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Hoje a escrita tem seu lugar dentro dos estudos lingüísticos, mas no início, ela
estava em segundo plano.
A língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do
segundo é representar o primeiro; o objeto lingüístico não se define pela
combinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última por si só,
constitui tal objeto. Mas a palavra escrita se mistura tão intimamente com a
palavra falada, da qual é imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal.
(SAUSSURE, 1999, p.34)
A fala e a escrita.
É de conhecimento geral que a escrita surgiu muito depois da fala, e é resultado
de uma grande evolução cultural. A escrita surgiu na Suméria em torno de 3100 a.C. e
se espalhou rapidamente. Ela não era de domínio público, somente alguns poucos
conseguiam escrever e ler. Como lembra Scliar-Cabral (2003), a linguagem verbal oral
se desenvolve espontaneamente, desde que haja traços de humanização, enquanto
que a linguagem verbal escrita é uma invenção, cuja aprendizagem intensiva e
sistemática é necessária, na maioria dos casos.
Mesmo sendo modalidades da mesma língua, a fala e a escrita não são iguais,
pois cada uma delas segue os seus próprios princípios. A escrita não é uma simples
transcrição da fala, há outros elementos em questão, como a ortografia, que torna a
escrita uma modalidade de difícil transformação. Se na fala nós podemos encontrar
variações lingüísticas em pronúncia ou mesmo em estruturas frasais, o mesmo não
acontece na escrita, pois esta não acompanha o ritmo de modificação da fala. Na fala
podemos aceitar a pronúncia ‘pegaru’ para expressar uma situação do passado;
contudo, jamais esta escrita é admitida, pois é contrária à convenção ortográfica de
usar a terminação ‘am’ para grafar o pretérito. A fala é o lugar da variação, enquanto
a escrita é o lugar da neutralização da variação, como salienta Massini-Cagliari
(2001). A fala está sujeita a constantes variações de origem social, regional, individual
etc, visto que não há uma ‘lei’ que impeça a fala de passar por tais modificações, pois
a língua é viva. Ao passo que o código escrito é uma forma congelada, regida por
regras ortográficas, vinculado à norma padrão da língua e ao cânone literário, o que
dificulta, e muito, a mudança na língua escrita.
É possível elencar diferenças entre fala e escrita, algumas delas, como as
condições de aquisição, a presença do interlocutor, a admissão da variação, já
discutimos no texto acima. Fávero, Andrade e Aquino (1999, p. 66) trazem ainda
outras diferenças relativas ao processo de produção da fala e da escrita:
FALA ESCRITA
Interação face a face. Interação à distância (espaço-temporal).
1
Lembramos que uma fala, fora dos padrões socialmente aceitáveis, também pode gerar segregação social, mas não é objetivo
deste trabalho discutir este problema.
pedagogicamente adequada, ou pode servir como esclarecimento sobre o
funcionamento da língua, ajudando assim na atuação do professor em sala-de-aula.
Seguindo essa lógica, as duas modalidades, oral e escrito, não podem ser
consideradas independentes, mas também, nenhuma delas, particularmente a
escrita, não pode ser colocada sob o domínio completo da fala. Kato (1986), ao tentar
dar conta desta relação fala e escrita, nega um heteromorfismo completo entre estes
dois sistemas e defende um isomorfismo parcial entre eles, deixando, nas entrelinhas,
essa capacidade de um sistema influenciar o outro.
O que diremos a seguir tentará sustentar a tese de que a fala e a escrita são
parcialmente isomórficas; mas que, na fase inicial, é a escrita que tenta
representar a fala – o que faz de forma parcial – e, posteriormente, é a fala que
procura simular a escrita, conseguindo-o também parcialmente. O esquema
abaixo tenta captar essa direção:
fala1 escrita1 escrita2 fala 2
A fala1 é a fala pré-letramento; a escrita1 é aquela que pretende representar a
fala da forma mais natural possível; a escrita2 é a escrita que se torna quase
autônoma da fala, através de convenções rígidas; a fala 2 é aquela que resulta
do letramento. (KATO,1986, p.11 e 12 ).
A escrita e a fala caminham juntas, uma interagindo com a outra,
principalmente no início do processo de aquisição da escrita, em cujo momento a
criança vai apoiar-se no seu repertório fonológico para começar a estabelecer as
relações som e letra, característica de uma escrita alfabética. Um pouco mais adiante,
com a apropriação das regras ortográficas, a escrita começa a se distanciar da fala. É
justamente este ponto, onde a oralidade deixa sua marca na escrita, já iniciando a
agregar os elementos ortográficos, o objeto desta pesquisa. Entender esta passagem
é vital também para entender os processos de escrita que aparecem nesta fase, bem
como tentar capturar a lógica do pensamento infantil ao operar com a linguagem.
Estes momentos, “que atestam o vazamento, para o espaço da oralidade, constituem
belos exemplos do processo de reconstrução da relação do sujeito com sua
linguagem” (ABAURRE et alii, 1997).
REFERÊNCIAS
ABAURRE, M.B.M; PAGOTTO, E.G. Nasalização do português do Brasil. In: KOCH, I.G.V.
(org). Gramática do Português falado. Campinas: Fapesp, v. VI, p.495-526, 1996.