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Introdução
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O objetivo, pois, deste trabalho é analisar a aproximação entre o conto “O
pirotécnico Zacarias” e o Livro de Jó, principalmente no que diz respeito aos discursos
sobre a vida e sobre a morte em ambos os textos. Além disso, pretende-se descobrir
em que medida essa aproximação é intencional e irônica.
Literariedade do Livro de Jó
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Em seu ensaio introdutório intitulado “Da memória e da desmemória: excurso
sobre o poeta José Elói Ottoni, tradutor do Livro de Jó” à tradução de José Elói Ottoni
do Livro de Jó, Haroldo de Campos cita o prefácio extraído da versão bíblica do Livro
de Jó do Abade de Genoude: “Nele o Livro de Jó é visto com um ‘divino poema’. Seu
autor discute se se trata ou não de um verdadeiro ‘drama’, fazendo um paralelo entre
as tragédias de Ésquilo e o poema bíblico” (CAMPOS, 1993, p. XVI). Apesar de mais
adiante o Abade opor moralmente os textos numa axiologia estética do “bem” e do
“mal”, Haroldo declara que se trata de grandezas singulares não comparáveis nestes
termos, “mas há um traço positivo em sua reflexão [do Abade]: aquele que o leva a
realçar os valores estéticos do texto bíblico” (CAMPOS, 1993, p. XVII).
As citações da obra de Robert Alter e a reflexão de Haroldo de Campos
buscam resguardar ou justificar a literariedade do Livro de Jó.
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“(Ao meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris)”
(RUBIÃO, 1976, p. 14), assim afirma o pirotécnico. Essa citação pode indicar uma
ironia na aproximação dos textos, porque, ao lembrarmos que, por ocasião do dilúvio,
o arco-íris simboliza, no texto bíblico, um pacto entre Deus e a humanidade de que o
mundo jamais acabaria novamente em água, mas sim queimado pelo fogo. Para
Zacarias, o fogo dança e não destrói. O fogo é devorado pela água e então não haverá
fim. A água, pois, é necessária para o aparecimento do arco-íris. É preciso existir
gotas de água no ar para que a luz do sol incida sobre elas. Da mesma maneira ocorre
com as relações humanas. Com Zacarias morto o seu fim está sacramentado, o que
lhe inaugura uma vida melhor. Assim, a água, como símbolo do nascimento,
remetendo ao líquido amniótico do útero não trás morte, mas, ao invés disso, vida.
Em uma reflexão paralela e desafiadora, e numa segunda questão a ser
levantada, qual seria o limite entre a morte e a vida? “Quando tudo começava a ficar
branco, veio um automóvel e me matou” (RUBIÃO, 1976, p. 14): o branco é a última
luz do morto ou a primeira de quem nasce? O morto transcende a realidade medíocre
dos vivos. É mais vivo. Zacarias vive melhor depois de seu declínio mesmo sem novos
amigos que lhe restabeleçam, como os de Jó.
“E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te
julgares consumido, nascerás como a estrela d’alva”: o conto “O pirotécnico Zacarias”
é introduzido pelo versículo dezessete do capítulo onze do Livro de Jó. Essa epígrafe
extratifica o argumento de todo o conto, sua ideia essencial, a saber, a precariedade
da existência humana, sobretudo a em sociedade, que leva o homem a sucessivas
metafóricas mortes cotidianas.
A epígrafe evidencia a intertextualidade entre o conto e o Livro de Jó, e, pelo
conteúdo ideário do primeiro estabelece a subversão operada no texto bíblico por meio
dessa aproximação dos dois textos: enquanto o renascimento de Jó como estrela
d’alva pela luz do meio-dia, após a tarde, constitui a segunda – ideal – glória de sua
vida; o renascimento de Zacarias é sua morte, pois essa determina seu isolamento
social. Em Jó, seus amigos é que lhe trouxeram novamente seus bens perdidos, para
Zacarias a ausência do contato humano, impossível chamar amigos, é em si mesmo o
bem perdido no momento exato do nascimento primeiro.
