriais se apresentam em conjunção aos “capitais simbólicos” dos sujeitos.
90
As terras do Venâncio e do Sítio Capiaçú podem ser descritas como terras adquiridas
por Alexandre Ferreira da Costa Veras, nas datas de 1879,1881 e 1897 e que foram repassadas
aos seus descendentes na forma de herança. Como constam nas transcrições das transmissões 2
a que tive acesso, estes são os documentos que indicam a propriedade das terras do Venâncio e
do Capiaçú, nos dias de hoje, aos seus moradores.
2
Transmissões manuscritas e transcritas, apresentadas nas imagens.
91
Das características presentes nas certidões, podemos perceber que além das datas de
compra em 1879, 1881 e 1897, tem-se como adquirente comum Alexandre Ferreira da Costa
Veras e quatro transmitentes distintos: na primeira trata-se de Joaquim Caetanos Teles, referente
a fazenda almas (antigo nome da praia de Bitupitá); na segunda tem-se por transmitente Pe.
Antônio Carneiro da Cunha, que surge como intercessor da transmissão das terras de Victurino
93
Ferreira da Costa Veras Filho e José Ferreira Veras, aquele indicado como pai de Alexandre
Ferreira, sobre a transmissão das terras do Leitão e do Venâncio; no terceiro, o transmitente é
Severiano Alves Pereira.
possuir documentos de identidade é viver à margem da sociedade, fora dos programas sociais, é
ser invisível para o governo. De uma extensa capacidade generalizadora - pode fazer referência
a um território nacional - sua atribuição recai na individualidade. Mesmo tratando de um
grande lote de terras, esse lote pertence a uma pessoa, a um indivíduo, reconhecido pelo Estado
como proprietário e responsável legal por aquele pedaço de chão.
também da terra com as pessoas, busco interpretar o percurso, ao longo das gerações das
famílias, destes títulos de propriedade. Aqui o defino em quatro momentos.
O primeiro deles pode ser definido como aquele em que, possivelmente, não havia
necessidade de definição exata dos limites dos terrenos do Capiaçú e do Venâncio; mais
exatamente, corresponde a data anterior à compra destes terrenos por Alexandre Ferreira,
momento em que, possivelmente, não havia legislação e demarcação por parte do Estado. O
segundo momento é entendido quando da primeira transmissão de terrenos em 1879 e
igualmente compreende as seguintes datas de compra dos outros terrenos, em 1881 e 1897.
Esse foi o momento em que se iniciou o processo de “territorialização”, como definido por
Godoi, quando a demarcação do chão de morada das famílias conformou-se por meio do
entrosamento destas com o meio ambiente, procurando um lugar com recursos naturais. O
terceiro momento versa sobre a transcrição das transferências em 1940 no cartório de Camocim.
Como mostra a certidão em manuscrito, percebe-se a necessidade de transcrição deste
documento em cartório como forma de reafirmar a sua legitimidade perante o Estado. Caso isso
não fosse realizado, suponho, com o tempo aquele documento iria tornar-se obsoleto. Por fim,
destaco o quarto momento, a realização cadastral no INCRA, em 1970, como parte de uma
ação necessária dos proprietários em identificar quais usos aquela terra possui. Tal cadastro nos
informa, ainda, sobre uma regularização que, como veremos mais adiante, é a força motriz de
uma questão envolvendo os herdeiros velhos e novos.
agricultores de pequena escala. Com a remodelação das leis que gerem a posse e propriedade
da terra, o território nacional passou a ser titulado. Cada gleba de terra, cada sítio passou a ter
um título de propriedade individual. Mesmo em terras de uso coletivo, como no Venâncio,
depois da legislação entrar em vigor, tornou-se obrigatório a vinculação da terra a um nome. Ou
seja, antes de 1850 as terras no Brasil encontravam-se no sistema de sesmarias e outros regimes
menores que previam a concessão gratuita de terras para quem as pudesse cultivar e/ou ocupar.
Com a Lei de Terras, as terras saíram de um status de posse para o de propriedade individual,
pois agora se tornaram particulares, sendo possível sua aquisição somente pela compra.
Se o que Grassen traz é verossímil, as terras do Venâncio passaram por esta mesma
transmutação. Passaram de terras “sem dono” para terra titulada, surgindo de imediato novos
sujeitos sociais: os posseiros e o proprietário. Mesmo que se tenha consenso sobre a
propriedade coletiva dessas terras, a partir do momento em que o Estado nomeia um sujeito
como dono daquele território, todo o restante passa a ser “não-dono”, e a melhor maneira de
expressar essa não-propriedade certamente é a noção de posseiro.
