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Globalização, Desfiliação e Mal-estar contemporâneo

Michelly Xavier Mirailh

Cristine Monteiro Mattar

A partir do mundo dividido pela chamada “Globalização”, entre os livres


consumidores e os que são obrigados a se fixarem em difíceis condições de sobrevivência,
chega-se ao que Castel chama de desfiliação, ruptura das redes sociais e dos vínculos
profissionais, que mantém grande contingente da população mundial alijado de qualquer
integração, sendo fonte de sofrimento psíquico na atualidade. Através do documentário
“Eu, um Negro” do cineasta francês Jean Rouch, abordaremos importantes questões
presentes na pós-modernidade, como globalização, vulnerabilidade dos laços sociais e de
trabalho e desfiliação. Descreveremos como tal obra, produzida em 1958, sob o modelo do
Cinema Verdade Francês, ao estar ligado às Ciências Humanas e Sociais, exemplifica e
lança o debate sobre características tão presentes na atualidade.

Bauman em seu livro “Globalização: As consequências humanas” (1999) propõe


que a sociedade atual é uma sociedade de consumo. Não que as sociedades anteriores não
adquirissem bens de consumo, mas que apenas nesta “A maneira como a sociedade atual
molda seus membros é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel
de consumidor” (Bauman, 1999, p. 88).
O consumo atual, porém, não envolve apenas a satisfação plena, mas a satisfação
instantânea, em que não é necessária nenhuma habilidade ou reflexão mais profunda para a
mesma e deve durar o mínimo de tempo possível. Como afirma Bauman (1999, p. 90): “A
cultura da sociedade de consumo envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado.”
Nesta nova forma de organização social o que atormenta os consumidores não é a
satisfação, mas os desejos ainda não percebidos. Para eles, estar sempre em movimento,
sempre procurando e nunca satisfazendo não significa mal-estar e sim o prazer da
“viagem”, são acumuladores de sensações, mais do que colecionadores de coisas.

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Tal forma de estar e agir no mundo, vivenciada como a única possível pelos que a
praticam, vai ao encontro e se retroalimenta com o contexto atual de globalização, em que
as distâncias são obstáculos facilmente superáveis através de sempre novas tecnologias. A
globalização promove então a produção e a venda do efêmero, flexibilizando as relações
sociais, e surge o descompromisso em todos os níveis, seja no ambiente organizacional,
com a precarização dos empregos, seja no consumo desenfreado. Como Castel (1993)
salienta, a precarização não pode ser atribuída somente à dimensão econômica de uma
“crise” global, já que a riqueza nacional continua crescendo, apesar de que num ritmo mais
lento, e sim a “uma reestruturação da produção em torno da recomposição e da inflação da
categoria da precariedade que se acreditou submetida no que concerne ao essencial.”
Desta forma, a probreza “não é somente o contrário da riqueza, mas o resultado de uma
dupla dinâmica de precarização e fragilização” (Castel, 1993, p.46).
Para Bauman (1999), os indivíduos que podem usufruir dessa suposta possibilidade
de escolher o tempo todo o que consumir, e assim o que ser e onde estar, vagando pelas
opções sem compromisso e sem consequências, são os chamados “turistas”. Enquanto que
os que não podem escolher, majoritariamente por razões econômicas, são os “vagabundos”.
Os primeiros são sempre bem recebidos onde quer que estejam, num mundo sem limites e
em que nenhuma distância é suficientemente grande para impedir seu desejo. Enquanto que
os segundos podem também desejar, mas não podem ser consumidores, sempre tem de sair
quando gostariam de ficar e ficar quando gostariam de sair, freqüentemente expulsos e mal
recebidos pelos turistas.
Obviamente os turistas desejam um mundo sem vagabundos, lembrança irredutível
de que o turista sempre pode voltar a ser ou se tornar um vagabundo. Entretanto, a
existência de um depende do outro. Ambos são consumidores e os vagabundos admiram a
vida do turista. Nunca podem alcançar a satisfação, o que poria fim ao império do consumo.
Segundo Bauman (1999): “Não há turistas sem vagabundos e os turistas não podem ficar à
solta se os vagabundos não forem presos [...]”.
Castel (1993) em seu texto "Da indigência à exclusão, a desfiliação - Precariedade
do trabalho e vulnerabilidade relacional” aponta como a classificação de indigentes em
aptos e inaptos para o trabalho há mais de sete séculos contribui para a estratificação social,

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utilizando-se correntemente da assistência de maneira restritiva e não provedora de
sustentabilidade.