Em Murilo Rubião: a poética do uroboro, Jorge Schwartz faz a primeira
tentativa de análise da obra do autor em sua totalidade, descobrindo em seus contos
uma narrativa estabelecida em suas epígrafes bíblicas. Segundo Schwartz, o herói
muriliano “refaz o percurso do uroboro, serpente mítica que morde sua própria cauda:
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um trajeto circular e kafkiano, onde são reconstituídas as questões vitais da existência”
(SCHWARTZ, 1981, contracapa).
A partir da citação de Schwartz, a morte de Zacarias corresponde à serpente
mordendo a própria cauda num processo de reconstrução da existência, pois, depois
de morto, o pirotécnico retorna a seu estado de pureza original, equivalente ao não
contato com outro humano. A vida misantropa é resultado do processo evolutivo do
humano, morto ele mesmo pelo contato com o homem.
Ainda quanto à utilização de versículos bíblicos como epígrafes por Murilo
Rubião, Eliane Zagury em “Murilo Rubião, o contista do absurdo” aponta a unidade da
produção literária de Murilo, cujo “ponto central da temática é a religiosidade do autor
que desencadeia apocalipticamente uma cosmovisão absurda” (ZAGURY, 1971, p.
28). A autora também identifica nessa produção três principais dicotomias: “vida-
morte, indivíduo-sociedade e amor-incomunicabilidade” (ZAGURY, 1971, p. 29). Nessa
organização, “O pirotécnico Zacarias” é posto como exemplo da primeira dicotomia, a
partir do que conclui: “temos, portanto, em Murilo Rubião, o representante
originalíssimo de uma linha de ficção muito pouco explorada na literatura brasileira tão
afeita às analogias mais primitivas da realidade que a sustém” (ZAGURY, 1971, p. 35).
Esse arranjo temático de Zagury reitera a propriedade do presente trabalho.
Existencialismo
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O mundo é a materialização dessa vontade. Certamente toda a vontade não
chega a ser realidade representada, a dor causada por essa irrealização ou pela
distância entre homem e objeto devido à ideia platônica dele, quando a realidade
chega a ser representada, mas não suficientemente, essa dor é imensa. Como
insatisfeito, o homem cava sempre mais funda sua ideia platônica, e o sofrimento
cresce. Essa vontade pode ser, por exemplo, um sentimento de encaixe e acolhimento
dentre os outros que o pirotécnico não provava: o próprio descaso sentido é uma
morte (assassinato).
Para Schopenhauer, somente a contemplação da realidade a sua volta e a
contemplação estética podem interromper a dor. No momento de contemplação o
objeto preenche completamente a consciência do indivíduo que, agora sem
possibilidade de fantasiar a ideia platônica, vê o conhecimento objetivo do objeto.
Sem atentar em como, de algum modo, a contemplação do redor (re-dor) é
sentir-se bem comparativamente a quem está pior (outra ilusão) ou em como a
contemplação estética é fuga alienante academicamente aceita; a síntese em sistema
schopenhaueriana do que seja o mundo coincide exatamente com a vida distanciada -
pois a contemplação só é possível com distanciamento - de um misantropo.
Referências bibliográficas
ALTER, Robert. Verdade e poesia no Livro de Jó. In: Em espelho crítico. Trad.
GARCIA, Adriana e GOLSZTAJN, Margarida. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 23-48.
CAMPOS, Haroldo de. Da memória e da desmemória: excurso sobre o poeta José Elói
Ottoni, tradutor do Livro de Jó. In: OTTONI, José Elói. O Livro de Jó. São Paulo:
Loyola, Giordano, 1993, p. XI-XXVI.
PAES, José Paulo. Um sequestro do divino. In: A aventura literária: ensaios sobre
ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 120-121.
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.
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