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Universidade Federal de São João del-Rei

Programa de Pós-Graduação em História


Disciplina: Viagens, representações e sociabilidade
Professor: João Paulo Coelho de Souza Rodrigues
Aluno: Jair Luiz de Freitas

PRATT, Mary Louise. Capítulo 1 introdução: crítica na zona de contato; Capítulo 2


ciência, consciência planetária, interiores; Capítulo 6 Alexander Von Humboldt e a
reinvenção da América; Capítulo 7 reinventando a América II: a vanguarda capitalista e
as exploratrices slociales; Capítulo 8 reinventando a américa/reinventando a Europa: a
auto modelação crioula. In: Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.
Bauru: EDUSC, 1999.
Resenha

Ao escolher as narrativas de viajantes como objeto de estudo, Mary Louise Pratt


espera realizar o interesse maior de compor um estudo de gênero e uma crítica de
ideologia. Os relatos produzidos no amplo recorte de estudo, as zonas de fronteira do
ocidente no decurso de um século, de fins do século XVIII à primeira parte do século
seguinte, não devidamente inseridos em seus contextos, são pacientemente submetidos às
ferramentas de análise que ela mesma forja ou toma emprestado de ensaístas como
Gayatri Spivak e Fernando Ortiz, com o intuito de evidenciar a complexidade própria a
construção de significado no encontro de culturas diversas, e o quanto isto esteve
intimamente vinculado à manutenção ou composição de hegemonias.

A delimitação efetuada pela autora obedece ao pressuposto de que, em meados do


setecentos, engendrava-se na sociedade europeia uma nova maneira de conceber o mundo
- uma nova “consciência planetária”, em seus termos – vinculada ao surgimento de uma
história natural e aos novos padrões iluministas de racionalidade, bem como à uma nova
etapa do capitalismo, caracterizada pela busca por matérias primas e pela necessidade de
expandir mercados, isto tudo concorrendo para uma maior sensibilidade em relação as
partes interioranas dos continentes. O expansionismo europeu e sua ânsia por domínios,
enquanto pano de fundo de toda a narrativa, favoreceu a intensificação das relações
estabelecidas entre metropolitanos e as áreas coloniais, influindo, por conseguinte, na
própria evolução do gênero de viagem, que caminha lentamente de uma literatura de
sobrevivência, própria as viagens marítimas, aos textos naturalistas.

Desse modo, Mary L. Pratt situa os vestígios dessa mudança de sensibilidade em


dois eventos ocorridos no ano de 1735: a partida da primeira expedição científica
internacional, que buscava sanar discussões a respeito da forma do mundo; e a publicação
de O sistema da Natureza, de Carl Linné, um sistema classificatório, que oferecia
tipologias e nomenclaturas que possibilitavam a sistematização do mundo natural. A
significativa mudança na percepção da natureza, não enquanto algo naturalmente
harmônico, mas caótico, que requeria a intervenção racional que a ordenasse, bem como
a possibilidade de penetrar territórios distantes através de argumentos aparentemente
neutros, científicos, foram as bases dos projetos totalizadores empreendidos pelo
continente metropolitano. Assim, o manuseio do discurso científico como instrumento de
imposição de formas classificativas, que permite a naturalização da imagem do viajante
enquanto algo benigno, corresponde àquilo que a autora cunhou por “anticonquista”, ou
seja, as estratégias de representação que expõe uma imagem de inocência ao mesmo
tempo em que garantem a expansão de seu domínio.

A figura do passivo “herborizador” disperso pelo mundo a aplicar o programa


lineano havia sido a principal imagem do novo momento da narrativa de viagem, que
fundamenta a autoridade científica ao mesmo tempo em que cria um paradigma
discursivo fundado em uma análise minuciosa que nomeia e classifica a natureza,
conquanto ainda entremeada por relatos, evidenciando que o texto navegava entre
públicos diversos, o círculo científico e a população mais ampla. O empreendimento de
viagens e o florescimento de narrativas a respeito de terras interioranas procederam, em
suma, de uma nova sensibilidade e de um projeto totalizante europeus, abrindo caminho
para que outros textos, embora desapegados da perspectiva classificatória da natureza,
formulassem juízos a respeito dos outros continentes.

Como argumenta Mary L. Pratt, o processo de reinvenção ideológica da América


no decurso da primeira metade do oitocentos, a partir dos textos dos viajantes Alexander
von Humboldt e Aimé Bonpland e das relações estabelecidas entre os dois lados do
Atlântico, não deve ser desvinculado da expansão econômica europeia. Inseridos no
mesmo curso iniciado pelos lineanos de partir rumo à terras desconhecidas, estes dois
viajantes compuseram textos sobre a América espanhola, segundo a autora, coerentes
com o interesse europeu de domínio, ao representarem-na enquanto constituída por uma
natureza exuberante e selvagem, em grande medida destituída de habitantes. Conquanto
pretendesse renovar o gênero de viagem, negando-se as monótonas descrições da escrita
estritamente científica, Humboldt não as abandona por completo, antes conservando o
vínculo entre a prosa e a classificação, refazendo essa relação sob novos padrões estéticos
que tocassem a sensibilidade de seus leitores.

