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“A felicidade é um revólver quente”

Luiz Felipe C. Monteiro

Assim, Carlos Drummond de Andrade, traduziu o título da canção de John Lennon e Paul
MacCartney - Happiness is a warm gun. Com essa música, os Beatles introduzem na
cultura de massa contemporânea uma das definições mais singulares sobre a felicidade.
Segundo os biógrafos, esse título é uma citação a uma capa da revista da Associação
Nacional de Rifles americana que Lennon utiliza em sua política de paródia.

Penso ser uma frase-enigma, que por sua força e nonsense oferece bons subsídios para
explorar o tema da felicidade na contemporaneidade. De fato, a partir dessa referência à
máquina de morte muitas são as perspectivas que se abrem, desde uma exploração
sobre o fascínio posto nestes objetos, até às supostas alusões feitas por Lennon à
felicidade encontrada nas seringas de heroína.

Contudo, utilizo essa citação para fazer a hipótese segundo a qual, o título da canção é
signo do descentramento sofrido pela noção de felicidade na contemporaneidade, onde
deixou de ser tributária exclusiva dos ideais (terrenos ou supra-terrenos) para se
estabelecer prioritariamente, a partir da referência à experiência corporal. Se levarmos
aos termos a felicidade dos Beatles, vemos que a felicidade é definida desde uma
menção a um objeto e ao que este causa no corpo. A felicidade da arma quente é signo
do furo do grande Outro.

Gilles Lipovestsky em sua última publicação “A Felicidade Paradoxal”, sustenta que


“numa época onde o sofrimento é desprovido de todo sentido, em que os grandes
referenciais tradicionais e históricos estão esgotados, a questão da felicidade interior
‘volta à tona’, tornando-se um segmento comercial” (LIPOVETSKY, 2008, p. 15). O autor
destaca que uma das marcas da contemporaneidade é a crença da felicidade aliada à
lógica do consumo, seja de produtos, idéias ou sensações.

Isto se apresenta como conseqüência da apropriação Moderna sobre o tema da felicidade


que ganhou fôlego especialmente a partir do século XVIII. O próprio Lacan (1991)
assinala este momento, ao referir no Seminário O Avesso da Psicanálise que, a partir de
Saint Just a felicidade constituiu-se como um fator político. Um dos maiores exemplos do
caráter da felicidade na Modernidade está na Declaração que precede a Constituição
Francesa de 1793: “O objetivo da sociedade é a felicidade geral (bonheur commune) e o
governo é seu defensor”.

Desse modo, aliada ao tríplice valor da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e


Fraternidade), a felicidade está claramente inserida no projeto Moderno de assegurar a
realização de aspirações individuais por meio da máquina do Estado e da injunção da lei.
Entretanto, a promessa de conciliação de questões subjetivas por meio da esfera política,
não demora a se adaptar e, rapidamente, passa a sustentar-se sobre a égide da Ciência e
do Mercado. Esses dois alicerces, signos da razão iluminista, atestam que a partir do
século XVIII a processo civilizatório no ocidente incorreu em uma crescente secularização
do mundo aliada a uma sacralizalização da felicidade terrena.

A felicidade deixou de ser exclusivamente tributária à um credo religioso para tornar-se ao


alcance de todos via os artifícios oferecidos pela ciência. O ideal iluminista, aliou o
progresso da civilização ao aumento da felicidade. Ao angariar um caráter democrático, a
felicidade Moderna passou a ser regida pela ordem do bem-estar. Á medida que o
indivíduo se viu menos determinado pela tradição (comunitária, religiosa) a felicidade
passa a ser uma questão proeminente para a sua existência. Sob os signos da felicidade
o homem moderno depositou valores determinantes para avaliar o que é uma vida
suficientemente bem vivida. E como a Igreja e o Estado já não forneciam respostas
condizentes a esse contexto, o mercado de consumo passou a ocupar um lugar
privilegiado na oferta sobre os modos de ser feliz.