Percebi que as regras de transmissão das terras do Venâncio não são processos a-
históricos, elas vêm se remodelando e sendo remodeladas ao longo das investidas do Estado e
das normatizações propostas, momentos nos quais foram construídas e reconstruídas
“territorialidades”, que ganham forma e sentido quando inscritas no espaço físico e nas
narrativas dos sujeitos (GODOI, 2014,p. 174). O entendimento mais amplo de como as
territorialidades são construídas no vilarejo perpassam a fala de Cícero Vieira, momento no
qual ele esclarece a mais recente questão envolvendo os herdeiros velhos e herdeiros novos:
99
Cícero Vieira: O João Belchior faleceu, tá com uns dois anos. O papel do terreno [do Venâncio]
estava no nome dele, agora não está mais, tá tudo agora na mão do seu Loro [Otacílio], ele
não lhe disse não? Ele ficou com esse papel, quando o João morreu, aí ele tomou de conta, né,
para pagar os terrenos [os impostos do terreno]. Todos os anos ele tem que pagar os terrenos,
agora ele não pagava só, porque tinha os herdeiros para ajudar, né? Ele tirava dinheiro
quando arrendava o carnaubal, o tio Mané [Vitorino], tirava logo o do imposto, aí dá aquilo
que sobra dá pros herdeiros tudim. Aí ele [Mané Vitorino] morreu, aí ficaram com os papeis,
pegaram aí pagar. Pagamos, pagamos, mas eu acho que lá, o cobrador, ele gostava de tomar
um trago [ou receber propina], roubar um trago, aí trazia só o recibo e dizia que estava pago.
Mas nada feito, minha filha, e nada feito. E quando apareceu a dívida muito grande do
carnaubal, pagou-se 1.500 reais de um ano, por causa de quem? Dele! (João Belchior) porque
não fazia o que prestasse, se danava, enfiava a cara pura na cachaça velha besta, e não se
importava com nada. Aí eu disse pra ele, João, queria muito bem a meu sobrinho, rapaz, se tu
vai pagar, pois toma de conta! [...] O que fizeram está feito. Aí eu arrendei o carnaubal, e
entreguei: - Tai seu Loro, tai 1.500 reais para pagar o imposto. Vocês não tirem um tostão para
pagar esse imposto. O homem ia lá., dizia que pagava e não pagava, sei não o que ele estava
fazendo com dinheiro não. Entrevista em fevereiro de 2017.
Quem sabe explicar exatamente é o seu Loro, porque, do nada, isso não é a parte do capiaçú, é
a parte do Venâncio, do nada o herdeiro velho que era responsável, seu João Mané [João
Belchior, filho de Mané Vitorino] morreu, aí ninguém sabe. Que aqui é só história que a gente
escuta, porque pra gente saber da verdade precisa de um herdeiro de verdade pra destrinchar,
tipo a dona Adelaide, do seu Quelé, e o seu Loro, são as pessoas que estão responsáveis por
isso. Disse que ele, não sei como que aconteceu, não presta atenção no que ia fazer, disse que
assinaram o terreno todinho pra ele [João Mané], só que no caso ele ia ser o responsável pela
terra, tá entendendo, mas parece que o advogado assinou para ele ser dono sozinho. Só que
não explicaram como era, e ninguém foi atrás de saber, já que ele era o mais velho da turma.
Como foi agora que ele morreu, aí o Louro ficou pagando um tal de Incra, aí quando seu louro
foi pagar a última vez o Incra, na Receita, já estava pago. Aí quando seu Louro foi e descobriu
que o terreno não era mais deles, era só de três irmãos, que são os filhos do João Mané. Só
que eles eu não conheço, porque moram em Chaval, tá entendendo? Isso aconteceu ano
passado. Ai quem pode te explicar direitinho foi o seu Louro. Aí tá na justiça.
100
Lorena: E o que eles estão fazendo a respeito disso? Os filhos do João Mané estão querendo
tomar?
Rita: Fazer como seu Louro, no papel são eles os únicos herdeiros, tá entendendo? Porque se
passaram a terra diretamente pros nomes deles três, como o pai dele sendo herdeiro único.