O traço ressaltado que vincula o texto de Humboldt à tradição lineana reside na


desconsideração crescente das sociedades que habitavam os lugares visitados,
conformando com isso a imagem de uma América primitiva, composta por uma natureza
maravilhosa e tendo como marcas de cultura apenas objetos arqueológicos provenientes
de civilizações então inexistentes, um continente cujas marcas de três séculos de
colonização pouco evidenciavam-se na narrativa. Assim, as estratégias discursivas
empregadas para tratar de modo indireto ou mesmo ocultar os informantes esconde, por
vezes, o aspecto transcultural próprio a textos elaborados em zonas de contato. Com
efeito, Mary L. Pratt interroga em que medida as interpretações de Humboldt sobre a
América haviam sido não apenas guiadas, mas influenciadas pelos naturais, e cita como
contraponto a estampa de um tecido, a arpillera, em que os princípios de composição da
organização da agricultura vertical são semelhantes aos que o viajante faz uso para
representar o monte Chimborazo.

Conforme é apresentado no texto, as narrativas sobre a América que se seguiram


as de Humboldt são numerosas em decorrência da abertura das repúblicas americanas
recém emancipadas aos estrangeiros, permitindo a autora descrever as peculiaridades de
uma nova maneira de travar relações entre os metropolitas e a periferia a partir de um
recorte de gênero. Os relatos de viagem masculinos, os quais a autora nomeia de
vanguarda capitalista, haviam abandonado tanto o receio das primeiras obras naturalistas
em evidenciar o vínculo existente entre a elaboração dos escritos e os interesse
econômicos adjacentes, como a sobre valoração da natureza tal qual os românticos,
passando por conseguinte ao deslindar da paisagem, prioritariamente, aquilo que ela
poderia oferecer, e a reclamar do quanto os naturais foram incapazes de lançar mão da
indústria e de maneira produtiva extrair riquezas dos recursos disponíveis, antes
embrutecendo em meio a mata e os selvagens. Os relatos femininos, à exemplo dos de
Flora Tristan e Maria C. Graham, são de outro feitio, dedicando-se antes às reflexões
políticas e sociais que as econômicas, tendo por centro a “temática doméstica”, isto é,
enredos marcadamente mais reflexivos que descritivos que se desenrolam em torno de
suas residências. Ao passo que a vanguarda capitalista esteve mais interessada na
realização de seus percursos previamente delineados e em avaliar as potencialidades dos
locais que visitou; o discurso feminino de viagem, por sua vez, buscou a auto realização,
o que demonstra o quanto são narrativa conformadas pela sociedade de origem.

Ao recorrer à literatura crioula do pós-independência da América hispânica para


demonstrar o quanto as concepções acerca da América eram tributárias das narrativas
humboldtiana, Mary L. Pratt inicia uma discussão minuciosa acerca das relações
existentes entre a narrativa de viagem e a conformação de identidades nacionais. Como
argumenta, embora a narrativa de Humboldt tenha sido a matéria-prima a ser utilizada
pelos americanistas crioulos ao comporem uma identidade para o continente, a exemplo
da ode americana de Andrés Bello, interpretar o uso de suas obras enquanto mera
submissão às interpretações europeias seria cair em um reducionismo corrente, ofuscando
com isso a criatividade e as disputas locais. Com efeito, os trabalhos de Humboldt foram
apropriados pelas elites locais americanas enquanto fontes para a elaboração de uma
ideologia que justificasse a manutenção das desigualdades herdadas da colônia. Ao
apropriarem as narrativas de exaltação da natureza exuberante, a tríade planícies florestas
montanhas, os crioulos selecionaram e compuseram o sonho bucólico de uma sociedade
agrária, omitindo com isso os anseios da população parda, e em contraposição aos
interesses industrialistas europeus.

A narrativa de viagem do crioulo Domingo Faustino Sarmiento sobre a sociedade


europeia, último exemplo do gênero apresentado, conquanto conserve suas
especificidades por se tratar de um percurso inverso, a viagem de um indivíduo da região
colonial rumo à metrópole, a autora revela os traços próprios a essa literatura. A inversão
evidentemente havia sido a principal estratégia para a composição do outro e de um “nós”,
a exemplo do recurso à figura do flaneur em analogia ao explorador do interior, ou quando
de sua ida ao norte da África e sua acentuada identificação com os franceses em
contraposição à pulação local. A autora, demonstrando o quanto são prorrogadas as
inversões dessa natureza na cultura latino-americana, encontra nelas a raiz do realismo
fantástico bem como das apropriações diversas de Humbold na literatura latino-
americana, demonstrando com isso a perenidade de um discurso continuamente
manuseado.

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