O ideal progressista-científico alavancado pelas inúmeras conquistas técnicas ao longo


dos séculos XVIII e XIX, perde aquele idealismo no século XX, ao conjugar-se com a
política do capitalismo de consumo. Nesse momento, onde as sustentações políticas e
econômicas da sociedade passam a sustentar-se no consumo de bens e serviços a
felicidade ganha o tempo do presente – o tempo do consumo. Conforme Lipovestsky
(2008, p. 335): “A plenitude exaltada pelos tempos consumistas não depende mais de um
pensamento dialético: é eufórica e instantânea, exclusivamente positiva e lúdica”. Sua
hipótese: a sociedade do hiperconsumo tal como conhecemos atualmente, sustenta-se no
ideal onde a aquisição de bens passa a ser signo privilegiado de felicidade. Argumento
ilustrado claramente no fundamento do marketing, a promessa de satisfação através da
compra de produtos – a coca-cola advém da Fábrica da Felicidade – como explícita a sua
propaganda mais recente.
Tal questão põe em relevo a dialética entre felicidade e liberdade. Um dos fundamentos
da lógica capitalista de consumo é a autonomia do indivíduo em escolher os produtos a
partir da variada oferta do mercado. Os shoppings, supermercados e sites de internet são
arquitetados de modo que os produtos desfilem sob o olhar do consumidor. Este passa a
ter como missão, escolher o modo como quer satisfazer-se com determinado objeto. Em
termos dos discursos lacanianos, o sujeito posiciona-se no lugar de agente em um circuito
onde supõe recuperar a perda de gozo, via objetos de consumo – discurso capitalista.

A simples compra de uma calça jeans conduz a uma série de desdobramentos: justa,
reta, larga, descontraída, com stretch ou sem stretch, e assim por diante. Tornou-se
comum crer que a demanda excessiva a escolhas constantes sobre qualquer atividade de
consumo, gera um alto nível de ansiedade e frustração. Com tal argumento, percebe-se
que numa época onde o Outro não oferece garantias como em outros tempos, a liberdade
passa a ser um fardo. Quem já se viu obrigado a escolher previamente o assento na
compra do ingresso de cinema sabe o que estou falando, especialmente se a sessão
estiver vazia.

Ressalto este ponto, pois esta liberdade parece existir apenas em função do que está
previamente posto pelo mercado. Esta é uma concepção de liberdade parasitária ao
próprio modelo de consumo. Se como alguns autores sustenta-se que talvez fôssemos
mais felizes com menos escolhas a todo tempo, a liberdade estará sempre em função do
objeto, e não do sujeito em sua particularidade (e se eu quiser pedir um prato que não
está no menu?). Pôr em cena o particular é a ferramenta da psicanálise e o que permite
considerar o uso do Sinthome como via para um exercício da liberdade no plano da
invenção do objeto. “Eu não procuro, acho”, diria Picasso.

Para alguns essa ordem do consumo hedonista atesta um caráter desagregador dos
laços sociais, da perda dos ideais elevados, como se o indivíduo contemporâneo apenas
estivesse condicionado ao império dos sentidos dos objetos de consumo e com isso,
sujeito a uma foraclusão da castração. Conclui-se apressadamente, que o declínio da
autoridade paterna conjuga-se com uma era do gozo sem limites – perspectiva, ao meu
ver, marcada por um forte traço imaginário.
Um exame mais detalhado da trama contemporânea sobre a felicidade associada ao
consumo indica que apesar das extrações de gozos subjetivos dos objetos serem um
índice relevante, existe também, uma série de fortes elementos não regidos pelo princípio
hedonista, dentre eles: a preocupação corrente sobre a educação e aperfeiçoamento, a
preparação precoce em como sustentar o futuro, a aposta em modos de consumo menos
contraproducentes á saúde e à natureza, o incentivo constante ao pensamento crítico e
criativo, os tão famosos comitês de ética. Estes são exemplos de como o regime
hedonista não é suficiente para sustentar a idéia de um homem desbussolado.

Penso ser essa pluralidade de referências do contemporâneo que desafia à psicanálise


em sua aposta no particular, cujo instrumento privilegiado é o Sinthome. Desse modo,
reconhecer os fundamentos da felicidade no contemporâneo desde a referência à
psicanálise lacaniana possibilita questionar a noção de que vivemos sob o regime de um
modo de gozo generalizado que busca uma satisfação completa via objetos de consumo,
como se por a felicidade está mais atrelada à experiência de corpo do que da experiência
da tradição, vivemos numa era do gozo sem limites.

Se pudermos pensar uma felicidade no saber-fazer com o sinthome, não esqueçamos de


que este é um acontecimento no corpo. Isso possibilita ver que se por um lado, a
felicidade é um revólver quente e leva consigo um aroma de morte via consumação dos
objetos, por outro, penso que por força de sua paródia quase em forma de chiste, a frase
atira: se há felicidade no sinthoma, é porque este é armado com um nonsense explosivo.

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