Pois é, foi o que todo mundo ficou assim, querendo saber, como foi que eles conseguiram,
porque são muita gente ao redor, já quem não tem os velhos, já tem os novos, os netos, os
bisnetos.
Rita: Estão, estão. Em discussão forte mesmo, estão na base da justiça. Seu Louro que estava
comentando. Que tem advogado e tudo. Até o ano passado na, época da política, eles estavam
em reunião com o advogado aqui no mercantil do seu Louro, aí foi quando a gente descobriu
que estava na justiça, porque a gente viu o motim e não era política... aqui quando não é
política é terra. Aí foi que a gente descobriu que estava na justiça... por causa do terreno que
eles tomaram.
O que surge desse relato é que não somente os impostos das terras do Venâncio
estavam atrasados, algo que não deveria acontecer pois os lucros dos carnaubais permitiam que
se juntasse dinheiro suficiente para tal pagamento, como agora, as terras mudaram de
titularidade. Quando João Belchior ainda estava vivo era de acordo entre os herdeiros velhos
vivos à época (Quelé, Cícero Vieira e Manoel Messias) que João seria o titular das terras frente
aos órgãos de regularização fundiária, mas que as terras do Venâncio permaneceriam sendo
geridas da maneira como habitualmente se convencionou. Com a morte de João, e a não
transferência da titularidade da terra para outro herdeiro, os filhos do titular reivindicaram
propriedade por meio da lei de herança.3
O que até 2013 era algo que lhes conferia garantia, seguridade, e nariz empinado,
em 2017 essa condição é vivenciada como uma questão. A morte de João Belchior, titular da
terra, fez com que seus filhos reivindicassem seus direitos amparados no Código Civil
3
Segundo informações do Código Civil Brasileiro: Herdeiros necessários são: o cônjuge ou viúvo(a) – desde que
casado em comunhão parcial de bens –, os descendentes e os ascendentes têm direito à herança em primeiro lugar,
em partes iguais, pela ordem de proximidade do parentesco com o falecido e sem qualquer discriminação quanto à
natureza da filiação. Se o cônjuge também for pai, mãe, avô ou avó dos descendentes do falecido, deve receber
pelo menos 25% da herança. Caso os avós morram depois de falecido o pai, os filhos deste (netos) herdam a parte
que caberia ao pai falecido, que deve ser dividida igualmente entre eles. Se, ao falecerem os avós, existirem
somente netos, a herança será dividida entre eles em partes iguais.
101
Brasileiro, que prevê a transferência dos bens do falecido à viúva e aos seus descendentes.
Segundo o Código Civil, os herdeiros têm direito de receber a totalidade da herança em partes
iguais, e a viúva pelo menos 25% da totalidade compartilhada com os herdeiros filhos, caso
ainda esteja viva. João Belchior era reconhecido pelas instâncias do Estado brasileiro como
proprietário legal, único e individual, tendo respondido até a data de sua morte por aquelas
terras.
A situação que se instaura não conseguiu ser contornada pelos laços familiares.
Vejamos, quem reivindica a propriedade àquelas terras são os primos legítimos de Marli e
Otacílio, filhos de João Belchior. São pessoas que compartilham mesmo sangue que estão em
disputa. Mas cabe reforçar que, no contexto do Venâncio, sangue não é suficiente para segurar
as relações. Os filhos de João Belchior nunca moraram no vilarejo, nem casaram com primos.
Os documentos que estes detêm dão seguridade, perante o Estado, de que são proprietários
legítimos. Mas partindo das construções de família aqui abordadas, para as famílias do vilarejo
os herdeiros de João Belchior não possuem esse direito, não são representantes daquela terra,
pois ali não fizeram família.
Como ilustrei nos capítulos anteriores, os casamentos entre primos provêm uma
forte identificação destes com os espaços habitados. Os “territórios de parentesco” assim se
fazem pela experiência vivida e tradicionalmente rememorada. Casas e pessoas estão inscritas
em uma mesma plataforma que ganha corpo e forma na medida em que ocorrem os processos
de familiarização e desfamiliarização. É nítido, portanto, que para se requerer as terras do
Venâncio como de sua propriedade, um documento certificado em cartório não seria suficiente,
uma vez que para isso são necessários investimentos ao longo de uma vida para atingir o direito
de levantar casa, fazer família e fazer parente.
de afirmar que aquelas terras não são ociosas. Já os “herdeiros legais” assim o são por
imposição do Estado, sem que haja mediações ou nuances: ou é ou não é proprietário. Por meio
da ação regulatória do Estado, através da titularidade dos documentos em nome de João
Belchior, os herdeiros deste reivindicam aquilo que lhes é garantido por lei, fazendo uso de um
documento comprovando a legitimidade de sua intenção.