Castel descreve que a assistência é oferecida apenas aos inaptos para o trabalho,
“[...] inválidos de todo tipo, os velhos e os doentes sem recursos, as crianças abandonadas e
miseráveis, por vezes, as viúvas pobres, se elas forem responsáveis por uma grande prole
[...]” (Castel, 1993, p. 24). Os indigentes aptos para trabalho, indigentes muitas vezes por
não terem acesso a um trabalho suficiente para o seu sustento, não são apoiados, mas são
impelidos à mobilidade profissional, e freqüentemente também levados à mobilidade
geográfica.
Para Castel (1993) o trabalho sustentável e a sociabilidade sócio-familiar são os
principais responsáveis pela integração e inserção, e sua ausência, pela não integração e
não-inserção. A conjunção desses dois vetores, quando negativos, caracteriza uma situação
de desfiliação, “um modo particular de dissociação do vínculo social”.
Como já citado, Bauman (1999) aponta que as sociedades anteriores à sociedade de
consumo tinham como prioridade o trabalho e a produção. Agora, mum contexto de pós-
modernidade, o indivíduo tem como principal objetivo consumir. Podemos propor então
que a falta dos fatores apontados por Castel (1993) como integradores, aliados à
impossibilidade da vivência como turista, ratificam a experiência de desfiliação e a
polarização do mundo. Nas palavras de Castel (1993):

a desfiliação não é apenas um estado, mas uma maneira de ser (um ‘ethos”)
vivida nesta relação com o tempo simultaneamente eterno e fugidio, com um
passado muito fino, pois poucas coisas foram transmitidas familiarmente,
escolarmente, culturalmente e com muito pouco porvir, pois não existem mais
que frágeis suportes em que possam atar neles uma trajetória: no future.

Castel (1993) propõe que o nível de inserção do sujeito pelo trabalho e pela
sociabilidade sócio-familiar configura zonas nas quais o indivíduo pode transitar: zona de
integração, zona de vulnerabilidade, zona de desfiliação e ainda, zona de assistência.
A zona de integração “significa que se dispõem de garantias de um trabalho
permanente e que se pode mobilizar suportes relacionais sólidos”, enquanto que a zona de
vulnerabilidade “associa precariedade do trabalho e fragilidade relacional”, e a zona de

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desfiliação, por sua vez, “conjuga ausência de trabalho e isolamento social” (Castel, 1993,
p. 30).
A zona de assistência é efeito da associação “não-trabalho por incapacidade de
trabalhar” e “forte coeficiente de inserção social”. Refere-se à “dependência segurada e
integrada, diferente ao mesmo tempo da zona de integração autômoma pelo trabalho e da
zona de exclusão pelo não-trabalho e pela não-inserção (desfiliação)” (Castel, 1993, p. 31).
O documentário “Eu, um Negro” (Moi, un noir, 1958) do cineasta francês Jean
Rouch pode ser aqui lembrado, por apresentar e exemplificar tais questões.
A obra é representante do universo do Cinema Verdade francês, no qual é evidente
sua relação com as Ciências Sociais, em especial a antropologia – o olhar etnográfico
aliado à arte, e o desacordo com a premissa de neutralidade do Cinema Direto norte-
americano, lidando com a verdade do cinema, ao invés da verdade no cinema.
O Cinema Verdade francês teve seu surgimento vinculado às Ciências Sociais em
função da formação acadêmica no campo da antropologia e da etnologia de seus cineastas.
Eles defendiam um novo modo de se fazer cinema, que trabalhasse com a interatividade,
que mostrasse e brincasse com o estar presente.

