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UM PILÃO NO 9º ANDAR

Dá lincensss.
A voz empurrava o espaço para dentro, criava assunto. O que se passa, ó
vizinho? – perguntou o do nono.
Se passa o problema de morar. Quando se mora, tudo fica perto.
Um prédio é uma casa só, inteira de única. Todos, no prédio, são noivos do
mesmo espaço. Matrimoniados pelo mesmo habitar. Acredite, a vizinhança é um
casamento. Veja lá: os quartos adormecem encostados uns aos outros. Os filhos
dos vizinhos gritamo-lhes ralhando com os nossos. Nos cheiros provamos a comida
alheia antes de ela ser servida lá, na respectiva casa. Somos os dois lados da
parede, um e outro, não acha?
E porquê esta toda introdução, meu amigo?
É que é por causa disso, por causa dessa introdução, que eu estou aqui,
vizinho. Então veio a minha casa por causa de uma introdução?
Calma, eu explico: esse seu pilão, no 9º andar, barulha até lá no chão. É um
barulho: até doenta-nos os ouvidos. Tunc, tunc, tunc... É de mais, parece que estão
a pilar a cabeça da gente. A nossa paciência, caro vizinho, está nos últimos grãos.
Desculpa-me, mas eu tenho que lhe fazer esta autocrítica.
O homem do 9º andar aceitou a queixa, razão dos incómodos sonoros. E
explicou, apontando a menina: a pilosa é a minha sobrinha. Mas tem que ser,
desculpe. A farinha toda moemos aqui em casa. Não pilamos por gosto.
Mas o queixoso não desarma e prossegue os seus argumentos. O vizinho, diz
ele, tem o chão lá no pátio que é tanto e funciona tão bem, sem avaria. Aí no chão é
o lugar próprio de pilagens. A sua sobrinha mais o pilão devem descer.
Sim, o outro, mas o vizinho inferior tem que pensar nas inconveniências
sucedíveis. Outro dia, veja lá, o elevador avariou-se. A sobrinha, coitada,
desconseguiu de carregar o pilão. Não podia subir as escadas, ou acha? Claro que
não, o pilão é um peso vertical. E ela deixou lá o pilão, deixou-lhe no tal em baixo
que você está propor. Que aconteceu ainda por cima do resultado? Não sabe, nem
chegou de ouvir? Pois, vizinho: roubaram o pilão. Roubaram todo de uma vez. E
hoje o preço do pilão está mais que caríssimo. É um preço, vizinho. Está certo,
compreendeu o queixoso. Mas diga-me uma coisa: agora o elevador já funciona
mais outra vez, já repararam. O vizinho ou a sobrinha podem viajar de pilão, do rés
ao nono.
Com certeza, o outro respondeu, mas se estando no piso terrestre o levador se
lesiona maistravez? Ou aqui há horário de avarias? Isso só nos países avançados,
meu amigo. E depois, lá se desaparece outro pilão. Não, isso não, se faça-me um
favor. Lhe encomendo uma pergunta, com a sua licença: o guarda-chuva nos guarda
a nós ou à chuva?
O reclamante não entendeu a questão. Respondeu, expondo uma ideia: e se
você guardasse o pilão na minha garagem? Lá tenho a minha carrinha nova mas ela
não ocupa tudo, fica um espaçozinho, dá muito bem para o pilão.
E assim acordaram os dois, o vizinho e o outro. A sobrinha ficou com uma
cópia da chave do cadeado e lá pilava no pátio, tunc, tunc, tunc, mas agora só a
terra sofria e ela, a terra, nem queixava. A terra tem tanta paciência com os homens,
nem uma mãe! Mas eis um dia: volta o reclamante, cara de azedos. O outro, o do
nono, sem compreender: o que se passa, meu amigo? É o barulho? Mas já
terminou, o pilão trabalha lá em baixo, conforme do nosso acordo audiplomático. O
pilão não é, vizinho, mas agora tenho a minha carrinha nova toda riscada, essa sua
sobrinha não tem nenhum cuidado, está tudo raspado, se fosse a um bate-chapa
não vinha assim tão raspadinha. Se apanho essa sua sobrinha risco-lhe o focinho.
Calma, vizinhinho. Calma que isso se resolve, há sempre um meio. Somos
parentes bastante geográficos, não somos? Vamos analisar a situação: o pilão, por
acaso ninguém o roubou ultimamente, estou bastante satisfeito com o
comportamento desse pilão. Agora, sobre a sua carrinha, vamos lá ver. Não será o
senhor, caro vizinho, pode deixar a carrinha cá fora e a garagem fica só
exclusivamente com serviço de guardar o pilão. Que tal, vizinho? Não me responde?

MIA COUTO – Cronicando, Editorial


Caminho

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