Cícero Vieira: Tudo é nosso, uma família grande, Belchior e Carvalho. Eu sou filho da finada
Chicota, esta filha da finada velha Vitorina, aqui só da Belchior e Carvalho, sabe? É muito.
Velha Vitorina é a antiga velha, morreu com 95 anos. Aqui é família velha, se tem muito velho,
só de herdeiro dessa casa, desse terreno, são 17 herdeiros velhos, fora os novos. Aí quando eu
me entendi eu já era Belchior.
CV: Rapaz, os herdeiros é a velha Vitorina, a Vitorina que era a mais velha do lugar, era a
dona desse lugar, o finado Henrique, que é irmão dela, o finado Jovi [joviniano], o finado
Livi[lívio], tudo um irmão só, mas eram donos. O finado Jovi morreu com 100 anos, era
velhozinho. Esses herdeiros velhos que morreram tudo do meu tempo quando eu me entendi, eu
já era gente, aí eu estou com 80 anos, né? E eles já eram gente. Aí acabaram tudo, morreu
tudo.
[...]
103
4
Anualmente os herdeiros arrendam seus carnaubais para uma empresa que utiliza a palha da carnaúba para fazer
cera.
104
Como disse Cícero Vieira, são poucos os herdeiros que podem contar com os lucros
advindos do arrendamento. Com exceção dele e de seus dois irmãos, a maioria das pessoas
recebem uma mixaria, ou seja, um valor irrisório, às vezes R$15,00 reais por pessoa, por ano.
À essa fragmentação contínua deve-se à formação constante de núcleos familiares descendentes
dos 17 cabeças velhas.
Por exemplo, Cícero Vieira e os irmãos recebem os lucros porque sua mãe, Chicota,
é filha de Vitorina. Na geração de Chicota5, ela e os 9 irmãos dividiam entre si os lucros quando
estava no ano de Vitorina. Da mesma forma que Cícero Vieira e seus dois irmãos recebem pela
parte de sua mãe, seus tios e primos por parte da mãe de Cícero Vieira também recebem. Mas
5
Ver genealogia 1.
105
como fora dito, Cícero possui somente dois irmãos e recebem uma quantia maior, que chega até
R$100,00 reais, enquanto que os núcleos familiares de seus tios e tias, por parte de mãe, eram
compostos por uma quantidade maior de descendentes. O mesmo acontece com todos os
moradores do vilarejo, a depender da quantidade de irmãos que se tem e a quem
genealogicamente se aproxima, a quantia do lucro por pessoa irá variar. À esse fato da divisão
dos lucros, são poucos os que deixam de receber já que todos os herdeiros do Venâncio
descendem dos 17 cabeças velhas.
Se a quantia que recebem é tão pífia quanto falam, então passei a me perguntar do
porquê de ainda haver a preocupação em executar anualmente esta partilha. Certamente as
pessoas tem interesse em receber os lucros, mesmo que a quantia seja pouca, mas porque a
manutenção de um quadro de partilha tão rígido? Sobre os que isto nos informa?
Podemos perceber que a lógica distributiva dos lucros dos carnaubais não possui o
lucro como finalidade imediata, pois a tendência do valor pago para cada família é ser
diminuído na medida em que as gerações transcorrem. A característica pouco utilitária dessa
transação me faz pensar que a existência de regras tão rígidas estão mais para servirem de
quadros referenciais classificatórios do que para a obtenção de lucros financeiros. Classificação
e organização me parecem ser o ponto de partida para compreender o sentido subjacente
conferido à distribuição dos carnaubais. Essa lógica faz sentido se pensarmos que tal
classificação é realizada tomando como referência a geração dos 17 cabeças velhas.
de tradição. Como já foi citado, a herança “física” do Venâncio são os lucros dos carnaubais e o
território individual das casas mais áreas comuns. O ponto de encontro entre estas duas
heranças está ancorado no fato de ambas terem na família, no seu sentido aqui conferido, o seu
vínculo comum.