Essa corrente estava em oposição à imparcialidade e à objetividade defendidas pelo


Cinema Direto norte-americano como modelo fiel de representação do real, por acreditar
que a neutralidade proposta da câmera e do gravador seja uma falácia. Para os defensores
do Cinema Verdade, quando uma câmera é ligada, produz-se involuntariamente uma
mudança no modo de agir das pessoas, devido à falta de privacidade que sua própria
presença provoca. Defendiam, portanto, sua utilização como instrumento consciente de
produção dos próprios eventos, visando provocar situações reveladoras, característica
predominante em sua linguagem.

Jean Rouch e Edgar Morin, principais precursores desse modelo, defendem que a
idéia de Cinema Verdade enfatiza a verdade de um encontro em vez da verdade absoluta ou
não-manipulada, ou seja, como o cineasta e as pessoas que representam seu tema negociam
um relacionamento, como interagem, que formas de poder e controle entram em jogo e que
níveis de revelação e relação nascem dessa forma específica de encontro (Nichols, 2005).

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Rouch tem sua produção marcada pela afinidade com a antropologia. A estética de
seus filmes está diretamente relacionada com essa experiência de “trabalho de campo”.
Grande parte de sua produção cinematográfica foi realizada na África, e constitui capítulo
fundamental para o surgimento do chamado “filme etnográfico”.

Ao tratar da vida cotidiana, dialogando com o(s) personagem(s) e mostrando sua


construção pelo próprio sujeito, e ao realizar seus filmes dentro de uma lógica que
contivesse exatamente esse ato de criação, Rouch desenhou uma estética que, valorizando a
forma como via o outro, revelava seu próprio modo de ver e interagir com o mundo. Este
tipo de reflexão implicava uma proposta ousada, que aponta para um novo modo de
documentar, incorporando a ficção.

Em Moi, un noir Rouch propõe a um grupo de jovens que inventem papéis para si
mesmos e os acompanha durante alguns meses. Não hesita em misturar dados factuais com
ficção, coloca-os em cena e os convida a criar o filme em conjunto.

O documentário começa com uma curta narração em off que localiza o filme e
contextualiza a situação em que vivem os personagens. Logo após, o personagem Edward
Robinson apresenta a cidade em que vive: Treichville (então a maior cidade da Costa do
Marfim), e a partir daí, poucas são as falas do narrador.

As imagens foram capturadas sem som e só depois de montado o longa-metragem,


os próprios “personagens-atores” recriaram suas falas, de maneira improvisada, sem
preocupação em encaixá-las com o movimento dos lábios. Assim, o som não-sincrônico
que caracteriza o filme combina dublagens e comentários espontâneos.

Utilizando-se da voz em off, colocada a posteriori da filmagem, Rouch permitiu que


os atores também fossem autores e adicionassem interpretação narrativa e memória
subjetiva à atuação já consumada numa espécie de “releitura comentada de si próprios”. “O
jogo entre imagens e falas não-sincronizadas abre espaço para a intervenção da memória,
dos sonhos e das fábulas.” 1

A possibilidade dos atores “interpretarem a si mesmos” no momento da gravação e


na inclusão do som permitiu que os jovens pudessem experienciar a possibilidade de ser o
que quiserem, ricos ou pobres, nigerianos ou americanos e até mesmo campeões de boxe.
1
DUMARESQ, Daniela – VIII Encontro SOCINE.

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Já na primeira narração em off é explicitada a experiência de desfiliação na qual os
atores vivem. São jovens desempregados que abandonaram a família e a escola para,
segundo o narrador, “entrarem no mundo moderno”.

Os atores e seus personagens são emigrantes nigerianos, sujeitos à mobilidade


profissional e à mobilidade geográfica. Nas palavras do narrador:

Todos os dias Robinson e seus amigos procuram trabalho. Cargas que vão para
qualquer lugar, por qualquer preço, cobrador, coletor de passagem na estação,
vendedor ambulante, vendedor de tecidos de seda, taberneiro, estivador ou como
Robinson e Ellit, carregadores à disposição dos empregadores. Que importa? À
noite, eles dividirão os ganhos do dia jogando cartas.

Ao interpretarem seus personagens, os atores deixam clara a admiração pelo que


seriam os “turistas” de Bauman, e a infelicidade por sua situação de “vagabundos”.