Como as regras locais possuem lógica própria, cujo fim último é poupar ao máximo
a integridade dos patrimônios territoriais, a herança passa a ser fruto de manifestações de
preferência e consideração. Relacionada ao fato de que se há indivíduos, filhos que atingiram a
maturidade e que contrairão matrimonio, uma série de condições devem ser satisfeitas para que
se assegure a existência camponesa e não necessariamente a algo deixado pela morte de seu
genitor.
Moura (1978) traz que a herança está mais para manutenção da possibilidade de
existência camponesa do grupo que do que para a posse de um bem, enquanto propriedade
individual. entra questão da inalienabilidade da terra e das formas jurídicas dessa apropriação.
Lógica especifica da herança da terra em discrepância às regras do código civil.
A lei de herança no Brasil, como já fora abordada, prevê, em via de regra, 50% para
o cônjuge e 50% para os descendentes. Na maneira pensada pela legislação, o vínculo aqui é
estabelecido entre a pessoa, o indivíduo e o objeto, terra possui, por sua vez, status de bem
transferível. O que surge no vilarejo do Venâncio, por sua vez, é uma lógica distributiva que
não se enquadra nos termos legais de um Estado legalista- jurídico. A Lei de herança, vinculada
ao entendimento da mercantilização da terra não encontra referência no regime distributivo
percebido no Venâncio. Neste lugar, a lógica distributiva dos carnaubais é operacionalizada
pelo regime de relação entre pessoas e coisas. A distribuição dos carnaubais está para o
relacionamento das pessoas por meio da terra, e esta permite mobilizar relações por meio do
dinheiro trocado.
Leach (1961) já afirmou em seus estudos, com maior ênfase naquele realizado em
Pul Eliya, que o parentesco não é uma coisa e si mesma, e aqui parto da mesma ideia, de que no
Venâncio, tais práticas matrimoniais são um reflexo do processo de sucessão da propriedade,
concretizado pelos padrões de herança estabelecidos no contexto do Venâncio. A gestão das
terras do Venâncio, dessa maneira, possui por regra os casamentos preferenciais entre “primos
irmãos” gestada em meio à tradição e resgatada anualmente com a divisão dos lucros dos
carnaubais. O que faz sentido quando afirmo que esta divisão está para modelo a ser seguido do
que para atividade econômica.
A genealogia ainda nos mostra que, se levarmos em conta a legislação sobre herança,
esta deveria ser fragmentada e dividida entre os 17 cabeças velhas, pois foram formados novos
núcleos familiares. No entanto, o casamento dos “primos irmãos” que aqui tomo de modelo, no
lugar de fragmentar a herança, garantiu que a herança retornasse para a família. Se na (G1)
houve um processo de fissão, na (G2) percebemos a fusão entre famílias.
Tais modelos de casamento não são estratégias aleatórias. Como contribui Leach (1961),
as práticas de parentesco aqui observadas, tanto as de aliança quanto as de descendência, são
109
expressões de relações de propriedade nas quais perduram ao longo do tempo. Traz o autor, que
a herança separa, o casamento une e a propriedade perdura.
A aliança faz você ter um direito “restrito”, limitado no sentido de que quem casa
herda, mas não transmite, o herdeiro dessa nova aliança não terá herança partilhada como sua,
ou como uma propriedade individual, não terá participação de 50%, terá uma participação
restrita junto com seus irmãos e seus descendentes. Aqui, quando se trata de herança, pode- se
olhar para cima, ou seja, para os cabeças velhas, de modo distinto, dentro de uma concepção de
herança de acordo com a prescrições jurídicas acionadas em contextos “metropolitanos”, olha-
se para o lado e para baixo, em que tal herança seria cada vez mais fragmentada, pois sempre
será regida pela condição de 50% para o cônjuge e 50% para descendentes.
A herança dos lucros dos carnaubais nos permite ver que da segunda geração em
diante, aquela dos 17 cabeças velhas, a herança foi “congelada”, ou seja, não surgiram
fragmentações posteriores. Assim, como traz Paoliello (1999), a herança permite que haja a
reposição inter-geracional dos patrimônios territoriais e pode ser definida como fator de
permanência e da reconstrução da “condição camponesa”.
CONCLUSÃO
Certo dia fui a uma consulta médica em Campinas. Na conversa com a médica, esta
me pergunta qual o tema de minha pesquisa. Eu respondo: “estudo família e política no interior
do Ceará, as disputas entre famílias para se manterem no poder”. Ela, me pergunta em réplica:
“nossa, isso ainda existe?”. Respondi dizendo: “sim, ainda existe”. Repetir esse “ainda” me
corroeu por um bom tempo. Fiquei pensando, como eu, pesquisadora, mestranda, cearense,
permitiria que as pessoas continuassem a reproduzir essa ideia cristalizada de “ainda”, de um
Nordeste com o presente no passado?
O meu intento aqui, tratando de um tema tão clássico dentro dos estudos de
populações em contextos rurais e da própria Antropologia Social, é, tão somente, dar luz a
práticas que, se descoladas do contexto no qual está inserida nesta pesquisa, podem ser tomadas
por universais: aliança, descendência, troca e relações de poder. Nada de novo para a
Antropologia. O que desta pesquisa cabe destaque é pensar em como as práticas de fazer
política, fazer família e multiplicar a herança, práticas estas notoriamente presentes em
contextos tradicionais, são atualizadas, repensadas e adequadas ao contexto daquelas pessoas
que hoje as concretizam, podendo estes contextos saírem do local para o nacional.
Aqui, busquei trabalhar como as ideias de posse e uso da terra são pensadas e
repensadas dentro dos constantes fluxos envoltos nas práticas de familiarização e
desfamiliarização. Tais ideias são evocadas por uma miríade de contextos, usos e práticas, e
buscando constantemente dar força às expressões dos interlocutores, alguns autores e autoras se
111
debruçaram ao entendimento relacional da terra com aqueles que a habitam. Uma dessas
autoras é Borges (2014) ao discorrer sobre o verbete “Terra”, em que traz: “Daí a importância
de observarmos quais atributos acompanham o termo terra para entendermos seus significados
ao longo da história e suas diferentes formulações no presente” (2014, p.431).
No entanto, eu, enquanto nativa do mesmo estado que meus interlocutores, percebo
que assimilar aquela região à uma configuração próxima àquela do Sertão não se apresentaria
como correta. Para contornar tal imprecisão, a ideia de interior1 tem mais a agregar. Interior
seria uma “territorialidade”, nos termos de Godoi (2014), erigido dentro das práticas e dos
discursos cotidianamente firmados.
***
1
O termo interior recorrentemente designa qualquer lugar do território cearense que não seja a capital, Fortaleza.
112
família por meio do casamento. Ser da família compreende pertencer aos sobrenomes Veras,
Carvalho, Belchior e Rodrigues e desta identificação ter o espaço que habita referenciado.
O causo de Dona Otacília mostrou que, para mais que sangue bom, mais do que ser
consanguínea e afim e reproduzir os casamentos entre “primos irmãos”, é preciso ter
consideração. Por meio da consideração pessoas são inseridas em determinados grupos, mas a
contrapartida dessa aceitação é representar e atuar com condutas e códigos comuns, pois a
consideração não se faz sozinha. Considerar subentende ser considerado. O causo de D.
Otacília e Rita ilustram bem como a consideração atua.
Possuir ascendência comum não foi suficiente para gerar aproximação entre D.
Marli e D. Otacília, seus envolvimentos na política e os desdobramentos das formas de fazer
política mostrou que neste vilarejo alguns são mais parentes do que outros. A política,
claramente, é um elemento que dissolve ou engrossa o sangue, a depender da posição que se
tome frente às facções família 12 e família 14, por exemplo.
Mas é a inalienabilidade desta terra que também garante a sua não fragmentação. Se
a terra fosse individualizada da maneira como querem os herdeiros de João Belchior, com a
reprodução das famílias ao longo dos anos, aquelas terras passariam por uma fragmentação tão
exaustiva que pouco comportariam a existência e reprodução do núcleo familiar. Essa
fragmentação colocaria em questão o local de trabalho do pai, da mãe e do filho,
comprometendo as sociabilidades entre vizinhos e a permanência dessas pessoas nestes
territórios.