O personagem Edward Robinson aponta como é ruim ser pobre, não ter acesso às
coisas novas que sempre chegam, não morar em edifícios, e sim em casas mal construídas e
não poder se locomover de “bicicleta, mobilete, carro, motocicleta”2, sempre andando a pé.

Ele expressa sua admiração pelos ricos, que tudo podem e tem acesso a tudo de
todas as formas. Durante todo o filme, tanto pelas falas dos personagens, como pelas
referências pelos habitantes reais da cidade, é citado o prazer da vida de turista,
especificamente do norte-americano. Treichville é comparada a uma “Chicago da África
Negra”.

Assim como os turistas, Edward Robinson é também consumidor, o que é


explicitado na cena em que almoça em um dia de trabalho. Apesar de vagabundo, Edward
consome e tenta aproximar-se da vida de turista, afirmando, por exemplo, que já esteve em
todos os lugares e teve todas as mulheres que pôde.

O personagem aproxima-se da vida de turista também ao se divertir no dia de


sábado, consumindo e escolhendo. Ao mesmo tempo, porém, o ethos da desfiliação e da
vida como vagabundo o atormenta, já que mesmo em dias de folga não pode consumir tudo
o que gostaria e ao reiniciar-se a semana, terá que retornar à mobilidade profissional.

2
Fala do personagem Edward Robinson em “Eu, um negro”.

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Assim como Castel (1993) propõe, a sociabilidade sócio-familiar está presente no
filme como um fator de equilíbrio para a precariedade dos laços de trabalho. Os jovens
imigrantes estão alojados na Fraternidade Nigeriana e ali desenvolvem seus
relacionamentos sociais.

Outro momento evidente desta sociabilidade é a celebração do Goumbé, “sociedade


de mistura de música e dançarinos de uma dança”. 3 Para fazer parte desta organização, é
necessário o pagamento da cota mensal de 50 francos, mas na festa é permitida a presença
de dançarinos amadores. Inclusive com a possibilidade de serem eleitos os reis da festa,
como é o caso de Edward Robinson.

Nesse evento fica explícita a interação entre tradição e modernidade, conflito que,
assim como apresentado pelo narrador desde o início, está intensamente presente na vida
desses jovens africanos.

Podemos concluir que o filme retrata fielmente a vivência desses jovens na zona de
desfiliação, e suas transições entre zonas de assistência e de vulnerabilidade. E também a
necessidade de estar na zona de integração, quando os personagens, apesar de enfatizar a
felicidade como a possibilidade de consumir, expressam o desejo de ter uma esposa e filhos
e assim “ser feliz também”4, ser “igual aos outros homens” 5.

Ao contrário da idéia veemente comercializada, ao turista também é imposto o


movimento permanente, à revelia de sua vontade, resultando em inquietação e mal-estar.
Assim como aos vagabundos é imposta a migração, aos turistas é imposto o consumo
constante. Enquanto é veiculado que tal consumo permanente é a real possibilidade de
escolha, consumir nunca é uma escolha livre enquanto permanece não tematizada,
parecendo, ilusoriamente, a única alternativa possível.

No filme os personagens percebem tal imposição a ambos os lados, ao observar que


os turistas têm de sempre consumir para manter-se em suas posições. Para Edward
Robinson e seus companheiros, porém, não há nenhuma alternativa à vida de vagabundo do

3
Fala do personagem Edward Robinson em “Eu, um negro”.
4
idem
5
idem
4

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que a busca pela vida de turista, sob condições extremas de desigualdade social e
impossibilidades de mudança.

Referências

BAUMAN, Z. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Editor, 1999, p. 85-110.

8
CASTEL, R. "Da indigência à exclusão, a desfiliação - Precariedade do trabalho e
vulnerabilidade relacional". In: LANCETTI, A. (org.) Saúde Loucura 4. São Paulo, Grupos
e coletivos, Hucitec , 1993 [1991], p. 21- 48.

DUMARESQ, Daniela. Citações e referências a documentos eletrônicos. Online: disponível


na Internet via http://www.unicap.br/socine/resumosS16.htm Arquivo consultado em 1 de
julho de 2008.
EU, um negro. Direção de Jean Rouch. França: Videofilmes, 1958. 1 DVD (72 minutos):
son. Sem legenda.
NICHOLS, B. Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2005.

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