Desde os tempos dos antigos Alexandre Ferreira Veras, Vitorina Rosalina, Henrique
Ferreira, Mané Vitorino, Paulo Henrique, João Belchior e Quelé, a circulação dos papéis de
titularidade da terra, como retratado no capítulo 3, vem sendo efetivada. Mas o ponto curioso a
se notar é que mediante todos estes representantes das terras da localidade, a titularidade
daquelas terras somente foi modificada uma vez, quando houve a necessidade de nomear um
herdeiro, já na década de 1970, como responsável legal daquelas terras. Percebe-se que a João
Belchior não foi conferida a propriedade, pois antes dele muitos outros herdeiros foram
detentores dos documentos e até sua o evento de sua morte, a ideia daquelas terras como
propriedade individual poderia ser um pensamento remoto.
sua inealienabilidade. Com os casamentos performados dessa maneira, entre primos, replicando
cos modelos de casamentos entre aqueles considerados legítimos, a terra nunca precisou ser
pensada como divisa. Se os documentos de propriedade de terras estão circulando nas mesmas
mãos de quatro gerações entre pessoas da mesma família, qual a necessidade de pensar a sua
divisão?
A partilha da terra bem como sua circulação é uma elucubração virtual, é uma
divisão operacionalizada entre aquelas pessoas e por aquelas pessoas e dentro daquele contexto.
O papel desempenhado pelos detentores dos títulos de propriedade é unicamente permitir que
esses documentos continuem a circular, garantindo a transferência destes papéis para seus
descendentes.
À estas práticas, me parece, que o intuito de casar não é para dar terra. Destes anos
de pesquisa, não lembro em nenhum momento, algum morador do vilarejo dizendo que era
dono daquelas terras. As expressões mais corriqueiras que ouvi dos diferentes moradores do
vilarejo, com relação a este lugar era: aqui é tudo nosso, o terreno é da família. Passei então a
pensar que, de fato, tais terras não são dadas, porque elas, de alguma forma, não são possuídas.
Elas são, em minha percepção, transferidas. A terra não se possui, então, por isso a
incompatibilidade de se falar sobre propriedade individual.
Sem a replicação dos casamentos, sem esse acordo em fazer e desfazer família e
parentes, entrelaçado com os pertencimentos aos modos de fazer política, da forma como
tradicionalmente se faz, as terras do Venâncio já estariam, como foi dito por Dona Adelaide,
inteiramente esbagaçadas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GLOSSÁRIO DE TRAJETÓRIAS
Vitorina Rosalina – Filha de Alexandre Ferreira, lembrada como a dona disso tudo, casou-se
com Manoel Belchior de Carvalho (lugar de origem não identificado), mãe de 10 dos 17
cabeças velhas.
Henrique Ferreira – Filho de Alexandre Ferreira, irmão de Vitorina, casou-se com Ana
Rodrigues (lugar de origem não identificado), pai de 7 dos 17 cabeças velhas.
Dona Adelaide – Neta de Henrique Ferreira Veras, casada com Clementino Belchior de
Carvalho, o Seu Quelé, mãe de Marli. Dona Adelaide, é filha de criação de um tio materno,
Manoel Belchior de Carvalho, um dos 17 cabeças velhas. Hoje é aposentada, vive no sítio
Capiaçú lugar onde mora desde o casamento com Quelé, candidatou-se a vereadora na década
de 80, mas não obteve sucesso.
Seu Quelé – Filho de um dos antigos líderes do vilarejo (cabeça velha), durante sua vida foi um
atuante líder comunitário, residente do sítio Capiaçú, lugar onde sua esposa, Adelaide, reside
nos dias de hoje. Foi agricultor e comerciante.
Otacílio ou “louro” – casado com uma prima cruzada, Marli, um dos líderes do vilarejo,
detentor dos documentos das terras do Venâncio e do sítio Capiaçú, partidário do grupo Cara
Preta – família 14, cabo eleitoral do atual prefeito Ademar Veras. Disponibiliza frequentemente
sua casa como ponto de apoio da prefeitura de Barroquinha.
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Marli – filha de seu Quelé e D. Adelaide, esposa de Otacílio, cabo eleitoral da família 14,
destaca-se como atuante nas questões do vilarejo, porém não se auto intitula como líder local.
Otacília – filha de Paulo Henrique –não herdeira, uma senhora idosa, dona de casa, mãe de
dois filhos, uma que reside com ela e o outro, em Fortaleza.
Mané Vitorino: Casado com Úrsula, sua prima legítima, é pais de 5 filhos de sangue e 3 de
criação. Esses três irmãos eram D. Adelaide, e seus dois irmãos que foram adotados por terem
ficado órfãos. Morou no Capiaçú e foi um dos líderes do vilarejo. Tinha roça boa, tinham feijão
goma farinha.
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Imagem 6: Da esquerda para a direita, Larisse (neta de D. Adelaide e seu Quelé), Marli, D.
Adelaide, Seu Quelé (abril/2011)
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